Acessibilidade / Reportar erro

O conceito de "Língua Geral" à luz dos dicionários de língua geral existentes

The concept of Brazilian "Língua Geral" in the light of the existing Língua Geral dictionaries

Resumos

Hoje conhecemos dez dicionários de língua geral amazônica, seis deles não publicados. Em comparação, a língua geral paulista continua pouco documentada. Estudam-se seis dicionários de língua geral amazônica setecentistas, em especial três manuscritos ainda não publicados. Da comparação desses dicionários, resulta a identificação de Anselm Eckart como autor de um e de Anton Meisterburg como possível autor de outro manuscrito. Analisa-se a interdependência de Eckart, Meisterburg e da "Prosodia de Lingua". Descrevem-se mudanças ocorridas na LGA e discutem-se caraterísticas da LGP. Tudo isto serve para rever os problemas téoricos do conceito de "língua geral" proposto por Aryon Rodrigues e problemas da história da sua formação.

Língua Geral Amazônica; Língua Geral Paulista; dicionários


"Língua Geral" ('General Language') was a language of indigenous origin (Tupinambá) spoken by mestizos on the coast of Brazil. Rodrigues' definition of the term and his distinction of Southern and Amazonian "Língua Geral" are discussed in the light of recent linguistic publications and of existing and newly discovered dictionary manuscripts of Amazonian "Língua Geral". The result of the analysis of three of those manuscripts is that Anselm Eckart is the author of one of them and Anton Meisterburg probably the author of another one. Both have a third one (Prosodia de Língua) as one of their main sources. The study is completed by the description of diachronic change in Amazonian "Lingua Geral", as well as by the discussion of some characteristics of the scarcely documented Southern "Língua Geral".

Amazonian Língua Geral; Paulista Língua Geral; dictionaries


Introdução

Entre as múltiplas temáticas de lingüística indígena sul-americana cultivadas por Aryon Rodrigues encontra-se, também, o fenômeno das línguas gerais da época colonial do Brasil, não só na forma de documentos lingüísticos que testemunham a evolução histórica do Tupinambá inicial, mas também como instituição socio-histórica da Colônia brasileira. Como em tantos outros casos, por exemplo no estabelecimento do método histórico-comparativo no estudo das línguas indígenas e na classificação das línguas Tupi e Tupi-Guarani, Aryon Rodrigues fez obra de pioneiro. No seu breve artigo sobre as línguas gerais sul-americanas (Rodrigues 1996RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. ), ele foi o primeiro a elaborar uma definição concisa do termo "língua geral", como termo técnico da descrição lingüística.

O objetivo desta contribuição é duplo, teórico e descritivo: Quase vinte anos depois do artigo fundamental de Aryon Rodrigues sobre o conceito de "língua geral" (Rodrigues 1996RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. ) e, à luz de publições recentes (Bessa Freire/ Rosa 2003FREIRE, José Ribamar Bessa & Maria Carlota Rosa (orgs.). 2003. Línguas Gerais. Política lingüística e catequese na América do Sul no Período Colonial, Rio de Janeiro: Ed. UERJ. , Nobre 2011NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:nobr...
, Leite 2013LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. ), é tempo para fazer uma nova reflexão sobre a validade teórica do conceito elaborado por Rodrigues. Portanto, em primeiro lugar, queremos examinar, à luz de vários trabalhos sobre a temática, publicados nos últimos anos, a validade da definição de "língua geral" proposta por Rodrigues. Em segundo lugar, e independentemente da discussão teórica, pretendemos discutir o acréscimo de conhecimentos sobre a documentação das línguas gerais brasileiras que se deu também neste último decênio. Trata-se da publicação de um extenso dicionário de língua geral amazônica da época pós-jesuítica (Barros/Lessa 2006Diccionario da língua geral do Brasil que se falla em todas as villas, lugares e aldeas deste vastíssimo Estado, Belém 1771, ms. 81 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, publicado por Cândida Barros e Antônio Lessa (orgs.), Belém: Editora da UFPA, 2006.) e da descoberta recente de um importante dicionário de língua geral amazônica, anônimo e até hoje não descrito. Este dicionário foi descoberto em 2012 por Jean-Claude Muller na Biblioteca Municipal de Trier (Alemanha). Atualmente se prepara a sua publicação. Neste artigo, o dicionário de Trier é estudado e comparado pela primeira vez junto com dois outros dicionários anônimos, nunca antes analisados com métodos lingüísticos e ainda não publicados, em primeiro lugar a chamada Prosodia de língua (n. 3 da lista de documentos), em segundo o Vocabulario da lingua. Brazil(n. 4 da lista). Vamos demonstrar as interdependências que existem entre estes três manuscritos de dicionários, os quais, de maneira significativa, contribuem para aumentar nossos conhecimentos sobre a língua geral amazônica do século XVIII.

A língua geral paulista, em contraste com o registro abundante da língua geral amazônica, continua pouco conhecida, apesar de esforços recentes para valorizar as fontes (Leite 2013LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. ).

1. As línguas gerais: problemas de definição

Até a publicação do artigo de Aryon Rodrigues (Rodrigues 1996RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. ), o termo "língua geral" se empregava sem ou com pouca preocupação teórica. Nobre (2011: 57-80)NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:nobr...
dá o panorama de obras de historiadores da língua portuguesa, de Serafim da Silva Neto até Joaquim Mattoso Câmara e Ivo Castro, que pensavam na identidade do tupinambá original com a língua geral ou imaginavam a língua geral como "construção" dos missionários ou, simplesmente, não faziam reflexões teóricas sobre a natureza do fenômeno. Uma linha de tradição com respeito a este conceito começa com o jesuita João Daniel (1722-1776). Ele distinguiu entre a "língua geral antiga dos tupinambases" ou "verdadeira língua geral" e a "língua geral corrupta" (Daniel 2004DANIEL, João. 2004. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. 2 v. Rio de Janeiro: Contraponto. , 2: 226-227, Barros 2003BARROS, Cândida. 2003. Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVII-XVIII). In: Freire/Rosa (orgs.). p. 85-112. : 87) que se falava na Amazônia na época da sua estada na região (1741-1757).1 1 Uma das obras que tratam da história lingüística do Brasil colonial é a tese de doutorado da historiadora Lee (2005). Sua distinção entre a língua geral inicial e a língua vulgar corrupta do séc. XVIII como duas línguas diferentes não parece justificada. A obra não tem o nível científico adequado para tomá-la em consideração numa discussão séria dos temas abordados aqui.

Aryon Rodrigues, desde o início de seu artigo (Rodrigues 1996RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. : 6) oferece uma definição do termo que se baseia nas realidades históricas em que se formaram línguas gerais:

Na colonização da América do Sul pelos portugueses e pelos espanhóis houve pelo menos três situações em que a miscigenação em grande escala de homens europeus com mulheres indígenas teve como conseqüência a rápida formação de populações mestiças cuja lingua materna foi a língua indígena das mães e não a língua europeia dos pais. Isto se deu onde a conquista e colonização foi praticada, de início, predominantemente por homens desacompanhados de mulheres atuando sobre um povo indígena numeroso e socialmente aberto ao estabelecimento de alianças matrimoniais com os forasteiros. Essas condições se produziram mais tipicamente entre os portugueses e os tupis (também chamados tupinakins ou tupinikins) de São Vicente e do planalto de Piratininga, no leste do atual estado brasileiro de São Paulo, no século XVI; entre os espanhóis e os guaranis do Paraguai, nos séculos XVI e XVII; e entre os portugueses e os tupinambás no norte dos atuais estados brasileiros do Maranhão e do Pará, no século XVII.

Esta definição implica que o termo, apropriado à realidade socio-histórica brasileira e paraguaia, difere do significado com que se usa na história do espanhol da América. Ali se refere à língua indígena de uso "geral" em grandes territórios, por exemplo, de cultura asteca no México colonial. Destarte, o náhua era a "língua geral" (lengua general) da missão no México e na América Central, uma língua de índios, não de uma população mestiça.

A definiçao de Rodrigues inclui também a existência de três línguas gerais diferentes, a língua geral paulista (LGP), a língua geral amazônica (LGA) e o "guarani criollo" (GNC). Deste último não falaremos aqui.

1.1. A questão da transmissão da língua

Rodrigues (1996: 10-11)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. insiste em que "não houve, em nenhum momento, interrupção na transmissão dessas línguas, isto é, não ocorreu mudança de língua (language shift) nos descendentes mestiços dos europeus e das índias tupi-guaranis". Esta parte da definição desmente a crítica de Nobre (2011: 93 e 164 e seguintes)NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:nobr...
, que aceita a ideia da "não-interrupção" na formação da LGP, mas opina que houve interrupção na transmissão da língua no caso da formação da LGA. Essa "se delineou quando os jesuitas iniciaram a catequização sistemática das centenas de povos tapuias, falantes de centenas de línguas diferentes" (Nobre 2011NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:nobr...
: 93). A objeção de Nobre, porém, não se coaduna com a definição de Rodrigues, já que a LGA era a língua materna dos mestiços do Maranhão e do Pará, não a dos índios que a aprendiam como segunda ou terceira língua, como língua de comunicação com outros índígenas e com o mundo dos mestiços. O fato de os jesuitas terem usado a LGA para sua catequese não tem relação com a existência desta língua na população não-indígena, só reflete a extensão da LGA na Amazonia brasileira daquela época.

1.2. O problema da possível existência de uma "língua geral sul-bahiana"

Ao distinguir entre a LGP e a LGA, Rodrigues (1996: 11-12)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. explica também o fato de não se terem constituído línguas gerais "do Rio ao Piauí". Ele justifica a sua postura negativa pela falta, na costa da Bahia e de Pernambuco, de "alianças matrimoniais em grande escala com os respectivos povos tupi-guaranis", pela imigração extensa de portugueses, pelas ações de extermínio dos índios e pela chegada de grandes massas de escravos pretos. Nobre (2011: 103-163)NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:nobr...
intenta refutar esta afirmação argumentando com dados que mostram a existência histórica de falantes de língua geral em um certo número de vilas e aldeias do sul da Bahia. Ainda que seja inegável este fato histórico, a observação de Rodrigues não perdeu validade porque ele insistira em situações de "miscigenação em grande escala de homens europeus com mulheres indígenas" (grifo meu). Se preciso for, a definição de Rodrigues pode ser modificada no sentido da existência de grupos menores de falantes de língua geral entre Rio e o Piauí, mas não perde nada de sua validade central. Aliás, a língua geral observada no sul da Bahia é um fato socio-lingüístico, mas não lingüístico. Não temos documentação lingüística da possível "lingua geral sul-bahiana". Desta maneira a definição de Rodrigues continua sendo um instrumento de análise de alto valor operacional.

2. A documentação da língua geral amazônica

Em comparação com a LGP, a LGA abunda em documentos lingüísticos, sobretudo em dicionários. Não se mencionam aqui os diferentes catecismos existentes. Aos três dicionários publicados no século XX, o Vocabulário na Língua Brasílica, de 1621 (n. 1 da lista a seguir), o Caderno da Língua, de 1739 (n. 2) e o Dicionário Portuguez-Brasiliano e Brasiliano-Português, de 1751 (n. 7), acrescentou-se, em 2006, o Diccionario da lingua geral do Brasil, de 1771 (n. 6). Ficam ainda não publicados mais seis manuscritos de dicionários da LGA, todos, até agora, pouco ou não analisados com métodos lingüísticos. Três deles serão estudados a seguir, a Prosodia de lingua (n.3), o Vocabulario da lingua (n.4) e o manuscrito, sem título, descoberto em 2012 na Biblioteca Municipal de Trier (n. 5). Todas as obras são anônimas. Em poucos casos, temos informações indiretas ou existem hipóteses sobre os possíveis autores ou, pelo menos, sobre o lugar da confecção do dicionário. Estas hipóteses serão discutidas quando descrevermos os detalhes do respectivo manuscrito. Eis aqui a lista dos dicionários e de seu conteúdo:

  1. Vocabulario na Língua Brasílica (VLB), 1621: cerca de 9300 verbetes.

  2. Caderno da Lingua, 1739: 3881 verbetes.

  3. Prosodia de Lingua: cerca de 5480 verbetes; páginas duplas de duas colunas, pp. 1-85: voc. Português – Língua Geral; segue uma lista alfabética Português – Língua Geral das partes do corpo (pp. 85-86); pp. 87-88 vazias; pp. 89-102 coplas rimadas em LG: "Descreve hum missionario a lida que tem com os seus rapazes" (pp. 9-91); "Lida dos Missionarios com os Sertanejos. Diz o Missº." (pp. 91-94); "Narração que faz um Sertanejo a hum seu Amigo de sua Viagem que fez pelo Sertão" (pp. 94-98); "O Corista Europeu" (pp. 98-100); "Sobre do (sic) Nacimento de N. Sor Jesu Christo, vinda e adoração dos SS. Reys, e Pastores" (pp. 101-102); "Sobre da (sic) Confissão" (p. 102); "Espertador Christão" (p. 102-103); "Outro Espertador" (p. 103-104); "Actos Affectuosos à N. Sor Jesu Christo" (p. 104-105); "Actos de Fe, Esperança, Charidade e Contrição" (p. 105); "À Virgem Maria Sª Nossa" (motte e glossa) (p. 106); "Do Santissimo Sacramento da Eucaristia" (p. 106); "Ao Santo Anjo da Guarda" (estribilho e coplas) (p. 107); "Da Noite do S. Natal" (pp. 107-108); "A Nossa Senhora da Piedade. Imitando o Stabat Mater" (p. 108); "Do Dia final: imitando o Dies illa &cª.( pp. 108-109); "Queixas de huma Alma do Purgatorio de seus Parentes porque se não lembrão della com seus Suffragios" (p. 109), "Ao Glorioso S. Miguel" (estrebilho [sic] e copla) (pp. 109-110); p. 110 três sonetos em língua geral: "A Nosso Sor. Soneto Imitando o de N. St. Pre.", "Ao N. S.to P. Ignacio", "Ao S.toFranco Xavier".

  4. [Eckart, Anselm, S. J.]. Vocabulario da lingua. Brazil: pp. 2-166: Voc. Português – Língua Geral, pp. 167-172 aditamentos de vocábulos português – Língua Geral. Cerca de 5610 verbetes em total.

  5. Manuscrito de 1756 (Trier): cerca de 6095 verbetes (+ 2500 na 2ª parte). Parte I, pp. 1-48: dicionário português – Língua Geral, ordem alfabética; parte II: pp. 48-65: dicionário Língua Geral – português, ordem segundo as sílabas finais.

  6. Diccionario da lingua geral do Brasil, 1771: 2931 verbetes.

  7. Dicionario Portuguez-Brasiliano e Brasiliano-Portuguez(DPB), 1751/1795; da autoria de um certo Frei Onofre; impressão da primeira parte por Frei Veloso (José Mariano da Conceição Vellozo) em Lisboa, 1795; reedição da 1ª e edição da 2ª parte por Plínio Ayrosa, 1934: cerca de 4080 verbetes.

  8. Vocabulario (ms. 223 da British Library), pertenceu à Fazenda Gelboé (Rio Tocantins)

  9. Diccionario da Lingua Geral do Brazil (ms.. 69 da Bibl. da Univ. de Coimbra)

  10. Diccionario da Lingua Brazilica (ms. 94 da Bibl. da Univ. de Coimbra), dicionário língua geral – português.

2.1. O dicionário de Trier

Começamos a exposição dos três manuscritos de dicionários focalizados aqui pelo chamado dicionário de Trier. Jean-Claude Muller, ex-diretor da Biblioteca Nacional do Luxemburgo, especialista em lingüística indo-europeia e atual ministro da cultura do Luxemburgo, descobriu, em 2012, na Biblioteca Municipal de Trier (Alemanha), a 50 kms da cidade de Luxemburgo, um manuscrito de 65 "fólios", isto é, de 130 páginas de duas colunas. As páginas 1-48 contêm um vocabulário português – LGA, as páginas 48-65, um pequeno dicionário LGA – português, organizado segundo o início da última sílaba da palavra ou expressão, como se fosse um dicionário de rimas. Na capa interior de detrás se lê, em letras grandes, a nota "Meirinho" e o ano 1756, isto é a confirmação do meirinho que, no momento de confiscar o manuscrito depois da proibição da ordem dos jesuitas em 1755, ele "meirinhou" o manuscrito naquele ano. Porém, se não se tivesse devolvido o manuscrito depois, este não se teria conservado.

Discutem-se atualmente os problemas da autoria do manuscrito, do lugar da sua confecção, das suas fontes e de como o manuscrito pôde chegar, em sua forma impecável, até a biblioteca municipal de Trier, na qual foi integrado em 1799.2 2 Um grupo de especialistas (Cândida Barros, Belém; Karl-Heinz Arenz, Belém; Gabriel Prudente, Belém; Ruth Monserrat, Rio de Janeiro; Nelson Papavero, São Paulo; Jean-Claude Muller, Luxemburgo; Wolf Dietrich, Münster) está preparando a publicação do manuscrito em forma digital e impressa. Vários indícios contidos no texto dão a entender que o manuscrito foi escrito na missão jesuítica de Piraguiri, no baixo Xingu, pouco antes de 1756. E, efectivamente, a arquidiocese de Trier/Tréveris mantinha várias missões naquela região na primeira metade do século XVIII. Um dos possíveis autores do manuscrito é o padre Anton Meisterburg, de Trier. Nascido em 1719, entrou na ordem dos jesuitas em 1737, tendo sido enviado para o Maranhão em 1750 e atuado como missionário nas missões de Aricará e Piraguiri no baixo Xingu, assim como em Santa Cruz de Abacaxis, no rio Madeira. Entre os seus companheiros, estava o padre Anselm Eckart, oriundo da mesma arquidiocese alemã como ele. Acusados os jesuitas de "atividades hostis ao Estado" em 1756, eles foram deportados a Lisboa, provavelmente em 1757. Em 1760, o padres Eckart e Meisterburg se encontravam na prisão da Almeida, de 1762 até 1777, quando foram encarcerados no Forte São Julião da Barra, de Lisboa. Voltando à sua terra natal em 1777, Meisterburg viveu num convento de capuchinhos, não longe de Trier, no qual morreu em 1799, no mesmo ano em que o manuscrito do seu dicionário chegou à Biblioteca Municipal de Trier (Muller 2012MULLER, Jean-Claude. 2012. Die Identifizierung eines Sprachschatzes in der Trierer Stadtbibliothek – das jesuitische Wörterbuch Alt-Tupí/ Portugiesisch. in: Kurtrierisches Jahrbuch 52: 371-387. : 377-378).

É possível que ele trouxesse consigo o manuscrito depois de ter sido posto em liberdade? Ou seria o caso que o manuscrito tenha passado à guarda de missonários de outra ordem, não proibida, ainda no Brasil, e dali à Europa e finalmente à arquidiocese de origem do padre Meisterburg? De fato, seria preciso fazer-se o mesmo tipo de perguntas com referência a todos os manuscritos jesuíticos escritos no Brasil naquela época.

2.2. Sua estrutura e suas fontes: Prosodia e Eckart

Da comparação do dicionário de Trier com outros existentes de LGA resulta que existe uma interdependência entre os três manuscritos, Prosodia de língua, Vocabulario da lingua Brazil, provavelmente de Eckart, e o dicionario de Trier, possivelmente de Meisterburg. Os três manifestam certa dependência do Vocabulario na Língua Brasilica, de 1621, o qual, dada à anterioridade da obra, pode ter sido considerado como modelo durante muito tempo. Porém, é muito maior a interdependência entre Trier/Meisterburg, Eckart e a Prosodia.

O Trier/Meisterburg dá a impressão de uma obra não terminada, não passada a limpo, com muitas rasuras, riscas e correções, aditamentos nas margens. Tudo parece ser anotado com pressa, muitas vezes em uma taquigrafia pessoal. Sendo o latim a língua geral dos comentários e das explicações, o autor utiliza as abreviaturas tradicionais, por exemplo v por vel 'ou (também)', N ou n. por verbum neutrum, isto é 'verbo intransitivo', oposto a Act. ou A. por verbum activum, 'verbo transitivo'; abreviaturas com arabescos tradicionais como par̃la por partícula ou it por item 'bem assim', etc. Mas observam-se também muitas abreviaturas pessoais, algumas em português como qlqr 'qualquer', gde 'grande', outras inventadas ad hoc como, por exemplo mer 'mulher', qtidade 'quantidade', qldade 'qualidade'; outras em latim como, por exemplo, sigfa. 'significat' (CR 23) ou qre simplicit sgfct dftus por quare simpliciter significat defunctus 'razão essa pela qual significa simplesmente 'defunto'' (DE 47).

Admitindo, provisoriamente, que Meisterburg seja o autor do dicionário de Trier3 3 Não é o lugar para discutir os argumentos que falam em favor dele ou de seu companheiro alemão Laurenz Kaulen. , podemos afirmar que ele é, em comparação com Eckart e o autor da Prosodia, aquele que faz o maior número de erros em português e que não domina a LGA à perfeição. Em comparação com a Prosodia e Eckart, o Trier/Meisterburg causa a impressão de uma obra inacabada, corrigida em muitas ocasiões. Damos só três exemplos em transcrição diplomática:

  1. DE 4: De baixo da gbapapra. goajaveira. guaiába yguýrpe. me parece: goabalgbogoajaba yba guyrpe (Neste caso, o autor não só faz duas correções, mas também acrescenta uma crítica com respeito à sua fonte, neste caso desconhecida, corrigindo a forma (guaiába) yguýrpe, pouco compreensível, em goajaba yba guyrpe 'debaixo da fruta da goiabeira').

  2. DE 151: Desassombrarse a outro. acykyieúme. ecykyieúme v tenhe ecykyié.

  3. DI 29: Direita cousa. çantabúc. rel. alius dicit: atambuc amoçatambúc direitar (A correção foi riscada e sustituida pelo aditamento, que é um verbo, não um nome "rel(ativo)", isto é uma forma nominal predicativa de 3ª pessoa: ç-antabúc.

Nem a Prosodia, nem o Vocabulario da lingua Brazil de Eckart apresenta este tipo de correções. Os seus autores, às vezes escrevendo errado, corrigem uma ou algumas letras. Ambos dicionários têm aditamentos, Eckart sobretudo anota aditamentos nas margens largas do seu quaderno. As entradas mesmas, a sua especificidade, os exemplos dados e as explicações oferecidas, geralmente em latim, também em português, algumas vezes em alemão no caso do Eckart, sugerem que um autor copiou do outro. As coincidências são inúmeras no caso de Eckart e Trier/Meisterburg, numerosas no caso da Prosodia e de Trier/Meisterburg. Dado o caráter inacabado do dicionário de Trier, parece pouco provável que Eckart se tenha servido do dicionário de Meisterburg para completar o seu, antes é Meisterburg quem é sem dúvida aquele que copiou muitas entradas do Eckart, servindo-se para isso também da Prosodia e de outras fontes. Entre estas últimas, podia ter certa importância o antigo Vocabulario na Língua Brasílica, mas não o Caderno da Língua de Arronches (1739), que é muito diferente nas entradas mesmas e nas formas lingüísticas mencionadas. Meisterburg é aquele que tem menos familiaridade com o português, faz mais anotações em latim do que Eckart e o autor da Prosodia e que parece estar menos seguro na análise da língua geral.

2.3. A Prosodia de língua como fonte possível de Eckart e Meisterburg

Vários indícios sugerem ser a Prosódia a fonte comum do Trier/Meisterburg e do Vocabulario de Eckart. O autor ainda desconhecido da Prosodia está mais seguro em português do que os dois alemães,Eckart e Meisterburg. Às vezes, parece apresentar alguns rasgos de hispanismo (por exemplo, calidade, p. 60, crianza, p. 60, tirar devasa em lugar de tirar devassa, p. 80), mas é muito seguro na língua geral, atépara fazer as coplas em LGA na última parte do manuscrito. É verdade que, em alguns casos, ele usa construções gramaticalmente incorretas em português, como a junção de preposições *sobre de, nos títulos de duas coplas ou a expressão Me declaro que ... no início do prefácio de seu dicionário (p. 1). Esses fatos enfraquecem a hipótese de considerar João Daniel como um dos possíveis autores da Prosodia. Como Eckart e Meisterburg, o autor desconhecido cita em geral a correspondência tradicional de um conceito português, mas a amplia, em muitos casos, acrescentando a expressão ou forma da LGA da sua época e sua região pela marca "vulgo", expressão adverbial latina que significa "no povo", isto é 'hoje e aqui comumente (se usa tal outra expressão)'.

Critérios para considerar a Prosodia como o modelo são as freqüentes coincidências já mencionadas e o caráter relativamente sóbrio dos verbetes da Prosodia; geralmente, são mais breves, contêm me-nos variantes e explicações do que os dois outros dicionários. Neste contexto, não convence a argumentação de Papavero e Barros (2013: 346-347)PAPAVERO, Nelson & Cândida Barros. 2013. O “Vocabulario da lingua Brazil” (Códice 3143 da Biblioteca Nacional de Portugal) e os Zusätze do Pe. Anselm Eckart, S. J. (1785): Obras do mesmo autor. In: Papavero/Porro (organizadores), Apêndice V, 335-351., segundo a qual a Prosodia seria posterior ao Vocabulario de Eckart, porque o autor da Prosodia teria rearranjado nesta os vocábulos contidos no apêndice de nomes iniciados com "PR" até "VO" , no Eckart. A comparação dos verbetes do apêndice de Eckart com os correspondentes da Prosodia mostra que não se trata do seu rearranjo alfabético na Prosodia. Ao contrário, na Prosodia, em geral, observamos uma especificação maior, uma diversificação das acepções maior do que no apêndice de Eckart:

Figura 1
Correspondências do Apêndice do Eckart com a Prosódia .

A diferenciação maior das acepções e dos usos dos verbos 'propagar', 'repudiar' e 'tirar' mostra claramente que estes não foram "rearranjados" na Prosodia, mas que, ao contrário, Eckart escolheu da Prosodia as informações que lhe pareciam necessárias e adequadas. Os verbetes do apêndice contêm aqueles que ele antes omitira ou, caso de 'tirar', não anotou pormenorizadamente. Tudo isto sugere que a Prosodia é anterior ao Vocabulario de Eckart. Do fato que Meisterburg, para seu dicionário de Piraguiri, se serviu do Eckart, resulta que ambos dependem da Prosodia. No caso de Meisterburg, a dependência ora é indireta, ora direta. Este último caso se dá quando o dicionário de Piraguiri/Trier apresenta verbetes que o Eckart não tem ou não tem na forma dele (vejam-se exemplos na seção 2.5):

Figura 2
Dependência do Trier/Meisterburg e do Eckart da Prosodia.

A dependência de Eckart e Meisterburg da Prosodia resulta também daqueles casos em que ambos copiaram mal. Nosso exemplo 'bafejar' mostra a dependência da Prosodia do Vocabulario na Lingua Brasilica (VLB). Este tem o verbete 'bafejar':

"Bafejar ou uaporar, neut. – Atimbor, Se he pessoa ou cousa uiua, Xeputuêputuê". Nesta forma o verbete não se encontra nem no Caderno da Lingua (2), nem no Dicionário Portuguez-Brasiliano (DPB) (7), mas se encontra, em forma praticamente idêntica nos três dicionários que nos interessam aqui, só que Eckart e Trier/Meisterburg apresentam uma forma putüentüé, com nasal, que não parece justificada por nada e portanto tem que ser errada. Erros deste tipo mostram a inseguridade dos dois autores alemães, que dependem das suas fontes escritas e só em casos particulares anotam as formas ou expressões que eles ouviram no lugar (vejam-se exemplos na seção 2.5):

Figura 3
Exemplo de erro comum do Eckart e do Trier/Meisterburg.

Outro exemplo que evidencia a dependência comum da Prosodia, de Eckart e de Trier/Meisterburg do VLB, pelos menos em certos casos, é o verbete "Cantor", que existe nos quatro dicionários, mas não no Caderno da Lingua e também não no DPB, onde é sustituido por "Cantador" - nheengaçára:

Figura 4
Exemplo de coindência entre Trier/Meisterburg e Eckart.

2.4. Eckart como autor do Vocabulario da lingua. Brazil

A identidade de Eckart como autor do Vocabulario da lingua - Brazil é confirmada pelas informações que ele dá no seu dicionário e na sua obra Zusätze ('aditamentos'), de 1785, assim como, em especial, pelo tratamento dos nomes de aves (Papavero/Barros 2013PAPAVERO, Nelson & Cândida Barros. 2013. O “Vocabulario da lingua Brazil” (Códice 3143 da Biblioteca Nacional de Portugal) e os Zusätze do Pe. Anselm Eckart, S. J. (1785): Obras do mesmo autor. In: Papavero/Porro (organizadores), Apêndice V, 335-351.). Além disso, resulta da comparação da sua escrita no dicionário e em um manuscrito dele, reproduzido em Papavero/Porro (2013: 323, figura 37)PAPAVERO, Nelson & Antonio Porro (orgs.). 2013. Anselm Eckart, S. J., e o Estado do Grão-Pará e Maranhão Setecentista (1785). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. : a escrita é idêntica. Desta maneira a autoria de Anselm Eckart, corroborada também pelas múltiples notas em língua alemã que se encontram no dicionário, parece assegurada.

2.5. Análise do dicionário de Trier/Meisterburg: estrutura dos verbetes

Continuamos a análise do dicionário de Trier/Meisterburg pelo cotejo exemplar de verbetes correspondentes em Trier/Meisterburg, no Vocabulariode Eckart e na Prosodia:

Figura 5
Cotejo de verbetes em três dicionários.

A comparação mostra as grandes coincidências entre Eckart, Trier/Meisterburg e a Prosodia. Os casos de a Prosodia oferecer um verbete mais breve, com menos exemplos e menos explicações, sugerem que Eckart e Meisterburg se aproveitaram da Prosodia, já que outros dicionários como o Caderno da Língua (Arronches) e o DPB têm, em muito menos casos, verbetes comparáveis ou correspondências textuais com a Prosodia, Eckart e Trier/Meisterburg.

2.6. Análise dos dicionários de Eckart e Trier/Meisterburg: caraterísticas comuns

Os dicionários confeccionados por Eckart e Meisterburg caraterízam-se por traços comuns que refletem o tempo relativamente breve que os dois missionários passaram na Amazônia brasileira. Da estadia limitada em terras de língua portuguesa e de língua geral amazônica resultam os erros de português que apresentam os seus dicionários e também a insegurança na língua geral que tem como consequência formas encontradas nas fontes mal copiadas porque não entendidas e, em certos casos, análises morfossintáticas erradas. Vamos dar só alguns exemplos, além daqueles já marcados nas figuras 1, 3 e 5. Geralmente, os erros são individuais. Eis aqui exemplos de erros em português do Trier Meisterburg:

  • Trier/Meisterburg AD 6: adegeiro [adegueiro]. Eckart: adegueiro.

  • Trier/Meisterburg AD 7: adeldaçar [adelgaçar]. Eckart: adelgaçar.

  • Trier/Meisterburg AR 40: Arrodondar [arredondar]. amöapöá. Prosodia: Arredondar como bolla. Amöapöá. A. Falta no Eckart.

  • Trier/Meisterburg DE 121: Derreter se. xemembéc, e se he os mesmo [em lugar de eu mesmo], que eu derreto ou destaço [desfaço] na agoa. aieticoar. aticoár. a.

  • Trier/Meisterburg DO 13: Doer ou pezarme. xeracý. mas em lugar de çuí, se poem çupé, ut: çacý ixebo.mbäépe çacý pachicu çupé. que cousa doem [doe, na grafia atual dói] ou da pezar ao Francisco.

Em vários casos, a insegurança no português se manifesta pelos erros de gênero como, por exemplo, Trier/Meisterburg CO 201: Corte do ferramto [da ferramenta]. çaembé. Porém, em FE 53, escreve Ferramenta. Eckart apresenta Córte de ferramentos, angume (sic) de espada. Acies. çäembé. Comentário: Além do gênero errado em "ferramento", Eckart confunde o latim acumen 'gume' com o português gume para formar *angume.

Precisa-se tomar em consideração, porém, a evolução da língua, tanto da portuguesa como da LGA. Os dicionários do século XVIII oferecem, naturalmente, a língua da sua época. Emparar era a forma tradicional, cuja variante moderna amparar, hoje normal, ainda era um neologismo. Prosodia, Eckart, Trier/Meisterburg e o DPB oferecem emparar, e até Pereira (1697, II: 12), no verbete amparar, remete o leitor a emparar:

  • Trier/Meisterburg EM 64: Emparar [amparar], apytymõ. adjuvare; Prosodia Emparar. Apytymó. Eckart também tem Emparar. Protegere.

Erros de LGA ou erros na análise da LGA encontram-se no dicionário de Trier/ Meisterburg, raramente naquele de Eckart, nunca – pelo que pudemos ver – na Prosodia:

  • Trier/Meisterburg AP 45: Aportar. acýc. acýc ygára. veyo a canoa. Comentário: ‚Veio ou aportou a canoa' teria ques ser Ocyc ygára, na 3 p em o-, não na 1ª em a-. Exemplo provavelmente mal copiado porque mal entendido no dicionário de Eckart, que tem: Aportar. Apellere, Portum tenere. Acýc; ut: Acýc ygárapupé uan'Já cheguey ao porto', tradução esta também errada, já que ygárapupé significa 'na canoa'; 'ao porto' seria ygarapába-pe. A expressão correta, no sentido de Trier/Meisterburg, está na Prosodia: Aportar. Acýc, ut Ocýc ygára. t. [= também] Aietpotar ut oiepotar ygára.

  • Trier/Meisterburg 243: Coxear. xe pári v xe apári [em lugar de xe parĩ 'ser coxo' nos dois casos]. Eckart também apresenta o erro da /i/ oral, mas pelo menos não tem o acento na penúltima, e especifica a forma xe aparí como mais moderna: Coxear. claudicare. xe parí. vulg. xe aparí. [Segue a anotação enigmática: T. aparí. R. Ixeapár].4 4 Apara 'curvo, entrevado, paralítico' está documentado em tupinambá; aparí poderia ser um diminutivo (apar- + í). Enigmático é o que segue não só pela letra "R.", mas também pela forma que segue, com inicial difícil de descifrar no manuscrito.

  • Trier/Meisterburg PE 116: Perderse de memoria, ou de vista. acanhem çui ('eu me perdi dele') ut: ocanhem igára xe çui. perdei a canoa de vista v. perdei simplr [simpliciter 'simplesmente']. Comentário: Na realidade, o exemplo oferecido significa 'a canoa se sumiu de mim'. A autor do ms. não dominava bem a morfossintaxe da LGA, nem a morfologia do português, já que a forma adequada do verbo perder seria perdi, não perdei. O verbete parece quase idêntico com o da Prosodia: Perderse de memoria, ou de vista. Acanhém çüí. ut ocanhém ygára xe çüí. perdi de vista a canoa, ou perdi a canoa.

Um erro de Eckart, que não se encontra no Trier/Meisterburg, se observa na entrada Decer ou abaixar ou pendurado, suspensum, ou o q' está em alto. Agorýb. Fazer q' deça, obrigar a alguem a decer. Amogoegýb. Meisterburg tem a forma correta, arorýb, a da diátese socio-comitativa em -ro-, que significa que o sujeito faz a mesma ação que o objeto que solicita.

Talvez não sejo erro o que se observa no verbete de Eckart: Enterrar. Ahotým ou Aiotým. Ahotýmpode ser mero lapso, mas também pode ser a variante realmente usada em Abacaxis (rio Madeira), [ao'Aiotým. Prosodia Aiotým. DPB Jotýme., mas VLB Anhotigm. A raíz é nasal também em outras línguas tupi-guarani (guarani paraguaio, mbyá, guarayu a-nhotỹ 'eu enterrei', 'plantei'). Na LGA parece ser mais um caso de desnasalização ocorrido no século XVIII. Para a LGP Martius (1867: 110) anota nhotúm.5 5 Este tipo de desnasalização se observa em muitas ocasiões quando se compara o VLB e os dicion´rios de LGA; por exemplo, VLB: Arremeter o aninmal, ou ser brauo – Anharõ, Prosodia e Trier/Meisterburg Anharõ e Aiarõ; VLB andar roda como de engenho – Anhatiman, Prosodia, Eckart, Trier/Meisterburg Anhatimán e Aiatimán. ]? Meisterburg tem a entrada Plantar.

Os dois missionários alemães fazem erros grosseiros conferindo ao português traços lingüísticos da sua língua materna, o alemão. Uma das caraterísticas desta língua, na língua falada de certas regiões e de certos dialetos, é a não-distinção entre as consoantes oclusivas sonoras e sordas: /p/ [p – b], /t/ [t – d], /k/ [k – x – g], /s/ [s – z]. Esta distinção irregular reflete-se no português escrito do dois autores em vários casos: Trier/Meisterburg: affoquear [afoguear], arrecanhar [arreganhar], (os dentes como o caõ), foqueira [fogueira], sanque [sangue], seque[segue]. Todos estes exemplos não se encontram no Vocabulario de Eckart, embora o seu dicionário não careça de erros deste tipo..

Erros caraterísticos se dão quando Meisterburg copia mal porque não entende bem o que escreveu Eckart: Almecega. Mastiche. ycýca; a dura que serve para louça, vasis; Itá ycýca. Na cópia de Meisterburg lemos, AL 69: Almesiga v Almecega. mastichè. ycýca. a dura q serve p.a couça: itá ycýca. Como Meisterburg óbviamente não conhece o lexema louça, embora Eckart traduza pelo latim vasis, ele escreve couça, talvez pensando em cousa, palavras que ele provavelmente pronunciava de maneira igual

2.7. Variação diacrônica na LGA

Todos os três dicionários, tanto a Prosodia como o Eckart e o Trier/Meisterburg, distinguem-se dos outros pela indicação mais ou menos sistemática da evolução do léxico, mas também da morfossintaxe da LGA. O VLB menciona variantes lexicais pela sigla latina l. (licet 'ou seja'). Não se sabe nestes casos se se trata de variação regional ou diacrônica. O Caderno da língua (1739, Arronches) não indica variação, já que regularmente menciona só a forma mais moderna, a que se usa na região e na época da sua confecção. Esta é, em geral, também a postura do DPB (n. 7 da lista dada na seção 2) e do Dicionario de 1771 (n. 6 da lista). Só os autores dos três dicionarios referidos em cima, dois dos quais com certeza foram escritos por missionários estrangeiros, caraterizam-se por um procedimento comum: mencionam em primeiro lugar a expressão tradicional, encontrada não se sabe sempre em que fonte, só às vezes é obviamente o VLB. Depois indicam, com certaregularidade, o uso atual. É difícil saber alguma coisa sobre variação dialetal. Somente quando o Trier/Meisterburg anota "Isto é o que ouvi várias vezes" ou "Ouvi também (tal outra forma)", podemos entender que se trata do uso regional do baixo Xingu.

A marca vul. ou vulg, raramente v. refere-se ao advérbio latino vulgo 'na fala da gente'. Não significa uso vulgar em sentido pejorativo, com referência ao uso das capas baixas do vulgo, mas, sem intenção normativa, ao uso cotidiano. Indica-se assim a discrepância entre os inícios da LGA, que ainda não se afastara muito do tupinambá. Alguns exemplos ilustrarão as diferenças, diferenças que em alguns casos parecem ser grandes pela mudança ocorrida na forma da negação predicativa (nos verbos e nos nomes predicativos):

  • Eckart: Achaquoso (Pereira 1697, II: 4 Achacoso e Achaquosa cousa) andar ou mal disposto. Naxecatúi v Naicó maracatúi v Naxemaragatùi. vulgo Niti xe catù v xe mbäé acý mirí.

  • Eckart: Açoutar de qualquer modo. Ainupã. vulgò Anupã. o frequent. Anupãnupã. Trier/ Meisterburg oferece um verbete idêntico enquanto a Prosodia só dá a forma contemporânea Anupã, sem a marca pessoal de 1ª pessoa em ai-, que é a forma tradicional (veja-se 2.8).

  • Trier/Meisterburg FI 15: Filha do varaõ. taiýra. vul. tagýra. ou tagíra. Eckart tem um verbete praticamente idêntico, a Prosodia menciona a forma tradicional taiýra e a moderna tagíra. Como veremos em 2.8, a mudança se refere à evolução da /j/ intervocálica que se tornara [ʒ] na língua do século XVIII, e à confusão crescente das vogais /ɨ/ e /i/ que resulta na redução de /ɨ/..

Está claro que a formação de uma língua geral implicava a separação entre a língua dos indígenas, que continuavam vivendo a sua vida tradicional, caraterizada por uma espiritualidade própria, com menos acesso à vida material dos brancos e mestiços e com menos contato com o português, e a língua da sociedade mestiça, cristianizada e impregnada mais ou menos do modo dos mestiços de pensar e de organizar a sua vida. O processo da cisão foi lento no século XVI, mas no século XVIII a diferenciação já era evidente. Contudo, não é imaginável a situação aludida de Lee (2005: 174, 202, 254)LEE, M. Kittiya. 2005. Conversing in Colony. The Brasilica and the Vulgar in Portuguese America. Baltimore: John Hopkins University, Ph. D. dissertation. http://www.etnolinguistica.org/tese:lee_2005 (acesso 06/08/2014).
http://www.etnolinguistica.org/tese:lee_...
, segundo a qual até a língua geral do século XVI/início de séc. XVII era imcompreensível para os falantes da LGA do século XVIII. Vejam-se as diferenças maiores alistadas na seção 2.8.

No século XVIII, a LGA podia parecer "corrupta" aos olhos de pessoas que conheciam a língua do século anterior, mas por isso os linguistas de hoje não têm motivo para caraterizá-la de "corrupta" ou até de língua "crioula" ou "crioulizada". O que observamos é a evolução normal de uma língua viva, falada pela gente e não conservada só nas gramáticas normativas. As mudanças que veremos na seção seguinte e as alistadas por Rodrigues (1996: 12-13)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. não dão pretexto para pensar em evoluções excepcionais. As línguas gerais, na definição de Rodrigues (1996)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. não foram criadas pelos missionários, foram eles que tiveram que aprendê-las. Na situação da missão jesuítica era natural que a língua que se aprendia e propagava para a catequese fosse "reduzida" a certa norma. Os missionários, que não eram linguistas descritivistas, não podiam aceitar todas as variantes existentes. Porém, a variação contemporânea e a diacrônica que vemos documentada nos seus dicionários é admirável; não fala em favor de uma teoria da redução ilegítima ou até da falsificação da língua natural por parte dos missionários.

2.8. Evolução lingüística interna da LGA

Os exemplos dados na seção anterior já incluem grande parte das mudanças estruturais ocorridas na evolução da língua. As mudanças fonológicas foram estudadas por Schmidt-Riese (1999)SCHMIDT-RIESE, Roland. 1999. Perspectivas diacrônicas brasileiras: o rastro das línguas gerais. In: Romanistisches Jahrbuch(Hamburgo) 49 [1998]: 307-335. e Monserrat (2006)MONSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2006. Observações sobre a fonologia da língua geral amazônica nos três últimos séculos. In: Cândida Barros e Antônio Lessa (organizadores.), Diccionario da língua geral do Brasil, Belém: Editora da UFPA, CD-ROM, 11 pp. . Aqui só mencionamos as mais importantes para os três dicionários estudados neste artigo. Não consideramos as mudanças morfossintáticas alistadas por Rodrigues (1996: 12-13)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. , mas vamos analisar duas outras, não mencionadas pelo colega e amigo defunto.

2.8.1. Fonologia

A oclusão glotal (Monserrat 2006MONSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2006. Observações sobre a fonologia da língua geral amazônica nos três últimos séculos. In: Cândida Barros e Antônio Lessa (organizadores.), Diccionario da língua geral do Brasil, Belém: Editora da UFPA, CD-ROM, 11 pp. :3-4), que se perdeu no Nheengatu finais do século XIX, inícios do XX, nunca se marcou de maneira clara e sistemática, nem na tradição brasileira, de Anchieta até Figueira e a descrição das línguas gerais, nem na espanhola, de Ruiz de Montoya até as gramáticas do guarani paraguaio de inícios do séc. XX. Registra-se, de maneira surpreendente, nos dicionários de Eckart e de Trier/Meisterburg, não marcando-se sistematicamente, mas de maneira bastante regular. Indica-se indiretamente pelo trema na vogal que precede a oclusão glotal e pelo acento agudo na vogal seguinte: mbäé /mba'ʔe/. A Prosodia usa deste procedimento rara e irregularmente, o Caderno da lingua (Arronches) quase nunca.

A fricativa bilabial sonora /β/ do Tupinambá (Monserrat 2006MONSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2006. Observações sobre a fonologia da língua geral amazônica nos três últimos séculos. In: Cândida Barros e Antônio Lessa (organizadores.), Diccionario da língua geral do Brasil, Belém: Editora da UFPA, CD-ROM, 11 pp. : 4-5), passada a [b] em posição final na LGA (Eckart e Trier/Meisterburg acuáb 'saber'), vocaliza-se já na segunda metade do séc. XVIII (DPB acabar mombáo [< mo- + pab]. Confundem-se /b/ e /w/ em posição medial: Trier/Meisterburg VE 24: Vento. ybytu v yvytu; Eckart ainda tem ybytu, como o DPB; Trier/Meisterburg FI 21: Fim ou cabo. do que se faz. papába v papáva. VLB xe roba 'meu rosto' – Prosodia xe rouá.

O apagamento paulatino da /ɨ/, acabado finalmente no Nheengatu, já se anunciava em certas formas do século XVIII, por exemplo na forma ybetu 'vento' dada no Caderno da lingua (1739, ArronchesARRONCHES, Frei João de. 1739/1935. O Caderno da Língua. Vocabulário Portuguez-Tupi, Notas e commentarios à margem de um manuscrito do século XVIII”, publicado por Plínio Ayrosa, Revista do Museu Paulista21:3-267; ms. da Biblioteca do Museu Paulista. ), em lugar de ybytu ou yvytu. Exemplos de Trier/Meisterburg e Eckart são poxi (por exemplo em 'filho ou filha da puta' cunhã poxí membýra 'criatura de mulher má', em lugar de poxy, e o já mencionado tagíra'filha', em lugar de tajýra (v. 2.7).

2.8.2. Morfossintaxe

É certamente pelo contato com o português que se desenvolveu a mudança tipologicamente notável na forma da negação verbal. O exemplo do Trier/Meisterburg ilustra a mudança: NA 14: Naõ querer. naipotari. vul. niti apotar. alii: niti xe apotar. naõ saber. naicuábi. vul. niti acuàb v niti xe acuáb. Edelweiss (1961: 282)EDELWEISS, Frederico G. (1961). Estudos Tupis e Tupi-Guaranis. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora. dá uma explicação fundada da origem da negação nitío, forma que aparece no séc. XVIII. Primeiro analiza a forma comprida nitibi dizendo que vem de tyb-a 'existência'. A forma segmentando-se n-i-tib-i, se explica apartir de

n- i-tyb- i NEG 3 p-existência.múltiple NEG 'não há, não existe (abundância de)'

Então, nitío apresenta a forma abreviada *nitib – prefixo de negação em lugar do morfema discontinuo – e a vocalização da -b final, vocalização freqüentemente documentada no Diccionário (1771, por exemplo mombao < mombak). Nitío é a forma documentada no DPB, niti a forma usual dos outros dicionários. Negações comparáveis desenvolveram-se em duas línguas Tupi-Guarani bolivianas, no Guarani Boliviano mbáety 'não, não há' e no Yúki, biti. As duas parecem estar igualmente em conexão com a raíz tyβ – tib. Na perspectiva tipológica, a mudança consiste na sustituição de um morfema do predicado por um elemento preposto, de um procedimento flexivo por uma construção analítica. Esta corresponde ao não que precede o verbo ou o predicado nominal do português (não quero, ele não é médico).

A segunda mudança observada na LGA a partir do século XVIII refere-se à criação da partícula uan, geralmente <üan> nos dicionários de Eckart e Trier/Meisterburg. Ainda não se encontra no VLB, mas sim em todos os dicionários de LGA posteriores, e se documenta, na forma oáne, também na LGP (Leite 2013LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. : 168). Trata-se do resultado do elemento –am-/ -wam- do tupinambá que expressa a perspectiva antecipatória da ação (Jensen 1998JENSEN, Cheryl. 1998. Comparative Tupi-Guarani Morphosyntax. In: DERBYSHIRE, Desmond C. and Geoffrey K. Pullum (eds.). Handbook of Amazonian Languages, vol. 4. Berlin – New York: Mouton de Gruyter, p. 487-616. : 544 e 596; Ruth Monserrat, c.p.). No Nhengatu atual, tem o valor de marcador de perfeito (Cruz 2011______. 2011. Fonologia e Gramática do Nheengatú. A língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa. Utrecht: LOT. Tese de doutorado da Universidade Livre de Amsterdão. ). Alguns exemplos encontrados, de forma bastante similar, em Eckart e em Trier/Meisterburg, são: Trier/Meisterburg AM 17: Amanhecer. coemiá. coéme potar üan ('Já quer amanhecer'); DE 57: Deitar raizes. çapòüan (Isto é ç-apo wã 'já tem raíz'); JA 1. Ja. uán no fim do verbo. ut: oçó uán. oúr uán. ja foy, veyo. Se uan era e é realmente um morfema de passado, de ação acabada, e não um marcador de evidencialidade, então seu desenvolvimento nas línguas gerais se deve provavelmente à influência do português. Se fosse expressão da evidencialidade, eventualmente com o valor de 'validade da informação confirmada pelo sujeito', então se teria conservada a estrutura tipológica da língua indígena, com a sua preferência de distinções evidenciais.6 6 Veja-se Dietrich 2010, onde se discute um fenômeno paralelo do Guaraní paraguaio: o sufixo átono -ma, que se traduz tradicionalmente por 'já', é interpretado como marcador de evidencialidade.

O autor da Prosodia usa niti e uan também nas suas coplas, niti a par da negação tradicional com n(d) ... -i. Eis aqui alguns exemplos da "Lida das missionários com os sertanejos", na tradução de Eduardo Navarro (Navarro 2008NAVARRO, Eduardo de Almeida. Eduardo de Almeida. A escravização dos índios num texto missionário em língua geral do século XVIII. In: Revista USP 78: 105-114. : 108-109): Opauán, ëí, Apyábetá 'Diz: - Acabaram-se os índios'. Xe recé niti ereimocüár, Xe çüí abé niti erepöuçú, Nde recó niti ereiporacár. 'A mim não o avisaste, de mim também não tiveste medo. Teu dever não cumpriste'.

3. A Língua Geral Paulista

Sobre a Língua Geral Paulista não podemos dizer muita coisa pela falta de documentação. O valor do dicionário de verbos de von Martius (Martius 1867MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. 1867. Diccionario de Verbos. Zeitwörter. Portuguez – Tupi austral – Deutsch. In: Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerika’s zumal Brasiliens, II: Zur Sprachenkunde. Leipzig: Fleischer, 99-122. ; Cruz 2005CRUZ, Aline da. 2005. O resgate da Língua Geral. Modos de representação das unidades lingüísticas da Língua Geral Brasílica e do Tupi Austral na obra de Martius (1794-1868). São Paulo: USP. Tese de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:cruz_2005.
http://www.etnolinguistica.org/tese:cruz...
: 35-39) é prejudicado pela grafia pouco clara, aportuguesada, muito menos "profissional" que a dos missionários dos séculos anteriores. As vogais nasais não são marcadas claramente. As consoantes finais, que teriam que estar apagadas no tupi do Sul, muitas vezes estão salientadas: por exemplo "tanger (tocar) – pocoque" (em lugar de pocó); "pregar hum prego – ombotáque támiri" (em lugar de mbotá); "rasgar – soroque" (em lugar de soró). As formas verbais listadas uma vez estão na 1ª p, uma vez na 3ª p, outra vez se apresenta a raíz verbal.

3.1. Particularidades fonológicas

O que se pode ver claramente é a evolução definitiva de /mb/- inicial a /b/- (bocái 'queimar'), e o traço que carateriza a língua geral austral, a passagem de /ɨ/ a /u/ em muitíssimos casos:

Figura 6
Exemplos de /u/ < /ɨ/ na LGP

Das combinações de verbo e objeto resulta que 'sal' é yucúra na LGP, em comparação com jukýra 'sal' na LGA. Daí que fique evidente que as consoantes finais do tupinambá não se apagaram na LGP, mas, como na LGA, muitas delas se conservaram. Resultaram palavras graves devido ao acréscimo de vogais átonas, nos nomes geralmente se acrescentou a -a do antigo caso argumentativo do tupinambá. Nos verbos, se explicam formas mencionadas em cima como [po'koki], [bo'taki], [so'roki] pela epêntese, típica do português brasileiro, que consiste no acréscimo de uma vogal, em geral /i/, depois de consoantes e grupos consonánticos finais, impossíveis em português, que podem aparecer em neologismos de origem estrangeira (film ['filmi]) ou em siglas como USP ['uspi]. Pela mesma razão a forma gráfica portuguesa de ticket é tíquete e New York se torna Nova Iorque /'jorki/.

3.2. O Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica

Infelizmente, de tudo isso se reconhece bem pouco no Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica (VELGB) de Machado de Oliveira, reproduzido em Leite (2013: 151-176)LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. . Como escreve a autora (Leite 2013LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. : 133), o Vocabulário de Machado de Oliveira é uma lista composta de várias fontes, tanto da língua geral falada no Sul como de diversos documentos de LGA, entre eles o DPB. O VELGB, como o Diccionario de verbos de Martius, também não marca claramente as vogais nasais. Eis aqui as coincidências encontradas com o Diccionario de verbos de Martius, das letras A – C dos verbetes do VELGB:

Figura 7
Cotejo de possíveis documentos de LGP

O cotejo mostra coincidência lexical geral entre a LGA e a LGP. Parece haver casos de diferenciação sintática (a-pu'ã levantar' e levantar-se'). LGP dificilmente pode ser um verbo transitivo 'saborear, provar'. A palavra correspondente cëẽ da LGA é um nome predicativo, 'é gostoso', 'é doce'. Em casos de discrepância, como ar (VELGB) – aa (Martius) 'cair' (äár na LGA), arobiar((VELGB) – roviá (Martius) 'acreditar, crer' (a-robiár na LGA), não se sabe se se trata de variantes na LGA ou da diferença entre LGA e LGP. A LGP segue estando mal documentada. A documentação é escassa demais e insegura para podermos fazer observações definitivas.

3.3. Problemas do Vocabulário na Língua Brasílica

Fica problemática a classificação do Vocabulário na Língua Brasílica (VLB). Segundo o critério proposto por Barros (em Papavero/Barros 2013PAPAVERO, Nelson & Cândida Barros. 2013. O “Vocabulario da lingua Brazil” (Códice 3143 da Biblioteca Nacional de Portugal) e os Zusätze do Pe. Anselm Eckart, S. J. (1785): Obras do mesmo autor. In: Papavero/Porro (organizadores), Apêndice V, 335-351.: 339), seria um dicionário de LGP, já que a tradução que oferece para 'inverno', roig 'frio' e 'verão'coaracig 'sol', mbiracubora (isto é pi rakuvo-ra(mo) 'quando faz calor na pele') é indício de uma região de estações marcadas pelo frio e o calor, portanto a região austral. Em comparação com isto na LGA 'inverno' é amána ára 'tempo de chuva', 'verão' coaracý ára 'tempo de sol' (Prosodia, Eckart e Trier/ Meisterburg), com o que se continua a distinção europeia das estações, a do hemisfério norte. Em favor de uma filiação com a LGP, fala também a alusão que faz o autor do VLB aos carijos, ou carijós, do sul do Brasil, nação cuja língua é a peça de ligação com o guarani. Um autor de LGA não teria motivo para mencionar os carijos. Também alusões a lugares do Sul como São Vicente e Angra dos Reis e, ao mesmo tempo, a falta de alusões a lugares do Norte falam em favor da filiação austral do VLB. Pelo outro lado, o VLB não se carateriza pelo traços lingüísticos típicos da LGP, provavelmente porque é anterior às mudanças alistadas em cima. Ainda que fosse escrito ou copiado em Piratininga em 1621, não há evidência absoluta de que se trata de um dicionário de LGP. Parece seguro que cópias do VLB circulavam também nas missões do Pará já que existem várias coincidências textuais entre o VLB e os dicionários de LGA (Prosodia, Eckart e Trier/Meisterburg). É preciso fazer mais pesquisas pormenizadas sobre este importante dicionário anônimo.

Considerações finais

Nosso estudo da temática das línguas gerais teve os seguintes resultados: em primeiro lugar, a discussão da definição do termo "língua geral" proposta por Rodrigues (1996)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. mostrou a utilidade do termo assim definido já que o conceito conserva a sua clareza perante intentos de reduzir os critérios delimitadores, tanto os que se referem à história social como os que se referem à geografia específica da formação de línguas gerais brasileiras.

Em segundo lugar se estudou a documentação existente da Língua Geral Amazônica. Pela primeira vez, se fez uma análise aprofundada de três manuscritos anônimos de dicionários de LGA, especialmente de dois manuscritos de dicionários confeccionados por missionários jesuitas alemães do século XVIII. Trata-se do dicionário recentemente descoberto na Biblioteca Municipal de Trier (Alemanha) e do Vocabulário da língua. Brazil. Os dois foram escritos pouco antes de 1757, ano da proibição e expulsão dos jesuitas. Pôde-se identificar Anselm Eckart como autor do Vocabulário enquanto a autoria do dicionário de Trier ainda não está certa. Porém, é muito provável que Anton Meisterburg pode se considerar como o autor do dicionário de Trier. Conseguimos mostrar também que a Prosodia, ainda anônima,é uma das fontes de Eckart e de Meisterburg e que, por isso, é anterior aos manuscritos deles.

Com respeito à Lingua Geral Paulista, a situação dos nossos conhecimentos não melhorou muito em comparação com a descrita por Rodrigues (1996: 8-9)RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18. . Apesar do estudo de Leite (2013)LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. e da nossa análise do Diccionario de verbos de Martius e do Vocabulário Elementarrepublicado por Leite (2013)LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica”. Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado. a documentação fica insuficiente. Ainda que o Vocabulario na Lingua Brasílica de 1621 fosse um documento da LGP, este, dada a sua confecção precoce, ainda não dá informação sobre particularidades deste tipo de língua geral.

  • 1
    Uma das obras que tratam da história lingüística do Brasil colonial é a tese de doutorado da historiadora Lee (2005). Sua distinção entre a língua geral inicial e a língua vulgar corrupta do séc. XVIII como duas línguas diferentes não parece justificada. A obra não tem o nível científico adequado para tomá-la em consideração numa discussão séria dos temas abordados aqui.
  • 2
    Um grupo de especialistas (Cândida Barros, Belém; Karl-Heinz Arenz, Belém; Gabriel Prudente, Belém; Ruth Monserrat, Rio de Janeiro; Nelson Papavero, São Paulo; Jean-Claude Muller, Luxemburgo; Wolf Dietrich, Münster) está preparando a publicação do manuscrito em forma digital e impressa.
  • 3
    Não é o lugar para discutir os argumentos que falam em favor dele ou de seu companheiro alemão Laurenz Kaulen.
  • 4
    Apara 'curvo, entrevado, paralítico' está documentado em tupinambá; aparí poderia ser um diminutivo (apar- + í). Enigmático é o que segue não só pela letra "R.", mas também pela forma que segue, com inicial difícil de descifrar no manuscrito.
  • 5
    Este tipo de desnasalização se observa em muitas ocasiões quando se compara o VLB e os dicion´rios de LGA; por exemplo, VLB: Arremeter o aninmal, ou ser brauo – Anharõ, Prosodia e Trier/Meisterburg Anharõ e Aiarõ; VLB andar roda como de engenho – Anhatiman, Prosodia, Eckart, Trier/Meisterburg Anhatimán e Aiatimán.
  • 6
    Veja-se Dietrich 2010, onde se discute um fenômeno paralelo do Guaraní paraguaio: o sufixo átono -ma, que se traduz tradicionalmente por 'já', é interpretado como marcador de evidencialidade.

Referências bibliográficas

  • ARRONCHES, Frei João de. 1739/1935. O Caderno da Língua. Vocabulário Portuguez-Tupi, Notas e commentarios à margem de um manuscrito do século XVIII”, publicado por Plínio Ayrosa, Revista do Museu Paulista21:3-267; ms. da Biblioteca do Museu Paulista.
  • Diccionario da língua geral do Brasil que se falla em todas as villas, lugares e aldeas deste vastíssimo Estado, Belém 1771, ms. 81 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, publicado por Cândida Barros e Antônio Lessa (orgs.), Belém: Editora da UFPA, 2006.
  • Dicionário Português-Língua Geral 1756. Ms. 1136 da Biblioteca Municipal de Trier (Alemanha).
  • Diccionario Portuguez-Brasiliano e Brasiliano-Portuguez 1795/1934. Ed. preparada por Plínio Ayrosa, Revista do Museu Paulista 18: 17-322.
  • Prosódia de língua S.d. Ms. da Academia de Ciências de Lisboa, M.A. n. 569. [Eckart, Anselm, S. J.]. s.d. Vocabulario da língua. Brazil S.d. Ms. da Bibl. Nacional de Lisboa. Cod. 3143.
  • MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. 1867. Diccionario de Verbos. Zeitwörter. Portuguez – Tupi austral – Deutsch. In: Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerika’s zumal Brasiliens, II: Zur Sprachenkunde Leipzig: Fleischer, 99-122.
  • Vocabulario na língua brasílica. Manuscrito português-tupi do século XVII 1621/1938. Coordenado e prefaciado por Plínio Ayrosa, São Paulo: Coleção Departamento de Cultura, vol. 20 2ª edição revista e confrontada com o Ms. fg. 3144 da Bibl. Nacional de Lisboa por Carlos Drumond, vol. 1, São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Boletim 137 (1952) , vol. 2, Boletim164 (1953).
  • DANIEL, João. 2004. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas 2 v. Rio de Janeiro: Contraponto.
  • MULLER, Jean-Claude. 2012. Die Identifizierung eines Sprachschatzes in der Trierer Stadtbibliothek – das jesuitische Wörterbuch Alt-Tupí/ Portugiesisch. in: Kurtrierisches Jahrbuch 52: 371-387.
  • PAPAVERO, Nelson & Antonio Porro (orgs.). 2013. Anselm Eckart, S. J., e o Estado do Grão-Pará e Maranhão Setecentista (1785) Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
  • BARROS, Cândida. 2003. Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVII-XVIII). In: Freire/Rosa (orgs.). p. 85-112.
  • ______. 2006. Alguns dicionários tupi setecentista da Amazônia. In: Cândida Barros e Antônio Lessa (organizadores.), Diccionario da língua geral do Brasil, Belém: Editora da UFPA, CD-ROM, 10 pp.
  • CRUZ, Aline da. 2005. O resgate da Língua Geral. Modos de representação das unidades lingüísticas da Língua Geral Brasílica e do Tupi Austral na obra de Martius (1794-1868) São Paulo: USP. Tese de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:cruz_2005.
    » http://www.etnolinguistica.org/tese:cruz_2005
  • ______. 2011. Fonologia e Gramática do Nheengatú. A língua geral falada pelos povos Baré, Warekena e Baniwa Utrecht: LOT. Tese de doutorado da Universidade Livre de Amsterdão.
  • DIETRICH, Wolf. 2010. Tiempo, aspecto y evidencialidad en guaraní. In: LIAMES 10: 67-83.
  • EDELWEISS, Frederico G. (1961). Estudos Tupis e Tupi-Guaranis Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora.
  • FREIRE, José Ribamar Bessa. 2003. Da língua geral ao português. Para uma história dos usos sociais das línguas na Amazônia Rio de Janeiro: UERJ, Instituto de Letras. Tese de doutorado. http://www.etnolinguistica.org/tese:bessa-freira_2003 (acesso 07/08/2014).
    » http://www.etnolinguistica.org/tese:bessa-freira_2003
  • FREIRE, José Ribamar Bessa & Maria Carlota Rosa (orgs.). 2003. Línguas Gerais. Política lingüística e catequese na América do Sul no Período Colonial, Rio de Janeiro: Ed. UERJ.
  • JENSEN, Cheryl. 1998. Comparative Tupi-Guarani Morphosyntax. In: DERBYSHIRE, Desmond C. and Geoffrey K. Pullum (eds.). Handbook of Amazonian Languages, vol. 4. Berlin – New York: Mouton de Gruyter, p. 487-616.
  • LEE, M. Kittiya. 2005. Conversing in Colony. The Brasilica and the Vulgar in Portuguese America Baltimore: John Hopkins University, Ph. D. dissertation. http://www.etnolinguistica.org/tese:lee_2005 (acesso 06/08/2014).
    » http://www.etnolinguistica.org/tese:lee_2005
  • LEITE, Fabiana Raquel. 2013. A Língua Geral Paulista e o “Vocabulário elementar da Língua Geral Brasílica” Campinas. UNICAMP. Diss. de mestrado.
  • MONSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2006. Observações sobre a fonologia da língua geral amazônica nos três últimos séculos. In: Cândida Barros e Antônio Lessa (organizadores.), Diccionario da língua geral do Brasil, Belém: Editora da UFPA, CD-ROM, 11 pp.
  • NAVARRO, Eduardo de Almeida. Eduardo de Almeida. A escravização dos índios num texto missionário em língua geral do século XVIII. In: Revista USP 78: 105-114.
  • NOBRE, Wagner Carvalho de Argolo. 2011. Introdução à história das Línguas Gerais no Brasil: processos distintos de formação no período colonial, Salvador: UFBA. Diss. de mestrado. http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011 (acesso 06/08/2014).
    » http://www.etnolinguistica.org/tese:nobre_2011
  • PAPAVERO, Nelson & Cândida Barros. 2013. O “Vocabulario da lingua Brazil” (Códice 3143 da Biblioteca Nacional de Portugal) e os Zusätze do Pe. Anselm Eckart, S. J. (1785): Obras do mesmo autor. In: Papavero/Porro (organizadores), Apêndice V, 335-351.
  • PEREIRA, Bento. 1697. Prosodia in vocabularium bilingue, latinum et lusitanum, digesta. Septima editio Eborae: Typographia Academiae.
  • RODRIGUES, Aryon. 1996. As línguas gerais sul-americanas. Papia 4,2: 6-18.
  • SCHMIDT-RIESE, Roland. 1999. Perspectivas diacrônicas brasileiras: o rastro das línguas gerais. In: Romanistisches Jahrbuch(Hamburgo) 49 [1998]: 307-335.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2014

Histórico

  • Recebido
    Jul 2014
  • Aceito
    Ago 2014
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br