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Na arquitetura, a apoteose do popular

Na arquitetura, a apoteose do popular

Telmo Pamplona

Arquiteto

Para aquele motorista de táxi amarelo, ex-adepto da campanha brizolista, o dinheiro público aplicado no Sambódromo deveria ser gasto no aumento negado às "professorinhas". No rádio de domingo, o locutor com a voz americanizada anuncia pela Transamé-rica FM a balada "Banana Republic", dedicada a "todos os gringos que moram no Rio". Você pega o metrô em Botafogo, vai direto pro Estácio, e chega ao Sambódromo, ou Passarela do Samba, ou Avenida dos Desfiles e o encontra fechado, vazio, guardado pela PM.

Impossível não mergulhar neste mar de impressões contraditórias, neste fluxo de fatos e idéias que se movem em sentido contrário, para "cair na real" do Rio-Brasil. Triste realidade: os salários são os mínimos. A habitação é precária, sem espaço nem equipamento urbano. O transporte corre a hora livre. O lazer é futebol, é Sílvio Santos. Depois, os filhos. Fila de INAMPS. E a morte. Os bairros proletários se transformaram num imenso depósito urbano de mão-de-obra barata.

Diante desse quadro, não é de admirar que o carnaval, grande mo-bilizador das massas cariocas, assuma a força que tem. Segundo seus realizadores, o sambódromo corresponde às expectativas dessa gente sofrida. Será verdade?

Inserido na antiga "zona do mangue" carioca, rodeado pelas favelas, existiria uma arquitetura adequada para o Sambódromo? O projeto é simples e eficaz: foi estruturado sob a forma de "módulos" de arquibancadas (como nos estádios de futebol), extensos planos inclinados que no seu interior guardam as salas de aulas. Em frente às arquibancadas, num bloco único e comprido, quase encostado na fábrica Bhama, foram dispostos os três níveis de camarotes, que acabam também dando uma referência teatral ao espaço projetado.

Este conjunto de arquibancadas e camarotes abriga, perfeitamente, o desenvolvimento do desfile tradicional das escolas de samba, antes realizado na via pública. Ao complementar o projeto, entretanto, com a abertura de uma grande "praça" da apoteose, simplesmente o projeto reabre a discussão da estrutura do desfile tradicional, que antes se desenvolvia apenas linearmente na avenida. Entra-se no espaço da dança, indutor de uma nova "coreografia" e, neste processo, se re-discute também cultura popular.

Os "módulos" de arquibancadas se assentam sobre uma estrutura de arcos de concreto, o que garante a continuidade do espaço ao nível da rua. Esta mistura de "rua de desfile", espaços cobertos contínuos sem vedação e o grande pátio descoberto (a praça da apoteose) sugerem a apropriação imediata da área por parte da população circunvizinha (atenção, assessores do governador Brizola: parem de "guardar" o Sambódromo para shows e o entreguem à sua própria sorte...), como espaço de lazer e mesmo de trabalho (uma vez devidamente equipado), à moda do que já hoje se faz nas quadras das escolas de samba, por vezes o único espaço comunitário de bairros suburbanos e favelas.

A genialidade do projeto consiste exatamente nesta proposta de "colagem" urbanística apropriada, onde uma arquitetura de concreto aparente, com forma diferente do que existe ao seu redor, pode com ele se integrar, compatibilizando o uso para desfile de escola de samba com o uso para reuniões, espetáculos, atividades escolares, vida comunitária.

O sambódromo tem formas extremamente sóbrias. Pode-se até confundir a simplicidade adotada como uma "falta de inspiração" do arquiteto. Julgo, entretanto que, nesta obra, Niemeyer conseguiu o que durante toda sua carreira perseguiu: realizar uma obra radicalmente popular.

No fundo da praça da apoteose fica o Museu do Samba, com sua "alegoria". O que significa? Para alguns, o M do MacDonald's. Para outros, uma bunda de mulata. Para mim lembra o olhar da incerteza que ainda paira sobre nós...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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