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A gente se vê por aqui: a interpelação ideológica na sociedade do espetáculo

We’ll meet here: An ideological interpellation in the society of the spectacle

RESUMO

Nosso objetivo é realizar uma análise discursiva e psicanalítica da publicidade de autopromoção da Rede Globo a partir de alguns slogans institucionais da emissora. Desde o início, e nos mais diferentes momentos históricos, a propaganda de autopromoção buscou representar as emissoras (e, por consequência, a própria televisão) como representantes do Brasil, como espelho no qual o Brasil pode (ou deveria) se reconhecer. Tornando-se o semblante que ocupa o lugar do Outro nas sociedades do espetáculo, a televisão busca estratégias que (imaginariamente) eliminem a distância do sujeito em relação ao Outro, reforçando a ilusão de autonomia dos sujeitos. A análise proposta centra-se no slogan Globo, A gente se vê por aqui e buscará entender e interpretar os efeitos da interpelação ideológica condensada no enunciado no âmbito específico das sociedades do espetáculo.

Palavras-chave:
análise do discurso; mídia; publicidade de autopromoção; interpelação ideológica

ABSTRACT

The present study aims to carry out a discursive and psychoanalytical analysis of Rede Globo’s (a Brazilian broadcasting corporation) self-promotion publicity through some institutional slogans. Self-promoting advertisement has always aimed to present the different broadcasting corporations in Brazil - that is, television in Brazil - as being representative of the country itself. In other words, as a mirror in which Brazil could, or should, see itself. On becoming the figure that fills the place of the Other in societies of the spectacle, television seeks strategies to (imaginarily) eliminate the distance of the subject in relation to the Other, thus reinforcing the illusion of the subjects’ autonomy. The slogan A gente se vê por aqui (We’ll meet here) is the slogan we elected to analyze in greater detail, to try to understand and interpret the effects of an ideological interpellation condensed the utterance in the specific scope of the societies of spectacle.

Keywords:
discourse analysis; media; self-promoting advertising; ideological interpellation

1. Introdução

Na campanha eleitoral para senador de São Paulo em 2014, um enunciado que fazia parte do material de campanha de um dos candidatos chama a atenção pela maneira como ele direciona sua demanda aos eleitores. Em uma vinheta divulgada na televisão e no rádio, dizia: “Estou com muita vontade de ser senador. Um senador presente, próximo das pessoas, que trabalha a serviço de São Paulo. Eu quero ser o novo senador de São Paulo”5 5 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=GVz6V2KTNNo (acesso em 06/12/2021). . O argumento utilizado pelo candidato, que faz campanha para ocupar um cargo público de grande importância política, é a força de sua vontade pessoal. O exemplo desse enunciado revela sua peculiaridade ao ser comparado com outro: “Brasil, eu quero muito ficar, eu quero muito mostrar para vocês que eu mereço tá aqui, cada segundo eu estou vivendo essa casa intensamente, tô dando o meu melhor, eu quero muito provar que eu tenho essa chance, me ajuda por favor, todo mundo, todo mundo votando, o Brasil inteiro votando...”6 6 Disponível em http://globotv.globo.com/rede-globo/big-brother-brasil-13/v/kamilla-faz-apelo-para-ficar-na-casa/2436312/ (acesso em 20/10/2013). , roga uma das participantes do Big Brother Brasil, do confessionário da “casa mais vigiada do país”.

Ao enfatizar a sua própria vontade - “eu quero ser o novo senador” - o referido candidato oferece a vontade pessoal como justificativa para a assunção de um cargo público: a simples confissão de um desejo pessoal procura funcionar como esteio da vontade dos eleitores. Como afirma Courtine (2003Courtine, J-J. (2003). Os deslizamentos do espetáculo político. In M. do R. Gregolin (Ed.), Discurso e mídia: a cultura do espetáculo (pp. 21-34). Claraluz.), a televisão é o meio no qual se opera uma profunda modificação da eloquência política: ressurge o indivíduo falante, enquanto se apaga o aparelho político. As antigas formas longas e monológicas da fala pública cedem lugar às formas breves e simples, mais coloquiais, calcadas na lógica do aparelho audiovisual de informação, baseada na publicidade comercial. Comprova-se o que comenta Courtine sobre o discurso político atual: a exibição da intimidade doméstica e psicológica dos atores políticos impera sobre a antiga política do texto como veículo de ideias; prevalecendo a política da aparência, geradora de emoções (Courtine, 2003Courtine, J-J. (2003). Os deslizamentos do espetáculo político. In M. do R. Gregolin (Ed.), Discurso e mídia: a cultura do espetáculo (pp. 21-34). Claraluz.).

A ênfase na vontade pessoal, que escamoteia a dimensão social das questões, está na raiz do desenvolvimento do sistema capitalista, que se sustenta em formações ideológicas calcadas na concepção de um “eu autônomo” (Fontenelle, 2010Fontenelle, I. A. (2010). O fetiche do eu autônomo: consumo responsável, excesso e redenção como mercadoria. Psicologia & sociedade, 22(2), 215-224. https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000200002
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). A ordem capitalista burguesa dissimula seu poder ditatorial através de uma aparência democrática (Pêcheux, 1990Pêcheux, M. (1990). Delimitações, inversões e deslocamentos. Tradução: José Horta Nunes. Caderno de Estudos Linguísticos. Campinas, 19, 7-24. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636823/4544 (acesso 06 de dez. 2021).
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) pelo mecanismo da interpelação ideológica que produz a evidência do sujeito e oculta o processo de identificação-interpelação do qual ele emerge (Pêcheux, 1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)). Sob essa evidência, há o absurdo da noção de homem que se faz a si mesmo, tal como a figura do Barão de Münchhausen, evocada por Pêcheux (1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)), que sobe aos ares puxando-se pelos próprios cabelos.

Assim como o discurso político, os discursos veiculados pela mídia formatam-se a partir do discurso publicitário. De acordo com Sarti (2011Sarti, M. M. (2011). Para além dos objetos: as (de)formas do inconsciente no discurso publicitário e a formação de uma língua-objeto. [Tese de Doutorado em Psicologia]. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. ), a frequente (con)fusão, a despeito de diferenciações formais entre as palavras publicidade e propaganda, marca a dupla inscrição histórica dessas práticas no âmbito comercial e político.

Tal (con)fusão entre a publicidade e a propaganda está realizada na televisão; nela, fatos, pessoas, ideias, objetos e serviços se tornam públicos ao serem consumidos pelos telespectadores. Foi a TV, seguindo a trilha aberta pelo rádio, que abriu definitivamente a porta de nossas casas ao discurso publicitário. Por um lado, a inserção de intervalos comerciais ao longo da programação contribui para que o uso do objeto da propaganda (Sarti toma o caso de um eletrodoméstico) se encaixe na rotina cotidiana das pessoas, não demandando a atenção exclusiva que o cinema e o teatro exigem, por exemplo. Atualmente, o merchandising ultrapassa os limites do intervalo comercial, inserindo-se no interior da própria programação televisual, usando-a como suporte, buscando confundir-se com seu conteúdo.

O discurso publicitário, conforme aponta Baudrillard (2000Baudrillard, J. (2000). Significação da Publicidade. In L. C. Lima (Ed.), Teoria da cultura de massa (pp. 291-299). Terra e Paz.), contribuiu para a substituição de antigas ideologias políticas e morais, uma vez que essas novas técnicas prescindem da repressão: o consumidor interioriza a instância social e suas normas no próprio movimento do consumo. É através do discurso publicitário que o Outro do capitalismo interpela os sujeitos; do mesmo modo, a manutenção do poder do Capital é garantida através da intersecção da economia do mercado com a economia pulsional dos sujeitos.

Buscando evidenciar esse mecanismo, este artigo enfoca um dos discursos que é mais predominante na televisão: a publicidade de autopromoção, enfocando mais especificamente a publicidade de autopromoção da Rede Globo. O papel da televisão em relação à publicidade é duplo, além de vender espaço para outros anunciantes, as próprias emissoras são empresas que se promovem, como qualquer outra, com a diferença de que ela própria é a que detém e utiliza o maior espaço de tempo para se auto propagandear (Castro, 2009Castro, M. L. D. de. (2009). Autopromocionalidade em televisão: movimentos e configurações. Animus: Revista Interamericana de Comunicação Midiática, 8(15), 53-68. https://doi.org/10.5902/217549776202
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).

A importância da análise desse tipo de slogan se justifica, não apenas pelos próprios enunciados, mas também pela forma de sua enunciação. A TV é recheada de slogans, cada peça publicitária que ela veicula contém pelo menos um deles, até mesmo personagens televisivos - principalmente os humorísticos - usam dos chamados “bordões”. O slogan que é repetido mais vezes ao longo da programação, no entanto, é sempre o da própria emissora.

Quando a televisão surgiu no Brasil, ela promovia um imaginário nacional e nacionalista, acentuadamente entre os anos 60 e 70, como parte de projetos gerados no interior do Estado, apoiados na doutrina da segurança nacional no seio da Ditadura Militar; atualmente, vivemos um imaginário globalizado e globalizante (Bucci, 2003Bucci, E. (2003). Introdução: Por que criticar a TV?. In E. Hamburguer, & E. Bucci (Eds.), A TV aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário (pp. 07-11). Editora Fundação Perseu Abramo.), apoiado no poder hegemônico de uma emissora que é a própria metáfora desse ideário: a Rede Globo.

A partir do referencial teórico e metodológico da Análise do Discurso pêcheutiana (AD) e da Psicanálise lacaniana, será apresentada uma análise dos seguintes slogans institucionais de autopromoção da Rede Globo: Globo e você, tudo a ver (1991-1997), Globo: um caso de amor com o Brasil (1998), Globo: um caso de amor com você (1998), A gente se vê por aqui (2001-2011) e A gente se liga em você (2011-atual). Através da análise buscar-se-á evidenciar como essas peças publicitárias se apoiam no funcionamento subjetivo para garantir a força de seus efeitos de sentido. Destaca-se na análise a importância do slogan A gente se vê por aqui, que, não à toa, foi o slogan institucional da Rede Globo utilizado durante mais tempo que qualquer outro até hoje: ficou no ar por 10 anos (de 2001 a 2011). A análise buscará entender e interpretar os efeitos da interpelação ideológica condensada no enunciado no âmbito específico das sociedades do espetáculo.

2. A inscrição da História no discurso

A Análise do Discurso, ao tomar como referência o Materialismo Histórico, sustenta a tese de que há uma implicação do modo de produção da vida material que é determinante para as relações sociais, e busca entender de que forma “o homem faz história, mas esta também não lhe é transparente” (Orlandi, 1999Orlandi, E. P. (1999). Análise do discurso: princípios e procedimentos. Pontes., p. 19). O projeto teórico de Michel Pêcheux se situa na tradição do pensamento crítico, que toma o texto como um objeto político. Ao relacionar Linguística, Marxismo e Psicanálise, Pêcheux concebe o discurso como um objeto teórico capaz de articular grandes questões relacionadas à língua, a história e ao sujeito (Carvalho, 2011Carvalho, F. Z. F. de. (2011). Michel Pêcheux e a escrita do sujeito dividido. In L. V. Tfouni (Ed.), Letramento, escrita e leitura (pp. 63-82). Mercado das letras.).

A análise do discurso parte da materialidade linguística (textos/enunciados) para chegar ao objeto discursivo; nessa direção, busca analisar o processo de produção de evidências, que é considerado um efeito ideológico. O conceito de ideologia desvincula-se da questão representativista (Zizek, 1996Zizek, S. (1996). O espectro da ideologia. In S. Zizek (Ed.), Um mapa da ideologia (pp. 07-38). Contraponto.), uma vez que a ideologia não é uma representação distorcida da realidade, antes, “as ideologias práticas são práticas de classes (de luta de classes) na Ideologia” (Pêcheux, 2009Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975), p. 132). O efeito fundamental da ideologia é o de integrar a sociedade em um todo constituído e coerente, a partir da naturalização dos sentidos e da interpelação ideológica, que constroem um tecido de evidências e que colocam o sujeito do discurso como “causa de si”, tendo como resultado o apagamento (mas não a eliminação) dos antagonismos e das divisões de classes (Pêcheux, 2009Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)).

Através da psicanálise lacaniana, entende-se que o sujeito se constitui a partir das dimensões imaginária e simbólica, sendo dividido pelo efeito do significante entre Eu e sujeito do inconsciente, este último sustentando o real, que resta irrepresentável. Sendo assim, há uma heterogeneidade radical entre Eu (ego) e sujeito do inconsciente. As marcas que permitem estabelecer a relação desse “é ele” com o “ainda é ele”, experiência mais simples de identificação” (Lacan, 2011Lacan, J. (2011). A identificação: seminário 1961-1962. Tradução: Ivan Corrêa & Marcos Bagno. Centro de Estudos Freudianos do Recife. (L’identification, 1961-1962)), são inscritas no sujeito a partir de uma série de identificações, simbólicas e imaginárias; o sujeito do inconsciente (real), no entanto, é puro movimento; tudo o que supõe nele uma identidade o trai. O sujeito do inconsciente é o sujeito do desejo, o real agente que conduz o Eu, e este último se constitui a partir de uma posição de desconhecimento que tem origem em algo que é muito próprio ao ser humano, o que Freud denomina desamparo fundamental, e o que nos coloca desde sempre na dependência do outro para sobrevivência. É porque existe um outro que supõe, a partir do choro do bebê, além do grito, a demanda de um sujeito, que ele se constitui alienando-se inevitavelmente a esse Outro, e do qual é preciso se separar para advir como sujeito desejante (Elia, 2010Elia, L. (2010). O conceito de sujeito. 3 ed. Jorge Zahar Ed.).

Para cada sujeito a realidade aparece como uma totalidade, univocidade que se sustenta na dimensão imaginária, cujo paradigma é a imagem corporal. Apesar disso, ela não é unicamente particularizada para cada um, porque há uma trama significante que nos relaciona. É através do funcionamento simbólico, significante, que se estabelecem relações intersubjetivas, uma vez que a relação entre os sujeitos não implica, necessariamente, a presença das pessoas concretamente. O sujeito está lançado e imerso no Outro, ou seja, no campo simbólico, de forma que não é possível haver uma observação externa a ele (Quinet, 2004Quinet, A. (2004). Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. 2. Ed. Jorge Zahar Ed.).

No plano social, o Outro, aquele que “ocupa o lugar de terceiro que nos funda” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 38), se esteia numa consistência imaginária, enquanto “ficção sustentada pelo conjunto de falantes” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 30):

Os sujeitos falantes, simbolizáveis como eu e tu, nunca pararam de construir terceiros, os ele eminentes [...]. Poderíamos dizer que, porque falam, os sujeitos não param de construir entidades que eles elegem como princípio unificador, como Um, como grande Sujeito, isto é, sujeito à parte em torno do qual se organizam o restante dos sujeitos (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 30).

Os semblantes construídos sócio-historicamente para o Outro vão sendo deslegitimados ao longo do tempo, declínios que levam à construção de uma nova versão, outra figura que venha a ocupar esse lugar (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)). “Foi precisamente esse jogo contínuo de atualizações e substituições que permitiu a passagem progressiva do religioso ao político” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 83). Estabelecendo uma comparação com as construções que pintam um semblante para o Outro e que não param de mudar ao longo da história, Dufour (2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)) chega a apontar que “a história aparece como uma sequência de assujeitamentos a grandes figuras instaladas no centro de configurações simbólicas” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 39), apresentando uma listagem deles: “ ... Deus nos monoteísmos, ao Rei na monarquia, ao Povo na República, à Raça no nazismo e algumas ideologias raciais, à Nação nos nacionalismos, ao Proletariado nos comunismos...” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 39).

Acontece que “segundo a figura do Outro eleita como centro dos sistemas político-simbólicos, toda a vida econômica, política, intelectual, artística, técnica, muda.” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 39). Como destaca Pêcheux (1990Pêcheux, M. (1990). Delimitações, inversões e deslocamentos. Tradução: José Horta Nunes. Caderno de Estudos Linguísticos. Campinas, 19, 7-24. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636823/4544 (acesso 06 de dez. 2021).
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), não há “discurso falado por seres humanos, que possa se destacar completamente dos trás-mundos (ou pré-mundos) que o habitam” (p. 9), ou seja, não há realidade discursiva que não se estruture através do Outro, tesouro dos significantes.

As sociedades tradicionais, baseadas na hegemonia de um grande Sujeito divino, vão se transformando ao longo da modernidade, momento no qual se multiplicam as figuras que ocupam esse lugar Outro. Uma das definições que Bauman (2005Bauman, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Jorge Zahar Ed (Wasted Lives, 2004).) nos oferece acerca da modernidade é que ela pode ser entendida como a produção compulsiva e viciosa de projetos de vida ideais, a partir dos quais se travaram diversas batalhas entre diferentes e competitivos “deves”. Todavia, havia a concordância de que uma “boa sociedade” moderna seria construída pela existência de postos de trabalho que proporcionassem uma função produtiva para todos. O sujeito moderno estava assujeitado a diferentes figuras do grande Outro que, a despeito de competirem entre si, mantinham uma posição diferencial, oferecendo uma ficção reguladora (Outro) que impunha limites ao gozo (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)).

A contemporaneidade, por sua vez, caracteriza-se pela ausência de um semblante imaginário capaz de ocupar esse Outro lugar que exerce a função da lei simbólica. O avanço da democracia, do neoliberalismo e a diminuição do papel do Estado estão entre as características desse novo momento, assim como o desenvolvimento do individualismo, a publicização do espaço privado e a privatização do domínio público (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)). Práticas sociais, valores culturais, ideias, aspirações e identidades passam a ser orientadas em relação ao consumo ao invés de outras dimensões sociais como o trabalho, a cidadania, a nacionalidade e a religião. O valor de uso das mercadorias deixa de estar relacionado, simplesmente, com o consumo físico das mesmas (utilidade), tornando-se crucial o seu uso enquanto marcadores sociais (Barbosa, 2004Barbosa, L. (2004). Sociedade de consumo. Zahar.).

A contemporaneidade é marcada por uma simbiose entre o mercado e os meios de comunicação de massa (Jameson, 1996Jameson, F. (1996). O pós-modernismo e o mercado. In S. Zizek (Ed.). Um mapa da ideologia (pp. 279-296). Contraponto. ). É essa simbiose que leva Debord (1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992)) a conceituar as sociedades de massa como Sociedades do Espetáculo: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 25), “é o dinheiro que apenas se olha” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 34). No mercado feito espetáculo, a importância da imagem atinge uma nova dimensão. Funcionando a partir da lógica “o que aparece é bom; o que é bom aparece” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p.17), o espetáculo não se define simplesmente enquanto um conjunto de imagens, mas como “uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 14). Nele, tudo o que era vivido diretamente tende a tornar-se uma representação, na qual a realidade é considerada parcialmente, mas se apresenta como uma unidade (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992)).

Quanto aos meios de comunicação (que nos interessam aqui mais de perto), temos que, entre a formulação do conceito de indústria cultural por Adorno e Horkheimer, e o conceito de Espetáculo de Debord, houve uma incrível expansão da televisão e do aperfeiçoamento técnico dos meios de traduzir a vida em imagens, até que se tornasse possível abarcar toda extensão da vida social (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). O espetáculo como meio de subjetivação. In E. Bucci, & M. R. Kehl (eds) Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 43-62). Boitempo.). Oferecendo para o lazer uma “sucessão automática de operações reguladas” (Adorno & Horkheimer, 2000Adorno, T. L. W., & Horkheimer, M. (2000). A indústria cultural: O iluminismo como mistificação de massa. In L. C. Lima (Ed.), Teoria da cultura de massa (pp. 169-214). Terra e Paz., p. 185), a indústria cultural garante que “do processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode fugir adequando-se a ele mesmo no ócio” (Adorno & Horkheimer, 2000Adorno, T. L. W., & Horkheimer, M. (2000). A indústria cultural: O iluminismo como mistificação de massa. In L. C. Lima (Ed.), Teoria da cultura de massa (pp. 169-214). Terra e Paz., p. 185). Tornado espetáculo, o “movimento autônomo do não vivo” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 13) tem a função ideológica de garantir a conformação e a coesão social, através da contemplação inativa que é um produto da própria racionalidade da produção.

A manutenção do poder do Capital é garantida através da intersecção da economia do mercado com a economia pulsional dos sujeitos. Colocando diante de cada desejo um objeto industrializado, a narrativa da mercadoria “apresenta os objetos como garantia de nossa felicidade e, ademais, de uma felicidade realizada no aqui e agora.” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 76). O que o apelo publicitário visa promover é que o sujeito confunda as demandas do capital com seu próprio desejo, já que o desejo é social (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). O espetáculo como meio de subjetivação. In E. Bucci, & M. R. Kehl (eds) Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 43-62). Boitempo.).

Entretanto, o Mercado, tão onipresente e poderoso, só fracassa em um ponto: em funcionar como novo grande Sujeito. Qual a consequência de, na contemporaneidade, vivermos o declínio da função simbólica? O Outro simbólico tem a função de Terceiro, o um a menos que permite que o conjunto se forme, o declínio dessa função ternária cede lugar à relação dual, imaginária (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)). “O sujeito falante [...] não é mais definido hetero-referencialmente, mas auto referencialmente.” (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003), p. 88). Sem a referência a essa anterioridade simbólica (Outro), o sujeito é deixado diante de si mesmo quanto a uma questão essencial: sua própria fundação, tema que retorna como irrefreável tormento. É por essa razão que o declínio das grandes narrativas soteriológicas é correlato a uma ênfase na própria subjetividade (Dufour, 2005Dufour, D-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução: Sandra Regina Felgueiras. Companhia das Letras. (L’art de réduire les têtes, 2003)).

O declínio da função simbólica não significa que o grande Outro não se encarne em mais nenhum semblante. A televisão - que está ligada, mesmo quando está desligada (Bucci, 2001Bucci, E. (2001). A entrada precoce da criança no mundo do consumo. In M. C. M. Comparato, & D. de S. F. Monteiro (Eds.), A criança na contemporaneidade e a Psicanálise (pp. 87-94). Mentes & Mídias: diálogos interdisciplinares. Editora Casa do Psicólogo. ) - de certa forma tornou-se onipresente e onisciente como Deus (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). O espetáculo como meio de subjetivação. In E. Bucci, & M. R. Kehl (eds) Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 43-62). Boitempo.). Ao transformar definitivamente a forma como são constituídas as narrativas sobre a realidade, promovendo a transição da instância da palavra impressa para a instância da imagem ao vivo (Bucci, 2009Bucci, E. (2009). Em torno da instância da imagem ao vivo. MATRIZes, [S.L.], 3(1), 65-79. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v3i1p65-79
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), a TV, mesmo que se apresente de forma multifacetada e seja recebida de maneira fragmentada, é totalizante. “A televisão não mostra lugares, não traz lugares de longe para muito perto - a televisão é um lugar em si. (...) a TV como lugar, nada mais é que o novo espaço público, ou uma esfera pública expandida” (Bucci, 2004Bucci, E. (2004). A crítica da televisão. In E. Bucci, & M. R. Kehl (Eds.), Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 27-42). Boitempo., p.31).

Na onipresença das solicitações da publicidade emitidas por essa nova encarnação do Outro representado pela mídia eletrônica (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). O espetáculo como meio de subjetivação. In E. Bucci, & M. R. Kehl (eds) Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 43-62). Boitempo.) a ideologia não apenas interpela os indivíduos como sujeitos, mas a TV nos interpela a todos como consumidores.

3. Globo e você: a diminuição da distância entre o sujeito e o Outro

O slogan Globo e você, tudo a ver (1991-1997) estabelece um par entre a emissora e seus telespectadores, uma massa de telespectadores que a emissora deseja que seja, senão todo o Brasil, mas boa parte dele. Uma massa de telespectadores que a emissora interpela não como nação, mas de maneira particularizada. A expressão “ter a ver” é derivada de outra “ter que ver”, mais antiga. Tomemos como exemplo a frase: “Pedro tem tudo a ver com Maria”, nela os efeitos de sentidos poderiam ser os seguintes: “Pedro tem afinidade com Maria”, “Pedro e Maria têm as mesmas características”, “Pedro e Maria combinam entre si.” etc.; ou seja, a expressão “ter a ver” estabelece uma relação de afinidade, de semelhança entre os elementos que conecta.

Depois disso, o pronome “você” aparece no slogan de 1998, Globo: Um caso de amor com você, associado ao outro, usado ao longo do mesmo ano Globo: Um caso de amor com o Brasil. Esses dois slogans, apesar do pouco tempo de uso, se comparados com os outros enunciados selecionados para essa análise - Globo e você, tudo a ver foi usado por 6 anos e A gente se vê por aqui por 10 anos -, têm um importante papel de mediação entre o anteriormente usado por 6 anos e o que posteriormente foi usado por 10 anos.

Por mais que as pessoas realmente criem relações afetivas com a televisão, soa mais desejável estabelecer um caso de amor - para retomar nosso exemplo - entre Pedro e Maria, do que entre Maria e seu aparelho televisor. Essa é uma das razões pela qual, ainda que seja colocada a dimensão coletiva da relação “Globo e você” - como em Globo: Um caso de amor com o Brasil, que aponta para o desejo da própria emissora - ela é usada de maneira a associar-se à dimensão mais pessoal - Globo: um caso de amor com você - numa demanda que soa mais individualizada para os telespectadores.

No par estabelecido (e bem demarcado pela repetição incessante ao longo dos 6 anos em que foi usado) no slogan Globo e você, tudo a ver, muito embora ele demarque a relação do sujeito (você) com este novo semblante do Outro representado pela mídia eletrônica (Globo), o que a estratégia publicitária visa é que esse par se ofereça como sendo o da díade imaginária, ou seja, como se a relação se estabelecesse entre sujeitos concretos.

O sujeito ama o Outro, mas o faz através de um pequeno outro que o encarna. Ao se oferecer ao telespectador como “alguém” com quem se possa ter um caso de amor, a Globo quer passar por um desses pequenos outros passíveis de um amor romântico e carnal. No slogan A gente se vê por aqui essa ideia é reforçada através da reunião do par anterior “Globo e você” em um coletivo “nós”, materializado em “A gente”.

O slogan A gente se vê por aqui nos remete à expressão coloquial “a gente se vê por aí”, geralmente usada como um cumprimento de despedida, modificando-a: não se diz , diz-se aqui.

Todos conhecem a expressão popular: “A gente se vê por aí”. “Por aí” quer dizer “em qualquer lugar”, isto é, qualquer outro lugar, um outro lugar que não este em que nos encontramos agora. Ora, quem diz “a gente se vê por aqui” diz algo meio sem sentido, uma vez que “por aqui” é onde estamos agora, quer dizer “por aqui” nós já estamos nos vendo agora. Seria um nonsense? Afinal, só faz sentido dizer “a gente se vê” quando nos despedimos de alguém (Bucci, 2004Bucci, E. (2004). A crítica da televisão. In E. Bucci, & M. R. Kehl (Eds.), Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 27-42). Boitempo., p. 240, grifos do autor).

É justamente porque designa outro lugar que não aqui, que o aqui foi usado. Trata-se de uma estratégia para diminuir a distância entre os sujeitos e o “aqui e agora” das imagens ininterruptas da televisão. Ou - no caso da estratégia publicitária que estamos analisando - entre os telespectadores e o aparato técnico audiovisual e político tão poderosamente presente que é a Rede Globo.

O aqui de A gente se vê por aqui visa apagar a diferença entre estar aqui e , como se “Globo e você” pudessem estar no mesmo plano, no mesmo lugar. Mesmo que de fato a televisão alcance certa onipresença na vida cotidiana das pessoas - e principalmente a Rede Globo no caso do Brasil -, que é o que está sendo reforçado pelo slogan, como bem observa Bucci. Ainda assim, “você e Globo” jamais poderão estar no mesmo plano, já que se trata de uma relação do sujeito ao Outro, e não dos sujeitos entre si. É isso que está sendo escamoteado nesse slogan. Diferentemente dos seres no real, a relação do sujeito ao Outro é sem reciprocidade, por ser totalmente dissimétrica: o sujeito é efeito do significante, significante este que se produz numa anterioridade simbólica, o Outro.

Os slogans A gente se vê por aqui e A gente se liga em você formam uma dupla, já que no eixo sintagmático eles têm a mesma estrutura. O sujeito dos dois enunciados, A gente, é homônimo da palavra agente, que tem um significado diverso de a gente, mas que, pela homofonia, também significa, contribuindo para os efeitos de sentido suscitados pelos dois slogans nos quais ressoa. Agente é aquele que opera a ação, o autor ou a causa de uma ação. Sendo assim, o homófono agente reforça em A gente se vê por aqui que a ação praticada por “nós” - “Globo e você”, reunidos em um coletivo a gente - é recíproca entre o par estabelecido.

No slogan atual - A gente se liga em você -, por outro lado, o mesmo A gente/Agente não significa mais o par reunido “Globo e você”, mas designa aquele que é de fato o enunciador, o sujeito agente da ação televisiva, a emissora Rede Globo, que, ao enunciar que “se liga em você”, quer criar a ilusão de que o agente é você, quando na realidade, sempre foi ela própria. Ao usar a mesma estrutura nos dois slogans, a estratégia publicitária reforça a (con)fusão entre um e outro.

No slogan atual a Rede Globo se coloca como o Agente que está “em todo lugar que você esteja, ligado em você”, tal como um Outro todo poderoso, onisciente e onipresente. No entanto, se a estratégia publicitária apenas der ênfase à onipresença totalizante da televisão, que pode “estar em todo lugar que você esteja, ligado em você”, ela pode suscitar o estabelecimento de relações paranoicas, persecutórias. E não é isso que a Rede Globo quer, ela quer que os sujeitos a amem - como explicitado nesses dois slogans institucionais utilizados em 1998: Globo: um caso de amor com você e Globo: um caso de amor com o Brasil -, como amariam qualquer outro, que, todavia, não é um outro qualquer.

Para amenizar os possíveis efeitos persecutórios de tal afirmação, a estratégia publicitária associa, justamente para confundir-nos, os dois slogans A gente se liga em você e A gente se vê por aqui. Com este último, ao longo dos 10 anos em que foi usado, buscou-se apagar a dissimetria própria da relação “Globo e você”. Dessa forma, a dupla de slogans A gente se vê por aqui e A gente se liga em você consegue a façanha de, ao mesmo tempo em que cria a ilusão de que o agente da ação televisiva é você, telespectador, reforçar o lugar que ocupa a Rede Globo em nossa sociedade como agente simbólico e político.

4. A gente se vê por aqui: a interpelação ideológica na sociedade do espetáculo

Zizek (1996Zizek, S. (1996). O espectro da ideologia. In S. Zizek (Ed.), Um mapa da ideologia (pp. 07-38). Contraponto.), discorrendo acerca da ideologia, formula alguns enunciados que podem funcionar como arqui-afirmações da ideologia: “‘Olhe, você pode ver por si mesmo como são as coisas!’ ou ‘Deixe os fatos falarem por si’” (Zizek, 1996Zizek, S. (1996). O espectro da ideologia. In S. Zizek (Ed.), Um mapa da ideologia (pp. 07-38). Contraponto., p. 17) que exprimem uma naturalização dos sentidos, própria do efeito ideológico fundamental que produz a ilusão de transparência da linguagem. Todavia, “os fatos nunca ‘falam por si’, mas são sempre levados a falar por uma rede de mecanismos discursivos” (Zizek, 1996Zizek, S. (1996). O espectro da ideologia. In S. Zizek (Ed.), Um mapa da ideologia (pp. 07-38). Contraponto., p.17), ou seja, qualquer formulação implica em si mesma uma interpretação, uma tomada de posição. O efeito ideológico cria justamente a ilusão de que o que está sendo dito é única interpretação possível, ou a mais natural.

Assim como Zizek propõe aquelas arqui-afirmações da ideologia que se relacionam à ilusão de transparência da linguagem, propomos que o slogan da Rede Globo A gente se vê por aqui pode ser considerado como uma arqui-afirmação da ideologia, mas que se refere à evidência dos sujeitos, demarcando o funcionamento da interpelação ideológica como ela se dá, especificamente, numa sociedade do espetáculo, em que somos constantemente interpelados como telespectadores/consumidores pela TV (ou pelo espetáculo). Ou seja, esse slogan expressa de maneira paradigmática, estrutural, a forma do funcionamento da interpelação ideológica nesse tipo de sociedade.

Althusser (1970Althusser, L. (1970). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Martins Fontes (Ideologie et apareils ideologiques d’etat, 1970).), ao formular o funcionamento da interpelação ideológica, aponta para uma relação intrínseca entre a ideologia e o inconsciente. Essa relação se justifica porque a ideologia em geral, enquanto estrutura propriamente humana - diferentemente de formações ideológicas historicamente localizadas -, é a-histórica, tal como o inconsciente:

Nossa proposição de que a ideologia não tem história pode e deve (...) ser diretamente relacionada com a proposição freudiana de que o inconsciente é eterno, isto é, não tem história. Ser eterno não significa transcendente a toda história (temporal), mas onipresente, trans-histórico e, portanto, imutável em sua forma em toda a extensão da história (Althusser, 1970Althusser, L. (1970). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Martins Fontes (Ideologie et apareils ideologiques d’etat, 1970)., p. 125, grifos do autor).

Pêcheux (1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)) busca desenvolver essa proposição de Althusser, mas admite que essa relação permanece como um vislumbre teórico, ou seja, é uma relação teórica importante, mas ainda não plenamente desenvolvida. O autor denota que o caráter comum dessas duas estruturas-funcionamento - ideologia e inconsciente - é o de dissimular sua existência no próprio mecanismo de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências nas quais se constitui o sujeito (Pêcheux, 1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)).

Pêcheux (1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)) destaca que a correlação entre a constituição dos sentidos e a constituição dos sujeitos se dá na própria tese central da interpelação pela qual “‘o não-sujeito’ é interpelado-constituído em sujeito pela Ideologia” (Pêcheux, 1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975), p. 141). A interpelação “Ei, você aí!” parte “lá de onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de que o sujeito possa dizer: ‘Eu falo’” (Pêcheux, 1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975), p. 140, grifos do autor). Ou seja, de uma anterioridade simbólica (Outro) que irá incluir o sujeito, já que ele não se funda a si mesmo.

A façanha da interpelação ideológica é se fazer pela promessa de suprimir a alienação ao Outro da linguagem que funda qualquer sujeito. A interpelação ideológica é o modo de assujeitamento dos sujeitos ao Outro do capitalismo que tem a forma plenamente visível da autonomia (Pêcheux, 1975Pêcheux, M. (2009). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. Editora da Unicamp. (Les vérités de La Palice, 1975)). Seu efeito retroativo, calcado no fato de que ela resulta na evidência dos sujeitos e dos sentidos, apaga o processo de identificação-interpelação do qual os sujeitos emergem, fazendo com que eles se tomem pelo que não são: indivíduos inteiros, coesos, unificados (Silveira Filho, 2005Silveira Filho, P. A. (2005). A interpelação ideológica - a entrada em cena da Outra Cena. Anais do SEAD: II Seminário de Estudos em Análise do Discurso. Porto Alegre. https://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/2SEAD/SIMPOSIOS/PauloArgimiroDaSilveiraFilho.pdf (acesso 06 de dezembro, 2021).
https://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/a...
).

O grande Outro é um lugar de desdobramento da fala, da combinatória significante que caracteriza e estrutura o inconsciente (Quinet, 2012Quinet, A. (2012). Os Outros em Lacan. Zahar (Coleção Passo-a-passo).). Entretanto, o Outro só pode ser apreendido pelo sujeito a partir da imagem que se forma em algum ponto do espaço imaginário, quando este assume o rosto de um interlocutor específico. No caso das sociedades do espetáculo, uma das formas que esse interlocutor assume é a da televisão.

Na produção das imagens televisivas, entre a captação das imagens pela câmera e a projeção do produto final composto por essas imagens, situa-se uma série de operações, um trabalho que recorta o material bruto até que ele se torne o produto final. Ocupando, nesse processo de trabalho, uma posição intermediária entre o material bruto e o produto final, a câmera, todavia, por seu funcionamento mesmo, não nos deixa perceber a transformação efetuada. A transformação do roteiro em imagem dissimula sua base técnica, ou seja, o trabalho empregado no recorte, seleção e encadeamento das imagens (Baudry, 1983Baudry, J-L. (1983). Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. Tradução de Vinicius Dantas. In I. Xavier (Ed.), A Experiência do cinema: antologia (pp. 383-399). Edições Graal: Embrafilme (Coleção Arte e Cultura, v. n 5).).

O mecanismo ideológico em ação no espetáculo se concentra na relação do sujeito com a tela da televisão, lugar fabricado pela câmera e pelo aparato técnico e político que a conduz. O olhar que o espectador deposita no vídeo é subsidiário de um outro olhar, “aquele que determina o ângulo, a distância e a duração segundo os quais o motivo é dado à visão” (Machado, 2007Machado, A. (2007). O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. Paulus., p. 10). Esse olhar agenciador, que anteriormente já olhou as cenas que, sem ele, simplesmente não existiriam para serem oferecidas ao nosso olhar, não é alguém no sentido de ser uma pessoa, mas a função simbólica que organiza o texto televisivo, “um ‘alguém’ que só pode existir na estrutura do filme como uma lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar” (Machado, 2007Machado, A. (2007). O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. Paulus., p. 20).

O ritual da interpelação ideológica, cuja principal função é a de produzir laços sociais, é reiteradamente atuado na/pela televisão “Bom dia meu amigo telespectador!”. O Capital nos interpela como consumidores, o Espetáculo nos interpela como (tele)espectadores: ao reconhecermos que essas interpelações se dirigem à nós, integramo-nos ao sistema. No caso de sermos interpelados - não por um amigo, não pela polícia ou por qualquer outro sujeito empírico, mas - pelo espetáculo, ou, mais concretamente, pela TV, ao deixar-se estar à frente do aparelho o sujeito já reconheceu que a interpelação se dirigia a ele. Em todo caso, o que está em questão na interpelação ideológica - e, como vimos, na ideologia de maneira mais geral - é a evidência (ou a “naturalidade”) com que o ritual ocorre.

O que propomos é que o slogan A gente se vê por aqui da Rede Globo foi o slogan institucional utilizado durante mais tempo (10 anos) pela emissora porque ele consegue condensar a forma específica como se dá a interpelação ideológica no âmbito do espetáculo. Isso porque, para que a interpelação ideológica na forma de um “Ei você aí!” funcione no espetáculo, é necessário que a interpelação na forma de um “A gente se vê por aqui” já esteja funcionando. Ou seja, para que o sujeito reconheça que a interpelação do apresentador do programa de televisão - “Ei você aí, telespectador!” - dirigiu-se a ele, e não a outro, é necessário que a ilusão de que eles (a gente) estejam se vendo (se encontrando) já esteja funcionando.

Na forma como se dá a interpelação ideológica no âmbito do espetáculo, não é necessário que se responda “Bom dia para você também, televisão!”. Para que o ritual de reconhecimento se efetive, basta que o sujeito se coloque na posição de telespectador. O que não é muito diferente do reconhecimento ideológico como explicado por Althusser, no caso do exemplo que ele dá de alguém que nos interpela na rua “Ei, você aí!”, basta que o sujeito se volte a quem o interpelou para que o “indivíduo se torne sujeito”, já que reconheceu que a interpelação se dirigia a ele, e não a outra pessoa (Althusser, 1970Althusser, L. (1970). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução: Joaquim José de Moura Ramos. Martins Fontes (Ideologie et apareils ideologiques d’etat, 1970).).

Uma vez que o Espetáculo “é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 30, grifos do autor), ele é a consequência do próprio desenvolvimento do capitalismo, “a consagração da plasticidade do próprio capital” (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). O espetáculo como meio de subjetivação. In E. Bucci, & M. R. Kehl (eds) Videologias: ensaios sobre televisão (pp. 43-62). Boitempo., p. 46). O deslocamento da interpelação ideológica - “Ei você aí!” - que se opera na forma do A gente se vê por aqui é correlata a elevação do olhar como a principal forma de laço social nas Sociedades do Espetáculo. O Outro do Capital, feito Espetáculo - como “o dinheiro que apenas se olha” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 34, grifos do autor), convoca-nos a olhá-lo/olharmo-nos e a darmo-nos a ver para sermos olhados.

Em A gente se vê (por aí ou por aqui), “se ver” tem, pelo menos, um triplo efeito em relação ao sentido da ação posta pelo verbo. Na expressão coloquial A gente se vê por aí, “se vê” significa também “encontrar-se”. Quando utilizada como cumprimento de despedida, usamos essa expressão com a seguinte intenção: eu me despeço de você por agora, mas espero que nos encontremos novamente, em um outro lugar, em outro momento. Mas “se vê” pode significar também “olhar-se (a si mesmo)” ou “olharmo-nos (um ao outro) mutuamente”, já que a partícula “se” pode funcionar tanto como pronome reflexivo próprio (o sujeito é ao mesmo tempo o agente e o paciente da ação) como pronome reflexivo recíproco (a ação passa-se entre dois ou mais sujeitos, ao mesmo tempo agentes e pacientes da ação, como em “Pedro e Maria se amam”).

O slogan A gente se vê por aqui contém a afirmação “A gente se vê”, em que “se ver”, com a partícula “se” funcionando como pronome reflexivo próprio, suscita os seguintes sentidos: “a gente se conhece/se reconhece”, já que se apoiam no verbo “ver”. Essa afirmação “A gente se vê (a si mesmo)” é própria da ilusão fundamental que resulta da interpelação ideológica, na qual o sujeito coloca-se a si mesmo em sua própria transparência. Todavia, no mesmo enunciado há a própria negação desse mesmo absurdo a partir da preposição “por” que denota “o lugar por onde”, “o meio ou modo pelo qual” a gente se vê, definido como aqui e não lá/aí. Sendo assim, não se diz apenas “A gente se vê”, mas enuncia-se que “A gente se vê por meio daqui”, ou seja, através da televisão.

O deslocamento que se processa entre a interpelação descrita por Althusser na forma de um “Ei você aí!” e a interpelação ideológica no âmbito do espetáculo, que propomos ter a forma de um A gente se vê por aqui, condensado nesse slogan pela Rede Globo, é muito sutil. Isso porque as duas formas de interpelação ocorrem em uníssono: o apresentador do programa de televisão a que estamos assistindo nos interpela “Ei você aí, telespectador”, mas, na verdade, ele se dirige à câmera, que capta a imagem que será transmitida para a tela do aparelho de TV que estamos assistindo, que é de fato o de onde parte a interpelação, ou seja, de uma anterioridade simbólica. Esse Outro lugar () de onde parte a interpelação, anuncia-se, entretanto, como um aqui.

O aqui do slogan-interpelação A gente se vê por aqui é mais um agora - “vejo o mesmo que os outros estão vendo no momento mesmo em que todos estão vendo” (Fechine, 2009Fechine, Y. (2009). A Programação da TV no cenário de digitalização dos meios: configurações que emergem dos Reality Shows. In J. Freire Filho (Ed.), A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo (pp. 139-170). Sulina., p. 148) - do que um aqui, que remete não somente ao mesmo momento, mas também a um mesmo lugar. O aqui demarcado nesse slogan é o próprio espaço do espetáculo, que “apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 14) e como a parte da sociedade “que concentra todo o olhar e toda a consciência” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Contraponto. (La Société du spetacle, 1992), p. 14).

Toda interpelação ideológica tem um efeito retroativo que resulta do escamoteamento de seu próprio ato, derivando na evidência dos sujeitos, como se eles fossem “sempre-já-sujeitos”, o que provoca o apagamento de que o sujeito resulta de um processo de interpelação-identificação. Sendo assim, a interpelação ideológica na forma de um A gente se vê por aqui continua tendo esse efeito - acreditamo-nos todos “sempre gente” -, mas há nela um escamoteamento suplementar: essa forma (con)funde o agora (mesmo momento) com o aqui (mesmo lugar). No uso que fazemos da televisão, estamos todos olhando para as mesmas imagens que nos são dadas a ver, fazemos isso ao mesmo tempo (agora) que tantos outros, com os quais sentimos estar partilhando um mesmo aqui/agora.

5. Considerações Finais

A produção técnica e cultural das sociedades de massa está toda ela pautada no ritual da interpelação ideológica: desde os aplicativos oferecidos através de iphones, tablets, ou qualquer outro tipo de instrumento técnico que nos interpela (demanda, portanto) para que nos engajemos na “interatividade” que nos é oferecida; ou mesmo a infinidade de tecnologias comunicativas através das quais é possível que “os sujeitos se vejam - uns aos outros - por aqui”, onde aqui se refere sempre à tela (aparelho técnico/objeto/produto), que mais e mais se descola de seu lugar tradicional entronizado na sala de visitas, para pôr-se nas mãos dos sujeitos, reforçando a ilusão oferecida do empoderamento. O que também significa que mais e mais pessoas deixam de olhar para os lados, para fixarem-se nos aparelhos que carregam em suas mãos.

A sobreposição/invasão da vida pública pela vida privada e o aumento da intensidade das relações consigo - tão patente no culto à personalidade e à autoestima que faz o discurso televisivo em toda sorte de programas e quadros que se dedicam a promover um empreendedorismo do self (Freire Filho, 2009Freire Filho, J. (2009). Renovações da filantropia televisiva: do assistencialismo populista à terapia de estilo. In J. Freire Filho (Ed.), A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo (pp. 53-88). Globo Universidade/Editora Sulina.) - não apagam o fato de que o ser humano é um animal gregário, ainda que a expansão industrial dos objetos da cultura reforce o isolamento dos sujeitos vivendo nas grandes massas urbanas. Boa parte do poder da televisão (e de seu modelo de produção unidirecional) em manter sua posição em nossa sociedade, mesmo frente ao surgimento da internet e uma série de outras ferramentas virtuais que oferecem a possibilidade de interatividade (que na TV não passa de uma promessa tão reiterada quanto falaciosa) está no fato de que, na simultaneidade da transmissão, há a possibilidade de uma co-presença; por outro lado, esta prescinde do encontro tête-à-tête, se dá pelo olhar.

Esse tempo público que a televisão é capaz de instituir gera um espaço de coabitação social, ao oferecer um repertório comum para os sujeitos, sendo que “na base da produção desses efeitos, está o ‘ver junto’ (assistir à mesma coisa no mesmo tempo que os outros)” (Fechine, 2009Fechine, Y. (2009). A Programação da TV no cenário de digitalização dos meios: configurações que emergem dos Reality Shows. In J. Freire Filho (Ed.), A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo (pp. 139-170). Sulina., p. 150). Esse espaço-tempo de telepresença compartilhada depende de estratégias que camuflem o aparato (técnico e político) de mediação entre a TV e o “mundo”, diminuindo - pela impressão que visa criar no telespectador - a distância entre o sujeito e a TV. Esse efeito depende do apagamento do fato de que é feito um recorte, criando a ilusão de um contato direto entre os sujeitos e o “mundo” como é recortado pela TV (Fechine, 2009Fechine, Y. (2009). A Programação da TV no cenário de digitalização dos meios: configurações que emergem dos Reality Shows. In J. Freire Filho (Ed.), A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo (pp. 139-170). Sulina.).

A televisão representa o telespectador a todo o momento, alardeando a importância de seu público telespectador, sondando-o através das pesquisas publicitárias e de audiência. A participação efetiva do público, entretanto, continua a ser uma ausência estrutural sempre tamponada por uma presença encenada e editada. “Deixe sua opinião na nossa página na internet, responda a nossa enquete”. Essa “democracia televisiva” ajuda a esvaziar, ou mesmo silenciar espaços concretos de participação política. Todo esforço publicitário em afirmar a interatividade - ou seja, uma relação estabelecida numa via de mão dupla entre telespectador e emissora - serve para mascarar a sua verdadeira impossibilidade: “Os meios de comunicação oferecem programas gratuitos em cujo conteúdo e composição o consumidor não tem absolutamente nenhuma escolha, mas cuja seleção é depois rebatizada de ‘livre escolha’” (Jameson, 1996Jameson, F. (1996). O pós-modernismo e o mercado. In S. Zizek (Ed.). Um mapa da ideologia (pp. 279-296). Contraponto. , p. 282).

A relação intrínseca entre os meios de comunicação de massa e o mercado costura-se nessa simulação da liberdade de escolha. O conceito de livre mercado, pelo qual a economia seria gerida por uma “mão invisível” se contrapõe às próprias práticas econômicas nas quais o domínio dos oligopólios e das multinacionais conjugam poder econômico ao poder político, que muito se afastam da chamada livre concorrência (Jameson, 1996Jameson, F. (1996). O pós-modernismo e o mercado. In S. Zizek (Ed.). Um mapa da ideologia (pp. 279-296). Contraponto. ). A liberdade de escolha se traduz numa obrigatoriedade de consumo, na qual todas as opções já estão pré-determinadas.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (CNPq), e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2021
  • Aceito
    10 Abr 2021
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