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Lesão X sintoma: uma questão sobre a causalidade

Brain injury X sympton: a question on causality

Resumos

Este trabalho propõe rever e problematizar a relação de causalidade direta lesão-sintoma, pedra de toque do discurso organicista sobre as afasias. Tal problematização parte do reconhecimento de que a linguagem tem ordem própria, ou seja, leis de funcionamento que não se submetem às de outro domínio - no caso específico, às do funcionamento cerebral. Como fonoaudióloga e lingüista, questionada pelo sintoma afásico, pareceu-me incontornável promover um deslocamento da noção clássica e vigente dessa relação causal. Nesse sentido, aproximo-me de Freud (1891), primeiro "afasiologista" que fez render a suspeita de Jackson (1874) de que a relação lesão-sintoma não era de causalidade direta.

Afasia; Causalidade Lesão/Sintoma; Linguagem e Afasia; Funcionamento da Linguagem e Funcionamento Cerebral


This paper aims at discussing the organicist proposal concerning aphasia. According to such a proposal, there is a direct causal relation between an impaired brain and linguistic symptoms. I depart from and take into account the fact that language is governed by laws intrinsec/inherent to the functoning of language. This is to say that language cannot be governed by laws of any other theoretical domain. As a speech therapist and linguist, who is constantly face to face with the problematic status of the aphasic symptons, I claim that the classical causal relation mentioned above ought to be revisited. In this direction, I follow Freud (1891) who put forward Jackson’s hypothesis that the relation between lesion-linguistic symptom was not straight (Freud, 1874).

Aphasia; Impaired Brain and Linguistic Symptons; Language and Aphasia; Language Functioning and Brain Functioning


DEBATE/DEBATE

Lesão X sintoma: uma questão sobre a causalidade* * Trabalho apresentado no II Simpósio Sobre Comunicação, promovido pela DERDIC/PUC SP em agosto de 1995. Tema: Afasias.

(Brain injury X sympton: a question on causality)

Suzana Carielo da FONSECA (DERDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

ABSTRACT: This paper aims at discussing the organicist proposal concerning aphasia. According to such a proposal, there is a direct causal relation between an impaired brain and linguistic symptoms. I depart from and take into account the fact that language is governed by laws intrinsec/inherent to the functoning of language. This is to say that language cannot be governed by laws of any other theoretical domain. As a speech therapist and linguist, who is constantly face to face with the problematic status of the aphasic symptons, I claim that the classical causal relation mentioned above ought to be revisited. In this direction, I follow Freud (1891) who put forward Jackson’s hypothesis that the relation between lesion-linguistic symptom was not straight (Freud, 1874).

RESUMO: Este trabalho propõe rever e problematizar a relação de causalidade direta lesão-sintoma, pedra de toque do discurso organicista sobre as afasias. Tal problematização parte do reconhecimento de que a linguagem tem ordem própria, ou seja, leis de funcionamento que não se submetem às de outro domínio - no caso específico, às do funcionamento cerebral. Como fonoaudióloga e lingüista, questionada pelo sintoma afásico, pareceu-me incontornável promover um deslocamento da noção clássica e vigente dessa relação causal. Nesse sentido, aproximo-me de Freud (1891), primeiro "afasiologista" que fez render a suspeita de Jackson (1874) de que a relação lesão-sintoma não era de causalidade direta.

KEY WORDS: Aphasia; Impaired Brain and Linguistic Symptons; Language and Aphasia; Language Functioning and Brain Functioning.

PALAVRAS-CHAVE: Afasia; Causalidade Lesão/Sintoma; Linguagem e Afasia; Funcionamento da Linguagem e Funcionamento Cerebral.

Entende-se que a afasia é um problema na linguagem causado por lesão cerebral. Essa afirmação faz aparecer a proposição-eixo das abordagens neurológicas da afasia, qual seja, a de que o sintoma na linguagem é lugar da expressão de problema em outro domínio, o cerebral. Pode-se atribuir a Broca (1861) e a Wernicke (1874) a origem da acima referida proposição. É certo que antes deles já se acreditava na relação direta entre lesões cerebrais e sintomas diversos, além dos lingüísticos. Fato é que se atribui a esses dois autores a configuração de um "discurso fundador" na afasiologia1 1 Uso essa expressão no sentido que lhe foi atribuída por Focault (1969). . Pode-se dizer, pelo menos, ser inegável que autores que sucederam Broca e Wernicke os tomam como referências necessárias e obrigatórias e que em seus trabalhos não se questionam a acima referida proposição-eixo. A circunscrição do lingüístico a um centro motor (Área de Broca) conectado, via fibras de associação, a um centro sensorial (Área de Wernicke) foi a base sobre a qual se articulou a possibilidade do estabelecimento de uma correlação direta e, portanto, causal entre lesão e sintoma, já que zonas de lesão são identificadas a zonas de linguagem.

O discurso organicista das chamadas propostas "localizacionistas" veiculava a idéia de que a uma perturbação da linguagem corresponderia uma área lesada e vice-versa. Convém dizer que a relação causal e direta entre domínios heterogêneos - no caso, cérebro e linguagem - não foi sequer tratada como questão problemática nas abordagens médicas da afasia. Questão que, na filosofia, deve-se dizer, é inserida no rol dos grandes problemas.

Tal questão-problema que primeiramente formulada por Aristóteles e tematizada, trabalhada, definida e redefinida ao longo dos séculos por Descartes, Spinoza, Kant, Leibnitz, entre outros2 2 Remeto o leitor a uma discussão detalhada sobre o assunto "causalidade" ao dicionário Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, de André Lalande (1977). . No século XX, a causalidade é feita problema também no corpo da Lingüística. Pode-se dizer que o próprio nascimento deste campo como ciência decorre, exatamente, do enfrentamento desta questão. Basta lembrar, para isso, que postular a autonomia do lingüístico significa recusar que a linguagem possa ser explicada por fatores que lhe são externos. Não foram outros os empreendimentos saussureano e chomskyano3 3 Saussure afirma, por exemplo, que "nossa definição de língua supõe que eliminemos dela tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema ..." (1916/1969: 29), ou seja, "a língua é um sistema que conhece somente sua ordem própria" (op. cit., pg. 31). Chomsky, desde Syntatic Structures (1957) se restringirá à linguagem enquanto "faculdade autônoma do espírito". . Diante disso, ficamos frente à impossibilidade de pensar a causalidade na relação entre domínios heterogêneos: entre cognitivo e lingüístico, entre social e lingüístico e, mesmo, entre cerebral e lingüístico4 4 Na psicanálise, Freud (1900) falará em "múltipla determinação". Contido aí está o obstáculo a uma relação causa-efeito, ou seja, contida está a impossibilidade de identificação de uma causa. .

A desproblematização, aqui naturalização, da causalidade cérebro-linguagem na medicina parece correr por conta do compromisso com o orgânico. Compromisso, diga-se, legítimo. A questão é que o discurso organicista na afasiologia teve como conseqüência o submetimento do lingüístico ao funcionamento cerebral. Entende-se, então, porque a questão da causalidade resultou naturalizada: foi desproblematizada porque desproblematizado foi o lingüístico. Talvez seja bem o momento de se indagar sobre o porquê não de uma clínica médica da afasia e o porquê sim de uma clínica fonoaudiológica. Acompanho Vieira (1992) que, em sua dissertação de mestrado, chamou a atenção para o fato de que "a terapêutica médica inclui, prioritariamente, medicação e intervenção cirúrgica" (op. cit., pg. 246) e que nenhuma dessas terapêuticas leva ao restabelecimento da linguagem.

O "restabelecimento da linguagem" é questão que se impõe na e para a clínica fonoaudiológica. É nesse espaço que o sintoma - a linguagem - convoca um gesto terapêutico que se supõe deva incidir sobre ele. Gesto, este, que parece exigir que se promova um deslocamento da noção de causalidade direta lesão-sintoma. Isso porque, diferentemente da clínica médica, a fonoaudiológica não pode se esquivar ao enfrentamento da linguagem enquanto questão-problema, questão que se coloca para um fonoaudiólogo relativamente às afasias.

Para perseguir o tema da relação causal lesão-sitnoma, passo brevemente, mas não superficialmente, pelos trabalhos de Broca (1861), Wernicke (1874), Goldstein (1950), Luria (1981 e 1987) e Freud (1891/1987)5 5 Para uma discussão mais detalhada das propostas acima, remeto o leitor ao trabalho de Vieira, C. H. (1992) e ao meu próprio, Fonseca, S. C. (1995). . Em foco estarão os modos de abordagem, por esses autores, desta questão.

No final do século XIX e começo do século XX, trabalhos oriundos da medicina ganharam notoriedade no que se refere à afasia. Isso teve uma razão de ser. Segundo Foucault (1980), entre os séculos XVII e XIX, observou-se uma grande mudança no saber médico, mudança caracterizada pela passagem do "adivinhar o interior" para o "descobrir a doença na profundidade secreta do corpo" (op. cit., p. 156). Chamo a atenção para a mudança ente o "adivinhar" e o "descobrir". A "soberania de olhar" que o "descobrir" descortina só se tornou possível a partir da ultrapassagem de obstáculos que opunham resistência à abertura de cadáveres. Os progressos da observação médica pautaram-se, a partir daí, num compromisso cada vez maior com um "empirismo mais científico", compromisso propriamente observacional que era fundamentado, principalmente, na técnica da anatomia patológica.

Ponho em relevo o fato de que tal mudança está relacionada à oposição observável/não observável que, na Medicina, implicou, em momentos anteriores ao inaugurado pelos estudos anátomo-patológicos, a delimitação de dois espaços: (1) um espaço externo - observável/visível - e (2) um espaço interno - não observável/invisível, conforme assinalou Fonseca (1994). Este último, espaço do "adivinhar", do inferir. A inacessibilidade ao espaço corpóreo interno levava os médicos de então, como disse acima, a inferir, com base nos sintomas que aquilo que eles não podiam "ver" (interno) era a causa do que podiam "ver" (externo).

A visibilidade do interno do corpo, conquistada com a anátomo-patologia, conferiu às inferências, até então estritamente clínicas, um caráter de "positividade", quer dizer: há lesões cerebrais quando há perturbação na linguagem. Não se pode negar que os avanços da medicina foram pautados, e muito, na investigação de cadáveres. Mas é verdade também, e falo agora com Olgivie (1988), que "a acuidade [...] do olhar médico prepar[ou] as condições para a surdez da medicina à palavra do louco" (op. cit., pg. 14). Não só à palavra do louco, eu diria, mas, de um maneira mais radical, preparou a surdez da medicina à palavra, já que é isso que ocorre na abordagem das afasias. Ou seja, se houve ganho no "olhar", houve perda na "escuta".

Datam da época das primeiras experimentações, as investigações realizadas por Paul Broca. Ele localiza a lesão cerebral responsável pelos sintomas na linguagem na terceira circunvolução frontal esquerda. Os quadros sintomáticos decorrentes de lesão nessa área foram descritos como de: alogia, amnésia verbal, afemia e alalia. No caso da alogia tem-se ausência de idéias a exprimir e no da amnésia verbal, tem-se problemas de memória. A perturbação na linguagem é remetida ao domínio cognitivo, como se vê. Não se deve, contudo, esquecer que tais "deficiências" cognitivas decorrem da lesão cerebral.

Já na afemia e na alalia, o sintoma lingüístico é de natureza propriamente orgânica (não mais cognitiva), ou seja, a desordem da linguagem corre por conta de uma impossibilidade articulatória, seja por comprometimento na programação da motricidade (afemia), seja por falta de integridade dos órgãos fonoarticulatórios (alalia). Cabe dizer que nada de específico ou preciso é dito sobre o "sintoma". As descrições de Broca fazem uso de um "vocabulário popular"6 6 Segundo expressão de Chomsky (1959). e estão bem em acordo com as intuições de senso comum. Ou seja, ele nada diz para além do reconhecimento de que a linguagem é articulada e que essa articulação faz sentido. Note-se que uma descrição intuitiva dessa ordem já é anúncio da desproblematização do lingüístico. É ela que fornece as bases de sustentação para o discurso da causalidade.

O acréscimo que Wernicke introduz, relativamente à idéia de que a linguagem na afasia é desarticulada, diz respeito ao fato de que ela pode ser igualmente "não compreendida". A afasia sensorial, como foi designada e como ficou conhecida, decorre de lesão na primeira circunvolução temporal esquerda. Estabelece-se, assim, com Wernicke, os pólos produção/compreensão. Desse modo, além da função expressiva/representativa, a linguagem adquire outra função, a comunicativa.

Wernicke postulava, ainda, a existência de um tipo de afasia decorrente de lesão nas fibras associativas - a afasia de condução - cujo sintoma principal seria a parafasia (ou o uso inadequado/inapropriado de palavras e/ou fonemas). Como, por exemplo, no caso de um afásico que atendi: ao invés de ele dizer "pelourinho" disse "chafariz". Quero chamar a atenção para o fato de que Wernicke viu algo mais, algo para além do problema articulatório ou de compreensão. Quero dizer que ele viu algo "próprio" do lingüístico, viu um possível de linguagem. No entanto, o seu compromisso era com uma teorização de outra ordem e isto o afastou do que pode ver. Ele acabou submetendo as parafasias ao funcionamento cerebral. Não se pode cobrar de Wernicke uma teorização sobre a linguagem. Entretanto, deve-se assinalar a redução do lingüístico ao cerebral. É nesse passe que ele é desproblematizado e a causalidade também.

Como se vê, Wernicke parte do funcionamento cerebral (e aí permanece) para explicar os sintomas afásicos. Quer dizer, a partir dos sintomas, o autor infere a existência de uma correlação positiva entre eles e zonas cerebrais lesionadas. Mais do que isso, infere que, se a correlação é positiva, essas zonas são zonas de linguagem. Note-se que tanto em Broca quanto em Wernicke, a linguagem tem função expressiva/comunicativa.

Ponho em relevo, nesse momento, duas expressões: função e funcionamento. A primeira é destinada ao lingüístico e a segunda ao cerebral. Essa distinção torna o cerebral proposição problemática já que é ele que tem explicar o porquê das alterações nas funções. É nessa oposição função/funcionamento que a causalidade encobre um mistério e desconsidera o problema filosófico da impossibilidade de relação causal entre domínios heterogêneos. A assunção da acima referida causalidade, torna marginal e até mesmo irrelevante a busca de entendimento do funcionamento da linguagem. Isso porque, se a relação é direta, supõe-se um isomorfismo entre o cerebral/mental e o lingüístico. Neste caso, basta estudar o funcionamento cerebral.

A assumida incontestabilidade do discurso organicista fez-se sentir, inclusive, nas propostas da área que tinham por objetivo refutar a noção de localização cerebral. Refiro-me às propostas "holísticas" que têm em Goldstein (1950) e Luria (1981 e 1987) seus representantes mais notáveis. Nelas, porém, permanece intocada a premissa básica da correlação positiva e, portanto, causal entre o funcionamento cerebral e a linguagem.

No entanto, deve-se assinalar, que é no trabalho de Goldstein que se presentifica de maneira mais forte uma "insistência" do lingüístico. A atenção ao "sintoma" levou-o a reconhecer uma complexidade tal (não esclarecida pelo autor) que inviabilizava a visão localizacionista. É a partir da observação de que diferentes lesões podem levar a um mesmo sintoma e a de que na presença de uma só lesão diferentes sintomas se apresentam, que o autor oferece a sua proposta "holística". A novidade está em que Goldstein recusa uma causalidade um a um.

Importante é que Goldstein duvida da legitimidade do estabelecimento de relação direta entre sintomas afásicos e transtornos cerebrais. Ele detecta aí um problema e o enuncia da seguinte maneira: "como, e até que ponto, é justificado presumir a existência de tal relação?" (1950:3). O que é enunciado como problema resulta obscurecido pela busca da origem do sintoma. E é nessa busca que Goldstein não pode escapar à questão da causalidade, apesar de ter enunciado um problema aí.

Trata-se, é certo, de uma causalidade expandida (Fonseca, 1995): o funcionamento do cérebro, agora concebido enquanto sistema funcional, indicaria que a desintegração de uma das funções que o compõem comprometeria o sistema como um todo. Portanto, não seria possível reconhecer, através do sintoma (que é entendido enquanto efeito imediato de um funcionamento sistêmico) a área lesionada circunscrita no cérebro. Ele não escapa à questão da causalidade porque, em última instância, é no cérebro que ele vai buscar a origem do sintoma.

Não se pode negar, contudo, que a linguagem foi fonte de perturbações para Goldstein. Tanto que ele não se conformou apenas em atribuir funções à linguagem. Ele sentiu necessidade de assinalar que a linguagem tinha duas naturezas: uma interna/abstrata e outra externa/concreta. O modo encontrado por Goldstein para privilegiar o linguístico foi o de criar para ele uma instância interna. A linguagem estaria, então, ao mesmo tempo, dentro e fora. Não se deve esquecer, porém, que a linguagem interna/abstrata e externa/concreta ficam ambas submetidas ao mecanismo funcional do cérebro.

Tendo em vista o compromisso desse autor com a medicina, ou seja, com os mecanismos cerebrais, tornou-se difícil para ele também enfrentar as dificuldades da confrontação entre domínios heterogêneos. Para Goldstein, aliás, nem se coloca o problema dessa heterogeneidade. Deve-se dizer, no entanto, que ele foi tocado pela referida complexidade do "sintoma". Mas Goldstein oscila. Atribui ao cerebral a origem da sintomatologia e, ao mesmo tempo, põe em dúvida essa causalidade. De todo modo, nessa oscilação reside, a meu ver, a grande riqueza do seu trabalho. Riqueza que a própria oscilação entre causalidade e não causalidade põe em cena. Isso, num dizer organicista, é notável.

A proposta de Luria (1981 e 1987) vai também na direção de garantir a base neuronal dos processos mentais. É ele quem diz que a tarefa fundamental de um afasiologista não é "localizar processos psicológicos [...] em áreas limitadas do córtex" (1987:118). Para ele, a tarefa fundamental é "determinar que zonas do cérebro operando em concerto são responsáveis pela [...] atividade mental complexa" (Luria, 1981 e 1987).

Note-se que Luria pretende ser "não localizacionista" e, acrescento, também, "não holista", o que se expressa na sua preocupação de determinar "zonas do cérebro operando em concerto". Isso quer dizer que Luria não pretende tratar o cérebro como um todo indiferenciado. É aqui que ele se afasta de Goldstein. Não cabe no espaço desse trabalho discutir a distinção entre Luria e Goldstein. O que nos importa aqui é a questão da causalidade. Ao se dizer nem localizacionista nem holista, talvez se pudesse perguntar se Luria escapa tanto da causalidade direta quanto da causalidade expandida. Eu vou procurar mostrar que não é esse o caso.

Luria, como diz, estará com a atenção voltada para a "análise cuidadosa de zonas do cérebro operando em concerto". Ele começa afirmando que as estruturas cerebrais são identificáveis. Nesse caso é possível localizá-las: é possível localizar "foco" de lesão. Lesão responsável, ou seja, causa do problema na linguagem. Nesse sentido, então, Luria é "localizacionista".

A "operação em concerto" dessas estruturas falaria em favor da noção de "sistema funcional complexo". Embora o cérebro não seja uma massa indiscriminada, vínculos funcionais entre as estruturas garantem a referida "operação em concerto". E, acrescenta o autor, vínculos funcionais não são localizáveis. Nessa medida, sua proposta é "holista".

Retornando à questão da causalidade, como fica em Luria a relação lesão x sintoma? Segundo ele, a correlação lesão/sintoma não é direta porque entre esses dois pólos interpõe-se o plano mental. Partindo do princípio de que a fala é "meio especial de comunicação" (1981:269) e que a comunicação implica "transmissão de informações" (idem, ibidem), Luria dirá que se trata de "atividade consciente", já que envolve um sujeito em controle da informação, envolve atividade volitiva. Dessa dupla função da fala, comunicativa e cognitiva, é que ele fará a distinção (apoiando-se em Vygotsky) entre fala expressiva - que corresponde ao processo de externalização, ou seja, transformação de processos internos em externos com vistas à comunicação - e fala impressiva - processo de auto-regulação, interno, subjetivo.

A noção de sintoma receberá uma dupla configuração, dependendo de se o "defeito" é expressão de uma alteração da fala expressiva ou se o é da fala impressiva. Não é por acaso que as afasias serão por ele classificadas7 7 Sensorial, acústico-amnésica, motora aferente, motora eferente, semântica e dinâmica. sob a égide dessa dicotomia. Dicotomia que Luria tomará como reflexo de lesões cerebrais locais que promoverão a desarticulação na organização funcional do cérebro.

Embora, neste autor, leiam-se declarações explícitas contra a causalidade direta lesão ——> sintoma, o empenho que faz em remeter tanto o mental quanto o lingüístico a uma base neuronal, apenas "maquia" a referida relação de causalidade. Quando ele fala do lingüístico, fala do "significado da palavra", que é, para ele, domínio do psicológico que, por extensão, é domínio do mental que, por extensão, remete ao cerebral. Essas remissões criam uma rede de hipóteses inferenciais. Passagens que não são absolutamente problematizadas por ele. É como se o autor não duvidasse da naturalidade dessas extensões, das relações entre os três domínios heterogêneos.

A partir da discussão acima alinhavada, pode-se dizer que a vinculação causal cérebro/mente/linguagem, presente nas abordagens neurológicas da afasia, fazem com que a linguagem seja necessariamente entendida como instância de representação de conteúdos, ou seja, de afecções provenientes de domínios que lhe são exteriores e anteriores. Sendo assim, como falar ou tecer considerações que levem em conta a materialidade própria da linguagem e o seu funcionamento?

Foi Freud que, ainda neurologista, diluiu a relação causal lesão/sintoma. Em artigo de 1891, o autor chama a atenção para a ocorrência de sintomas lingüísticos na ausência de lesão cerebral. Lembro aqui a importante observação que ele fez sobre as parafasias: elas ocorrem tanto na fala dos afásicos quanto na de "pessoas normais".

Freud promove um deslocamento da questão que envolve as relações entre cérebro e linguagem porque faz ver que perturbação de linguagem, na ausência de lesão cerebral, é um problema relevante que não encontra "lugar" no conjunto das proposições que orientam o discurso organicista. Ou seja, há sintoma sem lesão; e mais, sintoma que se estende para todo o conjunto de seres falantes, afásicos ou não.

Para ele, há "perda da eficácia do aparelho da linguagem". "Aparelho" que se pode ler funcionamento. Freud aponta para um funcionamento que produz efeitos e que não pode ser reduzido à ordem do orgânico. Nas palavras do autor, "a relação entre a cadeia de processos fisiológicos [...] e processos mentais [...] não é de causa e efeito" (1891/1987: 70). Vê-se que Freud descarta a causalidade direta entre o cerebral e o psíquico e afasta a possibilidade de se estabelecer um isomorfismo entre o cerebral e o mental.

Caber lembrar, ainda, a sua asserção de que "o processo psíquico é [...] paralelo ao fisiológico, um ‘concomitante dependente’ " (idem, ibidem). Parafraseando Freud, pode-se dizer que há entre processo cerebral e processo psíquico "relação de implicação, não de causalidade" (Fonseca, 1995). Implicação no sentido de afetação entre funcionamentos. Nas afasias, eu digo, entre funcionamento cerebral e funcionamento lingüístico. Não se trata de negar que uma lesão no cérebro produza efeitos no funcionamento lingüístico, o que não se pode é reduzir a complexidade do lingüístico ao funcionamento cerebral.

É nesse sentido que se deve entender a afirmação de Freud: "vemo-nos obrigados a desenvolver outra concepção da organização do aparelho da linguagem" (op. cit., p. 115). "Outro" é, também, o modo como, a meu ver, um fonoaudiólogo deve abordar a questão da afasia. O espaço que dediquei às abordagens médicas sobre o assunto teve como objetivo trazer à luz a solidificação de um espaço de questões que diz respeito exclusivamente à medicina na solução de compromisso com seu objeto.

Freud é, nesse sentido, instigante. Não porque desqualifique a medicina mas porque localiza uma questão teórica: a da desproblematização da relação cérebro/mente/linguagem que se expressa pelo viés do isomorfismo presente nos estudos médicos sobre a afasia. Ao problematizar essa relação, ele propriamente abre um novo campo de questões e abre a possibilidade de reinterpretação das manifestações afásicas. Reinterpretação que reivindico para a fonoaudiologia.

A dissolução do vínculo causal lesão/sintoma parece ser o caminho mais consistente para que se possa abordar a afasia como uma questão de linguagem. A conseqüência primeira que disso decorre diz respeito, exatamente, à possibilidade de se pensar a linguagem enquanto "realidade autônoma", pensá-la em seu funcionamento. Acompanho Paul Henry, quando diz:

"... é claro que a linguagem supõe uma certa organização cerebral, mas ela [a organização cerebral] não esgota a matéria" (1992: 182) (ênfase minha).

Procurei, neste trabalho, discutir a relação causal cérebro/linguagem (proposição-eixo do discurso organicista), visando a um deslocamento da questão. Foi no âmbito dessa discussão que propus ser de implicação a relação entre o cerebral e o lingüístico. Parece plausível sustentar que tanto o funcionamento cerebral como o funcionamento da linguagem sejam realidades governadas por "leis próprias" ou, em outras palavras, que uma realidade não se submete à lei de outro domínio. Esse estado de coisas não impede dizer que um funcionamento não possa ser afetado por outro. A relação causal cérebro/linguagem não está implicada no sentido de "afetar" mas, sim, no de "submeter", como vimos nas abordagens neurológicas. Por meio desse "desvio", dessa alteração de sentido, pode-se defender a idéia de que há autonomia mas que não há independência para domínios como o cerebral e o lingüístico8 8 Sobre esse assunto ver Fonseca, S. C. (1995) Afasia: a Fala em Sofrimento. .

Nesse deslocamento, ganha visibilidade o que Paul Henry (1992), designa "ordem da linguagem". Falar em "ordem da linguagem" implica um impedimento: o de não reduzir a linguagem a outras ordens que não a própria. Implica não remetê-la seja ao cerebral, seja ao mental. Implica, enfim, a assunção de um "compromisso ético" com o "real da língua". No que concerne a afasia, a não assunção do compromisso com o "real" da língua adviria da resistência ao reconhecimento desse real e de sua conseqüente redução a um comportamento sintomático, entendido como determinado pela ordem do orgânico/cerebral.

Indago, nesse ponto, acerca da questão que a afasia coloca para um fonoaudiólogo. No meu entender, é a linguagem que convoca o fonoaudiólogo. O seu compromisso é, nesse caso, antes de tudo, com a fala do paciente e, conseqüentemente, acima de tudo, com a "ordem da linguagem". De fato, se como disse Lier-De Vitto (1994), o compromisso ético do pesquisador de aquisição da linguagem é com a fala da criança, o do fonoaudiólogo é com a fala do paciente.

Eu sinalizei para duas modalidades de compromisso intimamente relacionadas entre si: (1) com a fala do paciente e (2) com a ordem da linguagem. Quero dizer que o primeiro não pode ser assumido sem o segundo. Esse duplo compromisso, que se articula em torno da linguagem, permite pensar a clínica fonoaudiológica porque a linguagem faz, nesse espaço, a diferença fundante - diferença que propriamente oficializaria esse espaço terapêutico como singular. Ao resistir ao "real da língua", um discurso sobre a afasia e as ações clínicas ao abrir espaço para discursos e fazeres outros com tonalidades "psicológicas", "sociais", "psicanalíticas". Expressões mesmas de quebra de compromisso primeiro que é com a fala do paciente9 9 Tendo em vista que a discussão deste trabalho gira em torno de uma questão teórica, qual seja, a da causalidade lesão-sintoma, conforme ela se apresenta na afasiologia, faço referência apenas, a duas conseqüências primeiras e capitais que decorrem da sua problematização no âmbito da fonoaudiologia. Refiro-me aos compromissos enunciados com o "real da língua" e com a "fala do paciente". Remeto o leitor à minha dissertação de mestrado "Afasia: a fala em sofrimento", (Fonseca, 1995), em que teço considerações mais aprofundadas sobre uma terapêutica alternativa e que leva em conta a discussão encaminhada neste trabalho. .

(Recebido em novembro de 1997 - Aprovado em março de 1998)

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  • *
    Trabalho apresentado no II Simpósio Sobre Comunicação, promovido pela DERDIC/PUC SP em agosto de 1995. Tema: Afasias.
  • 1
    Uso essa expressão no sentido que lhe foi atribuída por Focault (1969).
  • 2
    Remeto o leitor a uma discussão detalhada sobre o assunto "causalidade" ao dicionário
    Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, de André Lalande (1977).
  • 3
    Saussure afirma, por exemplo, que "nossa definição de língua supõe que eliminemos dela tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema ..." (1916/1969: 29), ou seja, "a língua é um sistema que conhece somente sua ordem própria" (op. cit., pg. 31). Chomsky, desde
    Syntatic Structures (1957) se restringirá à linguagem enquanto "faculdade autônoma do espírito".
  • 4
    Na psicanálise, Freud (1900) falará em "múltipla determinação". Contido aí está o obstáculo a uma relação causa-efeito, ou seja, contida está a impossibilidade de identificação de uma causa.
  • 5
    Para uma discussão mais detalhada das propostas acima, remeto o leitor ao trabalho de Vieira, C. H. (1992) e ao meu próprio, Fonseca, S. C. (1995).
  • 6
    Segundo expressão de Chomsky (1959).
  • 7
    Sensorial, acústico-amnésica, motora aferente, motora eferente, semântica e dinâmica.
  • 8
    Sobre esse assunto ver Fonseca, S. C. (1995)
    Afasia: a Fala em Sofrimento.
  • 9
    Tendo em vista que a discussão deste trabalho gira em torno de uma questão teórica, qual seja, a da causalidade lesão-sintoma, conforme ela se apresenta na afasiologia, faço referência apenas, a duas conseqüências primeiras e capitais que decorrem da sua problematização no âmbito da fonoaudiologia. Refiro-me aos compromissos enunciados com o "real da língua" e com a "fala do paciente". Remeto o leitor à minha dissertação de mestrado "Afasia: a fala em sofrimento", (Fonseca, 1995), em que teço considerações mais aprofundadas sobre uma terapêutica alternativa e que leva em conta a discussão encaminhada neste trabalho.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2000
    • Data do Fascículo
      1998

    Histórico

    • Aceito
      Mar 1998
    • Recebido
      Nov 1997
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