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PERFIL

Guel Arraes

A novela mudou. É um fato que poucos contestam. Está mais solta, mais irreverente... mais crítica! E parece que era exatamente isso que as pessoas que ligam a TV às sete horas da noite estavam desejando.

Veja-se o crescente público que ela — que estava um pouco desacreditada um tempo atrás — vem conquistando, até mesmo em faixas da população que não assistem televisão regularmente. Um dos responsáveis por essa mudança é Guel Arraes, diretor das novelas Guerra dos Sexos e Vereda Tropical.

Filho de político importante (o deputado Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, cassado pelo golpe de 64), teve que sair do país aos 15 anos. Viveu dez anos na Argélia e na França, onde começou a se dedicar ao cinema. Depois da anistia, a família pôde voltar ao Brasil. Guel Arraes veio com toda a sua paixão. Mergulhou de cabeça no Brasil, através das novelas.

Marijane Lisboa, de LUA NOVA, traça o seu perfil.

MARIJANE — Você vem de uma família de políticos, cresceu num ambiente de intelectuais, se especializou em cinema na Europa. Levando em conta essa história de vida, como é que você se vê agora, como diretor de novelas na TV?

Eu nem via televisão

GUEL — Eu tive a minha formação profissional fora do Brasil. E, de longe, quando eu me preparava para voltar, a imagem que eu tinha do país era um pouco distorcida. No meu aprendizado de cinema, eu me esforçava para aprender um pouco de tudo, principalmente das técnicas mais simples, achando que, como o Brasil é um país subdesenvolvido, quando eu voltasse eu teria que trabalhar em condições muito precárias. Na verdade, eu estava me preparando para um cinema de guerrilha.

Caí do cavalo. Ou melhor, quando eu fui para a televisão, tive que subir em um outro cavalo. Eu fiquei espantado; não esperava de jeito nenhum encontrar o que encontrei na Globo. Foi um problemaço. Até então eu tinha estado completamente voltado para o cinema e aquilo não tinha nada a ver com a minha cabeça. Eu nem via televisão. Além disso, eu ainda não tinha toda a segurança profissional que é possível ter.

Aos poucos, a coisa foi mudando. Eu comecei a trabalhar com paixão, como tudo que eu faço. Ao mesmo tempo eu tinha uma distância crítica do meu trabalho, meio gozativa. Como eu tinha morado fora durante muito tempo, não me impressionava tanto o fato de estar trabalhando na Globo. A palavra Globo não tinha para mim o mesmo peso, era uma coisa normal.

Essa atitude de gozação, que era muito minha, era reforçada pelo próprio espírito da novela que a gente estava fazendo na época, a Guerra dos Sexos. Ela foi mesmo uma inovação da linguagem de novela, era meio metanovela — gozava a novela dentro da própria novela. Assim: você arma uma cena dramática e logo depois desmancha ela; o ator dá uma piscada de olho e mostra que aquilo é meio na graça.

Foi nesse momento que eu comecei a levar mais a sério esse negócio de novela. Meio na base da intuição, eu comecei a me tocar de que eu estava mesmo respondendo a uma necessidade social. Eu sabia que, se eu ficasse na hora estudando aquele texto e bolasse umas três piadas, no dia seguinte ia ser uma gargalhada geral. Então, eu comecei a entender isso de uma maneira interior mesmo. Percebi que tinha essa função de divertir as pessoas. E, poxa, eu não sou da política do pior. É bom saber que, com o meu trabalho, as pessoas podem rir, se emocionar, se divertir. Com isso, acabei perdendo os preconceitos intelectuais.

MARIJANE — Mas o que, exatamente, te espantou quando você foi trabalhar em novela?

GUEL — Foi a novidade de ser uma arte industrial. É uma coisa muito brasileira, que só é possível aqui. Se for aplicada qualquer lei sindical, qualquer lei de ordem pública, fica impossível fazer uma novela. Em qualquer país do mundo, se eu quiser gravar na rua, eu tenho que ir à prefeitura, à polícia, e pedir uma autorização. Aqui, eu chego na esquina e gravo. Entro na casa dos outros e as pessoas deixam. "Ah, é a rede Globo!". Em lugar nenhum do mundo, técnicos e atores concordariam em trabalhar tantas horas seguidas. Eles têm que decorar dezenas de páginas, são quarenta cenas por dia! É uma coisa pra enlouquecer mesmo.

A garantia cultural dos intelectuais

MARIJANE — Fica claro que, trabalhando com toda essa paixão, você só tinha que perder os preconceitos intelectuais. Mas, e o público? Você tem alguma medida para saber se a gente mais intelectualizada vê a novela?

GUEL — A gente tem duas maneiras de medir o sucesso de um programa de televisão. Uma delas é a audiência mesmo, a quantidade de pessoas que assistem. Mas a repercussão entre a crítica, em jornal, entre o pessoal de cinema é uma medida muito considerada. Quando começou a Guerra dos Sexos, o gênero novela estava muito desacreditado. Mas aí a imprensa começou a falar, a crítica aceitou bem, acabamos ganhando prêmios. Assim, do ponto de vista dos homens de TV, quem recupera o gênero — também do ponto de vista de dinheiro — é a classe intelectual. A televisão precisa muito dessa garantia cultural.

MARIJANE — Todo mundo sabe que tem uma fase das novelas em que o enredo, o destino das personagens, é muito condicionado pela expectativa e pelas reações dos ouvintes. Como é que vocês descobrem e, depois, como é que vocês trabalham essa expectativa dominante?

GUEL — Tem o IBOPE, que procura medir um pouco, mas não te dá uma informação objetiva, que dê pra trabalhar. O que a gente faz, no início, são uns grupos de discussão, com umas dez, doze mulheres. Essa é a única forma que eu já vi informar um pouco mais. São mulheres de várias camadas, que discutem detalhes. Fazem grupo com orientação de marketing e discutem vários temas que são mais ou menos padrão em novela: os personagens, o visual.

MARIJANE — Por que mulheres?

GUEL — Porque esse aí é o grande público.

MARIJANE — Mas é assim mesmo, uma maioria esmagadora de mulheres?

GUEL — Bastante. Mulher e jovem. Homem é meio ruim de novela. Não pega bem, né? É coisa de mulherzinha!...

MARIJANE — Do ponto de vista de quem está dentro, fazendo a novela, parece ser um trabalho extremamente criativo, não?

GUEL — Tem muita coisa criativa, sim. Principalmente pelo fato de você praticar todo dia. É meio um sistema Hollywood. Lá, o autor tem que escrever suas 20 páginas, o ator tem que preparar umas 40 cenas e o diretor tem que dirigir 60 cenas por dia. Bem ou mal, aquilo te dá um bê-a-bá. Te dá uma aparente facilidade para trabalhar, que na verdade é a linguagem básica da imagem. A televisão brasileira formou muitos bons profissionais. Sobretudo excelentes camera-men, que, se comparados com os do cinema, são dos melhores. Porque o cara se exercita todo dia.

Uma característica bem brasileira

MARIJANE — Você acha que é essa perfeição técnica da imagem que atrai as pessoas, que prende as pessoas na novela? Ou não seria porque a novela mexe com temas e situações tipicamente brasileiros?

GUEL — Aparentemente não. Porque a novela tem uma roupagem, um padrão de gosto que não tem nada a ver uma coisa com a outra, que não tem nada a ver com a realidade. Os pobres não são pobres; as peças do cenário — abajur, sofá, diva — parecem coisa de loja, é tudo meio exacerbado. Mas, se a gente for ver a transa geral, ela tem essa característica brasileira, mesmo. Um certo desejo indiscreto de entrar diariamente na vida dos personagens.

MARIJANE — E como é que você, que ficou tantos anos afastado do Brasil, consegue lidar com essas coisas tão brasileiras que vêm na novela: a religiosidade, o sentimentalismo...?

GUEL — Eu tinha essa insegurança. Eu me perguntava: como é que eu vou falar de um negócio que é superbrasileiro? Mas eu estava tão seco para voltar, a minha sede era tanta, que eu era atentíssimo. Eu observava tudo: as situações, as pessoas. E através de um micro-universo — a novela e o meu trabalho — foi que eu mergulhei, mesmo. Foi através disso que eu entrei no Brasil de verdade. Para aprender isso, eu tive que juntar a imagem mítica que eu tinha do Brasil com a imagem real que estava ali, com a imagem de ficção que eu tinha que criar.

MARIJANE — Hoje você se definiria como uma pessoa tipicamente brasileira?

GUEL — Não. Acho que não. Às vezes é complicado pensar nisso. Quando eu estava fora, de um lado. eu não perdi muito de vista as coisas do Brasil. Mas eu também não tive outra escolha. Eu fui embora com quinze anos. Primeiro, eu morei três anos na Argélia, estudava em escola francesa, tinha livro francês... Foi depois, quando eu fui para Paris e conheci a colônia brasileira, que eu comecei a ver um outro Brasil. Mas, a essa altura, o brasileiro já tinha um lado quase folclórico, para mim. Porque eu estava distante. Foi depois dessa descoberta que eu comecei a fazer cinema mais intensivamente. A minha ligação com o cinema tem muito a ver com esse sentimento.

Política, liberdade e cinema

MARIJANE — E o lance da política? O fato de você ser filho de um político importante e não ter feito política como profissão, de ter optado pelo cinema, em algum momento da sua vida isso foi um problema para você?

GUEL — Foi. Principalmente quando eu estava na Argélia, que foi a época em que eu fiz a minha cabeça política. Havia guerrilhas em toda a África e as pessoas falavam muito disso. E de liberdade. Foi quando eu comecei a entender os mecanismos sociais e comecei a estudar essas coisas todas, fora da escola. E, ao mesmo tempo, me deu uma coisa meio cristã, um sentimento de culpa porque as pessoas estavam aqui sendo torturadas e morrendo e eu estava lá. Foi uma coisa de adolescência, uma coisa romanticíssima, mesmo. Eu achava que tinha um dever de vir para o Brasil e fazer alguma coisa, imediatamente.

Logo que passaram esses anos, eu comecei a transar esse sentimento de um jeito bem diferente. Ele esteve sempre presente, quando eu pensava em cinema, quando eu fazia cinema, mas eu fui vendo por um outro lado. Eu comecei fazendo documentário, que não é diretamente político — é diretamente chato — mas tem uma coisa ligada ao real, uma coisa legal.

Então, achava que o cinema era uma outra maneira de transar a política — transar com sentimento. Mas eu entrei em crise. Tive uma fase de desbunde, completamente pinei. E quando saí pude entender que o meu barato era mesmo cinema. Para mim, mais importante que qualquer conteúdo político, era fazer o filme! A paixão, que eu tenho, continua a mesma. Mas hoje, como projeto de vida, para mim, o cinema é a minha maneira de fazer política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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