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Resenha do livro Brasil Arcaico Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 de Carlos Monarcha

RESENHA REVIEW

Resenha do livro Brasil Arcaico Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 de Carlos Monarcha

Eustáquio José de Souza Junior

Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Professor na Faculdade Pitágoras e Faculdade Presidente Antônio Carlos; Colaborador do Laboratório de Psicologia e Educação (LAPED) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Membro da Rede Iberoamericana de Pesquisadores em História da Psicologia. E-mail: eustaquiojunior@gmail.com

Correspondencia para Faculdade Pitágoras de Divinópolis Av. Santos Dumont, 1001, Do Carmo CEP 35600-000 Divinópolis, MG Brasil

MONARCHA, Carlos. Brasil Arcaico Escola Nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

O processo de escrita da história tem respondido às demandas de grupos integrantes das tramas sociais em diferentes momentos. É possível que parcialidades historiográficas expliquem algo dos equívocos de tomar a instituição escolar como mantenedora de virtudes em tempos de aridez social, ou ainda, de considerar a escola como veículo de reprodução do modus operandi de práticas sociais consolidadas. De um modo ou de outro, a naturalização de instituições pode obscurecer os vieses da dinâmica consolidatória destas instituições. No caso específico da instituição escolar brasileira, entre estadunidenses e europeus1 1 Para uma discussão sobre as matrizes do pensamento social brasileiro e suas relações com as culturas estadunidense e europeia ver MARTINS, Maro Lara. Entre americanos e ibéricos: teoria social na Primeira República brasileira. Política e Sociedade. v. 9, n. 3, p. 231-257, out. de 2010. , Carlos Monarcha apresenta um texto que se situa entre uma história das ideias e uma sociologia dos intelectuais mobilizadas pelo fenômeno Escola Nova. A obra Brasil Arcaico, escola nova: ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930 apresenta como temática o movimento escolanovista, especialmente naquilo que se refere às suas fundamentações científicas e políticas. Monarcha é Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Livre-Docente pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista. É Professor Titular na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Sua produção acadêmica no campo da historiografia da educação brasileira conta também com obras como A reinvenção da cidade e da multidão – dimensões da modernidade brasileira: a Escola Nova2 2 Referência completa: MONARCHA, Carlos. A reinvenção da cidade e da multidão – dimensões da modernidade brasileira: a Escola Nova. São Paulo: Cortez Editores Associados, 1989. , Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes3 3 Referência completa: MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. , Por Lourenço Filho: uma biobibliografia4 4 Referência completa: MONARCHA, Carlos. LOURENÇO FILHO, Ruy. (Orgs.) Por Lourenço Filho: uma biobibliografia. Brasília: INEP/MEC, 2001. . Monarcha também é autor de três verbetes do Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil5 5 JACÓ-VILELA, A. M. Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, 2011. , de 2011. Na publicação, o autor dicionariza a Escola Normal de São Paulo, o Instituto de Educação Caetano de Campos e o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado de São Paulo. Os verbetes remetem à contribuição do autor para o campo da História da Educação, com destaque ao papel da psicologia instituída na história da educação brasileira. O diálogo entre os campos da educação e da psicologia no período de 1920-1930 é fartamente documentado e este pode ser considerado o maior mérito da obra resenhada neste texto.

De início, o autor destaca sua intenção de dar certa inteligibilidade ao emaranhado das forças interatuantes no movimento escolanovista. A atração exercida pelos acontecimentos brasileiros das três primeiras décadas do século XX produziu consistente material historiográfico sobre a então denominada "Educação Nova". Entretanto, já na primeira página do prefácio, o autor aponta que "o tema [...] continua a dispor fortemente do nosso imaginário coletivo" (p. 15). O caráter polissêmico da expressão Escola Nova é uma das linhas condutoras do livro. A multiplicidade de eventos em jogo na constituição deste movimento, assim como a abertura de possibilidades para a sua reinterpretação, competem para a compreensão da presença de discussões sobre a Escola Nova na contemporaneidade. O texto situa o Brasil no foco da tensão existente entre o cosmopolitismo e o indigenismo, conferindo mais um aspecto distintivo à obra. Com estilo próximo ao literário, mas sem prescindir de rigor para com as fontes, o autor conduz o leitor às vicissitudes historiográficas do movimento escolanovista brasileiro.

O autor de Brasil Arcaico Escola Nova aponta que a elevação humana proclamada pelo ensino clássico, corporificado pela figura de Herbart, cederia lugar à nova perspectiva que se ocuparia em proporcionar respostas pragmáticas às demandas das elites brasileiras. O texto apresenta a tônica da constituição de uma nova visão política sobre o papel da escola e da criança num palco que teve como precedentes, por um lado, as investigações psicométricas de Quetelet, Binet e Simon e, por outro, na "concepção ontogenética dos Oitocentos, que entendia o desenvolvimento do indivíduo como caracterizado por uma evolução definida pela complexificação progressiva das estruturas físicas, mentais e morais".6 6 GOUVEIA, Maria Cristina. Estudos sobre o desenvolvimento humano no século XIX: da biologia à psicogenia. Cadernos de Pesquisa. v. 38, n. 134, p. 535-557, maio/ago de 2008. Com impactos sociais importantes no Brasil do início do século XX, preponderava perspectiva que identificava adaptação com evolução7 7 Segundo Ingold (INGOLD, T. A Evolução da sociedade. In: FABIAN, A. (org.) A Evolução: a sociedade, a ciência e o universo. Lisboa: Terramar, p. 94-121, 2000), Darwin nunca se convenceu de que as modificações decorrentes do processo de seleção natural implicassem qualquer progresso absoluto de uma espécie em relação à outra ou a estágios anteriores de uma mesma espécie. As mudanças adaptativas só poderiam ser compreendidas ao se considerar as condições ambientais que selecionaram tais modificações. , tributária do posicionamento eugênico de Herbert Spencer.

Quanto à forma, o texto se apresenta como um "ensaio documentado" (MONARCHA, p. 16) e se apoia na problematização imanente das "[...] vozes dos sujeitos da época [que] pedem para serem ouvidas e meditadas, de fato, as visões esperançadas de liberdade e felicidade futuras são inequivocamente eloquentes e demandam atenção" (p. 16). A interseção do formato ensaístico com a polifonia dos atores da época analisada constituem uma obra de leitura fácil, além de adaptável à necessidade do pesquisador. É possível acessar as seções isoladamente e/ou na sequência que o leitor eleger.

Quanto ao conteúdo, o livro aborda a trama histórica de um período caracterizado por tensões nacionais e internacionais de grande impacto sobre a população brasileira. Inicia-se discutindo os impactos no campo educacional da intelligentsia brasileira herdeira do moderno século XIX e o decurso do coroamento do saber científico como alicerce das práticas sociais liberais. O republicanismo instigou a composição de um quadro que incluiu reformas que atingiram todas as esferas públicas. Os esforços governamentais incluíam o incentivo à industrialização, aspecto que contribuiu para o crescimento populacional dos grandes centros urbanos que passaram a ser objetos de atos governamentais em direção à urbanização. A estrutura educacional deveria, não somente participar deste processo, mas protagonizá-lo. A educação deveria conduzir a nação para além da condição de submissão às oligarquias tradicionais para um novo modelo de gestão da coisa pública. O aumento da população urbana e a ampliação das funções do Estado, a burocratização, assim como o processo de industrialização, constituíram peças-chave na consolidação das políticas e práticas educacionais direcionadas à população brasileira. Deste modo, o cabedal alinhado à educação clássica cederia vez ao otimismo assentado sobre a panaceia da ciência-educacional-moderna.

O livro se apresenta organizado em cinco partes compostas por dezoito capítulos e um epílogo. Optou-se nesta resenha pela apresentação sintética de cada uma das partes, mencionando os títulos dos capítulos eventualmente, quando isso se fizer necessário ao melhor acesso do conteúdo da obra.

A parte I – A caminho – prologa as demais. O autor parte do descenso do modelo educacional herbartiano de uma educação encerrada em si própria. Concomitante a este processo, Monarcha apresenta a ascensão do experimentalismo na constituição da nova sciencia que contemplaria a técnica em lugar da elevação individual. Era o momento de consolidação de políticas ocupadas em "desbarbarizar o banco escolar" (MONARCHA, 2009, p. 35), ocupado por indivíduos intangíveis pelos meios tradicionais. Eis que sob a sciencia nova poderia vigorar a educação nova. A linha de frente para enfrentar a educação para massas bárbaras (ou contingentes humanos alheios ao funcionamento do maquinário e da produção) contaria com a ciência psicológica funcionalista para viabilização da educação necessária.

Na parte II – Melancolia e mal-estar­ – são apresentadas diretrizes para a configuração de um Estado atormentado pela herança monárquica em tempos republicanos. A desilusão decorrente demandava o saneamento das matérias públicas que tiveram nos campos da medicina e da educação seus agentes mais respeitados. Neste contexto, "As descobertas científicas e a institucionalização da medicina sanitária conferem autoridade ao discurso médico-social." (MONARCHA, p. 97).

Na parte III – Torvelinho da vida moderna – destaca-se a primazia alcançada pelo modelo médico, do qual a psicologia herdara substancial parcela do seu discurso e como este se inscreveu no imaginário social, fundamentando as doutrinas escolanovistas. Neste intuito, o movimento da Escola Nova insuflou "[...] verdade nas construções doutrinárias, com o firme propósito de estabelecer um campo de significações inéditas e, claro, sancionar uma comunidade de linguagem." (MONARCHA, 2009, 166).

Na parte IV – À procura do indivíduo perdido e solitário – Num contexto de elevação do trabalho industrial ao estatuto de catalisador da modernidade, são explorados caminhos percorridos pelos saberes médicos e psicológicos em busca de fundamentação para uma educação universalizada. Merece destaque o trabalho historiográfico realizado no campo dos saberes psicológicos realizados nesta seção. O fio condutor neste ponto do livro é justamente o tratamento científico que deveria ser dispensado aos estigmatizados pela incapacidade intelectual condicionada pela doença física e a miséria sertaneja. A psicologia experimental tinha como um dos seus emblemas o trabalho de Binet e seu instrumental de aferição de habilidades cognitivas. A psicometria emerge como saber científico legítimo, permitindo a classificação e a alocação de indivíduos em grupos homogêneos "educáveis". A disseminação de procedimentos psicométricos como políticas de Estado para a educação respondem à concepção quantitativista da sociedade industrial e do homo economicus apregoado na administração científica taylorista. Paralelamente, o movimento psicanalítico brasileiro emerge como candidato à complementação da classificação psicométrica como agente profilático e corretivo das mazelas educacionais. A introdução do saber psicanalítico na educação nacional compõe a parte V do livro intitulada O discurso do inconsciente. O movimento psicanalítico brasileiro requeria a formação de educadores conhecedores da versão freudiana das vicissitudes do inconsciente. Esta demanda ecoou entre as práticas educacionais que assumiram o estatuto de agentes causais das patogenias infantis, pelo menos do ponto de vista de setores do movimento psicanalítico em consolidação no País.

O otimismo nos olhos dos partidários do novo mundo industrial e da educação nova, a desilusão com as velhas práticas na nova República, os caminhos percorridos pela psicologia e pela psicanálise são assim classificados ao final da parte V:

Distantes da coisa real, seu vocabulário científico e linguagem justificadora triunfaram. Precocidade diagnóstica e esperança de cura caminhavam juntas. Sem cessar, analisava-se a fragilidade da condição humana com fórmulas feitas a machado (MONARCHA, 2009, p. 291).

A melhor compreensão da inserção de fórmulas fantásticas na educação brasileira tem sua trajetória reconstituída no texto, tendo em perspectiva o arcaísmo popular mediante as demandas tecnológicas recebidas e reconfiguradas no Brasil das décadas de 1920 e 1930. Medicina e psicologia emolduravam a educação oficial, destituindo indivíduos da condição de sujeitos. Do ponto de vista do autor desta resenha, enquanto interessado em história da psicologia e história da educação, é inevitável à abordagem de um texto o questionamento da sua intertextualidade8 8 ABIB, José Antônio Damásio. Prólogo à História da Psicologia. Psicologia Teoria e Pesquisa. v. 21, n. 1, jan/abr, p. 053-060, 2005. . Esta é composta pelo 1) pré-texto filosófico e imanente das linhas ou entrelinhas; 2) do texto propriamente dito; e 3) do contexto social do momento da sua produção. Avaliando a publicação sob estes prismas textuais, Brasil Arcaico Escola Nova pode ser considerado abordagem contextual da dinâmica escolar dos anos 1920-1930 a partir dos suportes filosóficos e sociológicos presentes no período abordado. A discussão realizada acerca da instrumentalização psicológica no projeto educacional brasileiro é feita sob a perspectiva das demandas sociais da época, fomentando reflexões sobre as historiografias da psicologia e da educação. Outro aspecto distintivo de destaque é a quantidade de fontes inéditas utilizadas pelo autor. Para os interessados em história da educação, história da psicologia e interfaces entre estes campos, as fontes indicadas compõem material mais que suficiente para pesquisas historiográficas adicionais ocupadas do primeiro quartil do século XX.

Contato

Recebido:13/04/2012

Aprovado: 24/09/2012

NOTAS

  • 1 Para uma discussão sobre as matrizes do pensamento social brasileiro e suas relações com as culturas estadunidense e europeia ver MARTINS, Maro Lara. Entre americanos e ibéricos: teoria social na Primeira República brasileira. Política e Sociedade. v. 9, n. 3, p. 231-257, out. de 2010.
  • 2 Referência completa: MONARCHA, Carlos. A reinvenção da cidade e da multidão dimensões da modernidade brasileira: a Escola Nova. São Paulo: Cortez Editores Associados, 1989.
  • 3 Referência completa: MONARCHA, Carlos. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
  • 4 Referência completa: MONARCHA, Carlos. LOURENÇO FILHO, Ruy. (Orgs.) Por Lourenço Filho: uma biobibliografia. Brasília: INEP/MEC, 2001.
  • 5 JACÓ-VILELA, A. M. Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, 2011.
  • 6 GOUVEIA, Maria Cristina. Estudos sobre o desenvolvimento humano no século XIX: da biologia à psicogenia. Cadernos de Pesquisa. v. 38, n. 134, p. 535-557, maio/ago de 2008.
  • 7 Segundo Ingold (INGOLD, T. A Evolução da sociedade. In: FABIAN, A. (org.) A Evolução: a sociedade, a ciência e o universo. Lisboa: Terramar, p. 94-121, 2000),
  • 8 ABIB, José Antônio Damásio. Prólogo à História da Psicologia. Psicologia Teoria e Pesquisa. v. 21, n. 1, jan/abr, p. 053-060, 2005.
  • Faculdade Pitágoras de Divinópolis
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    Divinópolis, MG
    Brasil
  • 1
    Para uma discussão sobre as matrizes do pensamento social brasileiro e suas relações com as culturas estadunidense e europeia ver MARTINS, Maro Lara. Entre americanos e ibéricos: teoria social na Primeira República brasileira.
    Política e Sociedade. v. 9, n. 3, p. 231-257, out. de 2010.
  • 2
    Referência completa: MONARCHA, Carlos.
    A reinvenção da cidade e da multidão – dimensões da modernidade brasileira: a Escola Nova. São Paulo: Cortez Editores Associados, 1989.
  • 3
    Referência completa: MONARCHA, Carlos.
    Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
  • 4
    Referência completa: MONARCHA, Carlos. LOURENÇO FILHO, Ruy. (Orgs.)
    Por Lourenço Filho: uma biobibliografia. Brasília: INEP/MEC, 2001.
  • 5
    JACÓ-VILELA, A. M.
    Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, 2011.
  • 6
    GOUVEIA, Maria Cristina. Estudos sobre o desenvolvimento humano no século XIX: da biologia à psicogenia.
    Cadernos de Pesquisa. v. 38, n. 134, p. 535-557, maio/ago de 2008.
  • 7
    Segundo Ingold (INGOLD, T. A Evolução da sociedade. In: FABIAN, A. (org.)
    A Evolução: a sociedade, a ciência e o universo. Lisboa: Terramar, p. 94-121, 2000), Darwin nunca se convenceu de que as modificações decorrentes do processo de seleção natural implicassem qualquer progresso absoluto de uma espécie em relação à outra ou a estágios anteriores de uma mesma espécie. As mudanças adaptativas só poderiam ser compreendidas ao se considerar as condições ambientais que selecionaram tais modificações.
  • 8
    ABIB, José Antônio Damásio. Prólogo à História da Psicologia. Psicologia Teoria e Pesquisa. v. 21, n. 1, jan/abr, p. 053-060, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2012
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