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Transformações e descompassos

A ideia de que a ciência se desenvolve a passos largos está na mente de todos, principalmente quando se trata de avanços tecnológicos. No entanto, no que concerne às mudanças comportamentais, está muito presente a percepção de que não se avança e, às vezes, ocorrem até retrocessos. Seguindo as reuniões globais sobre as agendas de direitos humanos, população e desenvolvimento e meio ambiente, entre outras, percebe-se claramente o retrocesso na discussão sobre assuntos vitais, ligados principalmente aos direitos individuais. Esses são, em geral, os chamados "assuntos sensíveis", os quais se procura evitar em algumas conversas, sendo pontos de embate nas negociações e, geralmente, usados como "moedas de troca" para se chegar ao consenso mundial nos documentos firmados. É no Programa de Ação (PA), aprovado em 1994 na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) e acompanhado anualmente nas reuniões sobre População e Desenvolvimento (CPD) da Organização das Nações Unidas (ONU), que estas questões são mais "sensíveis" ou polêmicas e não têm avançado como se esperaria, mais de 20 anos depois do acordo firmado pelos países.

No entanto, existe um grande descompasso entre o que é discutido nos fóruns diplomáticos e o que se passa na vida das pessoas neste mundo tão diverso. Em reunião com representantes das missões diplomáticas e delegados dos países em desenvolvimento, após uma apresentação contando o que acontece com a vida das pessoas em um país específico, um diplomata afirmou "agora vejo que é realmente importante que os burocratas que estão discutindo as agendas internacionais possam conhecer de fato e profundamente os assuntos discutidos". Mais além das agendas internacionais, os políticos e gestores deveriam conhecer melhor as transformações que ocorrem na sociedade para poder representá-la melhor.

As evidências com bases científicas − ou até mesmo a simples descrição de mudanças que ocorrem em algumas esferas da vida − deveriam ser mais utilizadas nas políticas públicas. Entre vários desses "assuntos sensíveis" está a discussão sobre o que é família. Há mais de 20 anos o PA da CIPD, com base no conhecimento na época sobre os diferentes tipos de família, fez menção explícita às diferentes formas de família e mudanças que ainda decorreriam das transformações demográficas e socioeconômicas.1 1 No Capítulo V do PA da CIPD, intitulado “A família, seus papéis, direitos, composição e estrutura”, é mencionada claramente a diversidade na estrutura e composição das famílias: “While various forms of the family exist in different social, cultural, legal and political systems, the family is the basic unit of society and as such is entitled to receive comprehensive protection and support. The process of rapid demographic and socio-economic change throughout the world has influenced patterns of family formation and family life, generating considerable change in family composition and structure. Traditional notions of gender-based division of parental and domestic functions and participation in the paid labour force do not reflect current realities and aspirations, as more and more women in all parts of the world take up paid employment outside the home.” (Programme of Action, Adopted at the International Conference on Population and Development, 20th Anniversary Edition, p. 39). Atualmente, os documentos da CPD não podem se quer incluir um "s" na palavra família e, ainda mais, querem adicionar ao termo "a família formada pela união de um homem e uma mulher". Esta discussão está totalmente em descompasso com o que ocorre na sociedade e com os conceitos acordados há mais de duas décadas.

Em palestra realizada em 2016, a presidente da Associação Norte-americana de População, Judith Seltzer, chamou a atenção para o fato de que estudos sobre famílias são importantes para os demógrafos, pois todos os eventos demográficos ocorrem nas famílias, quando esta é definida a partir de um conceito mais amplo. Seltzer afirmou que o termo família é contestado politicamente, mas é um conceito científico, em que pesquisadores comparam famílias em diferentes culturas e diversos períodos históricos, para analisar mudanças que são afetadas por eventos demográficos, como, por exemplo, alterações no número de filhos, no momento e duração das uniões e nos períodos de sobreposição de sobrevivência de diferentes gerações. Em sua palestra, Seltzer mostrou como a sociedade norte-americana mudou nas últimas décadas e, para tanto, utilizou o que denominou de princípio da incerteza da família (familiy uncertanty principle), como abordagem teórica para estudos sobre famílias. Os dados apresentados pela demógrafa, que tem a vantagem de dispor de pesquisas longitudinais, tais como o Panel Study of Income Dynamics (PSID) desde 1968 e a National Survey of Families and Households (NSFH) desde 1986, expõem a complexidade do assunto e a importância de se mostrar as mudanças ao longo do curso de vida das pessoas. As famílias mudaram e continuam mudando, não somente nos Estados Unidos, mas em todo o mundo.

No Brasil, depois de anos de avanços nos temas de direitos humanos e, mundialmente reconhecido, com ampla liderança regional, tem-se a sensação de um grande retrocesso, que de fato vai além da percepção. A proposta do Estatuto da Família (uma entre várias outras), em tramitação no Congresso e já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, atesta esta tentativa de retrocesso e cerceamento dos direitos individuais, em que a definição tomada é aquela tradicional, entendida como a união entre um homem e uma mulher. O retrocesso vai além de tentar retirar da definição as uniões do mesmo sexo, deixando de fora qualquer outro tipo de família, como as monoparentais, constituídas, em geral, por mães com seus filhos, assim como diversos arranjos domiciliares e extradomiciliares, que não são formados por união conjugal. De fato, um retrocesso em descompasso não somente com a vida cotidiana, mas também com o avanço jurídico. O Estatuto vem para tentar impor regras jurídicas na definição de grupos com acesso a diversos direitos, após a aprovação do Superior Tribunal Federal da união legal entre pessoas do mesmo sexo. O país precisa avançar na coleta de dados e progredir nas análises sobre demografia da família para dar subsídios às discussões que possam garantir o exercício dos direitos humanos e fazer valer os acordos internacionais firmados.

Contribuições desta edição

Dentre as várias transformações ocorridas nessas últimas décadas, estão as transições da mortalidade e da fecundidade, que deixaram marcas importantes na história demográfica e são insumos para outras transições em curso, algumas das quais estão apenas sendo identificadas e analisadas na atualidade. Neste número da Rebep, logramos reunir um conjunto de artigos sobre novas transições que estão vinculadas de alguma forma com o tema de transformações nas famílias, tema até certo ponto pouco explorado na demografia brasileira.

Francismara Fernandes Guerra, Simone Wajnman e Cássio M. Turra abordam a transição demográfica, resultante da forte e rápida queda da fecundidade e mortalidade, a partir de uma perspectiva pouco explorada: o número médio de irmãos e não o número médio de filhos. Diante da fecundidade já com nível abaixo da reposição, o artigo apresenta um modelo matemático que possibilitou estimar o número esperado de irmãos nascidos vivos e sobreviventes, no período da transição demográfica, buscando responder se as gerações de irmãos serão extintas. Principalmente devido à alta mortalidade no início do processo de transição e à baixa fecundidade no final do período, os autores afirmam que a média de irmãos sobreviventes não se extinguirá para a geração atual, que poderá contar com a colateralidade na velhice, no entanto em níveis baixos.

O número de filhos cada vez menor e o maior investimento dos pais na educação desses filhos levaram a uma desaceleração da transição para a vida adulta, ou seja, a saída dos filhos da casa dos pais, observada em países desenvolvidos e também no Brasil, tem sido cada vez mais tarde. Com as melhores condições econômicas na década de 2000 no Brasil, Thiago Dumont Oliveira, André Braz Golgher e Pedro Mendes Loureiro se perguntaram se essa tendência não teria se revertido no país, diante de um mercado de trabalho mais acessível aos jovens. Utilizando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, os autores mostram que esta tendência se reverteu no país entre 2003 e 2011, com a aceleração da saída da casa dos pais dos jovens de 15 a 34 anos de idade.

Um dos motivos de saída dos filhos da casa de seus pais é a formação de sua própria família. Este assunto é abordado por Maira Covre-Sussai, mostrando uma transição importante referente ao tipo de união escolhido pelos casais, com indicação de mudanças comportamentais. Segundo a autora, a prática das uniões consensuais, apesar de existir no país há muitas décadas, além de apresentar crescimento importante nos últimos anos, registrou mudança no perfil do segmento populacional que optou por este tipo de união, incluindo não somente a população de mais baixa renda, mas também a de alta renda, seguindo um padrão de países desenvolvidos.

O último artigo que aborda questões familiares neste número trata da rede de apoio dedicada aos idosos, composta por familiares e extrafamiliares. Diante da dificuldade e raridade de dados para estudar este tipo de comportamento, Cristiane Silva Corrêa, Bernardo Lanza Queiroz e Dimitri Fazito usam uma base de dados de 2000: a Pesquisa Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento na América Latina e Caribe (Sabe). Interessante fazer o vínculo dos resultados deste artigo com aqueles sobre a disponibilidade de irmãos e o artigo sobre mudanças na nupcialidade, pois, em face do envelhecimento populacional, é importante conhecer quais as características das redes de apoio aos idosos e, ainda, acompanhar as mudanças que poderão ocorrer devido ao tamanho menor das redes familiares no futuro. Por exemplo, para o ano de 2000, os autores verificaram que as pessoas com somente uma união conjugal tinham maiores probabilidades de receber níveis mais elevados de atenção. Também a maior presença de filhas na família implica que estas assumem a maior parte das responsabilidades com os idosos. No entanto, resta acompanhar o que acontecerá diante das mudanças demográficas, já "contratadas" para o futuro da população brasileira.

Mudando de foco, dois artigos desta edição abordam o tema de migrações, mas de perspectivas bastante diferenciadas. O primeiro deles analisa a mobilidade populacional em aglomerações urbanas, utilizando o caso específico da Região Metropolitana de Campinas. José Marcos Pinto da Cunha discorre sobre a complexidade da dinâmica migratória, em termos tanto dos tipos de movimentos quanto das características dos indivíduos que realizam esses movimentos. Esta maior complexidade, segundo o autor, em geral se dá em torno da grande seletividade das pessoas e famílias que se movem. No caso da RM de Campinas, o autor verifica que a questão habitacional tem forte impacto nos motivos que levam à migração intrametropolitana para municípios da periferia, com a busca de melhores condições de moradia, e que esta se soma aos movimentos em direção às periferias de populações que chegam de fora do estado de São Paulo, em geral, com condições precárias de vida.

A migração de maior distância, aquela com mudança de fronteiras nacionais, é abordada por Gisele Maria Ribeiro de Almeida e Rosana Baeninger. A partir de uma análise qualitativa, entrevistando indivíduos que emigraram do Brasil para a França, as autoras criam uma tipologia ampla sobre os motivos que levaram estas pessoas a migrarem. Elas afirmam que, apesar de ser um fluxo pequeno quando comparado àqueles direcionados a outros países, o estudo exploratório deste caso ajuda a entender as novas lógicas das migrações no atual cenário geopolítico mundial. Segundo as autoras, os motivos que levam os brasileiros a migrarem para a França são variados, indo desde a busca de melhores condições de vida e trabalho até questões "amorosas" e mais "cosmopolitas", mas estão sempre vinculados com os processos que viabilizam as migrações.

O último artigo apresenta uma comparação entre métodos estatísticos de imputação de dados para oferecer melhores estimativas das medidas antropométricas. Mariana Vieira Martins de Matos e Pedro Luis do Nascimento Silva argumentam que os erros de medição e ocorrência de não resposta são inevitáveis em levantamentos de dados domiciliares com medidas de peso e estatura, que dependem de equipamentos calibrados e bom treinamento. Estes erros não amostrais precisam ser corrigidos para não causar distorções em medidas de prevalência de desnutrição, entre outros. Utilizando os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, os autores fazem a comparação de vários métodos, paramétricos e não paramétricos, para indicar aqueles que deveriam ser empregados para corrigir as informações vindas da coleta deste tipo de informação, visto que o controle de campo com remedições, com volta ao domicílio, muitas vezes usado em pesquisas de menor porte, é muito caro e inviável no curto espaço de tempo das pesquisas domiciliares nacionais.

Esta edição também traz duas notas de pesquisa. A primeira apresenta estimações da quantidade de biogás e energia gerada a partir de resíduos sólidos acumulados em aterros sanitários. Jean Agustin Velásquez Piñas e colegas destacam a importância da geração deste tipo de energia, visto que tem duplo ganho: gerar energia renovável e evitar a emissão de gases de efeito estufa provenientes dos aterros sanitários. A segunda nota de pesquisa, de Suzana Cavenaghi e José Eustáquio Diniz Alves, examina a qualidade das informações sobre fecundidade no Censo Demográfico de 2010 e a aplicabilidade do método P/F de Brass para estimação das taxas específicas de fecundidade e, consequentemente, a taxa total de fecundidade. Os autores chegam à conclusão de que os dados são de boa qualidade, mas, como esperado em toda pesquisa domiciliar, a fecundidade corrente apresenta subestimação e, por isso, deve ser ajustada para se chegar o mais próximo possível da verdadeira taxa de período.

Finalmente, a resenha do livro Comportamiento reproductivo y fecundidad en América Latina: una agenda inconclusa, da Serie e-Investigaciones da Associação Latino Americana de População (Alap), é apresentada por Raquel Zanatta Coutinho, que chama a atenção para a importância do livro, mas ressalta que vários temas na área ainda precisam ser pesquisados e analisados, visto que a obra não cobre alguns tópicos importantes.

Antes de encerrar esta nota, deixa-se registrado que, a partir desta edição, a Rebep passou a ter seu número de DOI (Digital Object Identifier) registrado com a CrossRef <http://www.crossref.org> em nome da Abep, com a identificação 10.20947. O DOI disponível até então, para cada um dos artigos, era desig\ ado pela SciELO. Com esta mudança, todo documento publicado pela Abep, não somente os artigos da revista, poderá ter seu número próprio de identificação. Para mais informações sobre o que é o DOI e como utilizá-lo, principalmente em citações, recomenda-se a leitura disponível em <http://www.crossref.org/02publishers/doi_display_guidelines.html>.

Boa leitura!

Suzana Cavenaghi

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    No Capítulo V do PA da CIPD, intitulado “A família, seus papéis, direitos, composição e estrutura”, é mencionada claramente a diversidade na estrutura e composição das famílias: “While various forms of the family exist in different social, cultural, legal and political systems, the family is the basic unit of society and as such is entitled to receive comprehensive protection and support. The process of rapid demographic and socio-economic change throughout the world has influenced patterns of family formation and family life, generating considerable change in family composition and structure. Traditional notions of gender-based division of parental and domestic functions and participation in the paid labour force do not reflect current realities and aspirations, as more and more women in all parts of the world take up paid employment outside the home.” (Programme of Action, Adopted at the International Conference on Population and Development, 20th Anniversary Edition, p. 39).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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