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Entre o tráfico internacional e a restituição de bens culturais de interesse patrimonial: as repercussões da convenção da UNESCO de 1970 (1970-1980)

Between International Trafficking and Restitution of Cultural Heritage: The Repercussions of the 1970 UNESCO Convention (1970-1980)

RESUMO

Malgrado a Convenção da UNESCO (1970UNESCO. Convenção relativa às medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas dos bens culturais. Paris: UNESCO , 1970.) tenha completado 50 anos em 2020, ainda não se identificam muitas publicações dedicadas à discussão de suas repercussões no interior da ONU e da UNESCO, particularmente durante o seu período de consolidação institucional (1970-1980). Este artigo procura contribuir nessa direção. O texto encontra-se organizado em três partes. Na primeira, reflito sobre os argumentos mobilizados na convenção para explicitar a sua razão de ser. Em seguida, discuto as principais repercussões da convenção no interior das organizações citadas. Por fim, desenvolvo o argumento central do artigo: a constituição, pela UNESCO, de um comitê dedicado à restituição aos países de origem de bens culturais apropriados ilicitamente, em 1978, obstaculizou a ratificação da convenção por parte dos Estados granjeados pela entidade. Finalizo o texto com ponderações acerca dos desafios futuros no que concerne à temática tratada.

Palavras-chave:
UNESCO; Restituição de bens culturais; Tráfico internacional; Patrimônio; História

ABSTRACT

Although the UNESCO Convention (1970UNESCO. Convenção relativa às medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas dos bens culturais. Paris: UNESCO , 1970.) will be 50 years old in 2020, we have not identified many publications dedicated to the discussion of its repercussions within the UN and UNESCO, particularly during its period of institutional consolidation (1970-1980). This article seeks to contribute in this direction. It is organized in three parts. On the first part, I reflect on the arguments mobilized in the convention to explain its relevance. Then, I discuss the main repercussions of the Convention in the aforementioned instances. Finally, I present the central argument of the article: the constitution, by UNESCO itself, of a committee providing for the restitution to the countries of origin of illicitly appropriated cultural property, in 1978, obstructed the ratification of the Convention by the States embraced by the entity. I conclude with considerations about the future challenges concerning the subject.

Keywords:
UNESCO; Restitution of Cultural property; International trafficking; Heritage; History

INTRODUÇÃO

Elaborada sob os auspícios da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Convenção Relativa às Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais1 1 Doravante, Convenção da UNESCO de 1970. completou 50 anos em 14 de novembro de 2020. Ofuscado pelo vertiginoso crescimento da pandemia da Covid-19, o momento foi objeto de discretas comemorações por parte da UNESCO. O ponto alto da efeméride foi a realização de numerosas conferências e palestras, muitas proferidas em língua inglesa, tanto por representantes da UNESCO quanto por experts vinculados a organizações internacionais historicamente entrelaçadas pela convenção.

Além de atividades promovidas pelos escritórios regionais da UNESCO, a programação comemorativa contou com outras ações celebratórias ofertadas por instituições como a Organização Mundial das Alfândegas, a Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), o Conselho Internacional de Museus (ICOM), o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), assim como por forças policiais especiais de países europeus, tais como o Italian Carabinieri, a New Scotland Yard e a Bundespolizei2 2 A programação comemorativa pode ser conhecida em Celebrate 20 Years... (2020) .

Pelo YouTube, a transmissão global de palestras e conferências chanceladas pela UNESCO deixou evidente que a comemoração dos 50 anos da convenção tinha como mote, de um lado, a discussão sobre a restituição e o retorno de bens culturais ilicitamente removidos de seus contextos de origem, e, de outro, relembrar os Estados membros da organização acerca da necessidade de manterem o seu compromisso em relação ao combate ao tráfico ilícito de artefatos de interesse patrimonial (relíquias, antiguidades, objetos arqueológicos, obras de arte etc.). Ao dar vazão a essas questões, ganharam protagonismo nas atividades comemorativas entidades internacionais com escopos diversificados e que, em alguns casos, contrastavam com o mandato da UNESCO, em detrimento de pesquisadores, acadêmicos, gestores de espaços de memória e outros públicos especializados no estudo da historicidade da convenção e de suas repercussões nos Estados-Partes e no interior da própria UNESCO.

À sua maneira, este artigo pode ser considerado uma tentativa de abertura de diálogo nessa direção. Constituindo-se como resultado dos projetos de pesquisa Pelos bastidores da UNESCO: a construção de consenso em torno de bens considerados patrimônios mundiais (1970-1990) e Pelos bastidores da UNESCO: estratégias para uma governança em rede do patrimônio mundial (1970-2020)3 3 Os projetos foram desenvolvidos durante os anos de 2018 a 2022 por estudantes, professores e pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade (mestrado e doutorado) e dos cursos de História e Artes Visuais da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Em seus quatro anos de duração, ambos contaram com aportes financeiros e concessão de bolsas do Fundo de Apoio à Pesquisa da Univille. Mais informações a respeito desses projetos podem ser encontradas no site do Grupo de Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença - GPCCD (2022). , o texto enfoca tanto a análise da historicidade da Convenção da UNESCO de 1970 quanto as suas repercussões em debates travados no interior dessa organização. Ao longo do escrito, reservo-me no direito de não proceder a uma caracterização exaustiva das dezenas de disposições da convenção, obrigando os leitores a (re)ler os numerosos artigos, parágrafos e incisos do texto convencional. A bem da verdade, há um número expressivo de publicações que, com base em referenciais teórico-metodológicos de diferentes campos de conhecimento, analisam de forma arguta a arquitetura normativa da convenção4 4 A exemplo de: Sossai et al. (2021), Prott (1983), Lanari Bo (2003), Lindsay (2011), Urbinati (2014), Veres (2014), Yates (2015), Christofoletti (2017), Meskell (2018) e Mackenzie et al. (2020). . Também, a convenção está inteiramente traduzida ao português e pode ser acessada na internet. Aqui, tentarei avançar para além disso5 5 A íntegra da convenção encontra-se disponível em: Convenção Relativa às Medidas... (s.d.). .

O artigo encontra-se organizado em três partes. Na primeira, em diálogo com a bibliografia de referência, analiso os argumentos acionados pela convenção ao explicitar e justificar a sua pertinência à UNESCO e a seus Estados-Partes. Trata-se, portanto, de uma análise que incide sobre a suposta razão de ser da convenção para a organização e seus associados. Em seguida, com base em um volumoso conjunto de documentos primários coletados no UNESCO Archives6 6 A pesquisa documental foi realizada em Paris, nos meses de julho e agosto de 2018, e contou com uma equipe de dois pesquisadores, dois bolsistas e um assistente técnico. As fontes coletadas foram sistematizadas com base em uma Ficha de Análise. Para maiores informações, cf. UNESDOC (s.d.). , aponto e discuto algumas das repercussões da convenção em debates levados a cabo no âmago da organização à época de sua acomodação institucional (1970-1980). Com isso, procuro relacionar tal discussão à fabricação de importantes documentos de políticas de patrimônio expedidos não apenas pela UNESCO, mas também pela Organização das Nações Unidas (ONU), tais como as resoluções de suas Assembleias Gerais. Finalmente, na terceira parte, dedico-me ao desenvolvimento do argumento central deste escrito, qual seja: embora a Convenção da UNESCO de 1970 tenha oportunizado à entidade tornar-se um nó central no combate ao tráfico internacional e na restituição de bens culturais de interesse patrimonial, a constituição pela própria UNESCO, em 1978, de seu Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem ou sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita7 7 Informações sobre o comitê podem ser visualizadas em: “Return & Restitution”... (s.d.). representou um obstáculo para a ratificação da convenção por parte dos Estados congraçados na organização. Por estar posicionado na maquinaria institucional da UNESCO como um intermediário em assuntos atinentes ao tráfico ilícito e à restituição de bens culturais, a adesão ao comitê, à época, funcionou como um álibi para Estados que não desejavam enfrentar esse tipo de tráfico à luz do texto convencional. Para dar mais corpo ao item, além da análise da documentação primária pesquisada no UNESCO Archives, também analiso fontes subsidiárias garimpadas em duas plataformas digitais da UNESCO (Unesdoc e UNESCO Database of National Cultural Heritage Laws, cf. Unesdoc, s.d.; UNESCO Database..., s.d.).

Nessa direção, espero que este artigo seja uma contribuição relevante para estudiosos interessados em melhor conhecer o intrincado processo de consolidação institucional da Convenção da UNESCO de 1970, processo este que a converteu não apenas em um documento de política de patrimônio sensível ao combate ao tráfico global de bens culturais, mas também a elevou ao status de marco normativo internacional para a “fabricação” (Heinich, 2018HEINICH, Nathalie. A fabricação do patrimônio cultural. Tradução de Diego Finder Machado e Fernando Cesar Sossa. Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia, n. 32, pp. 175-186, 2018.) e a “modelagem” (Gfeller; Eisenberg, 2016GFELLER, Aurélie Élisa; EISENBERG, Jaci. UNESCO and the shaping of global heritage. In: DUEDAHL, Poul (Org.). A history of UNESCO: Global Actions and Impacts. Londres: Palgrave MacMillan, 2016. pp. 279-299.) de bens patrimoniais que deveriam ter sido protegidos de eventuais práticas de pilhagem.

A PRESUMIDA RAZÃO DE SER DA CONVENÇÃO DA UNESCO DE 1970

Segundo o jurista e historiador italiano Francesco Francioni (2011), a Convenção da UNESCO de 1970 assinalou uma mudança de atitude dessa instituição em relação ao tráfico internacional de bens culturais. Além de aproximar os termos bens culturais e patrimônio cultural, o texto convencional demarcou uma postura mais crítica por parte da organização no que se refere ao comércio global de antiguidades que, muitas vezes, eram provenientes de “roubo, escavações clandestinas e exportação ilícita” (UNESCO, 1970UNESCO. Convenção relativa às medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas dos bens culturais. Paris: UNESCO , 1970., p. 1). No transcurso da década de 1970, o processo de elaboração, consolidação e difusão da convenção converteu-se em uma estratégia da organização no sentido de exercer “pressão moral” tanto sobre Estados que haviam ratificado o documento quanto sobre Estados nacionais que, inicialmente, optaram por “não fazer parte da convenção” (Lanari Bo, 2003LANARI BO, João Batista. Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significados. Brasília: Edições UNESCO Brasil, 2003., p. 54).

De acordo com Zsuzsanna Veres (2014VERES, Zsuzsanna. The Fight Against Illicit Trafficking of Cultural Property: The 1970 UNESCO Convention and the 1995 UNIDROIT Convention. Santa Clara Journal of International Law, v. 12, n. 2, pp. 91-114, 2014.), historiadora da arte e pesquisadora dedicada ao processo de implementação da Convenção de Haia para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (UNESCO, 1954UNESCO. Convenção de Haia para a proteção de bens culturais em caso de conflito armado. Haia, 14 mai. 1954.), de fato, a convenção de 1970 pode ser considerada um esforço fundamental no tocante à ordenação do comércio internacional de bens culturais, assim como de proteção e restituição de parte do patrimônio cultural pilhado das populações mais vulneráveis do planeta. Quando de sua concepção, a convenção figurou como uma plataforma para o estabelecimento de “diálogos internacionais acerca de bens culturais, bem como forneceu uma estrutura para a proteção e recuperação de objetos culturais8 8 Todas as traduções deste artigo são livres e elaboradas pelo autor. ” (Veres, 2014VERES, Zsuzsanna. The Fight Against Illicit Trafficking of Cultural Property: The 1970 UNESCO Convention and the 1995 UNIDROIT Convention. Santa Clara Journal of International Law, v. 12, n. 2, pp. 91-114, 2014., p. 93) ilegal ou ilicitamente pilhados de seus contextos de origem. Para ela, foi durante os anos 1960 que as discussões sobre a importação de bens culturais removidos ilegalmente de seu contexto original tomaram corpo nos fóruns mais poderosos da UNESCO.

Nesse período, o “comércio ilícito de bens culturais foi visto [pela entidade] como uma diminuição significativa do patrimônio cultural dos países de origem” (Veres, 2014VERES, Zsuzsanna. The Fight Against Illicit Trafficking of Cultural Property: The 1970 UNESCO Convention and the 1995 UNIDROIT Convention. Santa Clara Journal of International Law, v. 12, n. 2, pp. 91-114, 2014., p. 97). Tal diagnóstico exigiu que a instituição criasse estratégias mais eficientes para fazer com que os seus Estados-membros se comprometessem com a contenção do tráfico de bens culturais que transpassavam as suas fronteiras. Segundo a autora:

Em 1960, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais9 9 Ver ONU (1960). . Nos anos seguintes, os novos Estados independentes estavam ansiosos por recuperar itens importantes de seu patrimônio cultural, muitos dos quais se encontravam em museus dos ex-Estados colonizadores. Os novos Estados independentes temiam mais perdas de seu patrimônio cultural, por causa de saques e fundos insuficientes para sua proteção. Embora existissem poucas ferramentas legais para a devolução de bens culturais roubados no passado, existiam meios para impedir quaisquer perdas de futuro. Por meio dessas ações, teve início a Convenção da UNESCO de 1970 (Veres, 2014VERES, Zsuzsanna. The Fight Against Illicit Trafficking of Cultural Property: The 1970 UNESCO Convention and the 1995 UNIDROIT Convention. Santa Clara Journal of International Law, v. 12, n. 2, pp. 91-114, 2014., p. 97).

Sob o calor de debates que reivindicavam a urgente descolonização europeia de países dos continentes africano e asiático, a Convenção da UNESCO de 1970 materializou, em seus “Considerandos”, a sua razão de ser para a organização e seus Estados-Partes. Mobilizando expressões como “cooperação internacional”, “intercâmbio de bens culturais entre as nações”, “dever de proteger o patrimônio”, “dever moral de respeitar o seu próprio patrimônio cultural e o de todas as outras nações”, “velar para que suas coleções sejam constituídas em conformidade com os princípios morais universalmente reconhecidos”, o texto convencional encontrou no patrimônio cultural argumentos para, por um lado, harmonizar, ainda que provisoriamente, interesses dissonantes de países colonizadores e colonizados em relação ao futuro de bens culturais removidos de suas regiões de origem por meio de procedimentos nebulosos (tráfico, saques, troféus de guerra, escavação ilícita etc.) (UNESCO, 1970UNESCO. Convenção relativa às medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas dos bens culturais. Paris: UNESCO , 1970., p. 1). Por outro lado, apelando “à consciência” e ao “dever moral de respeitar o seu patrimônio cultural”, a convenção também conciliou certas disputas entre Estados-Partes que, à época, foram obrigados a tratar entre si do problema do tráfico internacional de antiguidades, assim como discutir possíveis formas de restituição de bens pilhados de países colonizados.

Nesse cenário, o que justificava a pertinência da convenção era um argumento já muitas vezes utilizado pela UNESCO para persuadir seus Estados-membros a fomentar atividades culturais em seus territórios: cooperar, respeitar e proteger o patrimônio é o melhor caminho a ser seguido para garantir a transmissão ao futuro do patrimônio cultural de qualquer sociedade.

A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que a Convenção da UNESCO de 1970 nasceu em meio a tensões e disputas em torno de como bens culturais de interesse patrimonial poderiam ser internacionalmente regulados. Embora a convenção tenha representado um momento de formação de consenso entre Estados concorrentes e que possuíam interesses patrimoniais difusos, a adoção da versão final do texto convencional, em 14 de novembro de 1970, não foi suficiente para pacificar todos os conflitos. Em diferentes tempos e espaços, vários Estados-membros da UNESCO tensionaram a entidade a dar continuidade a debates a respeito da descolonização de países africanos e asiáticos, assim como a se posicionar de maneira mais contundente em relação ao problema do tráfico internacional e à necessidade de restituição de bens culturais ilicitamente extraídos de mundos coloniais. Tais debates ganharam mais corpo após terem ocorrido as primeiras adesões à convenção. Aliás, muitos debates que orbitavam ao redor da convenção se converteram em reivindicações de países situados no continente africano, as quais foram até mesmo levadas à apreciação dos participantes de diversas assembleias da ONU e conferências da UNESCO.

Vejamos, então, algumas das repercussões da convenção em discussões empreendidas na ONU e na UNESCO durante o período de sua acomodação institucional (1970-1980).

A CONVENÇÃO DA UNESCO DE 1970:REPERCUSSÕES NA ONU E NA UNESCO

Até o presente, 141 Estados ratificaram a Convenção da UNESCO de 197010 10 A lista dos Estados que tomaram parte da convenção encontra-se em Convention on the Means of Prohibiting... (s.d.). . Seguindo os preceitos do direito internacional público, a convenção entrou em vigor dois anos após a sua criação, em abril de 1972, quando já 10 países haviam formalizado à organização a “ratificação, aceitação, aprovação ou adesão” ao texto convencional (UNESCO’s former Directors-General, s.d.UNESCO’S FORMER DIRECTORS-GENERAL. s.d. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/director-general/former-dgs . Acesso em: 8 jan. 2021.
https://en.unesco.org/director-general/f...
).

Conforme as fontes indicam, as repercussões iniciais mais notáveis da convenção se deram no interior da ONU, particularmente em suas assembleias gerais. A expedição da Resolução 3.187 (XXVIII), alusiva à “restituição das obras de arte aos países vítimas de expropriação”, foi a de maior amplitude. De maneira explícita, a resolução criticava as “transferências em massa e quase gratuita de objetos de valor artístico de determinados países para outros, com frequência efetuados à mercê da ocupação colonial estrangeira” (UNESCO, 1973, p. 10). Além disso, defendia que a “restituição em espécie permitiria uma justa reparação dos graves prejuízos sofridos por países vítimas dessas transferências” (ONU, 1973ONU. Asamblea General. Resolución 3.187 (XXVIII): restitución de las obras de arte a los países víctimas de la expropiación. Nova York: ONU, 1973., p. 10). A resolução também requisitava ao secretário-geral da ONU11 11 À época, o secretário-geral da ONU era o diplomata austríaco Kurt Josef Waldheim (1918-2007). Seu mandato iniciou-se em 1972 e finalizou-se em 1982. Ele sucedeu o diplomata Maha Thray Sithu U Thant (1899-1974), de Mianmar, que ocupou o cargo de novembro de 1961 a janeiro de 1972. , em colaboração com a UNESCO e seus Estados-membros, “apresentar um informe à Assembleia Geral, em seu trigésimo período de sessões [1975-1976], acerca dos progressos realizados sobre esse assunto” (ONU, 1973ONU. Asamblea General. Resolución 3.187 (XXVIII): restitución de las obras de arte a los países víctimas de la expropiación. Nova York: ONU, 1973., p. 10).

Menos de um ano depois, durante a 18ª Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris, de 17 de outubro a 23 de novembro de 1974, foi aprovada a Resolução 3.428, reforçando a condenação da entidade às “transferências [...] de obras de arte de um país para outro em consequência de ocupação colonial ou estrangeira” (UNESCO, 1974UNESCO. General Conference. 38th Session. Resolution 3.428: Contribution of UNESCO to the Return of Cultural Property to Countries that Have Been Victims of de Facto Expropriation. Paris: UNESCO , 1974., pp. 60-61). O documento ainda reafirmava que o “retorno aos países de origem de tais obras de arte, monumentos, itens expostos em museus, manuscritos e documentos não apenas constituía uma reparação pelos danos infligidos, mas também era uma medida para fortalecer a cooperação internacional” (UNESCO, 1974UNESCO. General Conference. 38th Session. Resolution 3.428: Contribution of UNESCO to the Return of Cultural Property to Countries that Have Been Victims of de Facto Expropriation. Paris: UNESCO , 1974., pp. 60-61). Também, a resolução chamava à responsabilidade os Estados-Partes da UNESCO que ainda não tinham ratificado a convenção, recomendando-lhes tomar todas as “medidas necessárias para prevenir, nos seus territórios, o tráfico ilícito de obras de arte provenientes de territórios ainda sob domínio colonial ou estrangeiro” (UNESCO, 1974UNESCO. General Conference. 38th Session. Resolution 3.428: Contribution of UNESCO to the Return of Cultural Property to Countries that Have Been Victims of de Facto Expropriation. Paris: UNESCO , 1974., pp. 60-61).

Para além disso, astutamente, o documento compelia o diretor-geral da UNESCO12 12 Entre 1974 e 1987, o diretor-geral da UNESCO foi o geógrafo senegalês Amadou-Mahtar M’Bow (1921-). Após ter concluído o ensino superior em Paris, M’Bow “ensinou história e geografia no Senegal”, país onde atuou como diretor de “educação básica de 1952 a 1957”. Durante o “período de transição da autonomia interna de seu país (1957-1958)”, liderou parte da “luta pela independência do Senegal”. Anos depois, “tornou-se ministro da Educação (1966-1968) e, a seguir, [ministro] dos Assuntos Culturais e Juvenis (1968-1970)”. Em 1966, foi eleito membro do Conselho Executivo da UNESCO. Em 1970, assumiu o posto de diretor-geral adjunto para a Educação nessa entidade (UNESCO’s former Directors-General…, s.d.). a definir os “termos gerais e os métodos mais adequados” desse “trabalho de restituição”, o qual poderia ocorrer por meio de “empréstimos de longo prazo”, “acordos bilaterais” ou seguir caminhos diplomáticos (UNESCO, 1974UNESCO. General Conference. 38th Session. Resolution 3.428: Contribution of UNESCO to the Return of Cultural Property to Countries that Have Been Victims of de Facto Expropriation. Paris: UNESCO , 1974., pp. 60-61).

Conforme apontado pelo trabalho de Fernando Sossai et al. (2021SOSSAI, Fernando Cesar et al. A Bolívia, a Bélgica, a UNESCO e uma denúncia de comércio internacional de bens culturais de interesse patrimonial. In: GUSSO, Luana de Carvalho Silva; MEIRA, Roberta Barros; CARELLI, Mariluci Neis (Orgs.). Direito e patrimônio cultural. V. 2. Joinville: Editora da Univille, 2021. pp. 73-89.), ainda que tais resoluções espelhassem uma expressiva repercussão internacional da Convenção da UNESCO de 1970, nos bastidores da ONU - e da própria UNESCO - a convenção não foi bem-aceita por vários Estados-Partes. Irrecusavelmente, o texto convencional compelia os Estados-membros a debater entre si e se posicionar em relação à necessidade (ou não) de descolonizar e restituir bens culturais de interesse patrimonial ilicitamente subtraídos de populações que habitavam as regiões economicamente mais pobres do mundo. Segundo ele, o “reconhecimento internacional da convenção tropeçou em um vertiginoso obstáculo”: muitos Estados europeus passaram a negar a ratificação da convenção (Sossai et al., 2021SOSSAI, Fernando Cesar et al. A Bolívia, a Bélgica, a UNESCO e uma denúncia de comércio internacional de bens culturais de interesse patrimonial. In: GUSSO, Luana de Carvalho Silva; MEIRA, Roberta Barros; CARELLI, Mariluci Neis (Orgs.). Direito e patrimônio cultural. V. 2. Joinville: Editora da Univille, 2021. pp. 73-89., p. 79). Aliás, um poderoso grupo de países associados à ONU e à UNESCO - liderados por Bélgica, França, Reino Unido e República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) - alegou que não era possível adotar a convenção, porque ela conflitava com as práticas de um mercado de antiguidades já muito consolidado em vários países da Europa. Também, o argumento dos governos contrários à ratificação era que eles “seriam imediatamente pressionados a repatriar bens culturais [...] que por muito tempo estavam expostos tranquilamente em seus museus” (Bischoff, 2004BISCHOFF, James L. A proteção internacional do patrimônio cultural. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito, UFRGS, v. 2, n. 5, pp. 275-296, 2004., p. 209).

Nos 10 primeiros anos da convenção, os Estados que a ratificaram, majoritariamente, se situavam na África, na América Latina e no Oriente Próximo. No Velho Mundo, nesse mesmo período, apenas a Bulgária (15/9/1971), a Itália (2/10/1978) e a Hungria (23/10/1978) haviam ratificado o documento. Os Estados líderes do grupo dos insatisfeitos com o texto convencional demoraram muito mais tempo. A França ratificou a convenção em 7 de janeiro de 1997; a Alemanha, em 30 de novembro de 2007; e a Bélgica, em 31 de março de 2009. O Reino Unido procedeu à “aceitação oficial” do texto convencional em 1º de agosto de 2002 (List of conventions ratified…, s.d.LIST OF CONVENTIONS RATIFIED and Non-ratified by Country: Europe and North America. s.d. Disponível em: Disponível em: http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=23043 &URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html . Acesso em: 10 dez. 2020.
http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_I...
).

Mesmo sofrendo ataques, a convenção continuou tendo expressiva repercussão global. Em julho de 1976, empurradas por “26 Estados membros que tinham tomado parte na convenção” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., p. 19C/109), as discussões abertas pelo texto convencional voltaram ao palco principal da organização. Durante a 19ª Conferência Geral da UNESCO, realizada em Nairóbi (Quênia), entre 26 de outubro a 30 de novembro de 1976, o diretor-geral da entidade Amadou-Mahtar M’Bow apresentou o seu informe sobre a implementação da Resolução 3.428. Em tal documento, ele realçou o conjunto dos trabalhos empreendidos pelo seu secretariado no sentido de promover o “retorno de bens culturais perdidos em consequência de ocupação colonial ou estrangeira”. Destacou que ele e seus assessores tinham elaborado a “minuta de uma Recomendação aos Estados-membros da UNESCO acerca do intercâmbio internacional de bens culturais”. Tal minuta, a propósito, já havia sido “aprovada unanimemente por um Comitê Especial de Experts Governamentais que se reuniu em Paris, de 8 a 16 de março de 1976” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 1-19C/109), os quais haviam considerado que a minuta:

[...] estava baseada no princípio de que uma política sistemática para o intercâmbio internacional de bens culturais viria a contribuir para uma melhor distribuição e uso do patrimônio cultural em escala mundial e seria um meio de combater o tráfico ilícito e o crescimento dos preços desses bens, os quais se tornaram inacessíveis a países e instituições menos favorecidas (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109).

M’Bow também enfatizou que a recomendação sugeria uma “série de medidas legislativas, administrativas e financeiras” que os Estados-Partes da UNESCO poderiam implementar com o objetivo de “facilitar empréstimos, [...] vendas e doações [de bens culturais] por intermédio de instituições culturais de diferentes países” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109). Na perspectiva do diretor-geral, se os Estados-membros da instituição aplicassem de maneira eficiente as medidas propostas naquela minuta, seriam facilitados os “empréstimos de longa duração”, que funcionariam como “meios de assistência para a restituição de obras de arte” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109), conforme defendido na Resolução 3.428 da ONU.

Ainda em seu informe, o diretor explicou aos presentes à conferência que em Veneza, de 29 de março a 2 de abril de 1976, constituíra outro “comitê de experts para estudar todos os problemas técnicos e legais resultantes [...] da restituição de obras de arte”, assim como para “definir em termos gerais os caminhos mais adequados e os meios mais apropriados” para essa restituição (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109). Assim, a UNESCO poderia melhor assessorar seus membros em relação aos principais desafios da celebração de “compromissos bilaterais para esse fim” 13 13 Sem registrar os nomes de seus autores, o relatório elaborado pelo comitê contava com 14 laudas e intitulava-se Estudo preliminar sobre aspectos legais e técnicos de um instrumento internacional relativo à preservação e cobertura de riscos de bens culturais móveis. Além de “Introdução” e “Conclusão”, o texto foi organizado em cinco partes: “Prevenção de riscos”, “Cobertura de riscos”, “Melhorias de medidas preventivas”, “Riscos de financiamento de melhorias” e “Medidas suplementares” (UNESCO, 1976a, pp. 1-19C/34-Annex). A principal conclusão do relatório foi a seguinte: “Seria conveniente empreender um novo programa de ações normativas padronizadas para a prevenção e cobertura de riscos de bens culturais móveis. A alarmante situação criada pelo crescente roubo, vandalismo, escavações ilegais e exportações ilícitas torna esse programa essencial para intensificar e generalizar medidas de prevenção. Muito pode ser feito para reduzir os riscos e os custos de cobertura de risco. Os meios técnicos necessários existem. O que é exigido é a sua aplicação de uma maneira mais aprofundada e coordenada” (UNESCO, 1976a, pp. 13-19C/34-Annex). (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109).

Para além disso, M’Bow esclareceu à 19ª Conferência Geral da UNESCO duas decisões que havia tomado fazendo uso do poder discricionário de seu cargo. Chamando a atenção para a urgência do assunto, em primeiro lugar, ele recomendou aos Estados-membros da entidade a redação e a “submissão à Conferência de um relatório sobre as ações que tomaram para implementar tanto aquela recomendação quanto a Convenção” da UNESCO de 1970 (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109). E, segundo, para o biênio 1977-1978, sugeriu uma emenda ao orçamento da instituição no valor de “US$ 38.500”, para “despesas adicionais” de projetos que estavam enfrentando o difícil problema da “restituição ou retorno de bens culturais perdidos em consequência de ocupação colonial ou estrangeira” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109). Em sua acepção, o aporte financeiro poderia servir para:

promover a conclusão de acordos equitativos para o retorno de objetos que são de vital importância, do ponto de vista de sua identidade cultural e história, para aqueles países que os tenham perdido em consequência de uma ocupação colonial ou estrangeira; e para encorajar os meios de comunicação de massa e instituições educacionais e culturais a promover ampla consciência dessa questão (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109).

Embora o informe do diretor-geral tenha sido de extrema importância para subsidiar debates mais robustos em torno de questões corporificadas pela convenção, dois dos trechos mais interessantes de seu documento são a transcrição e o endosso de três recomendações elaboradas por aquele comitê de experts de Veneza. A exemplo dos experts, M’Bow defendia a criação de um órgão intergovernamental especialmente dedicado à mediação de entraves à restituição de bens culturais removidos de países vitimados pelo tráfico ilícito de objetos culturais. De sua perspectiva, o órgão deveria ter o seu status definido por um instrumento internacional específico, no qual estariam expressas as suas três principais funções:

a) Explorar formas e medidas de facilitação de negociações bilaterais para a restituição ou retorno de bens culturais e de encorajamento a países preocupados em concluir acordos para esse fim;

b) Aconselhar o diretor-geral, quando necessário, sobre medidas adicionais que talvez sejam requeridas (em termos gerais e para a solução de dificuldades particulares);

c) Facilitar diretamente, ou em conexão com organizações não governamentais [...], o acesso a informações pertinentes à existência, ao paradeiro e a problemas de restituição ou retorno de bens culturais (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109).

Aprofundando nessa direção, o diretor-geral submeteu à aprovação da conferência três medidas para a constituição do órgão no interior da maquinaria institucional da UNESCO. De início, segundo ele, seria fundamental “estabelecer o órgão intergovernamental por meio de uma convenção internacional” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 3-19C/109). Em teoria, tal convenção teria seu texto redigido por um grupo de experts cujos trabalhos deveriam perdurar por, no máximo, quatro anos. No biênio 1977-1978, o trabalho dos experts poderia contar com uma “soma de US$ 26.000”, aprovisionada pela instituição para “cobrir os custos de preparação de um estudo preliminar sobre os aspectos técnicos e legais da questão” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 3-19C/109). A meta fixada por M’Bow era finalizar e validar a imaginada convenção durante a 21ª Conferência Geral da UNESCO14 14 Realizada na UNESCO, em Paris, de 24 de outubro a 28 de novembro de 1980. .

Como uma espécie de ensaio à fabricação convencional do órgão, M’Bow propunha que, inicialmente, fossem concebidos os seus mecanismos e instrumentos de gestão. Nesse âmbito, recomendou que, antes de tudo, fosse elaborado e aprovado o seu estatuto em uma das conferências gerais da UNESCO, após ampla discussão da minuta do documento. Ele também considerava fundamental “fazer um estudo completo de termos de referência, meios de atuação e dos procedimentos de trabalho do órgão”15 15 Cumpre mencionar que foi apensada ao volume I, “Resoluções”, dos “Arquivos da 19ª Conferência Geral da UNESCO”, uma versão detalhada da citada recomendação elaborada por M’Bow e seus assessores “acerca do intercâmbio internacional de bens culturais” (UNESCO, 1976b, pp. 2-19C/109). Como anexo, o documento recebeu o seguinte título: “Recomendação relativa ao intercâmbio internacional de bens culturais”. Além de uma lauda de “Considerandos”, muitos dos quais positivavam o intercâmbio global de bens culturais e alertavam para o crescimento de “negociações ilícitas” envolvendo artefatos patrimoniais dos “países mais pobres” do mundo, a recomendação contava com cinco seções: “Definições”, “Medidas recomendadas”, “Cooperação internacional”, “Estados federais” e “Ações contra a negociação ilícita de bens culturais” (a última limitada a um parágrafo com seis linhas) (UNESCO, 1976b). (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 3-19C/109). Na cabeça do diretor-geral, todos os trabalhos “poderiam ser concluídos em 1977-1978”, habilitando-o a “submeter a minuta do estatuto do órgão à 20ª Conferência Geral da Organização16 16 Realizada de 24 de outubro a 28 de novembro de 1978, em Paris, no edifício principal da entidade. , em conjunto com o orçamento estimado para o seu funcionamento”17 17 O montante destinado à preparação desses trabalhos seria de US$ 30.000 (UNESCO, 1976b, pp. 3-19C/109). (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 3-19C/109).

Visando conferir uma camada de verniz acadêmico ao processo de criação do órgão, M’Bow enfatizou aos participantes da 19ª Conferência Geral a necessidade de a UNESCO “estabelecer um comitê consultivo” para o órgão. Esse comitê deveria ser integrado por experts vinculados a entidades especializadas e/ou impactadas por eventuais práticas de restituição de bens culturais (museus, universidades, governos nacionais e organizações não governamentais). Tais experts teriam suas funções reguladas por um “estatuto aprovado pelo conselho executivo” da organização, bem como um orçamento de “US$ 57.000” para financiar seus trabalhos durante os anos de 1977 e 1978 (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109-3-19C/109).

Esposando as proposições meticulosamente construídas nos bastidores da UNESCO, tanto pelo diretor-geral M’Bow quanto por seus assessores institucionais e pelos experts por ele mobilizados, os representantes dos Estados-Partes presentes na 19ª Conferência aprovaram o desenvolvimento dos trabalhos que levariam à futura constituição do vaticinado comitê. Ao contrário do imaginado pelos seus artífices, o comitê não foi criado por meio de uma convenção internacional amadurecida em debates envolvendo funcionários da UNESCO, representantes de governos e versados experts. De fato, restou à organização e ao grupo de países interessados fabricar o comitê mediante uma resolução da conferência geral da UNESCO, a Resolução 4/7.6/5, de novembro de 1978.

No item a seguir, dedico especial atenção a algumas das relações de bastidores que resultaram na constituição desse comitê.

O COMITÊ INTERGOVERNAMENTAL PARA A PROMOÇÃO DO RETORNO DE BENS CULTURAIS A SEUS PAÍSES DE ORIGEM OU SUA RESTITUIÇÃO EM CASO DE APROPRIAÇÃO ILÍCITA E O AFASTAMENTO DA CONVENÇÃO DA UNESCO DE 1970

Conta a história oficial que a criação do Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem ou sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita resultou de um “apelo do Sr. Amadou-Mahtar M’Bow, ex-diretor-geral da UNESCO” para o “retorno de um patrimônio cultural insubstituível para aqueles que o criaram” (Return & Restitution..., s.d.“RETURN & RESTITUTION” Intergovernmental Committee. s.d. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/fighttrafficking/icprcp . Acesso em: 2 dez. 2020b.
https://en.unesco.org/fighttrafficking/i...
). Supostamente, o apelo extraía a sua força de uma frase emblemática de M’Bow, até hoje reproduzida, que a UNESCO utiliza ao explicar como se deu a constituição do órgão na segunda metade da década de 1970: “os homens e as mulheres” de países vitimados por ocupação colonial ou estrangeira “têm o direito de recuperar bens culturais que são parte de seu ser” (Return & Restitution..., s.d.“RETURN & RESTITUTION” Intergovernmental Committee. s.d. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/fighttrafficking/icprcp . Acesso em: 2 dez. 2020b.
https://en.unesco.org/fighttrafficking/i...
).

Se, de um lado, essa versão histórica do processo de criação do comitê procura tornar notável a figura de M’Bow, por outro ela silencia complexas relações de bastidores que muito contribuíram para a definição do escopo e das formas de atuação do órgão. A bem da verdade, a razão de ser e o modus operandi do comitê foram arquitetados por um comitê de experts que se reuniu em Dacar (Senegal), de 20 a 23 de março de 1978, com o propósito de estudar o papel e os meios de ação do órgão. A essa reunião compareceram os experts elencados no Quadro 1.

Além de se encontrarem com o propósito de “determinar o mandato e os métodos de trabalho do comitê intergovernamental” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 1), tais experts foram convidados pelo então diretor-geral para manifestar a sua “opinião acerca da preparação de uma declaração exprimindo os princípios mais importantes sobre os quais se basearia a restituição ou o retorno de bens culturais” aos seus países de origem, bem como as “diretrizes e as formas [...] de ação internacional”, com vistas a “facilitar as negociações bilaterais nessa esfera” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 1).

Quadro 1
Lista de participantes: comitê de experts para o estabelecimento de um comitê intergovernamental relativo à restituição ou ao retorno de bens culturais 18 18 Além dos indicados no quadro, pela análise do conjunto das fontes percebe-se que também participaram da reunião a Sra. Ulla Kending Olofsson (observadora do Conselho Executivo do ICOM), o Sr. Gérard Bolla (assistente do diretor-geral da UNESCO para assuntos de cultura e comunicação) e a Sra. Anne Raidl (Divisão de Patrimônio Cultural da UNESCO).

Como material preparatório da reunião, os experts receberam o documento intitulado “Estudo sobre os princípios, condições e meios para a restituição ou retorno de bens culturais tendo em vista a reconstituição de patrimônio dispersado”, cuja elaboração tinha sido feita por um “comitê ad hoc nomeado pelo Conselho Executivo do ICOM”19 19 Compunham esse comitê: H. Ganslmayr, H. Landais, G. Lewis, P. Makambila, P. N. Perrot, J. W. Pré e J. Vistel. Na fonte, não há dados sobre os países de proveniência, tampouco sobre os vínculos institucionais dos integrantes. (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., p. 1). Finalizado em agosto de 1977, o estudo foi redigido a pedido de M’Bow, que solicitara aos especialistas do ICOM indicarem claramente quais eram os “principais problemas, e as possíveis soluções, suscitados pela restituição ou retorno de bens culturais perdidos em consequência de ocupação colonial ou estrangeira” (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., p. 1), além de produzirem uma minuciosa “análise dos obstáculos a serem superados e das medidas a serem implementadas para esse fim” (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., p. 1).

Como resultado, os experts do ICOM entregaram à UNESCO um documento com 11 laudas, cujo conteúdo fora dividido em duas seções. A primeira dedicava-se à discussão dos “princípios e condições de restituição ou retorno de bens culturais aos seus países de origem”. Já a segunda apresentava os “obstáculos a serem superados e as medidas a serem implantadas” para a promoção de melhores práticas de restituição20 20 A primeira seção do documento foi dividida em dois itens: “A coerência do patrimônio reconstituído” (p. 2) e “A primazia do objeto” (p. 4); e a segunda, em quatro outros: “Falta de informação” (p. 6), “Dificuldades psicológicas” (p. 6), “Obstáculos legais” (p. 7) e “O papel da UNESCO” (p. 9) (ICOM, 1977). (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., pp. 2 e 5). Na “conclusão”, além de reforçarem a necessidade de “entendimento mútuo entre as partes envolvidas” na restituição de bens culturais, e que os mecanismos mobilizados em eventuais negociações bilaterais não poderiam estar “isolados do contexto geral em que o problema da restituição ou do retorno está implicado”, os experts também realçaram que as “organizações internacionais, governamentais e não governamentais” deveriam ter um papel maior na causa da restituição, não apenas contribuindo à “coordenação e coerência dos trabalhos”, mas avalizando uma política global de restituições baseada no “princípio fundamental da acessibilidade cultural e preservação” de artefatos de interesse patrimonial (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., p. 11).

Nessa direção, os especialistas do ICOM defenderam também que o “reagrupamento de patrimônios dispersados”, por intermédio de “restituição ou retorno de objetos que são de suma importância para a história e identidade cultural de países que tenham sido deles privados”, já poderia ser considerado um “princípio ético reconhecido e afirmado pela maioria das organizações internacionais”, devendo, em pouco tempo, se “tornar um elemento de jus cogens21 21 De acordo com Martinelli e Bem (2019, p. 1069), “há um conjunto de regras não convencionais imperativas que se sobrepõem à autonomia dos Estados e não podem ser derrogadas por tratados, por costumes ou por princípios de direito internacional. Essas regras formam o jus cogens, que são reconhecidas pela sociedade internacional como um todo”. das relações internacionais” (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977., p. 11).

O estudo elaborado sob a rubrica do ICOM, acompanhado de três anexos - um excerto do “programa [de trabalho] para 1977-1980 adotado pela 12ª Assembleia Geral do ICOM”22 22 Realizada em Moscou em 28 de maio de 1977. , uma cópia da “Resolução 3.1 adotada pelo Comitê Executivo [da UNESCO] em sua 102º Sessão”23 23 Ocorrida durante os meses de abril e maio de 1977. e a “minuta de uma resolução submetida pela Iugoslávia à 19ª Conferência Geral da UNESCO”24 24 A minuta de resolução foi tornada pública em novembro de 1976, em Nairóbi. Em síntese, propunha a “preparação [...] de uma declaração estabelecendo os princípios básicos para governar a restituição de bens culturais e, também, [definir] o direcionamento que as ações internacionais nesse campo deveriam seguir, assim como a forma que deveriam ter” (UNESCO, 1978c, p. 2-Annex IV). -, foi remetido em 18 de fevereiro de 1978 aos experts que, quase um mês depois, iriam se encontrar em Dacar (UNESCO, 1978cUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. [Working paper] CC-78/CONF. 609/3. Paris: UNESCO, 1978c.). No seu conjunto, os documentos enviados totalizavam 26 laudas, cujos conteúdos repetiam uma ausência em comum: em suas linhas não havia nenhuma alusão à Convenção da UNESCO de 1970. Essa ausência é ainda mais extraordinária se atentarmos para o fato de que praticamente todos os demais documentos normativos expedidos pela ONU e pela UNESCO no sentido de fundamentar os debates sobre o tráfico ilícito, a restituição e o retorno de bens culturais foram explicitamente citados nas numerosas partes do material despachado à apreciação dos experts de Dacar (tais como a Resolução 3.187 (XXVIII), da ONU, e as Resoluções 3.428 e 4.128, ambas da UNESCO) (UNESCO, 1976c).

Embora a Convenção da UNESCO de 1970 tivesse sido afastada da documentação enviada aos experts, ela não deixou de ser trazida à mesa no transcurso da reunião de Dacar. Ainda que o Relatório Final do encontro não seja generoso, a sua análise permite vislumbrar dois consensos firmados entre os especialistas. O primeiro diz respeito à “profunda inquietação” do comitê de experts diante do contínuo “descumprimento das leis de proteção ao patrimônio cultural em alguns países”, com a consequente “perpetuação do tráfico ilícito de bens culturais” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 8-Annex II). O comitê considerava que esse cenário era uma “influência negativa para alguns Estados em relação à ratificação da convenção de 1970”, a qual visava “pôr fim a esse tipo de tráfico”. Assim, no documento, os experts recomendaram ao diretor-geral que a “UNESCO estudasse mais a fundo esse problema”, sobretudo “no âmbito do comitê intergovernamental proposto” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 8-Annex II).

O segundo consenso construído entre os integrantes do comitê salientava a importância de os Estados-membros da UNESCO prepararem “inventários de bens culturais” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 9-Annex II), particularmente a respeito de objetos deslocados de seus contextos de origem e que se encontravam expostos em museus situados fora de suas fronteiras. Além de um inventário escrito, os experts também recomendaram a produção de uma documentação visual de cada bem, combinando entre si registros visuais e escritos. A longo prazo, a realização dessa empreitada poderia gerar uma documentação detalhada “sobre as coleções de todos os museus do mundo”, representando um trabalho de “valor inestimável para futuras pesquisas e de utilidade imediata para discussões relativas à restituição ou ao retorno de bens culturais aos seus países de origem” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 9-Annex II). Ainda que uma ação dessa magnitude fosse irrealizável tanto para a UNESCO quanto para os seus Estados-Partes - sobretudo em razão de sua complexa logística, de seus custos elevados e da inconveniência para diversos países europeus -, os experts retoricamente a justificaram argumentando que a “Convenção de 1970 [...] recomendara que se adotassem medidas nesse sentido” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 9-Annex II).

Para além dessas alusões à Convenção da UNESCO de 1970, o Relatório Final do comitê de experts ainda disponibilizou ao seu solicitante, M’Bow, uma minuta de estatuto para o provisoriamente denominado “Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem” (UNESCO, 1978aUNESCO. Committee of Experts on the Establishment of an Intergovernmental Committee Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Final report. Dakar: UNESCO, 1978a. , p. 1-Annex I). Oito meses depois, no contexto da 20ª Conferência Geral da UNESCO, sem alterações significativas, a minuta do estatuto sugerida pelos experts de Dacar foi integralmente transposta como parte da Resolução 4/7.6/5. Desse modo, foi criado oficialmente o desejado comitê intergovernamental, porém, com um nome mais atrativo à adesão e à aprovação dos representantes dos Estados que participavam da conferência, especialmente aqueles provenientes da América Latina e África. O comitê foi alcunhado pelo então diretor-geral da UNESCO de “Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita” (UNESCO, 1978UNESCO. General Conference. 20th Session. Resolution 4/7.6/5. V. 1. Paris: UNESCO , 1978., p. 93).

Com o comitê formalmente criado no âmbito da maquinaria institucional da UNESCO, de imediato, durante a mesma conferência, passou-se à eleição dos 20 Estados que nele tomariam assento. Como resultado do pleito, foram escolhidos os Estados apresentados na Figura 1.

Figura 1
Lista dos primeiros 20 Estados eleitos para o Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita

Em estudo recente, os historiadores Vinícius Mira, Fernando Sossai e Diego Finder Machado (2022MIRA, Vinícius J.; SOSSAI, Fernando C.; MACHADO, Diego F. Notas sobre a constituição do “Comitê Intergovernamental para a Promoção de Retorno de Bens Culturais aos Países de Origem ou sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita” da UNESCO durante os anos 1980. Fronteiras: revista catarinense de História, Florianópolis, 2022. [No prelo].) explicam que o resultado dessa eleição produziu uma situação inusitada no que tange às repercussões internacionais da Convenção da UNESCO de 1970. Conforme indicado por eles, em novembro de 1978, dos 20 Estados eleitos para integrar o comitê, somente sete já tinham ratificado a convenção (Bolívia, Egito, Ilhas Maurício, Iugoslávia, México, Nigéria e República Democrática do Congo), ao contrário de outros 13 (Bélgica, Cuba, Dinamarca, Espanha, Etiópia, França, Líbano, Malásia, Paquistão, Peru, Senegal, União Soviética e Tailândia). Duas hipóteses complementares podem ser conjecturadas em torno dessa inusitada situação. Conforme indica o conjunto das fontes analisadas, à época, alguns dos governos que não tinham ratificado aquela convenção enxergaram no comitê um espaço estratégico para a mediação de seus interesses em relação ao tráfico e à restituição de bens culturais aos seus contextos de origem. Afinal, por seus trabalhos privilegiarem acordos internacionais por meio de negociações bilaterais, o comitê oportunizaria às partes interessadas o desenvolvimento de ações mais simples e consensuais.

De igual modo, presume-se que a participação formal no comitê serviria como uma espécie de álibi aos Estados que continuavam se negando a aceitar a convenção como um marco de referência para a mediação de casos de tráfico internacional, restituição e retorno de bens culturais ilicitamente removidos de seus contextos de pertença. No comitê, a presença de Estados europeus visava assegurar-lhes a interação com um embrionário sistema de cooperação global voltado tanto ao combate ao tráfico ilícito quanto à intensificação de práticas de restituição/retorno de bens culturais de interesse patrimonial aos seus países de origem. Nesses domínios, certos estados europeus poderiam se imiscuir no fluxo de discussões desse sistema, participando apenas do comitê, sem, contudo, ratificar a convenção. Assim, a conformação a alguma das engrenagens do emergente sistema de cooperação - participação formal em atividades do comitê, da UNESCO, da ONU ou do ICOM - poderia servir como evidência da boa vontade de Estados que figuravam como mercados consumidores de artefatos culturais ilícita ou ilegalmente extraídos dos países mais vulneráveis do planeta25 25 Desde os anos 1960, Alemanha, Bélgica, França, Reino Unido e Estados Unidos são considerados os maiores “mercados globais de antiguidades ilícitas” (Mackenzie et al., 2020, p. 10). .

Novas pesquisas são imprescindíveis para melhor formular e desenvolver as hipóteses ora ventiladas. Aliás, em relação à historicidade da Convenção da UNESCO de 1970, urgem investigações que avancem para além da interpretação histórica dos artigos que a integram, bem como extrapolem o debate de sua força jurídica no campo do direito internacional público. Quem sabe, a produção de estudos mais atentos às repercussões dessa convenção no âmago da ONU e da UNESCO contribua para tornar mais conhecidas certas relações de bastidores que influenciaram a elaboração, a submissão e a aprovação de suas disposições, em novembro de 1970, durante a 16ª Conferência Geral da UNESCO.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A modo de síntese, cumpre lembrar que, embora a Convenção da UNESCO de 1970 tenha representado um avanço para o debate internacional de casos de tráfico ilícito, restituição e retorno de bens culturais aos seus contextos de origem, muito ainda está por se fazer. Conforme discutido por Radun, Sossai e Coelho (2022RADUN, Denis F.; SOSSAI, Fernando C.; COELHO, Ilanil. UNESCO: The Emergence of the Ideals of Peace and World Heritage. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, 2022. No prelo., p. 2), sobretudo a partir das “Convenções de 1954, 1970 e 1972”, a UNESCO foi historicamente assumindo certo “protagonismo na produção e disseminação de marcos normativos que ainda hoje incidem tanto sobre a modelagem global quanto sobre a governança em rede do patrimônio cultural”.

Nessa mesma direção, as historiadoras Jaqueline de Jesus Hoiça e Sandra P. L. de Camargo Guedes (2021HOIÇA, Jaqueline de Jesus; GUEDES, Sandra Paschoal Leite de Camargo. As imaterialidades do material: a repatriação do canhão El Cristiano ao Paraguai. Anais do Museu Paulista: história e cultura material. São Paulo, v. 29, pp. 1-32, 2021.) enfatizaram que a fabricação da Convenção Relativa às Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais (em 1970) e a criação do Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno dos Bens Culturais aos seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita (em 1978) foram marcos significativos não somente na história da UNESCO, mas também na busca de soluções mais transparentes para conflitos envolvendo reivindicações de bens culturais entre Estados-nações.

Passados mais de 50 anos da criação da Convenção da UNESCO de 1970, continuamos assistindo a uma história de ininterrupta exploração comercial de objetos de interesse patrimonial pilhados, sobretudo, de países latino-americanos e africanos que viveram períodos de violenta ocupação colonial. Para se ter noção do tamanho do problema, em uma simples busca na internet podemos encontrar dezenas de sites que comercializam diferentes tipos de antiguidades, a variados preços: de poderosas casas de leilão europeias a pessoas que, individualmente, anunciam a venda privada e discreta, sem burocracia, de relíquias recebidas como herança de família ou encontradas em escavações cuja legalidade é, no mínimo, duvidosa.

Apenas para ilustrar a complexidade do cenário, vale a pena lembrarmos duas situações recentes. Em dezembro de 2020, um cidadão francês que vivia nos arredores de Bruxelas (Sr. Patrice T.) - autodenominado “um caçador de tesouros” -, foi preso após ser constatado que mantinha em sua residência “27.400 artefatos arqueológicos roubados” e que iriam lhe servir para “usos pessoal e comercial” (Tesouro “Inestimável”..., 2020TESOURO “INESTIMÁVEL” com 27.400 objetos arqueológicos é apreendido na França. Caderno Mundo. Correio Brasiliense, Brasília, 16 dez. 2020.). Pouco se soube sobre a destinação dos artefatos apreendidos. Além disso, desde 2012, as Universidades de Maastricht (Holanda), Oxford (Inglaterra), Victoria (Nova Zelândia) e Glasgow (Escócia) mantêm online o site “https://traffickingculture.org/”, uma plataforma que registra resultados de um “consórcio de pesquisas” acerca do “comércio global contemporâneo de objetos culturais saqueados” em variadas partes do mundo. No site, a seção “Enciclopédia” oportuniza a consulta de “estudos de caso que revelam aspectos do comércio ilícito transnacional de objetos culturais”. A complexidade e a quantidade dos casos não param de aumentar (Encyclopedia..., s.d., 2022ENCYCLOPEDIA. Disponível em: Disponível em: https://traffickingculture.org/encyclopedia/ . s.d. Acesso em: 18 fev. 2022.
https://traffickingculture.org/encyclope...
).

Claro está que o problema não é novo. Contudo, se o problema não é novo, a sua escala nunca antes foi vista. Assim como a repercussão da convenção, ao longo das últimas cinco décadas, o mercado internacional de antiguidades maximizou-se, sendo meticulosamente organizado e cartografado por seus players. Tal mercado ganhou capilaridade global e cresceu a ponto de se tornar uma das atividades ilícitas mais lucrativas do planeta (em volume econômico-financeiro), ficando atrás somente do comércio de armas e drogas (Christofoletti, 2017CHRISTOFOLETTI, Rodrigo. O tráfico ilícito de bens culturais e a repatriação como reparação histórica. In: CHRISTOFOLETTI, Rodrigo (Org.). Bens culturais e relações internacionais: o patrimônio como espelho do soft power. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2017. pp. 113-132., p. 16).

Nesse âmbito, especialmente depois da criação da Convenção da UNESCO de 1970, os agentes do mercado de antiguidades vêm se esforçando para suprimir certos componentes jurídicos que dão significados aos termos ilegal e ilícito. Casas de leilão, museus, colecionadores privados, marchands, fundações bancárias, entre outros empreendedores desse mercado têm lidado com os dois termos de maneira elástica, preferindo negar o primeiro e fortalecer o segundo nas transações comerciais que envolvem bens culturais de interesse patrimonial. Tais transações assumem a interpretação de que determinado bem cultural pode ter sido extraído de seu contexto original por meio de práticas ilícitas (imorais ou antiéticas), mas sem ofender qualquer marco normativo atinente ao patrimônio cultural, à soberania de um Estado ou às leis de comércio internacional. Portanto, não seriam, necessariamente, transações ilegais26 26 Há um rico debate histórico-jurídico sobre esse assunto no livro de Mackenzie et al. (2020). .

Ainda que a Convenção de 1970 continue sendo inspiradora ao presente, à UNESCO e aos seus Estados-Partes, já passou da hora de serem imaginadas novas formas de combate ao tráfico internacional, assim como de restituição ou retorno de bens culturais de interesse patrimonial, ilegal e/ou ilicitamente removidos de seus contextos de origem. Assim como no transcurso dos anos 1970, ainda hoje o processo de restituição e/ou de retorno de bens culturais às suas regiões de proveniência, quase sempre, continua dependendo da voluntariedade dos atos de agentes que, em um passado mais ou menos distante, deles se apossaram (governos, colecionadores privados, comerciantes, negociadores do mercado).

Como tentei demonstrar neste texto, em sua primeira década de existência, a Convenção da UNESCO de 1970 e o referido comitê parecem ter sido mobilizados em torno de interesses intergovernamentais estratégicos. Fazendo uso de sua poderosa maquinaria e das capacidades discricionárias de seus gestores, a UNESCO acionou numerosos experts e organismos internacionais para fabricar tanto a convenção quanto o comitê. Mesmo que tal fabricação parecesse trazer aos holofotes as melhores intenções no que tange à restituição e/ou ao retorno de bens culturais removidos de seus contextos de origem, nos sinuosos bastidores da organização as relações de força continuavam a pender em favor dos países europeus.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Doravante, Convenção da UNESCO de 1970.
  • 2
    A programação comemorativa pode ser conhecida em Celebrate 20 Years... (2020CELEBRATE 50 YEARS of Fight Against Illicit Trafficking. 1º jan. 2020. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/news/celebrate-50-years-fight-against-illicit-trafficking . Acesso em: 20 jan. 2021.
    https://en.unesco.org/news/celebrate-50-...
    )
  • 3
    Os projetos foram desenvolvidos durante os anos de 2018 a 2022 por estudantes, professores e pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade (mestrado e doutorado) e dos cursos de História e Artes Visuais da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Em seus quatro anos de duração, ambos contaram com aportes financeiros e concessão de bolsas do Fundo de Apoio à Pesquisa da Univille. Mais informações a respeito desses projetos podem ser encontradas no site do Grupo de Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença - GPCCD (2022GRUPO DE PESQUISA CIDADE, CULTURA E DIFERENÇA. 2022. Disponível em: Disponível em: https://gpccd.org . Acesso em: 1 mar. 2021.
    https://gpccd.org...
    ).
  • 4
    A exemplo de: Sossai et al. (2021SOSSAI, Fernando Cesar et al. A Bolívia, a Bélgica, a UNESCO e uma denúncia de comércio internacional de bens culturais de interesse patrimonial. In: GUSSO, Luana de Carvalho Silva; MEIRA, Roberta Barros; CARELLI, Mariluci Neis (Orgs.). Direito e patrimônio cultural. V. 2. Joinville: Editora da Univille, 2021. pp. 73-89.), Prott (1983PROTT, Lyndel Vivien. International Control of Illicit Movement of the Cultural Heritage: The 1970 UNESCO Convention and Some Possible Alternatives. Syracuse Journal of International Law and Commerce, v. 10, n. 2, pp. 333-351, 1983.), Lanari Bo (2003LANARI BO, João Batista. Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significados. Brasília: Edições UNESCO Brasil, 2003.), Lindsay (2011LINDSAY, Peter. Can we Own the Past? Cultural Artifacts as Public Goods. Critical Review of International Social and Political Philosophy, v. 15, n. 1, pp. 1-17, 2011.), Urbinati (2014URBINATI, Sabrina. Alternative Dispute Resolution Mechanisms in Cultural Property Related Disputes. In: VADI, Valentina; SCHNEIDER, Hildegard (Eds.). Art, Cultural Heritage and the Market: Ethical and Legal Issues. London: Springer, 2014. pp. 93-116.), Veres (2014VERES, Zsuzsanna. The Fight Against Illicit Trafficking of Cultural Property: The 1970 UNESCO Convention and the 1995 UNIDROIT Convention. Santa Clara Journal of International Law, v. 12, n. 2, pp. 91-114, 2014.), Yates (2015YATES, Donna. Illicit Cultural Property from Latin America: Looting, Trafficking and Sale. In: DESMARAIS, France (Org.). Countering Illicit Traffic in Cultural Goods: The Global Challenge of Protecting the World’s Heritage. Paris: ICOM , 2015. pp. 33-46.), Christofoletti (2017CHRISTOFOLETTI, Rodrigo. O tráfico ilícito de bens culturais e a repatriação como reparação histórica. In: CHRISTOFOLETTI, Rodrigo (Org.). Bens culturais e relações internacionais: o patrimônio como espelho do soft power. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2017. pp. 113-132.), Meskell (2018MESKELL, Lynn. A Future in Ruins: UNESCO, World Heritage and the Dream of Peace. Oxford: Oxford University Press, 2018.) e Mackenzie et al. (2020MACKENZIE, Simon et al. Trafficking culture: New Directions in Researching the Global Market in Illicit Antiquities. Nova York: Routledge, 2020.).
  • 5
    A íntegra da convenção encontra-se disponível em: Convenção Relativa às Medidas... (s.d.CONVENÇÃO RELATIVA ÀS MEDIDAS a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais, Paris, 12-14 de novembro de 1970. Disponível em: Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000160638 . Acesso em: 30 mar. 2022.
    https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf...
    ).
  • 6
    A pesquisa documental foi realizada em Paris, nos meses de julho e agosto de 2018, e contou com uma equipe de dois pesquisadores, dois bolsistas e um assistente técnico. As fontes coletadas foram sistematizadas com base em uma Ficha de Análise. Para maiores informações, cf. UNESDOC (s.d.UNESDOC: Digital Library. Disponível em: Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/archives/about-unesco-archives . Acesso em: 30 jan. 2021.
    https://unesdoc.unesco.org/archives/abou...
    ).
  • 7
    Informações sobre o comitê podem ser visualizadas em: “Return & Restitution”... (s.d.“RETURN & RESTITUTION” Intergovernmental Committee. s.d. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/fighttrafficking/icprcp . Acesso em: 2 dez. 2020b.
    https://en.unesco.org/fighttrafficking/i...
    ).
  • 8
    Todas as traduções deste artigo são livres e elaboradas pelo autor.
  • 9
    Ver ONU (1960ONU. General Assembly. Resolution 1.514 (XV): declaration on the granting of independence to colonial countries and peoples. Nova York: ONU , 1960.).
  • 10
    A lista dos Estados que tomaram parte da convenção encontra-se em Convention on the Means of Prohibiting... (s.d.CONVENTION ON THE MEANS OF PROHIBITING and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property 1970. Paris, 14 November 1970. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/sites/default/files/liste_etats_partis_convention_1970_en.pdf . Acesso em 2 mar. 2021.
    https://en.unesco.org/sites/default/file...
    ).
  • 11
    À época, o secretário-geral da ONU era o diplomata austríaco Kurt Josef Waldheim (1918-2007). Seu mandato iniciou-se em 1972 e finalizou-se em 1982. Ele sucedeu o diplomata Maha Thray Sithu U Thant (1899-1974), de Mianmar, que ocupou o cargo de novembro de 1961 a janeiro de 1972.
  • 12
    Entre 1974 e 1987, o diretor-geral da UNESCO foi o geógrafo senegalês Amadou-Mahtar M’Bow (1921-). Após ter concluído o ensino superior em Paris, M’Bow “ensinou história e geografia no Senegal”, país onde atuou como diretor de “educação básica de 1952 a 1957”. Durante o “período de transição da autonomia interna de seu país (1957-1958)”, liderou parte da “luta pela independência do Senegal”. Anos depois, “tornou-se ministro da Educação (1966-1968) e, a seguir, [ministro] dos Assuntos Culturais e Juvenis (1968-1970)”. Em 1966, foi eleito membro do Conselho Executivo da UNESCO. Em 1970, assumiu o posto de diretor-geral adjunto para a Educação nessa entidade (UNESCO’s former Directors-General…, s.d.UNESCO’S FORMER DIRECTORS-GENERAL. s.d. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/director-general/former-dgs . Acesso em: 8 jan. 2021.
    https://en.unesco.org/director-general/f...
    ).
  • 13
    Sem registrar os nomes de seus autores, o relatório elaborado pelo comitê contava com 14 laudas e intitulava-se Estudo preliminar sobre aspectos legais e técnicos de um instrumento internacional relativo à preservação e cobertura de riscos de bens culturais móveis. Além de “Introdução” e “Conclusão”, o texto foi organizado em cinco partes: “Prevenção de riscos”, “Cobertura de riscos”, “Melhorias de medidas preventivas”, “Riscos de financiamento de melhorias” e “Medidas suplementares” (UNESCO, 1976aUNESCO. General Conference. 19th Session. Annex 19C/34: Preliminary Study on the Technical and Legal Aspects of an International Instrument Concerning the Prevention and Coverage of Risks to Movable Cultural Property. Nairóbi: UNESCO, 1976a., pp. 1-19C/34-Annex). A principal conclusão do relatório foi a seguinte: “Seria conveniente empreender um novo programa de ações normativas padronizadas para a prevenção e cobertura de riscos de bens culturais móveis. A alarmante situação criada pelo crescente roubo, vandalismo, escavações ilegais e exportações ilícitas torna esse programa essencial para intensificar e generalizar medidas de prevenção. Muito pode ser feito para reduzir os riscos e os custos de cobertura de risco. Os meios técnicos necessários existem. O que é exigido é a sua aplicação de uma maneira mais aprofundada e coordenada” (UNESCO, 1976aUNESCO. General Conference. 19th Session. Annex 19C/34: Preliminary Study on the Technical and Legal Aspects of an International Instrument Concerning the Prevention and Coverage of Risks to Movable Cultural Property. Nairóbi: UNESCO, 1976a., pp. 13-19C/34-Annex).
  • 14
    Realizada na UNESCO, em Paris, de 24 de outubro a 28 de novembro de 1980.
  • 15
    Cumpre mencionar que foi apensada ao volume I, “Resoluções”, dos “Arquivos da 19ª Conferência Geral da UNESCO”, uma versão detalhada da citada recomendação elaborada por M’Bow e seus assessores “acerca do intercâmbio internacional de bens culturais” (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 2-19C/109). Como anexo, o documento recebeu o seguinte título: “Recomendação relativa ao intercâmbio internacional de bens culturais”. Além de uma lauda de “Considerandos”, muitos dos quais positivavam o intercâmbio global de bens culturais e alertavam para o crescimento de “negociações ilícitas” envolvendo artefatos patrimoniais dos “países mais pobres” do mundo, a recomendação contava com cinco seções: “Definições”, “Medidas recomendadas”, “Cooperação internacional”, “Estados federais” e “Ações contra a negociação ilícita de bens culturais” (a última limitada a um parágrafo com seis linhas) (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b.).
  • 16
    Realizada de 24 de outubro a 28 de novembro de 1978, em Paris, no edifício principal da entidade.
  • 17
    O montante destinado à preparação desses trabalhos seria de US$ 30.000 (UNESCO, 1976bUNESCO. General Conference. 19th Session. Item 16 of the Provisional Agenda. Report of Director-General [19C/109]: Implementation of 18C/Resolution 3.428 of the General Conference Concerning the Restitution or Return of Cultural Property. Nairóbi: UNESCO , 1976b., pp. 3-19C/109).
  • 18
    Além dos indicados no quadro, pela análise do conjunto das fontes percebe-se que também participaram da reunião a Sra. Ulla Kending Olofsson (observadora do Conselho Executivo do ICOM), o Sr. Gérard Bolla (assistente do diretor-geral da UNESCO para assuntos de cultura e comunicação) e a Sra. Anne Raidl (Divisão de Patrimônio Cultural da UNESCO).
  • 19
    Compunham esse comitê: H. Ganslmayr, H. Landais, G. Lewis, P. Makambila, P. N. Perrot, J. W. Pré e J. Vistel. Na fonte, não há dados sobre os países de proveniência, tampouco sobre os vínculos institucionais dos integrantes.
  • 20
    A primeira seção do documento foi dividida em dois itens: “A coerência do patrimônio reconstituído” (p. 2) e “A primazia do objeto” (p. 4); e a segunda, em quatro outros: “Falta de informação” (p. 6), “Dificuldades psicológicas” (p. 6), “Obstáculos legais” (p. 7) e “O papel da UNESCO” (p. 9) (ICOM, 1977ICOM. Study on the Principles, Conditions and Means for the Restitution or Return of Cultural Property in View of Reconstituting Dispersed Heritages. Paris: ICOM, 1977.).
  • 21
    De acordo com Martinelli e Bem (2019MARTINELLI, João Paulo; BEM, Leonardo de. Lições fundamentais de direito penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2019., p. 1069), “há um conjunto de regras não convencionais imperativas que se sobrepõem à autonomia dos Estados e não podem ser derrogadas por tratados, por costumes ou por princípios de direito internacional. Essas regras formam o jus cogens, que são reconhecidas pela sociedade internacional como um todo”.
  • 22
    Realizada em Moscou em 28 de maio de 1977.
  • 23
    Ocorrida durante os meses de abril e maio de 1977.
  • 24
    A minuta de resolução foi tornada pública em novembro de 1976, em Nairóbi. Em síntese, propunha a “preparação [...] de uma declaração estabelecendo os princípios básicos para governar a restituição de bens culturais e, também, [definir] o direcionamento que as ações internacionais nesse campo deveriam seguir, assim como a forma que deveriam ter” (UNESCO, 1978cUNESCO. General Conference. 20th Session. Resolution 4/7.6/5. V. 1. Paris: UNESCO , 1978., p. 2-Annex IV).
  • 25
    Desde os anos 1960, Alemanha, Bélgica, França, Reino Unido e Estados Unidos são considerados os maiores “mercados globais de antiguidades ilícitas” (Mackenzie et al., 2020MACKENZIE, Simon et al. Trafficking culture: New Directions in Researching the Global Market in Illicit Antiquities. Nova York: Routledge, 2020., p. 10).
  • 26
    Há um rico debate histórico-jurídico sobre esse assunto no livro de Mackenzie et al. (2020MACKENZIE, Simon et al. Trafficking culture: New Directions in Researching the Global Market in Illicit Antiquities. Nova York: Routledge, 2020.).
  • **
    Grupo de Pesquisa Cidade, Cultura e Diferença (GPCCD).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2021
  • Aceito
    18 Mar 2022
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