Acessibilidade / Reportar erro

A Década Internacional das Línguas Indígenas e as línguas em uso pelos povos indígenas brasileiros: contribuições da Linguística Aplicada

The International Decade of Indigenous Languages and languages in use by Brazilian Indigenous people: Contributions from applied linguistics

RESUMO

A UNESCO proclamou o decênio 2022-2032 como Década Internacional das Línguas Indígenas com o intuito de refletir sobre as ameaças contra as línguas indígenas e, sobretudo, com o objetivo de propor ações em nível nacional e internacional, para a promoção e o fortalecimento dessas línguas. No Brasil, foram criados grupos de trabalho, que agregam indígenas e não indígenas, para a reflexão e discussão das ações a serem implementadas. Face aos muitos desafios que serão enfrentados na construção dessa Década, este artigo objetiva refletir sobre algumas contribuições da Linguística Aplicada para a pesquisa e o estudo das línguas faladas pelos povos indígenas. Conceitos eurocêntricos e essencialistas como ética, língua e bilinguismo são problematizados. O foco proposto nas línguas em uso permite contemplar as distintas e complexas realidades sociolinguísticas dos povos indígenas brasileiros. Além disso, a prerrogativa de os indígenas terem suas vozes ouvidas, através de suas próprias pesquisas realizadas mediante suas próprias epistemes e metodologias, é encorajada e enfatizada.

Palavras-chave:
Década Internacional das Línguas Indígenas; Linguística Aplicada; línguas em uso; povos indígenas.

ABSTRACT

UNESCO proclaimed the 2022-2032 decade as the International Decade of Indigenous Languages with the aim of reflecting on the threats against indigenous languages. Also, the Decade will propose actions at national and international levels, for the promotion and strengthening of these languages. In Brazil, working groups were created, which bring together indigenous and non-indigenous people, for the reflection and discussion of actions to be implemented. Considering the many challenges that will be faced in the construction of this Decade, this article aims to reflect on some contributions of Applied Linguistics to the research and study of the languages spoken by indigenous peoples. Eurocentric and essentialist concepts such as ethics, language and bilingualism are problematized. The proposed focus on the languages in use allows us to contemplate the distinct and complex sociolinguistic realities of Brazilian indigenous peoples. Furthermore, the prerogative of indigenous peoples to have their voices heard, through their own research, carried out through their own epistemes and methodologies, is encouraged and emphasized.

Keywords:
International Decade of Indigenous Languages; Applied Linguistics; Languages in use; Indigenous People.

1. Introdução

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) proclamou o decênio 2022-2032 como a Década das Línguas Indígenas (IDIL 2022-2032). O objetivo é chamar a atenção para o processo de perda das línguas indígenas e para a necessidade de se pensar em ações para proteger, revitalizar e promover estas línguas:

24. Proclama o período 2022-2032 como Década Internacional das Línguas Indígenas, para chamar atenção para a séria perda das línguas indígenas, para a necessidade urgente de preservar, revitalizar e promover as línguas indígenas e para a urgente necessidade de ações em nível nacional e internacional, e convida a UNESCO para servir como agência que liderará a Década Internacional, em colaboração com o Departamento de Economia e de Assuntos Sociais do Secretariado, junto com outras agências relevantes, dentro dos recursos disponíveis (UNESCO, 2020UNESCO (2020). Resolution adopted by the General Assembly on 18 December 2019, A/RES/74/135. https://undocs.org/en/A/RES/74/135.
https://undocs.org/en/A/RES/74/135...
, Resolução A/RES/74/135).

Uma resposta imediata à implementação da Resolução A/RES/74/135 da Organização das Nações Unidas é a elaboração de um Plano de Ação Global da década com o intuito de fortalecer a cooperação internacional e orquestrar ações conjuntas, preferencialmente coordenadas por indígenas, no sentido de que:

A IDIL 2022-2032 é também uma oportunidade única para a conscientização sobre a importância das línguas indígenas para o desenvolvimento sustentável, a construção da paz e a reconciliação em nossas sociedades, bem como para a mobilização das partes interessadas e de recursos em todo o mundo a fim de apoiar e promover as línguas indígenas em âmbito mundial (site UNESCO, 24 de novembro de 2020UNESCO (2020). A UNESCO lança consultas em todo o mundo sobre a elaboração do Plano de Ação Global da Década Internacional das Línguas Indígenas (IDIL 2022-2032). https://pt.UNESCO.org/news/faca-parte-do-planejamento-estrategico.
https://pt.UNESCO.org/news/faca-parte-do...
).

Para a concretização dessa proposta, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) pela UNESCO (doravante GT UNESCO), com representantes indígenas e não indígenas de várias localidades do mundo, para discutir ações para a década e dar outras providências. Há três representantes indígenas da América Latina no GT UNESCO e, dentre eles, a única representante indígena brasileira, a professora Dra. Altaci Correa Rubim, do povo Kokama. Esses três representantes formam o GT América Latina e Caribe. Sob o lema “Nada sobre nós sem nós”, esse GT latino-americano-caribenho tem se esforçado para garantir assento e voz nas discussões realizadas pela UNESCO. Uma das dificuldades reportadas pelos representantes indígenas é o fato de que as reuniões são realizadas em línguas majoritárias - a saber, inglês, francês e espanhol -, o que impede, de alguma maneira, uma participação mais ativa dos indígenas não falantes dessas línguas. Há, assim, uma demanda por inclusão das línguas indígenas nessas reuniões e/ou por tradução simultânea que atenda, especialmente, aos membros indígenas desse GT.

No Brasil, sob a coordenação da professora Altaci, foram criados três grupos de trabalho locais - GT Línguas Indígenas, GT Português Indígena e GT Línguas de Sinais Indígenas2 2 Os nomes dos GTs são provisórios. . Todos os GTs são coordenados por indígenas, com apoio de não indígenas. Esses GTs têm se pautado pela construção coletiva de propostas, primeiramente em relação à natureza, objetivos e organicidade desses grupos de trabalho e, posteriormente, em relação às propostas de ações a serem construídas no contexto brasileiro nos próximos dez anos. Coletividade, equilíbrio, respeito e preocupação com o bem viver de todos os seres humanos e não humanos, respeito à Mãe Terra têm sido os pressupostos fundantes dos debates até então realizados nos GTs.

A contribuição dos aliados da universidade tem sido a de assessorar, respeitando o protagonismo indígena, e fomentar a discussão de aspectos concernentes às línguas faladas pelos povos indígenas. É com o intuito de contribuir na construção dessas propostas que, neste texto, elenco algumas contribuições da Linguística Aplicada (doravante LA) para a compreensão das línguas em uso pelos povos indígenas brasileiros, enfocando, principalmente, mas não exclusivamente, a contribuição construída pela professora Dra. Marilda do Couto Cavalcanti, cujas práticas de pesquisa e reflexões teóricas sempre me inspiram, e a quem este dossiê merecidamente homenageia.

2. A Linguística Aplicada e a reflexão sobre as línguas em uso pelos povos indígenas

Começo esta seção com o lema que vem sendo utilizado pelo GT América Latina e Caribe, “Nada sobre nós sem nós”. A proposição desse lema originou-se no fato de que muitos não indígenas, que se dizem aliados, têm tentado se antepor aos indígenas, não só na construção das pautas para a década, mas também na interlocução com a UNESCO. Esse fato leva a refletir sobre os limites éticos da atuação dos não indígenas junto aos povos indígenas, em especial pesquisadores das universidades. Cavalcanti (2000Cavalcanti, M. C. (2000). Entre escolas da floresta e escolas da cidade: olhares sobre alguns contextos escolares indígenas de formação de professores. Trabalhos em Linguística Aplicada, 36, 101-119.) assevera que a ética norteia todas as decisões que o pesquisador toma no percurso de sua pesquisa:

Ela [a ética] precisa estar presente em todas as fases da pesquisa, desde a entrada em campo, que necessita autorização, passando pela solicitação de permissão para gravações (se houver) e para a observação, mesmo que seja em sua própria sala de aula, e chegando até a apresentação dos resultados, de forma a não desabonar a imagem da escola que abriu as portas para a pesquisa. O mesmo pode ser dito em relação à imagem dos participantes (professores e comunidade) (Cavalcanti, 2000Cavalcanti, M. C. (2000). Entre escolas da floresta e escolas da cidade: olhares sobre alguns contextos escolares indígenas de formação de professores. Trabalhos em Linguística Aplicada, 36, 101-119., p. 35-36).

A ética, alerta ainda Cavalcanti (2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. , p. 249-250), “um construto como qualquer outro, tende a ser etnocêntrica”, ou seja, determinado comportamento pode ser ético para não indígenas, mas pode não ser para indígenas. Há, assim, a necessidade de que pesquisadores não indígenas se coloquem em posição de escuta respeitosa, o que demanda atenção às proposições indígenas e, no caso dos GTs assinalados acima, a necessidade de respeitar o protagonismo indígena. Cavalcanti (2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. , p. 250) indica também que os limites éticos precisam ser co-construídos “inter ou multiculturalmente”.

Dessa forma, não existe mais espaço para investigadores e assessores que tratam povos indígenas como pessoas tuteladas ou como objetos de investigação. O caminho a ser delineado deve ser o do diálogo e da construção conjunta de reflexões e ações. E, no que se refere à pesquisa com contextos de minorias ou maiorias tratadas como minorias (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-417. ), dentre os quais estão os povos indígenas, é imprescindível que o pesquisador se comprometa com a causa dessas pessoas. No caso dos povos indígenas, sempre é bom lembrar que a luta pela terra tem sido o principal desafio. É a terra demarcada que garante sobrevivência, saúde, educação e, por conseguinte, vitalidade das línguas faladas pelos indígenas. Como bem diz Meliá (1997Melià, B. (1997). Bilinguismo e escrita, In W. D’Angelis & J. Veiga (Eds.), Leitura e escrita em escolas indígenas: Encontro de educação indígena no 10.º COLE [Congresso de Leitura no Brasil] - 1995, (pp. 89-104). ALB - Associação de Leitura do Brasil / Mercado de Letras., p. 104), “uma língua indígena é falada quando a sociedade indígena tem suas terras e seu modo de viver, sua economia e sua organização política”. Logo, é pré-requisito ao pesquisador ou a quem se pretende aliado dos povos indígenas posicionar-se a favor dessa luta.

Dito isto, entender como a LA constitui-se como área de conhecimento possibilitará a compreensão de como ela pode contribuir para a reflexão sobre as línguas em uso pelos povos indígenas e para a proposição de ações para a Década Internacional das Línguas Indígenas.

Se inicialmente a LA era vista como “tentativa de aplicação da Linguística (Teórica) à prática de ensino de línguas” (Cavalcanti, 1986Cavalcanti, M. C. (1986). A propósito de Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística Aplicada, 7, 5-12. , p. 1), a consolidação da área nos últimos trinta anos reforçou seu caráter inter/transdisciplinar (Cavalcanti 1986Cavalcanti, M. C. (1986). A propósito de Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística Aplicada, 7, 5-12. , 2004Cavalcanti, M. C. (2004). Applied Linguistics, Brazilian Perspectives. AILLA Review, 17, 23-30., 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. ; Moita Lopes, 1996Moita Lopes, L. P. (1996). Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Mercado de Letras., 2006Moita Lopes, L. P. (2006) Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística indisciplinar (pp. 13-44). Parábola Editorial. ) à medida que se solidificou a visão de LA como “identificação, análise de questões de uso da linguagem, dentro ou fora do contexto escolar e a sugestão de encaminhamentos para estas questões” (Cavalcanti, 1986Cavalcanti, M. C. (1986). A propósito de Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística Aplicada, 7, 5-12. , p. 1).

Essa fase marcou o estreitamento do diálogo da LA com outras áreas do conhecimento, tais como Antropologia, Sociologia, Psicologia Social, Estudos Culturais, dentre outras, a fim de que aspectos sociais, culturais, dentre outros, pudessem ser contemplados na pesquisa que envolve o uso das línguas. Tal aproximação possibilita à LA a construção de aportes teórico-metodológicos próprios, interdisciplinares. A interdisciplinaridade, de acordo com Signorini & Cavalcanti (1998Signorini, I., & Cavalcanti, M. C. (1998). Linguística aplicada e transdisciplinaridade. Mercado de Letras. , p. 13), permite questionar e fugir de visões pré-estabelecidas, possibilitando ver através do óbvio e ver o que está invisibilizado (Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. ). Assim, a LA se consolida como ciência inter/transdisciplinar e, enquanto tal, contribui para o questionamento de problemas que envolvem a linguagem, não se restringindo ao contexto de sala de aula. Cavalcanti (1986Cavalcanti, M. C. (1986). A propósito de Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística Aplicada, 7, 5-12. , p. 6) explica os passos da investigação na LA, dizendo:

O percurso de pesquisa em LA tem seu início na detecção de uma questão específica de uso da linguagem, passa para a busca de subsídios teóricos em áreas de investigação relevantes às questões em estudo, continua a análise da questão na prática, e completa o ciclo com sugestões de encaminhamento.

Há o entendimento de que tanto os resultados das pesquisas como as sugestões de encaminhamento não são fixos, ao contrário, são historicamente situados e passíveis de mudança ao longo do tempo.

Essa visão, entretanto, não é unânime dentro da LA. Há, conforme aponta Moita Lopes (2006Moita Lopes, L. P. (2006) Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística indisciplinar (pp. 13-44). Parábola Editorial. , p. 25),

(...) a LA tradicional (normal?), que ainda é muito positivista (embora não o seja, em geral, na formulação da metodologia de investigação no Brasil!) e que ainda entende a LA como área exclusivamente centrada em práticas de ensino/aprendizagem de línguas (sobretudo, estrangeiras), tanto no modo presencial ou à distância, com forte dependência da linguística (ignorando inclusive intravisões sobre linguagens provenientes de outros campos). Tal perspectiva tem situado as práticas a serem investigadas em um vácuo social, com base em um sujeito homogêneo, imune à história e às práticas discursivas em que atua e que o constituem.

Em contraponto a essa visão tradicional da área, em virtude da inter/transdisciplinaridade abordada acima e do fato de a área estar lidando com uma ampla e complexa variedade de contextos de usos da linguagem, a LA tem sido apontada como uma ciência INdisciplinar (Moita Lopes, 2006Moita Lopes, L. P. (2006) Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística indisciplinar (pp. 13-44). Parábola Editorial. ; Fabrício, 2006Fabrício, B. F. (2006). Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In L. P. Moita Lopes (Ed.) Por uma linguística indisciplinar (pp. 45-65). Parábola Editorial.; Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. , dentre outros). Algumas das principais caraterísticas da LA Indisciplinar são: 1. não está encerrada a nenhuma forma tradicional de organização do conhecimento e nem se advoga a prerrogativa da verdade absoluta, única e imutável; 2. procura criar inteligibilidades para os complexos problemas que envolvem o uso da linguagem ou a linguagem em uso; 3. assume o viés da transdisciplinaridade o que leva à formulação de um LA mestiça ou nômade que critica, por sua vez, a modernidade e contribui para a construção de uma agenda anti-hegemônica no mundo globalizado; 4. compreende o sujeito social como heterogêneo, fragmentado, fluido, mutável, situado histórica e socialmente; 5. contempla questões de poder e responsabilidade ética no fazer pesquisa; 6. busca trazer à tona a voz dos sujeitos envolvidos na pesquisa; 7. coloca-se como um lugar de renarrativização dos sujeitos e redescrição da vida social.

As características da LA indicadas acima são adequadas ao trabalho com povos indígenas, por um lado, para que não sejam considerados apenas objeto de pesquisa, conforme destacado, e, por outro, para que as línguas faladas por eles sejam consideradas na sua complexidade.

Sendo um cenário sociolinguisticamente complexo (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-417. ), o contexto indígena brasileiro tem pelo menos três grandes cenários em que há: 1. falantes de uma ou mais línguas ancestrais como primeira língua, com domínios variados do português como segunda língua; 2. falantes de língua portuguesa como primeira língua, em busca de reavivamento de suas línguas ancestrais; 3. falantes de línguas de sinais indígenas, com domínios variados das línguas ancestrais e da língua portuguesa. Esses cenários bi/multilíngues são também bi/multidialetais (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-417. ), uma vez que para cada povo há uma ou mais variedades indígenas do português, em geral estigmatizadas. Comum a todos os cenários, há o bilinguismo compulsório em língua portuguesa, por força da violência do contato com os não indígenas. Muitos desses indígenas vivem em suas aldeias, mas boa parte ainda não tem seu território demarcado, estando, assim, expostos continuamente à violência do entorno e do próprio Estado. Há também aqueles que vivem nas cidades, por motivos diversos, mas, em grande parte, por não terem suas terras demarcadas e verem suas possibilidades de sobrevivência ameaçadas. Friso a questão da demarcação da terra, pois esta tem sido a maior reivindicação dos povos indígenas.

O foco no uso das línguas, sejam elas as ancestrais ou a majoritária, permite compreender situadamente como esses povos constroem significados através da linguagem, seja na construção de suas identidades étnicas3 3 Por identidade étnica, entende-se o identificar a si em contraposição ao outro, através da interação, na e pela língua(gem). A construção da identidade é da ordem do discurso e, sendo assim, ocorre através de qualquer língua (cf. Hall, 1997a, 1997b, 1992). Logo, o indígena pode construir sua identidade étnica através de suas línguas ancestrais ou através de línguas majoritárias. (Maher, 1996Maher, T. J. M. (1996). Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. [Tese de doutorado em Linguística]. Universidade Estadual de Campinas. ) e na transmissão de seus conhecimentos e saberes tradicionais, seja na lida com os não indígenas pelos seus direitos, sobretudo. Esse posicionamento é essencial para se pensar as ações para a Década Internacional das Línguas Indígenas, haja vista que permite questionar qual é o significado do termo ‘línguas indígenas’ na proposta da UNESCO e de que maneira isso se coaduna ou não com os interesses dos povos indígenas. Também possibilita a compreensão de que uma língua indígena é indígena porque um falante indígena a utiliza e não o contrário (Maher, 1996Maher, T. J. M. (1996). Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. [Tese de doutorado em Linguística]. Universidade Estadual de Campinas. ). Por fim, ao se considerar ‘línguas em uso’ escapa-se do ambiente escolar e abre-se possibilidade para que outros espaços de utilização dessas línguas, tais como rituais, atividades coletivas, entre outros, sejam considerados. Isso enseja a participação e valorização dos sábios e mestres indígenas, que nem sempre dominam a escrita. É oportunidade também de valorização e promoção da oralidade nas línguas em uso pelos povos indígenas.

Há a necessidade de se questionar conceitos já muito cristalizados como o de língua e seus derivados, por exemplo. César & Cavalcanti (2007César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras. ) enfatizam que uma das dificuldades de se pensar as especificidades expostas acima tem origem na rigidez desses conceitos e propõem uma discussão e releitura crítica dele, considerando as necessidades e dilemas enfrentados na pesquisa e no trabalho pedagógico com língua(gem).

Além da imprecisão do termo língua, uma “complexidade de usos linguísticos” tem sido reduzida “a formulações neutralizadoras das diferenças, sob a denominação de “língua” (César & Cavalcanti, 2007César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras. , p. 47). O conceito de língua é assim tomado “como uma totalidade reificada e reificadora de fatos da linguagem, quer se trate de língua histórica, quer seja língua (sem adjetivos) como construto teórico, sistema subjacente, que responde pela “unidade” nos diversos usos linguísticos” (César & Cavalcanti, 2007César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras. , p. 47).

Algumas implicações dessa forma de conceituar ‘língua’ são: 1. Enfatizar o mito do monolinguismo em língua portuguesa que contribui para subalternizar as línguas de povos originários; 2. Considerar como línguas indígenas somente as que menos sofreram o impacto da violência do contato com o não indígena; 3. Associar língua indígena a identidade indígena, prejudicando povos indígenas que tiveram suas línguas ancestrais silenciadas; 4. Invisibilizar as ações realizadas pelos próprios povos indígenas para o reavivamento de suas línguas ancestrais. 5. Desconsiderar a ação criativa dos povos indígenas em relação ao uso da língua portuguesa que culminam nas variedades indígenas do português (Maher, 1996Maher, T. J. M. (1996). Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. [Tese de doutorado em Linguística]. Universidade Estadual de Campinas. ).

Com o intuito de considerar essa intrincada gama de “variáveis, intersecções, conflitos, contradições, socialmente constituídos ao longo da trajetória de qualquer falante”, César & Cavalcanti (2007César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras. , p. 61) propõem uma nova compreensão para o conceito de língua, ancorada na metáfora do caleidoscópio:

O caleidoscópio, sendo feito por diversos pedaços, cores, formas e combinações, é um jogo de (im)possibilidades fortuitas e, ao mesmo tempo, acondicionadas pelo contexto e pelos elementos, um jogo que se explica sempre fugazmente no exato momento em que o objeto é colocado na mira do olho e a mão o movimenta; depois, um instante depois, já é outra coisa. No caleidoscópio formam-se desenhos complexos a partir de movimentos, de combinações. Parece uma imagem feliz para descolar as concepções de língua das concepções de nação e território estabilizadas politicamente e de níveis hierárquicos, num caso e num outro, totalidades que se mantêm como “grande narrativa”, justamente por conta de um arcabouço teórico anacrônico.

Essa noção caleidoscópica de língua permite reconhecer as várias facetas da múltipla e complexa realidade sociolinguística na qual estão inseridos os povos indígenas. Conceitualmente, o termo ‘língua’ passa a ser compreendido como ‘conjuntos de híbridos’ que podem combinar entre si. Em relação ao aspecto pedagógico, esta noção permite superar dicotomias língua/variedade, língua/norma, língua/dialeto, bem como tratar as variedades dialetais como multilinguismo. Para a Década Internacional das Línguas Indígenas, essa é uma reflexão central, uma vez que a noção de ‘línguas indígenas’ da proposta da UNESCO parece estar atrelada a pressupostos eurocêntricos e essencializados do conceito língua. Conforme exposto anteriormente, essa compreensão essencialista pode trazer prejuízos aos povos indígenas, em especial àqueles que tiveram suas línguas ancestrais silenciadas e que falam o português como primeira língua.

O bilinguismo, outra noção derivada do conceito língua, precisa também de problematização. Segundo Cavalcanti (1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-417. ), a discussão sobre essa temática com foco na proficiência do indivíduo não é a melhor para se lidar com os contextos anteriormente mencionados. No ambiente escolar, enfatizar o ensino de línguas tendo como objetivo uma língua-alvo ideal significa invisibilizar e desconsiderar as línguas faladas pelos estudantes. Além de provocar, em muitos casos, um baixo desempenho escolar, essa postura silencia não só as línguas minoritárias, mas também as identidades que podem ser (re)construídas a partir do uso dessas línguas.

Dessa forma, o bilinguismo deve ser compreendido a partir do seu uso (Maher, 2007Maher, T. J. M. (2007). Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue e intercultural. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação, (pp. 67-94). Mercado de Letras.), não significando, neste caso, o domínio pleno e ideal de duas ou mais línguas, mas, ao contrário, o uso que o falante faz dessas línguas. Este uso varia conforme a situação interacional (interlocutores, papéis sociais que ocupam, o que falam, para quem e por quê). O enfoque no uso permite enxergar o papel e a função de cada uma das línguas não só para o indivíduo, mas também para a comunidade na qual este está inserido.

Essa reflexão permite ainda quebrar as representações de língua e falante ideal e, por fim, desestabilizar o preconceito contra as variedades linguísticas bilíngues, como o português indígena, por exemplo.

Para Cavalcanti (2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial. , p. 250):

[…] para olhar para o contexto indígena (e outros contextos de minorias e também de maiorias tratadas como minorias), é necessário reler teorias e arcabouços teóricos criados e estabelecidos dentro de contextos outros onde sequer se imagina o que sejam essas minorias. Em outras palavras, é preciso um olhar crítico para teorias desenvolvidas no norte do Norte, como diria Sousa Santos (2004Sousa Santos, B. (2004). Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. Conferência de abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de setembro 2004. ). Em longo prazo, é necessário ir além até do que se faz em etnografia, ou seja, levar em conta o ponto de vista dos atores (participantes) da pesquisa. É preciso que as vozes das minorias sejam ouvidas, é preciso que as pesquisas sejam feitas por eles, que a voz venha deles, que a pesquisa seja feita “de dentro” como propõe a pesquisa maori Linda Tuhiwai Smith (1999Smith, L. T. (1999) Decolonizing Methodologies: Research and indigenous peoples. Zed Books, University of Otago Press.).

Se, de um lado, a LA tem contribuído para problematizar a teoria e propor novas inteligibilidades para as demandas que vêm das minorias, de outro, clama, como Cavalcanti aponta acima, para que esses atores tenham voz e sejam ouvidos, o que inclui, no caso dos povos indígenas, respeitar seus métodos de pesquisa e epistemologias. Este é o desafio colocado pelos povos indígenas à Década Internacional das Línguas Indígenas: o protagonismo indígena.

3. Considerações Finais

Neste artigo, procurei elencar, não exaustivamente, algumas contribuições que a Linguística Aplicada vem trazendo à discussão sobre as línguas em uso pelos povos indígenas, enfocando, sobretudo, o trabalho da professora Marilda do Couto Cavalcanti, com o intuito de subsidiar as reflexões e ações a serem realizadas na Década Internacional das Línguas Indígenas. O primeiro deles é a ética, construto também etnocêntrico, cujos sentidos devem ser co-construídos com os povos indígenas. A pesquisa no contexto indígena não só deve considerar o ponto de vista indígena, mas também procurar garantir isonomia e horizontalidade nas parcerias entre indígenas e não indígenas. Em segundo lugar, a problematização de conceitos eurocêntricos e essencializados como língua e bilinguismo torna-se necessária se o que se pretende é que todos os povos indígenas sejam favorecidos pelas ações a serem propostas pela UNESCO. Há uma enorme diversidade e complexidade de contextos sociolinguísticos entre os povos indígenas e muitos deles podem ser excluídos da Década Internacional das Línguas Indígenas, caso se priorize uma perspectiva eurocêntrica de língua e bilinguismo. Por fim, ouvir a voz dos povos indígenas implica garantir condições para que os próprios indígenas realizem suas pesquisas, com metodologias e epistemologias próprias. Implica, especialmente, que os acadêmicos não indígenas reconheçam e valorizem essas pesquisas e conhecimentos produzidos.

Referências

  • Cavalcanti, M. C. (1986). A propósito de Linguística Aplicada. Trabalhos em Linguística Aplicada, 7, 5-12.
  • Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15, 385-417.
  • Cavalcanti, M. C. (2000). Entre escolas da floresta e escolas da cidade: olhares sobre alguns contextos escolares indígenas de formação de professores. Trabalhos em Linguística Aplicada, 36, 101-119.
  • Cavalcanti, M. C. (2004). Applied Linguistics, Brazilian Perspectives. AILLA Review, 17, 23-30.
  • Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 232-252), Parábola Editorial.
  • César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66), Mercado de Letras.
  • Fabrício, B. F. (2006). Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In L. P. Moita Lopes (Ed.) Por uma linguística indisciplinar (pp. 45-65). Parábola Editorial.
  • Hall, S. (1997a). The work of representation. In S. Hall (Ed.) Representation: Cultural representations and signifying practices (pp. 13-74). Sage Publications.
  • Hall, S. (1997b). The spectacle of the ‘other’. In S. Hall (Ed.), Representation: Cultural representations and signifying practices (pp. 223-290). Sage Publications.
  • Hall, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora.
  • Maher, T. J. M. (1996). Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. [Tese de doutorado em Linguística]. Universidade Estadual de Campinas.
  • Maher, T. J. M. (2007). Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue e intercultural. In M. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Eds.), Transculturalidade, linguagem e educação, (pp. 67-94). Mercado de Letras.
  • Melià, B. (1997). Bilinguismo e escrita, In W. D’Angelis & J. Veiga (Eds.), Leitura e escrita em escolas indígenas: Encontro de educação indígena no 10.º COLE [Congresso de Leitura no Brasil] - 1995, (pp. 89-104). ALB - Associação de Leitura do Brasil / Mercado de Letras.
  • Moita Lopes, L. P. (2006) Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita Lopes (Ed.), Por uma linguística indisciplinar (pp. 13-44). Parábola Editorial.
  • Moita Lopes, L. P. (1996). Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Mercado de Letras.
  • Signorini, I., & Cavalcanti, M. C. (1998). Linguística aplicada e transdisciplinaridade. Mercado de Letras.
  • Smith, L. T. (1999) Decolonizing Methodologies: Research and indigenous peoples. Zed Books, University of Otago Press.
  • Sousa Santos, B. (2004). Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. Conferência de abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de setembro 2004.
  • UNESCO (2020). Resolution adopted by the General Assembly on 18 December 2019, A/RES/74/135. https://undocs.org/en/A/RES/74/135
    » https://undocs.org/en/A/RES/74/135
  • UNESCO (2020). A UNESCO lança consultas em todo o mundo sobre a elaboração do Plano de Ação Global da Década Internacional das Línguas Indígenas (IDIL 2022-2032). https://pt.UNESCO.org/news/faca-parte-do-planejamento-estrategico
    » https://pt.UNESCO.org/news/faca-parte-do-planejamento-estrategico
  • 2
    Os nomes dos GTs são provisórios.
  • 3
    Por identidade étnica, entende-se o identificar a si em contraposição ao outro, através da interação, na e pela língua(gem). A construção da identidade é da ordem do discurso e, sendo assim, ocorre através de qualquer língua (cf. Hall, 1997aHall, S. (1997a). The work of representation. In S. Hall (Ed.) Representation: Cultural representations and signifying practices (pp. 13-74). Sage Publications., 1997bHall, S. (1997b). The spectacle of the ‘other’. In S. Hall (Ed.), Representation: Cultural representations and signifying practices (pp. 223-290). Sage Publications., 1992Hall, S. (1992). A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora.). Logo, o indígena pode construir sua identidade étnica através de suas línguas ancestrais ou através de línguas majoritárias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2022
  • Aceito
    21 Maio 2022
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br