Acessibilidade / Reportar erro

Análise linguística do Português Brasileiro por meio de quatro contínuos: Encontrando o trabalho de Marilda Cavalcanti

Linguistic analysis of Brazilian Portuguese through four continua: Meeting the work of Marilda Cavalcanti

RESUMO

Meu trabalho encontra identidade com o trabalho de Marilda Cavalcanti (2018Cavalcanti, M. do C., & Maher, T. J. M. (Eds.). (2018). Multilingual Brazil: Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. Routledge.) quando esse se volta para “os modos como as ideologias linguísticas nacionais e políticas linguísticas dão forma às trajetórias sociolinguísticas do povo brasileiro” (Maher & Cavalcanti, 2018, p. 2). Em especial, vou focalizar essas trajetórias, discutindo e revisando um modelo que desenvolvi para análise linguística por meio de quatro continua, a saber: a) continuum de urbanização, que se estende desde os vernáculos rurais isolados até a variedade urbana de prestígio; b) continuum de letramento, que se ocupa de eventos de oralidade em uma extremidade e eventos de letramento na outra; c) continuum de monitoração estilística, que discute o alinhamento ou footing com o interlocutor e d) continuum de acesso à Internet, que se relaciona ao grau de alfabetização digital e aos recursos de que os falantes dispõem para o uso desse equipamento (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 49). Para ilustrá-los darei voz a falantes do Português brasileiro não alfabetizados ou semialfabetizados.

Palavras-chave:
Povo brasileiro; trajetórias sociolinguísticas; metodologia de contínuos; alfabetização.

ABSTRACT

My academic work meets with the work of Marilda Cavancanti (2018Cavalcanti, M. do C., & Maher, T. J. M. (Eds.). (2018). Multilingual Brazil: Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. Routledge.) when she deals with “rich insights into contemporary linguistic diversities in Brazil, into situated uses of different constellations of language resources, into local identity politics, into the histories of different linguistic minority groups and into ongoing changes specific to each group, e.g. rapidly developing transnational connectedness /…/ it builds a broad picture of the ways in which national language ideologies and language policies, and now globalized ideologies, have shaped the sociolinguistic trajectories of different groups” (Maher & Cavalcanti, 2018, p. 2). In particular, I will focus these trajectories discussing and revising a model that I developed of four continua: a) of urbanization, that spreads from the isolated rural vernaculars up to the urban variety of prestige; b) of literacy, that goes from oral events to events of literacy; c) of stylistic monitoring, which discusses footing with the hearer and d) of access to the Internet, related to digital literacy and to resources and gadgets that users own (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 49). Illiterate or semiliterate voices echo throughout the work.

Keywords:
Brazilian people; Sociolinguistic trajectories; Methodology of continua; Literacy.

1. Introdução

Escrevo este texto para homenagear minha colega e amiga Marilda do Couto Cavalcanti. Fomos colegas na Universidade de Lancaster na década de 1980, onde ambas fizemos doutorado. Se tiver que escolher uma palavra para referir-me à amiga, essa palavra é pioneirismo. Ela estava entre os pesquisadores que deram corpo à Linguística Aplicada no Brasil e, depois de muitos anos como uma expert em leitura, com reconhecimento internacional, passou a dedicar-se também ao estudo etnográfico e sociolinguístico de línguas e identidades em áreas bilíngues ou multilíngues no norte do Brasil.

Juntas organizamos o livro Transculturalidade, Linguagem e EducaçãoCavalcanti, M. do C., & Bortoni-Ricardo, S. M. (Eds.). (2007). Transculturalidade, linguagem e educação. Mercado de Letras., que a Mercado de Letras publicou em 2007 e do qual prepara uma nova reimpressão.

2. Pensamento Iluminista: sociedades urbanas e rurais

Nos países em desenvolvimento, principalmente no Hemisfério Sul, é difícil de se estabelecer uma fronteira rígida entre sociedades urbanas e sociedades rurais. O que há, de fato, é um contínuo em que as sociedades foram evoluindo do isolamento rural até a formação de grandes metrópoles.

Na Europa, ao contrário, o pensamento Iluminista desencadeou diversas revoluções que contribuíram para a formação das cidades, especialmente após a Revolução Francesa no século XVIII (1789 - 1799), quando várias monarquias, diante do que acontecera na França, constituíram forças de contrarrevolução.

A história registra, entre os principais pensadores iluministas, John Locke [1632-1704]; Montesquieu [1689-1755]; Voltaire [1694-1778]; David Hume [1711-1776]; Denis Diderot [1713-1784] e Adam Smith [1723-1790], todos eles de origem inglesa ou francesa, além de Immanuel Kant [1724-1804] que era da Prússia2 2 A Prússia foi o principal estado-membro do Império alemão entre os séculos XVIII e XX. e Jean-Jacques Rousseau [1712-1778] que era da Suíça.

3. Urbanização no Brasil

No Brasil em 1890, um ano depois da Proclamação da República e dois anos depois da abolição da escravatura, o percentual da população urbana era de 6,8%. Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, essa população já havia crescido para 31,29%. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015 mostrou que a população rural do Brasil caiu entre 1950 e 2015, de 63,4% para 15,28% (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. inter alia).

Além disso, o Brasil deixou de ser uma sociedade predominantemente rural para se tornar uma sociedade predominantemente urbana, sobretudo a partir dos anos 1960. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o decréscimo da população rural brasileira é visível a cada contagem de Censo Populacional (Spanevello, Moreira & Boscardin, 2019Spanevello, R. M., Moreira, S. L., & Boscardin, M. (2019). Dinâmica demográfica da população rural: o caso do COREDE alto Jacuí, Rio Grande do Sul. Nucleus, 16(1), 69-84.).

No final do século XX, já havia 81,37% da população vivendo em núcleos urbanos. É bem verdade que o conceito de “urbano” no Brasil tem de ser problematizado porque, segundo o Professor da USP, José Eli da Veiga, um decreto do Estado Novo, de 1938, atribuía a toda sede de município ou distrito o status de área urbana. Em rigor a maioria desses polos de natureza política não preenche as exigências da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que qualificam uma área urbana, por apresentar uma densidade demográfica de 150 habitantes/km2 e uma população nunca menor que 50 mil habitantes. Aplicando-se esses critérios, os 5.707 municípios brasileiros decresceriam para 411 (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 44).

Pode-se perceber melhor a transição gradativa entre o Brasil tipicamente rural e o Brasil moderno das grandes metrópoles se considerarmos um contínuo de urbanização e nele situarmos também as comunidades rurbanas. Cabe aqui uma pequena explicação sobre o termo “rurbano”. Neste trabalho e em outros, desde a década de 1980, uso o termo “rurbano” para identificar populações que vivem em áreas consideradas urbanas, mas preservam traços rurais pré-migratórios, inclusive na linguagem.

Para entender esse contínuo de urbanização, temos de levar em conta muitas variáveis sociodemográficas, tais como saneamento básico, água tratada, construções de alvenaria, arruamento, meios de transporte e de comunicação.

Um livro de ficção que nos ajuda a perceber esse processo é Torto Arado, de Itamar Vieira Jr (2019Vieira Jr., I. (2019). Torto Arado. Todavia.), em que o autor explica que as casas de pau-a-pique eram permitidas nas fazendas latifundiárias porque se desfazem com facilidade, enquanto as construções de alvenaria são mais duradouras.

O ajustamento das populações que chegaram ao centro e à periferia das cidades nesses espaços constituíram redes sociais isoladas ou redes sociais integradas. Entre os migrantes que se refugiaram em redes urbanas isoladas, podemos perceber uma maior resistência às mudanças sociais, inclusive às de natureza linguística. Eles convivem com um número mais restrito de pessoas, a que se ligam por vínculos familiares e pré-migratórios, o que resulta em uma baixa densidade de papéis sociais. Já os migrantes que, no seu novo lócus de moradia, filiaram-se a redes sociais mais integradas ao ethos urbano ficaram expostos às influências externas, identificando com mais facilidade grupos de maior prestígio que para eles se tornavam grupos de referência (Bortoni-Ricardo 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 46 seguintes).

As redes sociais isoladas favorecem a emergência da etnicidade e a distinção entre grupos, com consequente resistência a valores dominantes. As redes sociais integradas, por outro lado, predispõem os falantes a uma orientação para status e uma adesão à língua de prestígio. Em sua fala podem-se encontrar muitas hipercorreções e uma intensa alternância de códigos (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 70).

Enquanto no primeiro caso vemos processos de focalização dialetal, ou seja, da sua variedade rural de origem, no segundo temos processo de difusão dialetal (cf. Bortoni-Ricardo, 1985Bortoni-Ricardo, S. M. (1985). The urbanization of rural dialect speakers: A sociolinguistic study in Brazil. Cambridge University Press.).

Para que se processe a referida difusão dialetal, é preciso que o indivíduo possa identificar o grupo de referência e tenha acesso às regras sociolinguísticas desse grupo. Não se perca de vista que qualquer movimentação ao longo do contínuo de urbanização implica motivações conflitantes: por um lado a habilidade de modificar seu comportamento e, por outro, sua fidelidade às raízes rurais ou rurbanas.

Concluindo a discussão sobre a posição dos falantes em um contínuo de urbanização, é preciso deixar consignado que esses resultados de natureza sociodemográfica e geográfica têm de ser complementados com estudos sobre grau de escolaridade dos indivíduos, categoria de seu trabalho (predominantemente manual ou predominantemente intelectual), mobilidade espacial (doméstica ou internacional), participação em eventos urbanos, exposição à mídia e informação política (cf.: Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 48). É preciso considerar também a formação do padrão linguístico, mais conhecido como norma padrão da língua. O Português que chegou ao Brasil, no final do século XV, já tinha passado pelo início de um processo de codificação linguística, que pode ser assim resumido: 1. definição do padrão correto de escrita ou ortografia; 2. definição do padrão correto de pronúncia ou ortoepia e 3. elaboração de gramáticas e dicionários. Com relação à ortoepia, há que se observar que a pronúncia que foi adotada no Português da Metrópole, a partir do século XVIII, não se estendeu até a Colônia e mesmo, no Brasil, não se conteve em uma única variedade de pronúncia. O que temos são diversas pronúncias padrão em diversos polos de influência urbana (cf. Rodrigues, 1986Rodrigues, A. (1986). Línguas brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. Loyola. ).

A análise de Walt Wolfram e Ralph Fasold (1974Wolfram, W., & Fasold, R. W. (1974). The Study of Social Dialects in American English. Prentice-Hall., p. 79) quanto às variáveis linguísticas que funcionam como diagnóstico social, distinguindo termos de estratificação abrupta (sharp) e gradual (gradient) também é de serventia na expansão do modelo do contínuo de urbanização. Há itens lexicais que marcam as variedades não-padrão que são abruptos ou descontínuos, porque aparecem no contínuo de urbanização somente até determinado ponto. Há outros que são graduais, porque presentes em todas as variedades vigentes na língua. Por exemplo, o uso da primeira pessoa verbal “nós” com a forma de terceira pessoa do singular (nós chegou*, nós vai*, etc.) é um traço descontínuo. Já a perda dos plurais redundantes no sintagma nominal é um traço gradual (hoje é dia de todos os santo*). Mas essa distinção nem sempre é facilmente operacionalizada.

Além do contínuo de urbanização que delineamos com linhas gerais, meu trabalho sociolinguístico tem considerado também um contínuo de letramento cujas extremidades vão de eventos claramente orais, como a fala do dia a dia entre mãe e filhos e eventos claramente letrados. Mas as fronteiras entre eles são fluidas e há muita sobreposição. Um evento de oralidade pode incluir mini eventos de letramento ou vice e versa. Um professor em sala de aula pode seguir um roteiro escrito na explicação de um tema, mas pode interromper seu discurso para chamar a atenção de um aluno que não está atento. Nesse caso alterna entre a variedade apoiada na escrita de seu roteiro e a variedade coloquial usada na fala espontânea com os alunos.

Um terceiro contínuo, que se sobrepõe aos outros dois já apresentados, é o contínuo de monitoração estilística. Enquanto os contínuos de urbanização e de letramento respondem às perguntas: “quem sou eu para lhe falar assim?”; “quem é você para eu lhe falar assim?” o terceiro contínuo, de monitoração estilística, refere-se àquilo que o falante está fazendo: “o que eu estou fazendo agora quando falo assim com você?”. Enquanto os primeiros são estruturais, esse terceiro é dinâmico.

De modo geral, os fatores que nos levam a monitorar o estilo são: o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa. Estilos mais informais ou mais formais podem ser definidos em função do grau de atenção que o falante presta ao seu ato de fala. Quanto maior essa atenção, mais formal o seu estilo (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 51).

Cabe referir a esta altura o conceito de alinhamento ou footing que assumimos quanto ao tópico e ao próprio interlocutor (Goffman, 1981Goffman, E. (1981). Forms of Talk. University of Pennsylvania Press. ). Geralmente tornamos expresso esse alinhamento ao dizer: “vim aqui para lhe desejar muita saúde”; “prestem atenção porque esse assunto é muito difícil” etc. (cf. Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. ).

4. Teoria da Acomodação

Quando tratamos da língua como chave de identidade pessoal, convém falarmos da teoria da acomodação, desenvolvida no campo da Psicologia Social (Giles & Powesland 1975Giles, H., & Powesland, P. F. (1975). Speech style and perceived status: some conceptual distinctions. In H. Giles & P. Powesland (Eds.), Speech style and social evaluation (pp. 9-22). Academic Press. ; Giles e Smith, 1979Giles, H., & Smith, P. M. (1979). Accommodation Theory: optimal levels of convergence. In H. Giles & R. St. Clair (Eds.), Language and social psychology (pp. 45-65). Basil Blackwell. ). Esse conceito é muito produtivo para nos revelar como a interação entre as pessoas se processa: as pessoas podem querer acomodar-se aos seus interlocutores, demonstrando assim uma posição favorável a eles, ou seja, partilhando com eles valores e atitudes. Mas elas também podem preferir destacar suas diferenças, ainda em relação aos interlocutores. De fato, uma pessoa ajusta a sua fala à forma que acredita ser bem recebida pelos seus ouvintes ou, ao contrário, a ajusta para deixar claro aos interlocutores que: “eu sou eu, vocês são vocês”.

É no interior dos processos de acomodação que os falantes revelam suas emoções e sentimentos que são percebidos por quem os ouve. Podemos entender melhor a acomodação com o auxílio de três conceitos básicos: convergência, divergência e complementaridade (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 76). Os esforços de um falante para que sua fala seja bem recebida e mereça crédito são chamados de “convergência”. Por exemplo o baby-talk, que os adultos usam para se comunicar com bebês que ainda não são capazes de dialogar, ou a fala de uma mãe que quer corrigir o filho, mas sem magoá-lo.

O tipo de convergência mais comum é conhecido como “convergência para cima”: quando um falante se esforça para usar uma linguagem correta e até palavras eruditas para impressionar um interlocutor de prestígio.

O oposto da convergência é conhecido como “divergência linguística”, recurso empregado por indivíduos que desejam enfatizar suas características em oposição às de seu interlocutor. Por exemplo, um jovem discutindo com alguém hierarquicamente superior a ele. A literatura da área ilustra a divergência nos discursos políticos que se propõem a relevar a similaridade intragrupo e a distinção intergrupo.

O terceiro conceito nos processos de acomodação é o da complementaridade. Vejamos:

Em uma interação diádica, a relação é considerada complementar quando se reconhece que um participante mantém um papel subordinado ao do outro. Nesses casos, tanto a divergência quando a convergência podem ser altamente interativas para ambos os participantes. A complementaridade da fala geralmente envolve divergência em termos linguísticos simples, entretanto psicologicamente implica mais aceitação da situação do que dissociação. Ela costuma ocorrer quando um participante assume uma posição subalterna (Bortoni-Ricardo, 2021Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto. , p. 109).

A reflexão sobre esses conceitos pode completar-se com a de grupo de referência. Quando um falante toma algumas pessoas como modelo e é influenciado por normas que ele supõe formarem a base do comportamento dessas pessoas, elas passam a constituir, para ele, o seu grupo de referência.

O sociolinguista e dialetólogo Robert Le Page (1980Le Page, R. B. (1980). Projection, focusing and diffusion. York Paper in Linguistics, 9, 9-31.) faz algumas considerações sobre como se processa a influência do grupo de referência sobre alguém, que vamos comentar sucintamente.

Em primeiro lugar, é preciso que as pessoas tenham a capacidade de identificar o grupo modelo, de terem acesso a ele e de serem capazes de empregar as regras de seu repertório. Segundo Le Page (1980Le Page, R. B. (1980). Projection, focusing and diffusion. York Paper in Linguistics, 9, 9-31.) há que se considerar ainda a possibilidade de motivações conflitantes, particularmente em relação à própria identidade do falante.

William Labov (1966Labov, W. (1966). The effect of social mobility on linguistic behavior. Social Inquiry, vol. 36, 186-203. ) explora essa situação de conflito, quando opõe a orientação do falante para modelos de prestígio à orientação para preservação de sua identidade.

Pode-se perceber esse potencial conflito em regiões que se tornam polos convergentes de imigração: alguém que chega a um ambiente muito distinto do seu local de origem pode perceber que determinados traços de sua fala suscitam avaliações negativas e procura imitar a linguagem que percebe mais prestigiada. No entanto, ao fazê-lo, poderá incorrer em um processo de anomia, de perda de sua identidade. Por exemplo, uma professora chegada a Brasília e vinda de região de falar caipira procura evitar o chamado /r/ pós-vocálico caipira, ou /r/ retroflexo. Mas consciente ou inconscientemente esse esforço imitatório pode-lhe trazer certo desconforto.

No restante deste artigo, vamos registrar e comentar a fala de adultos não-alfabetizados que migraram para o Distrito Federal, vindos de pequenos núcleos urbanos de Minas Gerais. Esses registros nos darão oportunidade de comentar traços produtivos de sua fala, situando-os no contínuo de urbanização de que falamos. Também nos mostram como o Português do Brasil engloba muita variação, de natureza fonético-fonológica, morfossintática, semântica e pragmática.

O texto a seguir é parte de um diálogo entre uma professora universitária (P) e uma senhora (MP) não alfabetizada, radicada há várias décadas no DF, gravado durante os anos de 1980. Não fizemos transcrição fonética, mas preservamos alguns traços graduais e principalmente os traços descontínuos. (cf. Bortoni-Ricardo, 2011Bortoni-Ricardo, S. M. (2011). Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. Parábola Editorial. , p. 20 ss inter alia).

P: Você estava me contando, não, eu perguntei sobre o clube das mães que vocês fazem parte, né?

MP: Até gostei, né de participá das reunião sim todu sábadu né...

P: Todo sábado?

MP: Todu sábadu, ũa hora.

P: E quem organiza?

MP: As mãis mermu.

P: As mães mesmos?

[...]

MP: A genti participa. Todu sábadu a genti vai nas reunião.

[...]

MP: Ano passadu a genti pagava baratim. A genti pagava dois cruzeru por mês, e dinheru pra Igreja.

[...]

MP: aí dezembru teve munta coisa parecida e a irmã falô que cada ũa dava uma taxa que quisessi, que pudessi pagar.

[...]

MP: Cada ũa mãe tirava trêis objeto, ropa.

[...]

MP: Tinha muita ropa feita, mas o negoçu que junta genti demais! Um dia ũa vai. Um dia a otra não vai, né. Quando é o derradero, todo mundu aí quer participá. Aquelas que chegô primeru, tirô tanta coisa de pano, tirava até mais de trêis peça, quando chegô minha veiz, que eu fui, levei os meninu. Aí a gente enfrentá fila com criança é a pior coisa. Aí eu fui em casa larguei us meninu. Depois foi que eu voltei. Cheguei lá, tava assim no resto. Aí genti vai, aí reza um poco né, que sempre a irmã, quando a genti chega, ela pede pra rezá, né. E depois a genti aí dá expricação da alguma coisa, né. Ela dá assim ensinano. Ela ensina as mãe educá os filho, cumu vevi cum u maridu, cumu zela da casa. Depois ela faiz a chamada, né, cumu fosse escola, né. Num pode ter muita falta não, si não corta o nome.

P: Vocês podem conversar com outras, né?

MP: A genti ranja tanta amizade, né. Igual eu mermu. Moro qui trêis anos. Num cunheçu muita genti não. I lá do crube da mãe, ranjei quantas amiga. Tanta colega que a irmã reúne todas nós ali.

P: Você não conhece muita genti, só conhece mais da sua família, né?

MP: Mais da minha família mermu. É grande.

P: Quantos são aqui?

MP: Do lado da minha mãe só tem ela mermu aqui. Do lado do meu pai tá quase todo mundo aqui. Tem as filha dele (do marido) que é tudo casada e mora tudo aqui. Tem a do Z que mora na chacra. Tem a M que mora com ele. E a F que mora du otro ladu na cidade veia. Tem a D lá em Taguatinga na X. Tem a I na X.

[...]

MP: Meu irmão voltô, foi lá ũas féria. Nois veiu primero.

[...]

MP: Que ela tem treis fia. Das mais veia e os mais novo. Dessas três mais veia é gêmiu.

A narrativa de Dona MP é muito interessante e detalhada. Em sua fala encontram-se muitos traços próprios de sua região de origem em área rural ou rurbana de Minas Gerais. Vamos comentar primeiro os traços considerados graduais e depois os traços descontínuos. Antes é preciso observar que traços categóricos do Português brasileiro, como a elevação do fonema /o/ final (/o/ > /u/) e do fonema /e/ igualmente final (/e/ > /i/) estão marcados, mas não serão considerados como traços de seu falar de origem, uma vez que estão presentes na fala de praticamente todos os brasileiros.

Traços graduais:

  1. 1. Perda da marca redundante de plural: praticamente todos os sintagmas nominais com o núcleo no plural só foram marcados na primeira palavra, inclusive em “ũas féria” em que a colaboradora suprimiu o /s/ final que não é marcador de plural. As exceções são “...Moru aqui [trêis anus]...” e “todas nós”. Alguns desses sintagmas poderiam ser considerados um traço descontínuo de acordo com a escala de saliência fônica como a proposta por Scherre (1978Scherre, M. M. (1978). A regra de concordância nominal de número no sintagma nominal em português. [Dissertação de mestrado]. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.) entre outros. Por exemplo “nas reunião” (Bortoni-Ricardo, 2011Bortoni-Ricardo, S. M. (2011). Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. Parábola Editorial. ).

  2. 2. Supressão do morfema verbal de infinitivo /r/: esse morfema indicador de infinitivo foi sistematicamente suprimido.

  3. 3. Monotongação do ditongo /ei/: Nas quatro palavras terminadas em “-eiro” (primeiro, derradeiro, dinheiro e cruzeiro) houve monotongação do ditongo.

  4. 4. Supressão da vogal /a/ inicial: “assim > sim”, “arranja > ranja”.

  5. 5. Troca do fonema /s/ pelo fonema /r/: “mesmo > mermu”.

  6. 6. Monotongação do ditongo /ou/: “roupa > ropa”, “outra > otra”.

  7. 7. Redução do ditongo crescente /iu/: “negócio > negóçu”.

  8. 8. Ditongação da vogal /a/ seguida da consoante /z/: “faz > “faiz”.

  9. 9. Elevação da vogal /o/ pretônica: “conheço > cunheço”. Observe-se que a conjunção “como” foi realizada com a primeira vogal alta: “cumu”.

  10. 10. Troca do fonema /l/ pelo fonema /r/ em grupos consonantais: “clube > crube”, “explicação > expricação”.

  11. 11. Redução de palavra proparoxítona: “chácara > chacra”.

  12. 12. Redução do sufixo “-inho”: “baratinho > baratim”.

Traços descontínuos

  1. 1. Monotongação do ditongo /ui/ precedido de consoante nasal: o ditongo /ui/ na palavra “muito” é nasalizada no Português brasileiro. Na fala da colaboradora foi nasalizado, mas o ditongo reduziu-se: “munta”.

  2. 2. Uso da forma de terceira pessoa do singular com sujeito plural: “Aquelas que chegô primeiro tirô tanta coisa...”, “nois veio primero”.

  3. 3. Forma “vevi” na terceira pessoa do singular: “vive > vevi”.

  4. 4. Vocalização do fonema /λ/: “velha > veia”.

  5. 5. Perda da consoante nasal /m/ no artigo indefinido: “cada uma mãe > cada ũa mãe”. Cabe observar também que a sequência cada uma + substantivo parece ser um traço do falar original da colaboradora.

Antes de concluir é preciso comentar que na fala da pesquisadora também são encontrados traços não-padrão, por exemplo “as mães mesmos?”. Esse fenômeno pode ser considerado como um processo de convergência.

Até aqui vimos o contínuo de urbanização. No diálogo transcrito, a pesquisadora tem background urbano e nunca residiu em área rural. A colaboradora (MP) se situa no contínuo próximo do polo rural.

Um segundo texto que vamos comentar é também um diálogo entre a pesquisadora (P) e um senhor de meia idade (F), marceneiro, semialfabetizado. A gravação tem início após a fase inicial da conversa em que ambos se apresentam. A transcrição inclui traços categóricos ou quase categóricos, como a elevação das vogais /e/ e /o/ em sílabas átonas, especialmente as pós-tônicas, que não serão consideradas marcas do falar rurbano do colaborador, pois estão presentes também nas falas urbanas.

P: E o senhor só trabalha por conta própria mesmu, né?

F: É

P: É melhor mesmu, né?

F: É, a genti… eu trabaiei eu já trabaiei fichado, aqui in Brasília eu trabaiei pôcu tempu fichado. Mais a genti venu, tanu assim a genti num tem aquela sigurança [ininteligível] trabalha, trabalha num local assim, com a caída du movimentu fica assim um pôcu fracu, né? Quarqué coisinha assim a turma tá dispensanu a genti. Antão a genti pensa qui até qui consiga arranjá ôtru trabalhu, serviçu, a genti fica assim muitus dias paradu. E a genti trabaianu assim pur conta própria as veiz a genti até ganha menus, mais é um menus qui fica todu, todu dia a gente tem aqueli trabaiu, a gente sabi ondi vai, é mais garantidu, a genti sabi aondi vai, né? Antão… tá, vai pá dez anu que’eu vivu assim, nessa luta, né? Arrumu aqui, um apartamentu, uma casa, intão eu pegu, todu serviçu di marcineru eu façu né? Eu sei fazê ôtru trabaiu, de pedreru eu intendu, né? Mais si a genti fica assim, correnu atrais di dois, ai a genti tem qui perdê um.

P: A especialidade do senhor mesmo é marcenaria?

F: É marcineru, marcenaria. Se alguém fala que cursu, s’eu tirei diploma, s’eu istudei eu falu não. Eu num istudei, num consigui tirá, u meu istudu é assim nu trabalhu.

P: Mais precisa?

F: Não, é… muita genti tira, istuda.

P: O senhor aprendeu com quem?

F: Eu aprendi foi com u meu pai, meu pai era carpinteru di fazenda né, i antão nas hora vaga assim antão eli pidia pra nóis í lá amolá ferramenta pra eli, machadu, que num…, na roça era machadu, [ininteligível], foici, né, essas coisa, formão, tudu é… naqueli tempu num ixistia na parti di cimentu armadu, era só mesmu na basi de madera, né? Aí eu molava sastisfeitu, né. Falava pra mim í com eli, ia sastisfeitu né? Pareci qui aqui eu pra mim era um sonhu. Eu ia trabalhava ali cum prazer, né? E, consigui assim dipois eu vi… Aí, qué dizê qui nessi tempu era assim nas vaga esse serviçu, tocava roça i lavora di café, né? E dispois eu risolvi dexá di morá na roça i mudá pá cidadi, aí já ambientei só mesmu nu sirviço di carpinteru, né? Mais foi precisu aprendê di novu. Purque nessi [ininteligível] eu trabalhava na fazenda, era lavá madera cum cal grossu, lavá as quatru parti pô im cima, fazê u…

P: O senhor trabalhava mais em construção, né?

F: In construção, mais depois fazia im quantidadi, aí foi na basi du cimentu armadu, aí tinha qui fazê na forma né pra aplicá in cima…

P: Sei…

F: Pá podê... fazê o cimentu, a massa, pá fazê as viga né, aí a genti tamém quasi qui num era muitu assim muitu burro né…

Traços graduais

  1. 1. Nos sintagmas nominais o colaborador nunca marca plurais redundantes. Por exemplo: “dez anu”, “nas hora vaga”, etc.

  2. 2. O ditongo /ei/ também é sistematicamente reduzido para /e/, exceto em posição tônica final: “ambientei”. O mesmo ocorre com o ditongo /ou/ como em “lavora”.

  3. 3. O morfema de infinitivo /r/ também é suprimido.

  4. 4. Nas formas verbais do gerúndio o fonema /n/ assimila o fonema /d/ em todas as ocorrências. Por exemplo: “venu”’, “tanu”, “trabaianu” e “correnu”.

  5. 5. Na palavra “tamém” o fonema /m/ assimilou o /b/. Esse é um traço muito comum no Português brasileiro informal.

Traços descontínuos

Há diversos traços descontínuos que são próprios do falar rural/rurbano, o que demonstra estar esse colaborador pouco ajustado às formas urbanas da língua. Vejamos.

  1. 1. O fonema /λ/ é vocalizado em várias palavras, mas aparece também na forma de lateral palatal (grafada como /lh/), como em “trabalhu”. Esse é um bom exemplo do processo de transição rural-urbano por que passa o colaborador (cf.: Bortoni-Ricardo 2011Bortoni-Ricardo, S. M. (2011). Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. Parábola Editorial. ).

  2. 2. Nas sequências de consoante oclusiva mais lateral /l/ a lateral foi mantida, por exemplo “diploma” e “aplicá”.

  3. 3. Há no texto três itens lexicais que são próprios do falar rural: “antão”, “quarqué” e “sastifeito”.

A fala dos dois colaboradores que reproduzimos aqui demonstra, em primeiro lugar, a grande extensão de variação do Português brasileiro. Em segundo lugar revela também como se processa a transição entre o falar de origem dos migrantes e sua acomodação ao falar urbano, com que passaram a ter contato. Esse processo é lento e varia de um indivíduo para outro. Em ambos os casos o grupo de referência dos colaboradores era constituído de parentes ou relações pré-migratórias. No entanto, no novo local de residência, também constituíram laços de amizade, compadrio, vizinhança, etc.

5. Considerações finais

Neste trabalho de Sociolinguística, volto-me para características básicas do Português do Brasil e vou ao encontro do trabalho de Linguística Aplicada de Marilda Cavalcanti e Terezinha Maher (2018Cavalcanti, M. do C., & Maher, T. J. M. (Eds.). (2018). Multilingual Brazil: Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. Routledge.) voltado para ideologias linguísticas nacionais.

No Brasil, como em outros países de colonização mais tardia, especialmente em termos de urbanização, não se encontram fronteiras rígidas entre comunidades urbanas, semirrurais e rurais. Daí a conveniência de termos elegido uma metodologia de contínuos que, como explicamos ao longo do artigo, nos permite entender melhor a urbanização na ecologia linguística brasileira.

Referências

  • Bortoni-Ricardo, S. M. (1985). The urbanization of rural dialect speakers: A sociolinguistic study in Brazil. Cambridge University Press.
  • Bortoni-Ricardo, S. M. (2011). Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. Parábola Editorial.
  • Bortoni-Ricardo, S. M. (2021). Português brasileiro, a língua que falamos. Editora Contexto.
  • Cavalcanti, M. do C., & Bortoni-Ricardo, S. M. (Eds.). (2007). Transculturalidade, linguagem e educação. Mercado de Letras.
  • Cavalcanti, M. do C., & Maher, T. J. M. (Eds.). (2018). Multilingual Brazil: Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. Routledge.
  • Giles, H., & Smith, P. M. (1979). Accommodation Theory: optimal levels of convergence. In H. Giles & R. St. Clair (Eds.), Language and social psychology (pp. 45-65). Basil Blackwell.
  • Giles, H., & Powesland, P. F. (1975). Speech style and perceived status: some conceptual distinctions. In H. Giles & P. Powesland (Eds.), Speech style and social evaluation (pp. 9-22). Academic Press.
  • Goffman, E. (1981). Forms of Talk. University of Pennsylvania Press.
  • Labov, W. (1966). The effect of social mobility on linguistic behavior. Social Inquiry, vol. 36, 186-203.
  • Le Page, R. B. (1980). Projection, focusing and diffusion. York Paper in Linguistics, 9, 9-31.
  • Rodrigues, A. (1986). Línguas brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas. Loyola.
  • Scherre, M. M. (1978). A regra de concordância nominal de número no sintagma nominal em português. [Dissertação de mestrado]. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
  • Spanevello, R. M., Moreira, S. L., & Boscardin, M. (2019). Dinâmica demográfica da população rural: o caso do COREDE alto Jacuí, Rio Grande do Sul. Nucleus, 16(1), 69-84.
  • Vieira Jr., I. (2019). Torto Arado. Todavia.
  • Wolfram, W., & Fasold, R. W. (1974). The Study of Social Dialects in American English. Prentice-Hall.
  • 2
    A Prússia foi o principal estado-membro do Império alemão entre os séculos XVIII e XX.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br