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Quem luta pela vida?

Quem luta pela vida?

Carlos Alberto Emediato

Sociólogo, membro da Iniciativa Planetária Para o Mundo em que Vivemos e professor da Universidade Federal de Minas Gerais

A crise que vivemos não resulta das limitações ou defeitos da natureza ou dos homens; ela decorre da inadequação da "ordem" política e econômica atual, para a satisfação das necessidades humanas. Dessa "ordem" nascem soluções que contrariam e agridem o desejo de vida da grande maioria da população do planeta. No centro da crise está a marginalidade econômica e política da maioria das populações, originada da ordem social existente em cada país e das relações entre as nações.

As decisões de interesse global das populações do mundo são tomadas por pequenos grupos, tanto nos governos e empresas das grandes potências, como nas instituições internacionais controladas por essas mesmas potências: Pacto de Varsó-via, Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas – ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional – FMI, etc.

As ameaças à vida se apresentam todos os dias, sob as formas mais variadas: através de processos econômicos, como o desemprego, a fome, a espoliação financeira; através das formas de destruição pelas guerras, pela repressão policial ou pelo enfraquecimento das pessoas e da sociedade civil diante da opressão dos sistemas autoritários. E estas decisões só vigoram porque delas não participa a maioria dos interessados.

As idéias e valores que sustentam a ordem econômica e política do mundo de hoje impedem que os problemas globais sejam tratados com prioridade. A preocupação com a identidade nacional, religiosa ou racial, por exemplo, esbarram em uma visão de poder identificada apenas com as instituições vigentes.

A luta ecológica vem cada vez mais se caracterizando pelo enfren-tamento das diversas ameaças à vida em todas as regiões do mundo. Ainda mais, ela coloca questões e propostas que não se limitam a problemas particulares de indivíduos e países. Juntamente com a luta ecológica encontram-se as lutas dos chamados "novos movimentos sociais": o pacifismo, o feminismo, a defesa dos direitos humanos, etc. Seu ponto comum é a resistência à destruição da vida.

Os movimentos ecológicos

Estamos acostumados a ver o movimento ecológico através de manifestações ligadas à denúncia de problemas locais e particulares de degradações de qualidade de vida. Qual então é o relacionamento desse movimento com o quadro complexo e mundial da crise?

A contaminação dos alimentos está ligada à ação de poderosas empresas multinacionais que produzem pesticidas. Da mesma forma, a venda indiscriminada de remédios se liga a interesses de poderosos grupos farmacêuticos. A grande contaminação da água e do ar é produzida pelas indústrias metalúrgicas e químicas, afetando a saúde dos trabalhadores e da população em geral sem indenização pelas doenças e riscos. A destruição das condições de vida são saques brutais e diários feitos à coletividade não só contra os recursos do presente como do futuro.

Na verdade, o movimento ecológico extrai sua força da relação direta e pessoal com os problemas. As denúncias e protestos são formas de as pessoas se defenderem diante da destruição de seu corpo e de seu ambiente imediato. A relação das questões diárias concretas com as questões mundiais é um elemento central da prática educativa dos movimentos ecológicos, e é isso que define o caráter político de suas lutas.

Essa atuação política vem se valendo de vários tipos de manifestações – convencionais ou não – e com a participação de muitas correntes diferentes: grupos religiosos, estudantis, profissionais, feministas etc. A variedade de grupos é articulada a partir das lutas, sem vincula-ção organizacional permanente. A centralização é evitada pela manutenção da autonomia das entidades e grupos de base. Canais de comunicação e redes de contatos vêm sendo criados para facilitar a articulação. Os movimentos de massa são estimulados e assistidos por coalizões.

Mesmo em países como a Alemanha, Itália e França, onde partidos ecológicos estão funcionando, a autonomia é buscada na não subordinação das entidades locais aos partidos. O que há é uma entidade de interesses e uma complementaridade de instrumentos, onde o partido funciona ao nível das instituições parlamentares, desafiando o Estado por dentro.

No Brasil é crescente o número de entidades ecológicas em ação. Em São Paulo, uma relação parcial mostra a existência de 167 entidades que tentam fazer uma articulação não-centralizadora, através da Assembléia Permanente das Entidades de Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA). Estão sendo organizadas redes nacionais e internacionais voltadas a campanhas mundiais específicas, como a "Rede de Ação Contra os Pesticidas", e redes de ação ecológica, como os "Amigos da Terra", ambas representadas pela Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG). Há também redes de ação educativa e política global, envolvendo pacifismo, ecologia e direitos humanos, como a "Iniciativa Planetária para o Mundo que Escolhemos". São redes mundiais e estão voltadas para o desenvolvimento de uma nova visão de um novo ordenamento social que altere as bases onde se assentam as relações de poder, de produção e de convivência.

O movimento ecológico é, antes de tudo, a expressão da consciência ecológica que se manifesta na ação de diversos grupos científicos, populares, artísticos etc. Ele constitui-se, amplamente, como a expressão de uma consciência universalizadora de proteção à vida e de criação de novas formas de organização social e produtiva.

Obstáculos

Mas, o movimento ecológico vem sendo ameaçado também por alguns obstáculos que, na medida do possível, começam já a ser superados: o particularismo, a privatização e a falta de ousadia.

O particularismo é mais presente na corrente chamada "conservacionista" e leva, por exemplo, a não se relacionar o corte indiscriminado de árvores à depredação econômica generalizada; ou a poluição do rio com a industrialização selvagem que nos foi imposta. Perde-se, assim, o entendimento da cadeia geradora de destruição e, também, da luta pela vida e pela justiça, idéias essenciais ao pensamento e à prática ecológicas.

A privatização está associada com os objetivos do lucro imobiliário ou industrial. São, por exemplo, os fabricantes de filtros, a quem interessa apenas combater os efeitos da poluição e não as causas. A quebra da privatização se dá quando o movimento ecológico se torna um movimento popular.

A falta de ousadia está relacionada a uma prática mais ligada à denúncia do que à elaboração de uma concepção nova e vigorosa de como organizar as relações de produção e sociais a partir de outros pontos de referência.

Transição

A força transformadora do movimento ecológico está na sua possibilidade de gerar uma nova proposta para as relações produtivas, culturais e de vida pessoal. A industrialização, a centralização do poder e a burocracia tais como as conhecemos são processos que se desenvolvem na civilização moderna tanto sob o capitalismo quanto sob as formas conhecidas de socialismo. Uma nova perspectiva tem que ser nova mesmo.

Hoje, espera-se dos governos eleitos pelo povo que desenvolvam uma outra postura governamental, onde se possam criar mecanismos para produzir as condições adequadas ao surgimento de projetos cooperativos de trabalhadores. Sabemos que recursos como a terra, financiamentos através de bancos públicos, assistência médica, sistema de apoio à comercialização existem e são possíveis de serem utilizados para financiar novos experimentos. O desemprego, em si, já constitui uma disponibilidade de mão-de-obra.

Mas, uma proposta ecológica para valer iria além da constituição de unidades econômicas cooperativas. Ela implica a gerência comunitária de seus recursos e a dinâmica participativa entre seus membros. Uma proposta ecológica implica, necessariamente, a mudança de valores básicos e das formas de relacionamento produtivo e de convivência. A comunidade é uma unidade de criação cultural que mantendo sua dinâmica interna desempenha uma função educativa e transformadora. Um experimento pode se tornar semente. Espalhadas muitas sementes poder-se-á começar a criar núcleos, redes de relações e a configurar-se as mudanças do sistema econômico, político e cultural.

No quadro atual da crise, é ingenuidade pensar que as soluções vão ser encontradas dentro dos parâmetros convencionais. É ingenuidade pensar que os problemas econômicos brasileiros vão ser resolvidos com a recuperação das economias centrais (Estados Unidos, Europa). Da mesma maneira, é impossível que a violência, a concentração de terras, a destruição, a alienação dos trabalhadores do poder sejam significativamente alteradas pela simples' criação de mais empregos. É necessário superar as formas de dominação.

O futuro

O papel dos movimentos ecológicos, num momento de crise como o que estamos vivendo, é exercer a sua capacidade de criar uma nova visão, que oriente a construção de uma nova proposta de relações entre os homens e destes com a natureza. Algumas características da crise global podem nos ajudar a entender a direção política que vêm tomando os movimentos ecológicos hoje, como ajudar a entender a possibilidade de uma sociedade orientada para o respeito à vida:

1) Em primeiro lugar, no sistema econômico mundial existe, cada vez mais, uma situação de mútua dependência entre coisas aparentemente separadas: importação-exportação, dívida externa, mecanismos financeiros internacionais que atingem tanto o sistema capitalista como o comunista. Essa dependência mútua aparece também na corrida armamentista e na cadeia de reações gerada pelos conflitos armados. A crise ambiental é interdependente porque a vida na terra é uma unidade e está totalmente contaminada pela radiação atômica, pela poluição química, pela erosão e por traumatismos gerados por interferências humanas violentas (como Itaipu, por exemplo).

2) A crise é uma crise de escassez, embora haja abundância de riquezas. Esta característica refere-se especialmente à questão alimentar. A grande fome que atinge, hoje, 800 milhões de pessoas em todo o mundo contrapõe-se ao desperdício de alimentos, à destruição de safras para controle de preços, ao uso estratégico da produção agrícola na disputa do poder mundial.

Pesquisadores norte-americanos denunciaram que globalmente o mundo produz por dia 900 gramas de grãos por habitante da terra. Essa proporção corresponde a mais de 3 000 calorias diárias, com alto teor de proteína, o que é a média de consumo diário de um americano. Nesse cálculo não estão incluídas as produções de vegetais, carnes, raízes e frutas.

Enquanto isso, o governo Reagan vem pagando a produtores da Califórnia e de outros estados para não plantarem e, em alguns casos, para destruírem a produção a fim de garantir preços internos e externos dos produtos. No Japão, a mesma política já foi adotada oficialmente. Nossa televisão mostrou, no ano passado, a queima de pintos no Estado do Pará, sob a alegação de falta de compradores.

Além disso, o desperdício de alimentos em áreas mais desenvolvidas é uma constante. Na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde estudam 12 mil pessoas, uma tonelada de alimentos vai para o lixo diariamente. Geraldo Muller, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CE-BRAP, que se tem preocupado com a produção e comercialização de alimentos, revela que no CEASA, em São Paulo, perdem-se aproximadamente 40 toneladas de alimentos por dia.

A escassez de alimentos torna-se ainda mais absurda se considerarmos que mais de 40% das terras cultiváveis do planeta não são utilizados e que, na África e na América do Sul, menos de 20% das terras cultiváveis vêm sendo usados.

3) A civilização atual já desenvolveu suas forças produtivas de tal forma que a solução dos problemas básicos da humanidade, como a fome e a miséria, está nas mãos dos homens. A utopia não é mais necessária, apenas enquanto projeto futuro. No que diz respeito às necessidades básicas dos homens ela é imediatamente realizável. Cientistas de diferentes países vêm enfatizando a terceira característica da crise global: a contraposição entre o sofrimento de milhões de pessoas e a capacidade material e intelectual dos homens em resolver os problemas da fome, miséria, doenças endêmicas, analfabetismo.

Na verdade, qualquer transição implica criar mecanismos de convivência (e sobrevivência) no presente. Mas para que haja transição é necessário que novas propostas comecem a ser construídas no presente. O futuro começa hoje.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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