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Participação nas empresas do Estado

Participação nas empresas do Estado

Carlos Estevam Martins

Professor de Ciência Política da USP

O atual governo democrático de São Paulo deu um passo importante para a construção da democracia participativa. Foi além das exigências da lei que obriga a inclusão de pelo menos um representante dos empregados na direção das empresas estatais. Criou um sistema que institucionaliza a participação orgânica, permanente e abrangente de todos os empregados das empresas nas quais o Estado é acionista majoritário.

Os estatutos das empresas estatais foram modificados, obrigando a criação de um Conselho de Representantes (CRE) eleito pelos empregados com a função de indicar um representante junto à direção da empresa. Com isso, a possibilidade de participação foi estendida a todos os demais órgãos intermediários e de base que completam o sistema de participação, cujo vértice é ocupado pelo CRE.

Que significa realmente este sistema de participação? Temos que começar por admitir que houve uma inovação. O sistema recém-criado é uma nova instituição justamente porque faculta aos empregados a oportunidade de participar do processo.de direção das empresas em que trabalham. A lei tinha em vista instituir uma forma de democracia representativa por meio de um representante que atuaria junto à direção das empresas em nome dos empregados. Isso foi feito. Mas, além disso, criou-se uma forma particular de democracia intra-organizacional. O principal objetivo alcançado consiste na modificação das relações entre o trabalhador e as suas condições de trabalho. É claro que não houve uma revolução, mas se trata de um avanço do ponto de vista da desalienação do trabalhador assalariado.

Tal sistema de participação permite que os empregados passem a se ocupar daquilo que até então lhes era proibido por ser privilégio exclusivo dos dirigentes. Eles agora podem intervir nas principais etapas e nos níveis superiores do processo decisório que define as atividades e os rumos da organização. Sem dúvida, isso não elimina a linha divisória que separa dirigentes e dirigidos. As relações hierárquicas, de comando e obediência, continuam a existir enquanto forma basilar de organização do trabalho. O conteúdo dessas relações, no entanto, modifica-se de modo substancial na medida em que as ordens emitidas pela cúpula perdem o caráter de produtos de um processo opaco, inacessível e incompreensível. A empresa continua a ser dirigida e administrada por seus órgãos competentes. Todavia o processo fundamental da deliberação não transcorrerá mais entre quatro paredes, sob o controle exclusivo de uma potência estranha que se impõe uni-lateralmente, à parte e acima daqueles que são encarregados de cumprir as ordens recebidas.

Conquistando o direito de influir

A novidade está no fato de que, daqui por diante, os subordinados não se limitam a ser, o tempo todo e em todas as circunstâncias, apenas subordinados. Em vez de estar confinado a um único papel, o empregado desempenha agora dois papéis: o antigo, que o define como membro subalterno de uma estrutura hierárquica; e o novo, que desempenha enquanto membro igualitário de um sistema de participação aberto a todos. Sua existência dentro da organização passa a ter dois planos e se enriquece graças à aquisição de uma nova dimensão.

Há quem pense que a participação se torna ilusória quando os empregados não têm o poder de nomear um ou mais diretores da empresa em que trabalham. Esta tese confunde participação com co-gestão e, até mesmo, com autogestão. Nesses dois casos existe transferência real de poder de uma esfera para outra, de tal modo que os empregados, além de obedecer, passam também a mandar nas empresas: parcial e ocasionalmente, no caso da co-gestão; integral e permanentemente, no caso da autogestão. A participação, ao contrário, não requer que o poder se desloque. Nada impede que ela exista e produza os efeitos que lhe são pertinentes, permanecendo o poder sediado nos órgãos superiores de direção, vale dizer, a assembléia de acionistas, o conselho de administração e a diretoria executiva, no caso das sociedades anônimas. A participação garante ao empregado o direito de influir, de modo formalizado, sobre o conteúdo e os resultados de processos ao longo dos quais se produzem deliberações fundamentais, referentes à vida e ao destino da organização.

Por que razão, caberia perguntar, não se instituiu a co-gestão? A resposta é simples. Não estamos lidando com empresas privadas e, sim, com empresas nas quais o Estado é o acionista majoritário. Não se trata, portanto, de modificar as relações entre o capital e o trabalho, por meio de redistribuição co-gestionária do poder. No caso das entidades públicas, sejam elas empresas, autarquias, fundações ou órgãos de administração direta, a questão do poder se coloca e se resolve no âmbito da sociedade global, por meio da constituição e do funcionamento adequado do regime democrático, e não no âmbito de cada entidade, como se fosse uma questão de interesse exclusivamente intra-organizacional. Só para um tipo muito especial de pensamento antidemocrático tem cabimento admitir que a vontade dos funcionários e empregados públicos seja superior à dos representantes eleitos do povo.

O processo de participação se realiza e a partir de três conjuntos de condições: 1) será preciso estabelecer os órgãos, os procedimentos e os meios materiais que constituem o sistema de participação e permitem o seu funcionamento regular; 2) são necessárias certas garantias básicas entre as quais se destacam, de um lado, a proteção contra as reações arbitrárias, motivadas pela intenção de impedir ou restringir a atividade participacionista e, de outro lado, o direito de livre acesso às informações referentes à vida da empresa, de modo que seja aberta a caixa preta em que o sigilo burocrático guarda os dados indispensáveis à participação de todos no processo decisório; 3) é necessário que os empregados reformulem suas atitudes e comportamentos e se disponham a levar a cabo o processo de descoberta e aprendizagem sem o qual não atualizarão as potencialidades inerentes ao sistema de participação.

Esse último ponto tem a ver com as diferenças que distinguem o sistema de participação de duas instituições congêneres: o sindicato e a associação de empregados. Ambas dizem respeito à vida dos empregados e não à da empresa e, portanto, nada podem fazer para suprimir o radical defeito do trabalho alienado. Justamente porque se volta para o debate dos objetivos e das políticas empresariais, o sistema de participação não se confunde com os sindicatos e as associações, não lhe cabendo substituir ou duplicar suas funções. A finalidade, exclusiva e insubstituível, do sistema de participação é garantir aos empregados o direito de tomar parte no processo de direção das empresas.

É de se esperar que a alteração introduzida nas relações de poder dentro das empresas estatais repercuta, de alguma forma, como exemplo ou por efeito de contágio, na empresa privada. Essa possibilidade será dada não só pelo número, o tamanho e a importância estratégica das empresas estatais, como também pelos resultados positivos que venham a ser alcançados graças à implantação do novo sistema. A intervenção do governo no setor público ensejará, eventualmente, conseqüências relevantes no plano das relações entre capital e trabalho no setor privado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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