Ao falar de mulheres trans
você extrapola o que é importante em História.
Mulher trans não existe!
E vocês, feministas, ficam inventando histórias
quando as mulheres já conquistaram todos os direitos.
(um professor; um homem cis)
Começo este texto a partir do registro acima, que expressa a reação de um professor à palestra que proferi no dia 08 de março de 2023, dirigida a docentes e discentes em uma escola pública na cidade de Alfenas, sul mineiro. Naquele dia, conversávamos sobre as inúmeras formas de violência contra mulheridades e feminilidades no Brasil1 1 Faço uso dos termos mulheridades e feminilidades a partir de Letícia Carolina Nascimento (2021), para designar formas históricas e culturalmente diversas de compreender-se como mulher ou como feminino, desconstruindo a categoria universal de mulher hegemônica, branca, cristã e cisheterossexual. Desta forma, eles trazem as marcas da interseccionalidade de raça, sexualidade, classe e gênero, e da historicidade em movimento. , inclusive no âmbito da pesquisa, do ensino e das relações de gênero, quando algumas meninas passaram a narrar fatos relativos a assédio sexual e discriminação contra jovens travestis e transexuais na escola, passando pelo desrespeito ao nome social e ao direito de uso do banheiro, além da objetificação de seus corpos e do estigma como “pervertidas” por parte de colegas e de seus professores.
Propus-me a colocar em destaque e iniciar a escrita pela fala de um dos docentes, professor de História, que se retirou do pátio onde estávamos para fazer uma reclamação à direção contra minha “presença nociva” na escola, abordando, segundo ele, questões ligadas à chamada “ideologia de gênero”, uma espécie de doutrinação contrária aos “bons costumes” e à “família tradicional brasileira” (Junqueira, 2017JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”?. In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES, Joanalira Corpes (Orgs.). Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade. Rio Grande: FURG, 2017. pp. 25-52.). Seu incômodo maior vinha do fato de “a professora extrapolar o objetivo da palestra, falando de homens que se fazem passar por mulheres e de encher a cabeça das meninas com mentiras sobre direitos. Isso não é História!”. Essa passagem, tão significativa sobre o ato de certas masculinidades tentarem calar as mulheridades no cotidiano escolar, observada principalmente nos últimos quatro anos sob um governo de caráter misógino, será o mote da reflexão aqui desenvolvida em torno do silenciamento; ou seja, de práticas e conceituações que procuram produzir silêncios relativos às questões de gênero, em especial no ensino de História, seja na educação básica ou na universidade.
Sob a perspectiva da história pública, considerada aqui um movimento e uma atitude historiadora que busca não apenas ampliar acesso e audiência, mas promover debates democráticos com os públicos e a partir deles (Almeida; Rovai, 2011ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.), nos últimos anos tenho procurado compartilhar, nas escolas públicas de Alfenas, pesquisas que tenho realizado junto à comunidade LGBTQIA+2 2 Faço uso da sigla LGBTQIA+ que, segundo os movimentos sociais, busca representar pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais e demais pessoas que não se identifiquem dentro de uma normativa cisheterossexual. , no sul de Minas Gerais, em especial com mulheres trans e travestis em torno de suas histórias de vida marcadas por dispositivos de violência simbólica ou física, mas também pela resistência. Desde 2017, tenho feito uso da história oral para compreender, entre outros aspectos, a presença ou a invisibilidade dessa população na Universidade e nos colégios da região, e tenho mediado discussões envolvendo as questões de gênero e sexualidade como construções sócio-históricas3 3 A pesquisa que tenho desenvolvido com a população LGBTQIA+ de Alfenas deu origem a publicações acerca de suas histórias de vida, memória e identidade. No momento, coordeno o projeto AMHOR: Acervo de memória e história do Orgulho LGBTQIA+ no sul de Minas Gerais, por meio do qual procuramos fazer levantamento e produzir fontes históricas sobre a comunidade, com sua participação, além de analisar currículos e apresentar propostas didáticas para a educação básica. . Nesses encontros, a leitura e a reflexão sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os currículos tem sido uma prática, de modo a provocar docentes a pensar sobre ausências nos documentos e práticas que compõem a pesquisa, a formação de professores/as e o ensino de História. Reações conservadoras à legitimidade das existências dissidentes da cisheteronormatividade, ao direito à memória e história e ao reconhecimento de violações nos espaços de ensino têm me levado a refletir sobre como temos contribuído, como historiadoras/os e docentes (em sua maioria cisgêneras/os e brancas/os), para silenciamentos históricos.
Parto da ideia de silenciamento e não do silêncio, pois este último pode se manifestar na forma de resistência, de recusa a dizer. O silenciamento, no entanto, corresponde à ação de “pôr em silêncio”, como afirmou Eni Orlandi (2007ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 2007.). É a expressão da censura, da interdição, mas também das estratégias do dizer e de produzir sentidos por parte de grupos hegemônicos (ou hegemonizados) que elaboram narrativas oficiais, enquadram memórias e empurram para espaços íntimos as trajetórias, as lutas e os danos históricos a indivíduos e coletivos subalternizados a fim de não reconhecer, não responsabilizar e não reparar. Assim, o olhar sobre o passado histórico colabora para construir condutas consideradas legítimas, em detrimento de outras existências consideradas desqualificadas, sobre as quais se diz não dizendo, não reconhecendo a presença, não abrindo espaço. Ou, mais do que isso: dizendo em nome de, para impor e silenciar.
As denúncias corajosas das discentes e as palavras repressoras proferidas pelo docente, no caso citado para abrir esta reflexão, são significativas para a compreensão de certa cultura escolar4 4 Baseio-me na concepção de cultura escolar de Seffner e Picchetti (2016, p. 62), como “um conjunto articulado de registros simbólicos, dispositivos disciplinares específicos, estrutura curricular, modos e meios de realizar as atividades, linguajar próprio, formas de avaliação, estratégias de sociabilidade e de socialização que permitem reconhecer os contornos da instituição, conhecer seus limites e possibilidades e pensar seu lugar e funções no tecido social e político”. marcada pelo enfrentamento entre as experiências das novas gerações que querem saber e se dizer (alimentadas por uma nova perspectiva histórica e pedagógica que se fortalece na universidade e nas escolas, mas ainda não o suficiente), e o reacionarismo hegemonicamente masculino, branco, cristão e cisheteronormativo, que pretende “pôr em silêncio” demandas e discursos os quais podem colocar em perigo seus privilégios, assim como certo entendimento da História.
O sexismo e a lgbtfobia se expressam como violência direta, mas também pelo não dito e pelos interditos. São ações e produtos de uma constelação de instituições sociais, entre elas a universidade e a escola, com suas especificidades, distinções e história, mas territórios políticos e sociais que se articulam e nos quais ainda as desigualdades de gênero5 5 Ao usar o termo gênero, penso nas interseccionalidades relacionais e identitárias que o compõem: raça, sexualidade e classe. Entendo que gênero faz parte de um debate não consensual entre correntes do feminismo e da teoria queer, mas parto da definição de Scott tomando-o como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças e como uma forma primeira de significar as relações de poder (Scott, 1995, p. 86). Como construção, portanto, não é fixo nem definitivo, mas performaticamente construído, como também lembrou Judith Butler (2003). se manifestam sob discursos que calam e vazios que dizem. Desse modo, primeiro apresento uma breve discussão sobre como as questões de gênero e sua relação com o ensino de História, em meio a um cenário de ataques e de negacionismos, tornaram-se objeto de setores fundamentalistas, impactando na tentativa de silenciar políticas públicas dedicadas a transformar a educação desde a década de 1990. Em seguida, objetivo provocar certa reflexão em torno do posicionamento que tomamos, seja como pesquisadoras/es ou como docentes na educação básica - e também no ensino superior -, em relação à reprodução desse silenciamento, mesmo quando falamos de uma história pública afetada pelos movimentos sociais e pelas subjetividades. Penso no uso que fazemos da linguagem masculina universal e na abordagem de gênero na narrativa histórica, entendendo-as como tecnologias de gênero, conforme aponta Teresa de Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. pp. 206-241., p. 18); ou seja, como dispositivos “com poder para controlar o campo de significado social, e então produzir, promover, e ‘implantar’ representações de gênero” capazes de produzir crenças e performances que enfatizam o mundo binário e cisheteronormativo e que colaboram para interditar e apagar conhecimentos e experiências consideradas dissidentes.
Não pretendo nomear obras e autoras/es, a fim de submetê-las/os à análise mais detida, mas basear-me em minha própria experiência como professora há 37 anos, nas pesquisas que realizo junto à comunidade LGBTQIA+ e nos impactos que elas têm promovido no modo com que tenho discutido os currículos e livros didáticos, e ouvido sobre as práticas pedagógicas com discentes e docentes nas escolas, de modo a observar as escolhas de abordagem historiográfica e de autorias, assim como a linguagem que utilizamos para narrar os acontecimentos históricos que perpassam, em comum, a formação de nossos discentes universitários e da educação básica. É possível praticar uma história pública das mulheridades e feminilidades se continuarmos a reproduzir uma perspectiva masculina hegemônica nas narrativas históricas?
A PALAVRA PÚBLICA COMO PERIGO À COLONIALIDADE
Para tratar das formas de silenciamento produzidas no âmbito da educação e do ensino de História em relação às mulheridades e feminilidades, é preciso considerar as tensões em torno da inserção dos debates de gênero e sexualidade, uma vez que estes conceitos alargam uma “história das mulheres” tradicionalmente limitada pela concepção binária, biologizante e cisheteronormativa e transformam o modo como podemos narrar diferentes experiências e relações. Como afirmou Joan Scott:
Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas (Scott, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, pp. 71-99, jul./dez. 1995., p. 75).
Esta perspectiva histórica transbordante tem incomodado setores sociais privilegiados pela crença num mundo binário em que determinado conceito racionalista, europeu e abstrato de homem domina e prevalece, a ponto de ser a representação geral da humanidade, sob a qual estão soterradas as diferenças. Compreender a história e o ensino de História a partir do gênero é desconstruir verdades sobre as categorias “homem” e “mulher” e questionar a sua produção ocidental, como defendeu Oyèrónké Oyěwùmí (2021OYĚWÙMÍ, Oyèrónk. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.), para quem as categorias europeias de gênero são apresentadas como inerentes à natureza dual dos corpos e impostas historicamente aos povos africanos, gerando distorções, incompreensões de suas instituições sociais e conhecimentos. Os efeitos dessa imposição, acerca da qual a autora discorre em sua obra para falar das etnias africanas (em especial a iorubá), se estenderam a várias culturas e seus modos de explicar e entender as relações sociais, colocando sob suspeita outras epistemologias e experiências além da concepção ocidental e impedindo que seu modelo, apontado como normal, fosse questionado. Por ignorância, ou mesmo por escolha, não pensamos a historicidade do próprio termo.
Berenice Bento (2011BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, pp. 549-559, mai./ago. 2011., p. 556) nomeia de heteroterrorismo a permanência desse projeto social cisheteronormativo que impõe um padrão de gênero e que articula perversamente “uma engenharia de produção de corpos normais, que extrapola os muros da escola, mas que encontrará nesse espaço um terreno fértil de disseminação”, oferecendo o risco constante de que violências simbólicas e físicas recaiam sobre as outridades da masculinidade hegemônica e da cisheteronormatividade. Ele se manifesta por toda a sociedade, mas, de forma especial, nos espaços de educação e no ensino de História, por meio de estigmatizações, de tecnologias e de representações históricas acerca da afirmação de uma essência e de um destino nos papéis sociais de homens e mulheres considerados/as sinônimos de normalidade, em sua concepção dualista. Dessa forma, mulheridades não apenas cisgêneras, heteros e brancas - o/a “outro/a” do homem branco -, mas também “os/as outros/as do/a outro/a”, feminilidades travestis, transexualidades, lesbianidades, bissexualidades, além de corpos não binários, passam por processos de abjeção e/ou invisibilização social, por meio da pedagogia da culpa, da vergonha e do insulto (Louro, 2018LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 4ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), dispositivos de silenciamento.
O heteroterrorismo, no Brasil, encontrou reforço no desmantelamento das políticas públicas e de serviços nacionais voltados às mulheres e à população LGBTQIA+, com maior ênfase nos anos de Governo Bolsonaro (2018-2022), alimentando uma conjuntura política e social de exclusão de direitos, negacionismos históricos, perseguição aos movimentos sociais e a instituições de educação, o que contribuiu para produzir um clima de desconfiança e ódio às ações envolvendo as temáticas de gênero e sexualidade. Esses enfrentamentos já existiam antes mesmo de 2018, mas podemos afirmar que até então havíamos conquistado importantes avanços em políticas públicas e na legislação relativos ao combate à violência contra a mulher, ao racismo e à lgbtfobia, em decorrência do diálogo do Estado com a sociedade civil desde a chamada redemocratização nos anos 1980 e 1990, como os feminismos, o movimento negro e LGBTQIA+, que reivindicavam a cidadania com o direito à diferença.
Nesse contexto, o Ministério da Educação promulgou a Lei n. 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e a Lei n. 10.639/2003, de ensino de história e cultura afro-Brasileira e africana, expressando a preocupação com a diversidade étnico-racial, mas ainda não havia referências às questões de gênero e sexualidade. Em 1998, com a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), propostas disciplinares e eixos temáticos transversais nos componentes curriculares apontavam questões relativas às mulheres, defendendo que “o trabalho sobre relações de gênero tem como propósito combater relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para sua transformação” (Brasil, 1998BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MECSEF, 1998., p. 352). No entanto, o conceito de gênero não era, ainda, problematizado historicamente e mantinha-se a confusão como sinônimo de mulheres, sexualidade ou sexo, numa concepção biologizante (Figueiredo, 2009FIGUEIREDO, Vicente Augusto Aquino. Gênero, patriarcado, educação e os parâmetros curriculares nacionais. Espaço Feminino, v. 21, n. 1, pp. 37-53, jan./jul. 2009.).
Os conteúdos ligados à violência contra a mulher, a discriminação e os estereótipos nas narrativas históricas permaneceram sendo secundarizados ou invisibilizados nas propostas didáticas, mesmo quando, entre os objetivos transversais do PCN do Ensino Fundamental II, recomendava-se, de forma genérica, que “Em relação às questões de gênero, por exemplo, os professores devem transmitir, por sua conduta, a valorização da equidade entre os gêneros e a dignidade de cada um individualmente” (Brasil, 1998BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MECSEF, 1998., p. 303). Não havia, expressamente, uma proposta para o ensino de História que propusesse uma discussão sobre o próprio conceito e a historicidade das relações de gênero, embora no âmbito acadêmico a história das mulheres e estudos iniciais de gênero já se fizessem presentes, ainda que ignorassem a lesbianidade ou a transexualidade. Historiadores, em especial, encaravam “as mulheres como uma categoria homogênea; eram pessoas biologicamente femininas que se moviam em papéis e contextos diferentes, mas cuja essência não se alterava” (Soihet; Pedro, 2007SOIHET; Rachel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, v. 27, n. 54, pp. 281-300, 2007. , p. 6).
Em 2004, com a eleição do governo de Luís Inácio Lula da Silva, a sociedade civil, organizada em entidades defensoras dos direitos LGBTQIA+, demandou do Governo Federal políticas públicas mais eficazes no combate à lgbtfobia e ao sexismo nas escolas, e em prol de uma educação plural. Entre as atividades propostas pelo Programa Brasil Sem Homofobia estava o Escola Sem Homofobia, um conjunto de materiais com sugestões de sequências didáticas para professoras/es, cujo objetivo era qualificá-las/os quanto à abordagem da diversidade sexual e de gênero em contextos pedagógicos. Tratava-se, enfim, de produzir presença e combater invisibilizações na educação e no ensino, especialmente de mulheridades e feminilidades que sofriam duplamente com a discriminação de gênero e de sexualidade (triplamente, se associada ao racismo). Naquele ano, o Ministério dos Direitos Humanos, em parceria com organizações não governamentais e com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), elaborou o material didático composto por uma cartilha, seis boletins, três vídeos, um cartaz de divulgação e uma carta de apresentação, em defesa dos direitos LGBTQIA+, e que deveria ser distribuído nas escolas, sob orientação docente (o que foi nomeado de “kit anti-homofobia”).
Como reação a essa proposta, nesse mesmo ano foi fundado o Programa Escola Sem Partido, pelo advogado Miguel Nagib, que contou com apoio de setores fundamentalistas e de extrema-direita, sob a alegação de que haveria uma intencionalidade de doutrinação sexual e imoral de crianças por parte de docentes; orientada pelo “marxismo cultural” (Junqueira, 2017JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária - ou a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”?. In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES, Joanalira Corpes (Orgs.). Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade. Rio Grande: FURG, 2017. pp. 25-52.). Assistimos, a partir daí, ao fortalecimento de uma batalha política entre forças que disputavam as narrativas sobre corpos, identidades e agenciamentos, e que se estenderia até hoje, entre avanços e retrocessos, em torno do silenciamento ou da visibilização das lutas sociais e de sujeitos/as dissidentes nas escolas e na própria História.
Eventos como a realização de duas conferências nacionais dos direitos LGBT, em 2008 e 2011, a elaboração do I Plano Nacional de Promoção dos Direitos LGBT, em 2009, o Conselho Nacional dos Direitos LGBT, em 2011, e o Sistema Nacional de Enfrentamento à Violência contra LGBT e Promoção de Direitos intensificaram uma batalha em defesa do reconhecimento das identidades, das memórias, das histórias e dos direitos, além da prevenção e reparação de danos aos corpos e existências plurais, reverberando nas políticas públicas de educação, embora ainda de forma tímida e contida. Exemplos dessas tentativas são as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, elaboradas em 2012, e que, em seu Art. 16, consideravam que o projeto político-pedagógico das unidades escolares deveria garantir:
XV - valorização e promoção dos direitos humanos mediante temas relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outros, bem como práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação e violência sob todas as formas (Brasil, 2012BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Diário Oficial da União, Poder Executivo, 31 jan. 2012. , p. 20).
Outro exemplo é que, em 2014, o Plano Nacional de Educação, em seus objetivos e metas, definiu, entre suas diretrizes para o Ensino Fundamental e para o Ensino Superior, respectivamente:
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11. Manter e consolidar o programa de avaliação do livro didático criado pelo Ministério de Educação, estabelecendo entre seus critérios a adequada abordagem das questões de gênero e etnia e a eliminação de textos discriminatórios ou que reproduzam estereótipos acerca do papel da mulher, do negro e do índio (Brasil, 2014BRASIL. Lei 13.005, de 25 de junho 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília (DF), 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm . Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... , p. 24). -
12. Incluir nas diretrizes curriculares dos cursos de formação de docentes temas relacionados às problemáticas tratadas nos temas transversais, especialmente no que se refere à abordagem tais como: gênero, educação sexual, ética (justiça, diálogo, respeito mútuo, solidariedade e tolerância), pluralidade cultural, meio ambiente, saúde e temas locais (Brasil, 2014BRASIL. Lei 13.005, de 25 de junho 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília (DF), 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm . Acesso em: 18 out. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... , p. 44).
Estes documentos, por serem colocados como parâmetros e não como programas ou modelos de ensino, não tornavam restritos os conteúdos ou conceitos a serem trabalhados, deixando sua seleção à realidade escolar. No entanto, o Programa Escola sem Partido compreendeu essas orientações como um perigo moral e conseguiu articular forças que se contrapunham a essas abordagens, procurando combatê-las, vetá-las e construir um clima de medo social, em que as questões de gênero e sexualidade, associadas a estratégias do fantasma do comunismo, foram reavivadas no imaginário coletivo. Em 2011, enquanto o Programa Brasil sem Homofobia e o “kit anti-homofobia” ainda tramitavam nas instâncias institucionais, o grupo autointitulado Revoltados Online elaborou uma petição em repúdio ao que foi chamado por eles de “kit gay”, e reforçado por discursos do então deputado Jair Bolsonaro e de seus filhos.
Ampliava-se o heteroterrorismo, em forma de estímulo ao medo social, tendo como decorrência da pressão feita por setores fundamentalistas católicos e evangélicos no Congresso Nacional e na sociedade civil o veto ao projeto que instituía o “kit anti-homofobia” pela presidenta Dilma Rousseff, sob a alegação de que seu governo “não faria propaganda de opção sexual” (Redação, 2011REDAÇÃO. “Não aceito propaganda de opções sexuais”, afirma Dilma sobre kit anti-homofobia. 26 maio 2011. Disponível em: Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2011/05/26/nao-aceito-propaganda-de-opcoes-sexuais-afirma-dilma-sobre-kit-anti-homofobia.htm . Acesso em: 15 ago. 2023.
https://educacao.uol.com.br/noticias/201...
). Essa interdição a uma política educacional importante demonstra o cenário conservador que afetou as negociações em torno da construção de políticas públicas para proteção e garantia de direitos da população LGBTQIA+, elaborada na 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2011BRASIL. Anais da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 15 a 18 de dezembro de 2011. ). As diretrizes constantes nos Anais foram amplamente discutidas com representantes da comunidade LGBTQIA+ e membros do Estado (mas com a ausência da presidenta), prevendo para a educação e o ensino, entre outras ações:
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Diretriz 2 - Estimular, fomentar e fortalecer a criação de grupos e núcleos de estudo nos diferentes níveis de ensino, através de financiamento público, da promoção, da articulação e da parceria entre o poder público, sociedade civil organizada, instituições de pesquisa e extensão e universidades, objetivando: (a) mapear ações inovadoras desenvolvidas em defesa da promoção da cidadania LGBT; (b) criar indicadores para a avaliação e monitoramento de políticas públicas para LGBT nas diferentes esferas governamentais; (c) analisar concepções pedagógicas, currículos, rotinas, atitudes e práticas adotadas nos espaços de educação; (d) identificar a situação da população LGBT nos sistemas de ensino.
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Diretriz 3 - Garantir, nas três esferas de governo, a realização de cursos interdisciplinares, preferencialmente presenciais, de formação inicial permanente e continuada e em serviço para todos os profissionais de educação, e conselheiros ligados à educação das escolas públicas. Esses profissionais deverão desenvolver projetos de intervenção pedagógica nos espaços educacionais e discutir a inclusão nos currículos das temáticas relativas à orientação sexual e à identidade de gênero, formando multiplicadores, respeitando as especificidades locais e regionais (Brasil, 2011BRASIL. Anais da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 15 a 18 de dezembro de 2011. , pp. 111-112).
Além de prever a formação continuada de docentes, por meio de elaboração, produção e distribuição de materiais de referência (científicas e literárias) e didático-pedagógicos que abordassem conteúdos e promovessem o reconhecimento e a valorização da diversidade, as Diretrizes também defendiam ações para a permanência de estudantes LGBTQIA+ nos espaços educativos. Isso tudo implicaria na mudança de currículos, planos de ensino, material didático e na própria cultura escolar, de maneira a formar multiplicadores no combate à lgbtfobia, ao sexismo e ao racismo. Em especial, no ensino de História, esperava-se reconhecer que as narrativas até então hegemônicas deveriam ser desconstruídas, abrindo espaço para outras epistemologias, metodologias, outros matérias didáticos, fontes e experiências. Tudo isso, no entanto, não se converteu em política pública nos anos posteriores, embora possamos afirmar que ações criativas de docentes na educação básica em prol dos direitos e da história LGBTQIA+ tenham se ampliado à revelia da opressão que se ampliou durante os quatro anos do governo Bolsonaro, cuja base política se alicerçou nos grupos fundamentalistas, na extinção e na entrega do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos à pastora evangélica Damares Alves (seu lema “mulheres de rosa, homens de azul” defendia a afirmação da cisheteronormatividade sobre a negação de outras subjetividades). Ainda antes, em 30 de outubro de 2018, no contexto das eleições presidenciais e do uso de discursos de caráter vigilante e autoritário pelo então candidato Jair Bolsonaro, o relator do projeto Escola sem Partido na Câmara dos Deputados, deputado Flavinho (PSC), acrescentou alterações na redação da Lei n. 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determinando a proibição do uso das expressões gênero, sexualidade, orientação sexual e “ideologia de gênero”, aplicada:
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I - às políticas e planos educacionais;
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II - aos conteúdos curriculares;
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III - aos projetos pedagógicos das escolas;
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IV - aos materiais didáticos e paradidáticos;
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V - às avaliações para o ingresso no ensino superior;
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VI - às provas de concurso para ingresso na carreira docente
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VII - às instituições de ensino superior, respeitado o disposto (Comissão Especial Destinada..., 2018COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA a proferir parecer ao projeto de lei n. 7.180, de 2014, do sr. Erivelton Santana, que “altera o art. 3º da lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996” (inclui entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”, e apensados). 30 out. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1688989&filename=SBT+2+PL718014+%253D%253E+PL+7180/2014 . Acesso em: 01 jun. 2023.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb... ).
Documentos como este são a expressão do heteroterrorismo, como apontado por Bento (2011BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, pp. 549-559, mai./ago. 2011.), compondo o conjunto de ações e discursos que promovem a violência simbólica cotidiana, a repressão a ideias e vidas dissidentes da cisnormatividade, as quais se pretende silenciar por meio do pânico moral da população em torno de condutas ou valores fora do padrão. Constrói-se uma rede de vigilância a partir da padronização dos corpos e condutas, numa lógica binária que provoca violências aos corpos considerados dissidentes, pois eles não cabem na palavra permitida. Sem qualquer referência às existências diferentes e sem a reflexão sobre a desigualdade que se eleva sobre as diferenças, ocorre o ato de silenciar.
Assim, propostas de alteração da Lei de Diretrizes e Base, como a apresentada pelo deputado bolsonarista, baseadas num projeto de extrema-direita, têm como objetivo impedir a palavra e a ação. Mais do que isso, impedir a existência, pois não nomear é fazer esquecer, é fazer desaparecer: a extinção do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em 28 de junho de 2019, exatamente no dia internacional do orgulho LGBTQIA+, é exemplo significativo disso. Ainda sobre o silenciamento, nos últimos anos, a entidade Human Rights Watch chegou a documentar um esforço político de setores conservadores no Brasil para desacreditar e restringir o ensino relativo a temas como feminismo, equidade de gênero, história LGBTQIA+, direitos humanos, entre outros. O relatório intitulado “Tenho medo, esse era o objetivo deles”: esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil, citado no artigo “Brasil: Ataques à Educação sobre Gênero e Sexualidade” (Human Rights, 2022), analisou 217 projetos de lei apresentados e leis aprovadas, entre os anos de 2014 e 2022, destinados a proibir explicitamente o ensino e banir a chamada “ideologia de gênero” das universidades e das escolas municipais e estaduais.
O esvaziamento de programas, planos de ensino, currículos e livros didáticos em relação a esses debates é uma forma violenta de negar a existência e a história de indivíduos e grupos LGBTQIA+, assim como diferentes experiências de mulheridades em relação às masculinidades, seus feitos, suas resistências, lutas e seus desejos. Decretos e leis de caráter reacionário, principalmente em câmaras de vereadores de diversas cidades pelo Brasil, também conduziram o cerceamento e a perseguição a docentes que desenvolvessem um trabalho voltado a identidades de gênero, às orientações sexuais, à afetividade LGBTQIA+ e ao combate contra formas de violência e preconceito, com a justificativa de que caberia à família escolher a educação de suas/seus filhas/os de acordo com seus valores morais e religiosos. Entre essas medidas, cabiam a gravação de aulas e até mesmo a denúncia de doutrinação.
O desaparecimento, já em 2017, de qualquer referência à palavra gênero na Base Nacional Curricular Comum (BNCC), a não ser para se referir a formatos de escrita e de discursos literários ou artísticos, é também produto desse processo tenso de enfrentamento. A versão final da área de História desconsiderou todos os debates desenvolvidos durante anos acerca desses temas tratados como objetos de conhecimento histórico e que buscavam romper com discursos canônicos e reinventar currículos. Prevaleceram os interesses e valores eurocentrados e cisheteronormativos, salvo algumas referências à história das mulheres de forma universalizada e genérica (geralmente brancas e cis) que aparecem em trechos das habilidades ou competências, casualmente em acontecimentos históricos ou em textos complementares. Uma busca na BNCC/História, do Ensino Fundamental, por exemplo, nos permite verificar as ausências, com exceção para a generalização encontrada na habilidade abordada no 9º Ano, em que foi possível ler “mulheres” (uma das duas citações em todo o documento) e encontrar o termo “homossexuais”:
(EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas (Brasil, 2017BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Educação é a base. Brasília, DF: MEC, 2017. , p. 431).
Na versão para o Ensino Médio também prevalece o silenciamento em relação aos termos gênero, feminismo, movimentos sociais ou à sigla LGBTQIA+, sendo que a palavra mulher pode ser observada uma única vez no texto. Habilidades tais como a que propõe analisar situações da vida cotidiana, “desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito”, e “ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais” não explicitam, historicamente, as/os sujeitos/as, e não fazem qualquer referência ao significado de diferença, ao (trans)feminicídio ou à lgbtfobia, problemas gritantes no cenário brasileiro. A ocultação dos termos e de palavras impera, revelando, como afirma Michel Foucault, que discursos são práticas de saber-poder, colaborando para constituir subjetividades e condutas, orientá-las, engrandecê-las ou apagá-las: “Teria então chegado o momento de considerar esses fatos de discurso não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico mas, de certa forma, como jogos (“games”), jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta” (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2009., p. 9).
AS AUTORIAS, OS SUJEITOS E A LINGUAGEM NA PRODUÇÃO DE APAGAMENTOS HISTÓRICOS
Até aqui procurei fazer uma breve reflexão sobre como a tensão social e política que temos enfrentado historicamente nos últimos anos tem atravessado a produção de documentos que orientam a educação no país e impactam em ausências nas propostas do ensino de História em relação às questões de gênero e à trajetória de corpos outrizados e ignorados pela cisheteronormatividade. No entanto, mais do que este aspecto, quero chamar a atenção para uma cultura e um posicionamento que atravessa nossas práticas de pesquisa e ensino, tanto na universidade quanto na escola, instituições que, apesar de suas especificidades, preservam narrativas históricas e historiográficas que também produzem silenciamentos nas opções que educadoras/es fazem quanto ao protagonismo, aos conteúdos e à linguagem para se referir a sujeitos/as históricas/os.
Não é apenas o reacionarismo, materializado em movimentos como o Escola Sem Partido, o elemento que explica as ausências e os silenciamentos em documentos e materiais didáticos, mas também a maneira como temos conduzido nossas aulas, tornando natural a escolha em manter certa tradição acadêmica e não se perguntar sobre suas razões. A naturalização de atitudes e concepções nos impede de ver as elaborações e suas intencionalidades políticas. Como professora, em algumas ocasiões procurei iniciar minhas aulas - seja na educação básica ou na universidade - com certa provocação, ao fazer uso exclusivo de pronomes e de substantivos femininos como “operárias”, “revolucionárias”, “camponesas”, “oprimidas” e “cidadãs”, entre outros, para me referir aos processos históricos, tendo como resultado manifestações indignadas de discentes e docentes quanto ao apagamento e omissão de referências aos homens. Revela-se nítido o desconforto e até a tentativa de correções na linguagem e no protagonismo histórico. Não foram poucas as vezes em que escutei de colegas na universidade se pretendia fazer desaparecer os homens na História em nome do feminismo e dos “privilégios” de gênero. Isso demonstra a presença na Academia da persistência em torno das continuidades históricas que legitimam identidades fixas e hegemônicas que não desejam ser desconcertadas.
Questiono, então, sobre a legitimidade do uso de uma linguagem masculina genérica para se referir às autorias e às experiências diversas nos documentos educacionais, nos programas de curso, nos planos de ensino, além dos próprios textos acadêmicos que costumamos utilizar como referências no Ensino Superior para formar docentes. Afinal, para que a lógica do silenciamento se mostre, é preciso desconstruir as tecnologias de gênero como a linguagem, os discursos científicos, os mecanismos institucionais e cotidianos que cristalizam formas hegemônicas de existência enquanto desmerecem ou ignoram outras, em nome da racionalidade iluminista binária:
A universidade não apenas garante o monopólio do acesso a determinadas formas de conhecimento e a autorização para desempenhar determinadas funções, mas também articula redes de sociabilidade que circunscrevem as trocas sociais dentro de grupos relativamente homogêneos (ou que foram homogeneizados). Ao mesmo tempo, trata-se de uma instituição que se apresenta como o lugar da “razão”, como um destes espaços protegidos da violência (uma vez que a violência da “razão” não é levada em conta), da “ignorância” e da “irracionalidade”, responsável por fazer cumprir, e até mesmo aprofundar, os princípios democráticos e de cidadania (Nardi et al, 2013NARDI, Henrique Caetano et al. O “armário” da universidade: o silêncio institucional e a violência, entre a espetacularização e a vivência cotidiana dos preconceitos sexuais e de gênero. Teoria e Sociedade, n. 21, v. 2, pp. 179-200, jul.-dez. 2013., p. 181).
A violência da razão eurocentrada é ignorada porque seu caráter excludente e colonialista ainda é pouco submetido ao debate com públicos diversos, mesmo que na universidade seja possível identificar o crescimento de grupos de estudo, pesquisas e projetos de extensão voltados a desconcertá-la e descolonizá-la. Embora corpos, movimentos, experiências e epistemologias dissonantes (em especial negras, indígenas e LGBTQIA+) estejam ocupando espaços e minando os pactos da cisheteronormatividade, suas histórias ainda são tratadas majoritariamente como detalhe, complemento, desvio da luta de classes ou “cortina de fumaça”, por meio de mecanismos regulatórios que buscam manter a concepção binária como a única visibilidade possível e inteligível, mesmo que seja cotidianamente denunciada por práticas de (res)existência. Sobre as afetações dos movimentos sociais na educação, Fernando Seffner (2021SEFFNER, Fernando. É raro, mas acontece muito: aproximações entre ensino de História e questões em gênero e sexualidade. In: ANDRADE, Juliana Alves de; PEREIRA, Nilton Mullet (Orgs.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. São Leopoldo: Oikos, 2021. pp. 422-437., p. 425) afirma que, nas últimas décadas, houve um empreendimento educacional “mais inclusivo, mais respeitoso com as minorias de gênero e de sexualidade e também com outras minorias, mais cuidadoso na linguagem utilizada e mais denso no fornecimento de informações e teorizações sobre o tema das diferenças e das desigualdades”, o que afetou positivamente conteúdos relativos a esses aspectos nos livros didáticos e nas posturas pedagógicas. Embora concorde com o autor, ainda considero que o reacionarismo conservador tem criado dispositivos de vigilância e interdição que afetam profundamente essas ações nas instituições escolares e universitárias. Estamos vivendo um momento de confronto aberto entre o desejo de uma história pública e decolonial que amplie vozes e escutas, e o heteroterrorismo que pretende promover culpa e calar.
Usando o conceito de Eve S. Sedgwick (2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, v. 28, pp. 19-54, jan./jun. 2007.), sobre a epistemologia do armário, é possível ainda constatar que a escola e a universidade, como realidades conectadas, se mantêm como metáforas do armário, um dispositivo de regulação da vida de pessoas LGBTQIA+, muitas vezes ainda encerrando a homossexualidade, a lesbianidade, a transexualidade e a travestilidade no espaço do privado e da ocultação. O medo de confrontos com pais ou a direção, a falta de preparo ou de vontade têm dificultado - mas não impedido6 6 Apesar da rede de vigilância que se instaurou sobre docentes, é possível observar várias ações de resistência nas escolas, promovendo debates, por exemplo, contra a lgbtfobia. No entanto, ainda são pontuais e raramente estão inseridos nos currículos e planos de ensino. - a realização de aulas ou de projetos na educação básica que tenham como tema a história e o direito LGBTQIA+. Na universidade, na maioria dos programas dos cursos de História, disciplinas tais como história das mulheres, estudos de gênero, epistemologias feministas e queer não constam entre as de caráter obrigatório. Quando existem, são oferecidas como optativas e eletivas e raramente são temas transversais nos currículos acadêmicos, que ainda se mantêm no formato tradicionalmente marcado por uma ideia de ciência universal. Até mesmo em posturas consideradas à esquerda muitas vezes essas histórias não cabem, pois o conservadorismo político, de gênero e moralizante não é uma exclusividade da chamada direita.
Pautadas pelo uso naturalizado do masculino genérico, nossas escritas acadêmicas e nossas dinâmicas de aula se baseiam em palavras cujo sentido de generificação não questionamos; referimo-nos “aos dominadores” assim como aos “excluídos”, “aos trabalhadores”, aos “revolucionários” ou aos “subalternizados”, fazendo pouco uso de termos inclusivos. Isso se repete no conjunto de materiais didáticos sem que se produzam questionamentos em sala de aula sobre seu caráter de dispositivo de poder e seus efeitos como tecnologias de gênero, seja na universidade ou na escola: mulheres heterossexuais, lésbicas, negras, indígenas, transexuais e travestis (sem esquecer as pessoas não binárias) são mantidas na periferia de uma História colonizada não somente porque certas palavras e certos termos foram apagados de documentos como a BNCC, mas principalmente porque ainda é frágil o posicionamento e a vontade política em prol de pesquisas, escritas e publicização de uma historiografia feminista e LGBTQIA+, e que também embase documentos, práticas pedagógicas e materiais voltados à formação docente no ensino de História. Joan Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, pp. 71-99, jul./dez. 1995., p. 50) lembra, inclusive, que na Academia, no “que diz respeito à história das mulheres, a reação da maioria dos(as) historiadores(as) não feministas foi o reconhecimento da história das mulheres para depois descartá-la ou colocá-la em um domínio separado”. E assim não é diferente com a história LGBTQIA+, mantendo-se de forma marginal ao conjunto das disciplinas, num domínio quase exclusivo a historiadoras/es da comunidade, produtoras/es de uma história à parte, um apêndice da “história geral”.
Ao organizarem um livro com historiadoras/es e temas LGBTQIA+, Rita Colaço Rodrigues, Elias Veras e Benito Schmidt (2021RODRIGUES, Rita Colaço; VERAS, Elias Ferreira; SCHMIDT, Benito Bisso. Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA. São Paulo: Letra e Voz , 2021.) problematizam o silenciamento sobre experiências divergentes na História e apontam a necessidade de se pensar novas metodologias e pesquisas que modifiquem nossa forma de pensar e tratar a história universalizada pela perspectiva eurocentrada e cisheteronormativa, retirando do gueto e da invisibilização as experiências dissidentes que também constituem a História.
Do ponto de vista acadêmico, há o desafio da legitimação historiográfica, ou seja, a história LGBT não deve se voltar apenas para esse campo específico como uma coisa meio do gueto, mas temos que mostrar como as pesquisas sobre experiências, processos e discursos, que têm a ver com a história LGBT, podem dialogar com a História em termos amplos. É possível pensar questões básicas do conhecimento histórico como narrativa, prova, tempo, sujeito, estrutura a partir dos nossos ensaios desse campo específico para consolidar uma historiografia LGBT, fazendo nossas pesquisas interpelarem a História como um todo e isso tem sido feito (Rodrigues; Veras; Schmidt, 2021RODRIGUES, Rita Colaço; VERAS, Elias Ferreira; SCHMIDT, Benito Bisso. Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA. São Paulo: Letra e Voz , 2021., p. 5).
Nos últimos anos é possível observar o crescimento de uma historiografia LGBTQIA+, como afirmam as/os autoras/es, na busca de produzir presença no espaço acadêmico, mas também no ensino de História. Uma luta contra o silenciamento, que ainda é maior quando se refere à história das mulheridades trans e feminilidades travestis7 7 De modo semelhante ao projeto AMHOR, que coordeno na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), Benito Schmidt tem desenvolvido o projeto Close: Centro de Referência da História LGBTQI+ do RS, com a participação de pesquisadores/as e universitários/as da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e docentes de escolas públicas, com a finalidade de produzir fontes históricas e material didático com a temática LGBTQIA+. . Entretanto, Megg Rayara de Oliveira, intelectual travesti e negra, lembra como a universidade, a escola e a própria História podem se tornar lugares de não pertencimento de corpos dissidentes quando estes são submetidos a relações, discursos e conteúdos que ratificavam uma suposta superioridade branca e cisheterossexual, ao mesmo tempo em que ignoram a presença de pessoas transgêneras e negras nos acontecimentos históricos, a não ser que estes sejam povoados do imaginário violento sobre seus corpos, compreendidos como sinônimo de “miséria, feiura, criminalidade e submissão” (2020, p. 30). Lembra-nos a autora que a ausência de registro e de reconhecimento de pessoas trans na História narrada e ensinada promove a objetificação e a violência, na dimensão do estigma, da discriminação e do escárnio a essas sujeitas nos espaços de educação. Sua ausência não se deve à falta de fontes e sim de posicionamento que as crie ou as inclua para desconcertar a História colonizada. Trazer para o debate público figuras como Xica Manicongo, Tereza de Benghela, Sylvia Rivera e Cassandra Rios, assim como as experiências dissidentes de nossas/os próprias/os discentes, é reescrever a História.
Em texto intitulado “Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à história da historiografia”, Maria da Glória de Oliveira observou a dificuldade de certa historiografia em lidar com as questões de gênero. Mais especificamente, fazendo referência a Joan Scott, a autora demonstra sua preocupação com a pouca centralidade das obras de autoria feminina como “categoria útil” para a análise da história e como as próprias historiadoras não se configurariam “como tema privilegiado da chamada história das mulheres, nem da história intelectual, mantendo-se, em larga medida, como o ‘outro’ silenciado pelos cânones e pela memória disciplinar” (Oliveira, 2018OLIVEIRA, Maria da Glória de. Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais. Hist. Historiogr., v. 11, n. 28, pp. 104-140, set.-dez. 2018., p. 107). Dessa forma, é muito comum que acadêmicas/os de História reconheçam leituras e ideias de muitos autores, mas tenham mais dificuldade para nomear historiadoras, durante os anos de sua formação, com algumas exceções para Michelle Perrot ou Joan Scott. Referências nacionais são pouco lembradas nas ocasiões em que pergunto a estudantes e, quando citadas, normalmente se devem a leituras realizadas em aulas ministradas por professoras. Com relação a pesquisadoras negras, indígenas e/ou LGBTQIA+, tais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Aline Pachamama, Márcia Mura, Letícia Carolina Pereira, Jaqueline Jesus e Megg Rayara, o que escuto é ausência.
Assim como na universidade, os documentos de educação e ensino de História, os currículos e os livros didáticos, em especial, são tratados como se fossem naturalmente escritos por homens e poucas vezes fazemos o exercício de sugerir aos/às discentes que observem o nome e pesquisem a trajetória de possíveis autoras. Teresa Meana (Toledo, 2014TOLEDO, Leslie Campaner de et al. Manual para o uso não sexista da linguagem: O que bem se diz bem se entende. Porto Alegre: [s.l.], 2014., p. 25) afirma que, na língua, o sexismo produz efeitos perversos sobre a existência das mulheres, observação que pode ser ampliada para outros grupos identitários. O sexismo produz silêncios, exclusões, expressões do desprezo e subalternizações diante do que é considerado padrão; aspecto que, ao mesmo tempo que pretende ocultar, revela a violência que se exerce.
Nessa direção, Grada Kilomba também tece críticas ao uso político da língua para criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o (não) lugar de uma identidade. Por meio de suas terminologias, a língua informa-nos constantemente quem é a norma e quem representa a verdadeira condição humana. O termo “sujeito”, por exemplo, tão usado em escritas historiográficas, não permite a flexão no feminino ou nos diversos gêneros LGBTQIA+, entendendo-se as palavras “sujeita” e “sujeitx” como erro ortográfico: “É importante compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, escrita ou falada, ou ser identificada como um erro”, diz Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. , p. 15), revelando relações de poder e de violência da linguagem. Nesse sentido, é preciso pensar sobre os sentidos da palavra masculina universalizada: se por trás dela se busca englobar os gêneros e sexualidades, seu uso as invisibiliza; se não pretende englobar, ela as exclui. De todo modo, há silenciamento num sistema de significação que precisa ser evidenciado e problematizado, uma vez que o uso da linguagem colabora para (re)produzir condutas, valores e modos de entender hierarquizações, dominações que se perpetuam ao longo da História.
Quando discentes são convidados/as a observar as autorias, os conteúdos, os conceitos e os usos da linguagem na narrativa histórica e historiográfica, é possível provocar reflexões sobre os interesses políticos e sociais que permeiam a História que pesquisamos, publicizamos e ensinamos. Poderíamos fazer exercícios refletindo sobre o modo pelo qual a ocultação do primeiro nome de autoras, usando-se apenas o sobrenome nas referências e citações (como é comum em artigos e livros), pode produzir silenciamentos de gênero na Academia. E como essa prática vai se estendendo à escola, aceitando uma escrita aparentemente destituída de gênero, mas que enfatiza e hierarquiza um sobre outros. Enfim, é imprescindível perguntar como uma autoria, uma linguagem ou uma narrativa não sexista-discriminatória ou de modo inclusivo poderia alterar a perspectiva e as regras sociais com que percebemos a presença de diferentes sujeitos/as na História.
Precisamos perguntar e provocar nossas/os estudantes a pensar sobre estas regras socialmente autorizadas, quando fazem uso desses materiais, não os aceitando como verdades prontas, como reproduções e ferramentas de uma ciência sem gênero. É preciso que sejam convidadas/os a interpelar a educação e o ensino como dispositivos em que predominam heroificações e adjetivações de virilidade e força às masculinidades hegemônicas, enquanto se desqualifica, vitimiza e inferioriza mulheridades e feminilidades diversas:
É necessário questionar os procedimentos que promovem omissões e apagamento das mulheres em operações historiográficas, em registros públicos e também na própria escola, num processo de encontro de diferentes saberes escolares, acadêmicos e cotidianos, que passam pelas memórias e pelas subjetividades femininas, pela ampliação de acesso a redes de saberes, criação de autorias e compartilhamentos coletivos; pelos usos de fontes e materiais não tradicionais; pelas apropriações de plataformas digitais, criando saberes em rede, cenários de inclusão e de enfrentamento de certa privatização masculina do saber (Rovai; Monteiro, 2020ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira; MONTEIRO, Lívia Nascimento. História das mulheres e história pública: desafios e potencialidades de um ensino posicionado. REHR, Dourados, MS, v. 14, n. 27, pp. 206-230, jan./jun. 2020. , p. 217).
Adolescentes e jovens vivenciam processos de (não)identificação com acontecimentos e personagens escolhidos para o estudo em sala de aula; e sabem, muitas vezes antes de nós, quais sujeitas/os não estão nas páginas, nos currículos e nas imagens com que são orientadas/os a aprender História. É necessário abrir espaço para esse diálogo e perguntar sobre as ausências. Não é possível praticar uma história pública ignorando exclusões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procurei realizar algumas provocações que nos permitam perceber modos de silenciamento nas ferramentas que usamos para o ensino de História, seja na universidade ou na educação básica. Embora reconheça que estejamos, desde os anos 1990, num processo de tensão, em que avançamos em estudos, textos e práticas pedagógicas voltadas aos debates de gênero, sexualidade e, mais especificamente, à história das mulheridades, graças aos diálogos com movimentos feministas, negros e LGBTQIA+, quis apontar que o androcentrismo, bem como a lgbtfobia (e o racismo) ainda se manifestam como formas de violência epistêmica e histórica no uso desigual ou na omissão de palavras e conceitos, na exclusão de autorias femininas, no conteúdo cisheteronormativo e na utilização do masculino hegemônico como genérico para se referir a diferentes sujeitas/os no processo histórico.
Denunciar as disputas em torno da linguagem - um dispositivo histórico de poder - na elaboração de documentos de educação, nos usos de obras e nas práticas didáticas contribui para pensarmos em como temos naturalizado a violência simbólica, fruto da colonialidade de saber, de ser e de gênero que produz outridades, como discute María Lugones (2008LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, pp. 73-101, jul.-dez. 2008.), colaborando para perpetuar desigualdades e indiferenças. A história das mulheridades e feminilidades e os debates em torno de gênero e suas intersecções sociais/identitárias trazem das margens para o centro um conjunto de problemas caros à historiografia e ao ensino de História em todos os seus níveis - o poder, o simbólico, a marginalização, a inviabilização, as disputas de memória, o esquecimento; enfim, o silenciamento de sujeitas na História pesquisada, publicizada e ensinada. Mas também suas resistências, pois tratar de gênero não é apenas falar em repressão.
Reconhecer o silenciamento pela linguagem, pelas autorias e pelas abordagens históricas e historiográficas, seja na universidade ou na escola, é uma ação necessária e sempre urgente, não apenas porque vivemos tempos de confronto com setores conservadores, negacionistas e reacionários (e que estão além de movimentos como o Escola Sem Partido ou dos efeitos do chamado “bolsonarismo”). Precisamos nos posicionar e nos responsabilizar politicamente, cada vez mais, com a finalidade de refletir sobre as concepções que perpassam as escolhas que fazemos como estudiosas/os e docentes e as relações desiguais de gênero que fazem silenciar outras formas de narrar e compreender a história e suas/seus sujeitas/os. Precisamos tomar a palavra que desconcerta, recriá-la e inseri-la nos espaços de disputa.
Se nos dispomos a provocar discentes perguntando pelas ausências, perceberemos as brechas que o heteroterrorismo e a indiferença produzem, na tentativa de pôr em silêncio: o silenciamento não se converte, necessariamente, em vazio; pelo contrário, se questionado revela-se jogo, vestígio e espaço de existências e significações que podem ser (re)criadas. Isso é possível se afinarmos nosso olhar e persistirmos no propósito desconcertante de não repetir continuidades históricas que favoreçam as violências de gênero e que estão em nossas práticas de ensino e pesquisa. A repetição pode ser sempre interrompida por comportamentos subversivos que nascem dentro dela para contestá-la e promover transformações. Mas para isso é preciso estar disposto a duvidar e submeter teorias e práticas à crítica; assumir um posicionamento no presente diante daquilo que parece virtude e neutralidade para denunciá-lo publicamente como ofensa e opressão.
REFERÊNCIAS
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1
Faço uso dos termos mulheridades e feminilidades a partir de Letícia Carolina Nascimento (2021NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.), para designar formas históricas e culturalmente diversas de compreender-se como mulher ou como feminino, desconstruindo a categoria universal de mulher hegemônica, branca, cristã e cisheterossexual. Desta forma, eles trazem as marcas da interseccionalidade de raça, sexualidade, classe e gênero, e da historicidade em movimento.
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2
Faço uso da sigla LGBTQIA+ que, segundo os movimentos sociais, busca representar pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais e demais pessoas que não se identifiquem dentro de uma normativa cisheterossexual.
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3
A pesquisa que tenho desenvolvido com a população LGBTQIA+ de Alfenas deu origem a publicações acerca de suas histórias de vida, memória e identidade. No momento, coordeno o projeto AMHOR: Acervo de memória e história do Orgulho LGBTQIA+ no sul de Minas Gerais, por meio do qual procuramos fazer levantamento e produzir fontes históricas sobre a comunidade, com sua participação, além de analisar currículos e apresentar propostas didáticas para a educação básica.
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4
Baseio-me na concepção de cultura escolar de Seffner e Picchetti (2016SEFFNER, Fernando; PICCHETTI, Yara de Paula. A quem tudo quer saber, nada se lhe diz: uma educação sem gênero e sem sexualidade é desejável? Reflexão e Ação, v. 24, n. 1, pp. 61-81, jan./abr. 2016., p. 62), como “um conjunto articulado de registros simbólicos, dispositivos disciplinares específicos, estrutura curricular, modos e meios de realizar as atividades, linguajar próprio, formas de avaliação, estratégias de sociabilidade e de socialização que permitem reconhecer os contornos da instituição, conhecer seus limites e possibilidades e pensar seu lugar e funções no tecido social e político”.
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5
Ao usar o termo gênero, penso nas interseccionalidades relacionais e identitárias que o compõem: raça, sexualidade e classe. Entendo que gênero faz parte de um debate não consensual entre correntes do feminismo e da teoria queer, mas parto da definição de Scott tomando-o como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças e como uma forma primeira de significar as relações de poder (Scott, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, pp. 71-99, jul./dez. 1995., p. 86). Como construção, portanto, não é fixo nem definitivo, mas performaticamente construído, como também lembrou Judith Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ).
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6
Apesar da rede de vigilância que se instaurou sobre docentes, é possível observar várias ações de resistência nas escolas, promovendo debates, por exemplo, contra a lgbtfobia. No entanto, ainda são pontuais e raramente estão inseridos nos currículos e planos de ensino.
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7
De modo semelhante ao projeto AMHOR, que coordeno na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), Benito Schmidt tem desenvolvido o projeto Close: Centro de Referência da História LGBTQI+ do RS, com a participação de pesquisadores/as e universitários/as da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e docentes de escolas públicas, com a finalidade de produzir fontes históricas e material didático com a temática LGBTQIA+.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
23 Ago 2023 -
Aceito
04 Set 2023