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O trauma ortopédico no Brasil

EDITORIAL

ILivre-Docente e Professor Associado do Departamento de Biomecânica, Medicina e Reabilitação do Ap. Locomotor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP.

Presidente da Sociedade Brasileira de Trauma Ortopédico.

O trauma ortopédico é uma das condições mais mórbidas existentes na sociedade contemporânea, comprometendo a função do indivíduo, sua participação econômica na sociedade e sua integração familiar e comunitária.

Inúmeras são as causas pelas quais países como o Brasil, de baixa renda per capita, apresentam deficiências na prestação de serviços ao trauma ortopédico. A maioria das soluções passa por uma abordagem multisetorial dirigida para os pontos fracos existentes no sistema de saúde vigente. Entende-se por sistema de saúde o conjunto de todas as atividades cujo objetivo primário é o de promover, restaurar ou manter a saúde.1

No caso do trauma ortopédico há pelo menos duas vertentes importantes de investimentos: recursos humanos e infra-estrutura de serviços.

Com relação a recursos humanos entende-se que uma continua oferta de programas voltados para a educação continuada e capacitação profissional deva ser oferecida. Os indivíduos dedicados ao atendimento do trauma ortopédico precisam receber não apenas a formação elementar em ortopedia e traumatologia mas, idealmente, treinamento complementar para a tomada de decisões em situações complexas, que fogem ao escopo do medico generalista. Em tempos onde o conhecimento muda de maneira praticamente instantânea, é imprescindível dedicar tempo à atualização profissional. Idealmente, os principais vetores dos projetos de educação continuada são as universidades e sociedades de especialidade. Além destas instituições, uma grande oferta de produtos está disponível na rede mundial de computadores e em bancos de dados virtuais de jornais e revistas dedicados ao trauma. O custo para que um indivíduo se mantenha atualizado é bastante alto, seja pelo fato de que as atividades em si envolvem investimentos de taxas, seja porque a elas se associam muitas vezes deslocamentos e hospedagens, seja ainda porque nos dias em que o indivíduo dedica-se ao seu aprimoramento profissional, o mesmo deixa de ter ganhos com o seu exercício profissional.

Um dos grandes obstáculos para que um indivíduo se dedique exclusivamente ao trauma ortopédico em nosso pais, são os baixos valores de remuneração associados a esta prática. O profissional dedicado ao trauma ortopédico, normalmente, precisa estar vinculado a alguma instituição que receba o trauma agudo, o politraumatizado. Esta instituição está longe de ser o consultório onde o indivíduo presta atendimentos eletivos. No consultório médico o atendimento do trauma é relacionado a complicações do tratamento agudo de fraturas ou lesões de partes moles. No consultório são ainda vistos patologias traumáticas crônicas, como as instabilidades articulares ou as lesões por esforço repetido. O trauma agudo é conduzido em pronto-socorros, unidades de emergências hospitalares, sejam elas pertencentes à rede pública ou privada.

Na rede pública o profissional é, via de regra, um assalariado que tem uma determinada carga horária semanal a cumprir. Nestas instituições, salvo algumas dedicadas ao ensino e à formação de recursos humanos, as condições de infra-estrutura são precárias, há falta de leitos para internação em enfermarias comuns e em unidades de terapias intensivas. O paciente é pertencente à Instituição e a relação médico-paciente é praticamente inexistente, visto que são muitos os cuidadores que se revezam em escalas de plantão ou estágios rotativos. O ortopedista tem que lutar contra a falta de vagas, contra o sistema de prioridades da instituição que, por vezes, posterga o tratamento de uma fratura exposta para dar lugar a um hematoma craniano. O paciente do trauma ortopédico na rede pública convive com a seguinte realidade: como o seu mal em geral não se associa ao óbito, seu atendimento tende a ser diferido para momentos onde não existam outras urgências consideradas "maiores". O resultado disso é o atendimento tardio de fraturas expostas, com muito mais do que seis horas decorridas desde o trauma, ou um tempo médio de espera de 3 a 7 dias para o tratamento de uma fratura trocantérica de fêmur. A seqüela resultante de um atendimento diferido não é objetivamente quantificada em nosso pais, mas há inúmeras evidencias internacionais que o tratamento imediato do trauma ortopédico, seja para uma conduta definitiva, seja para um controle de danos ortopédicos, é o melhor que se pode oferecer ao paciente.

Na rede privada há um contraste quando o assunto é infra-estrutura de serviços. Nestas unidades, em geral, os recursos técnicos básicos estão disponíveis, tais como intensificadores de imagens, mesas radiotransparentes, implantes para uma diversidade de situações, instrumentador cirúrgico, anestesiologista 24hs, entre outras facilidades. São raros os hospitais da rede privada de "porta aberta" ao atendimento do politraumatizado. Em geral, o atendimento do politraumatizado grave requer uma abordagem multidisciplinar e este é um agravante na maioria dos serviços privados do Brasil, onde nem todos os especialistas existentes em hospitais terciários da rede pública, estão disponíveis 24hs/dia na rede privada. O custo do paciente politraumatizado é proibitivo para muitos centros, que deixam de atender estes pacientes, por julgarem ser este tipo de atendimento deficitário do ponto de vista econômico. Outro agravante na rede privada é a dificuldade cada vez maior enfrentada pelos médicos para a autorização de procedimentos, sejam eles diagnósticos ou terapêuticos. A burocracia para se obter autorização dos planos de saúde para realização de atendimentos "eletivos" no trauma ortopédico é uma realidade. Em pesquisa DATAFOLHA encomendada pela Sociedade Brasileira de Trauma Ortopédico, em 2010, e publicada neste suplemento2, metade dos médicos entrevistados aponta ter problemas frequentes para a autorização de procedimentos ortopédicos.

O trauma ortopédico segue vitimando milhares de brasileiros todos os anos. Na Unidade de Emergência do Hospital das Clinicas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, que é um hospital de urgências terciário, o trauma ortopédico responde em média por 45 a 65% do movimento cirúrgico semanal. Temos uma ocupação hospitalar nesta unidade de 200%, considerando que metade dos pacientes que prescrevemos diariamente estão internados em leitos externos à nossa enfermaria. Segundo a Divisão Regional de Saúde da região de Ribeirão Preto, a área ortopedia e traumatologia segue sendo ali, como em todo o Estado de São Paulo, um dos grandes gargalos para a resolução de problemas de saúde. Juntamente com cardiologia e oncologia, o trauma ortopédico representa um grave problema de saúde pública na região de Ribeirão Preto e, possivelmente, em todo o pais. Por mais leitos e infra-estrutura que sejam oferecidos a demanda de pacientes segue crescendo não somente em quantidade de casos, como na complexidade dos mesmos.

Na região Nordeste é grande a insatisfação dos profissionais dedicados ao trauma ortopédico, especialmente nos hospitais públicos. A falta de infra-estrutura mínima de trabalho faz com que pacientes sejam atendidos e tratados muito tardiamente, muitos deles após a consolidação de suas fraturas originais.

No Rio Grande do Sul o trauma ortopédico é considerado por vários colegas com quem conversei pessoalmente como a atividade do ortopedista que não tem uma sub-especialidade. Seria a área do ortopedista geral que não se dedicou a um treinamento específico. Esta percepção é provavelmente a de muitos colegas no Brasil e talvez explique a baixa procura pela especialidade trauma ortopédico em comparação com áreas de reconhecido valor em nossa sociedade como as de cirurgia do joelho ou cirurgia da coluna vertebral.

O trauma ortopédico precisa ser reconhecido como uma área de atuação específica e, porque não dizer, das mais complexas, dada a sua ampla diversidade. A falta desta consciência faz com que muitas patologias traumáticas complexas sejam conduzidas sob a óptica menos aprofundada do problema. Não é raro que sejamos chamados a avaliar pacientes vitimados por fraturas transtrocanterianas instáveis e tratados pelo método da artroplastia total do quadril, ou ainda, fraturas do planalto tibial, tratadas por artroscopia e sem a redução da superfície articular. A falta do conhecimento dos princípios básicos que regem a atenção ao trauma ortopédico é, em nosso meio, causa de uma falta na padronização nas condutas medicas e, porque não dizer, um dos elementos a contribuir para um índice significativo de re-operações.

A incapacidade funcional decorrente do trauma ortopédico é também um problema de saúde pública, dado o cerceamento que causa ao indivíduo, às dificuldades que impõem aos seus familiares e ao custo social agregado a esta limitação. Isto posto, se faz mandatória uma revisão sobre a priorização do atendimento qualificado no trauma ortopédico.

A diretoria da Sociedade Brasileira do Trauma Ortopédico, preocupada com a qualificação do profissional que se dedica ao atendimento da urgência traumática em nosso pais está lançando um programa itinerante de educação continuada em 2011. Trata-se do SBTO - Suporte Básico ao Trauma Ortopédico.

O SBTO será levado, inicialmente, a 40 municípios brasileiros, distribuídos por quase todos os Estados de nossa federação. Os cursos ocorrerão aos sábados e terão uma duração de 6 horas. Neste período, serão discutidos e revisados detalhes do primeiro atendimento às patologias traumáticas mais prevalentes no dia-a-dia dos pronto-socorros ortopédicos brasileiros. O objetivo deste programa não é abordar a última tecnologia em implantes ou equipamentos de imagem, mas sim medidas simples e absolutamente necessárias para que o primeiro atendimento do paciente seja otimizado, com vistas a evitar uma piora do quadro clínico ou da condição traumática existente inicialmente. O SBTO foi criado em resposta ao anseio da comunidade ortopédica brasileira. Seu lançamento ocorrerá oficialmente durante o Congresso Brasileiro de Trauma Ortopédico de 2011 e o primeiro curso está agendado para ocorrer em Teresina-PI.

O trauma ortopédico no Brasil é uma área de atuação que requer investimentos imediatos. A começar pela hierarquização de centros de atendimento, para que sejam devidamente distribuídos os recursos entre unidades dedicadas a traumatismos mais simples (postos de saúde, hospitais de nível secundário) e a traumatismos complexos (centros de referencia em trauma ortopédico). A criação de uma hierarquia entre serviços contribui para otimizar o atendimento e a alocação de recursos humanos e técnicos. É necessário que uma política de saúde seja criada para induzir a formação de especialista na área do trauma ortopédico. Um exemplo disso é a cirurgia da pelve ou acetábulo. Quantos de nós conhecemos alguém que se dedique exclusivamente a esta área complexa da atenção ao trauma? A maioria dos cirurgiões que se dedicam a este tipo de trauma, se dedicam ou ao trauma geral ou à cirurgia do quadril. O fato é que o cirurgião dedicado prioritariamente aos traumatismos pélvicos é um profissional dos mais qualificados e que, lamentavelmente, está entrando em extinção, assim como cirurgiões cardíacos e cirurgiões pediátricos. Estas áreas "especiais", onde o indivíduo deve sobreviver às custas de sua vinculação institucional, precisam de uma política urgente de formação de profissionais, objetivando oferecer aos mesmos a estabilidade financeira necessária para que possam se dedicar a este trabalho. O investimento em recursos humanos significa também rever as tabelas de remuneração médica para os procedimentos do trauma ortopédico. Muitos procedimentos, hoje realizados, não estão adequadamente descritos ou contemplados financeiramente à altura de sua complexidade. É preciso que uma reestruturação da tabela de honorários médicos seja implementada junto aos órgãos competentes, para que o médico dedicado ao atendimento de pacientes conveniados receba uma remuneração digna, compatível com as demandas do século XXI e não baseada na tabela de 1992, como ainda ocorre em alguns sítios do Brasil. Precisamos começar a trabalhar no registro e documentação de nossos casos, para que tenhamos elementos que comprovem nossa experiência e dedicação ao trauma ortopédico. Em países europeus e nos Estados Unidos é crescente a cobrança, por parte de seguradoras, de que seja atestada a qualificação do indivíduo não apenas pelo seu titulo de especialista, como também, por sua experiência acumulada e seus índices pessoais de bons e maus resultados. É a medicina baseada em evidencias que pode servir para nos ajudar a tomar decisões, mas também é uma ferramenta para controlar muitas de nossas ações.

A Sociedade Brasileira de Trauma Ortopédico em sintonia com a Sociedade Brasileira de Ortopedia está alerta à situação do trauma ortopédico em nosso pais. Mais do que isso estamos mobilizados a apresentar os diagnósticos, baseados em dados de pesquisa recentemente realizada, a órgãos públicos, conselhos profissionais e entidades reguladoras do trabalho médico para, em conjunto, buscarmos melhorias na atenção ao paciente traumatizado em nosso pais.

  • 1. World Health Report 2000. Health Systems: Improving Performance. Geneva, Switzerland: World Health Organization; 2000.
  • 2. Silva JS, Kfuri M Jr., Abagge M, Guimarães JM, Barbosa PRL, Balbachevsky D, Christian R, Kojima KE. Como o especialista em Ortopedia e Traumatologia avalia o atendimento ao trauma ortopédico no Brasil. Rev. Bras. Ortop. 2011; 46(Suppl1):9-12.
  • O trauma ortopédico no Brasil

    Mauricio Kfuri JuniorI
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      2011
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