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Jânio. De novo?

Jânio. De novo?

Régis de Castro Andrade

Sociólogo, diretor do CEDEC e professor de Sociologia na USP

Muita gente anda dizendo que Jânio é ultrapassado, um político do Brasil atrasado. É verdade e não é. Em todo caso, fica difícil entender o seu prestígio na moderníssima São Paulo. Afinal, pelo que indicam as consultas de opinião, o ex-presidente tem a preferência de 30 a 35% do eleitorado paulistano.

É muito possível, além disso, que, para boa parte do eleitorado, o argumento da velhice de Jânio não seja convincente. Convém apurar um pouco a análise.

O argumento sugere duas coisas. A primeira — e essa sugestão contém uma pitada de arrogância —, que o "atraso" do candidato reflete o "atraso" de uma parte do eleitorado. A segunda, que Jânio é um sobrevivente do populismo na Nova República.

É preciso convir que a divisão do país em duas partes — a "moderna" e a "atrasada" — explica muito pouco da realidade nacional e menos ainda da realidade paulistana. Será possível que tanta gente assim, numa cidade ultra-urbana, informada, industrializada e politizada em campanhas pequenas e grandes, vote em Jânio por "atraso"?

São Paulo é um complexo popular-industrial integrado, enorme e contraditório, em que o "velho" e o "novo" são diferenciações secundárias e, de qualquer modo, faces da mesma moeda, interdependentes e em constante interação. No plano político, essa realidade social transparece no amplo e efetivo exercício da cidadania em São Paulo. Os paulistanos já aprenderam que têm direitos. De uma forma ou de outra, em algum grau, em algum momento, envolvem-se nos assuntos da coletividade, seja para reivindicar o fechamento de buracos na sua rua, seja para exigir diretas-já.

As pesquisas indicam que Jânio é mais forte entre os eleitores de baixa renda (36,4% dos que ganham até quatro salários mínimos, na pesquisa da Folha de S. Paulo de julho de 85) e entre os de baixo nível de escolaridade (39% dos que têm apenas formação primária). Mas, pelas razões apontadas acima, seria imprudente concluir desses dados que os mais pobres e menos instruídos — em boa parte, os trabalhadores desta cidade — votem em Jânio sem nenhuma consciência do que estão fazendo.

Por que, então, tanta gente parece decidida a votar em Jânio? A questão é complicada, mas pode-se sugerir algumas respostas, tendo-se presente, desde logo, que as avaliações políticas do eleitorado paulistano não se referem apenas ao quadro municipal: levam em conta também a situação estadual e nacional. Entre as razões do voto janista, o descontentamento com o governo Montoro parece ter considerável importância. Ele vem dos bairros onde a presença do Estado é fraca, insuficiente: onde não há segurança, iluminação nas ruas, calçamento, esgotos, transportes eficientes etc. Vem dos desempregados, por quem o governo não fez nada, nem tentou nada. Vem dos funcionários públicos mal pagos. Não se poderia, portanto, falar de "redutos" janistas, como se falava de "currais eleitorais" na velha sociedade.

Manipulador de emoções, rancores e esperanças

A segunda linha de considerações tem a ver com o notório populismo janista. Na fala corrente, a pecha de "populista" sugere que o candidato manipula as massas, e, no caso, é bem aplicada. Jânio é ultrapersonalista, emocional, profético, hábil manipulador de emoções, rancores e esperanças, pai severo. Mas o populismo nunca se resumiu a carisma e manipulação demagógica das massas. Envolve também, em seu discurso e em suas políticas, aspirações e frustrações reais do povo. Por isso mesmo, as formas do populismo — o personalismo, o paternalismo etc. — têm significados políticos que se alteram com o tempo. Há 25 anos, a vassoura levou Jânio à presidência: o povo desejava sobretudo uma administração honesta. E se ainda hoje ele combate os corruptos, a ênfase já não está nisso, mesmo porque a corrupção não é característica dos governos do estado e do município. A ênfase está em prometer o que a população reclama do atual governo e, sobretudo, em prometer uma administração pessoal e não política ("Nunca partilhei o poder com ninguém", disse o candidato recentemente, perguntado sobre as funções do seu vice-prefeito).

Jânio se vale do descrédito na política

Talvez essa seja uma outra pista para entender a ressurreição do ex-presidente: ele é o "antipolítico". Não participou das campanhas populares contra a ditadura, não esteve nos palanques das diretas-já, não se inclui entre os herdeiros de Tancredo. Em princípio, isso jogaria contra ele: mas Jânio capitaliza, precisamente, as frustrações que são o contragolpe das imensas expectativas populares de 1984. Incorpora, em especial, o desencanto com a política e com os políticos. Sustentam-no a falta de coerência partidária, o "trem da alegria" para o Senado, o escândalo dos altíssimos salários na Assembleia Legislativa de São Paulo, a revoltante impunidade dos "pianistas" do Congresso, o oportunismo dos políticos trocando de partido como quem troca de camisa.

Ao sentimento difundido de que tudo continua como antes por causa dos "políticos" e da "política", Jânio contrapõe a imagem do reformador independente, decisivo, justiceiro, acima dos partidos e próximo do povo. O "povo" nele encarnado, contraposto à "elite política" corrupta e mentirosa. Tal é o sentido das referências abusadas do candidato aos sobrenomes dos adversários (Matarazzo e Cardoso) e das acusações ao "intelectual" Fernando Henrique ("conhece a Europa mas não sabe onde fica Sapopemba").

Jânio não propõe nada além de si mesmo. E cerca-se hoje, em operação de máximo oportunismo, de malufistas e políticos reacionários do PFL e do PDS. Sua eleição para a prefeitura de São Paulo provocaria crise incalculável no PMDB, coisa que interessaria a pouca gente séria no país, e reforçaria as direitas de modo geral. É preciso lembrar que foi ele quem promoveu a substituição dos nacionalistas no comando das Forças Armadas pelos oficiais responsáveis pelo golpe de 1964. Foi ele quem renunciou depois de nove meses de governo e atirou o país em tremenda crise política. Foi ele quem, por ocasião da renúncia, disse aos generais: "Formem uma Junta Militar e governem este país".

Por esse e outros Jânios que virão

Para vencê-lo nas urnas, no entanto, é necessário não subestimá-lo e mal interpretá-lo. Se a Nova República não cumpre os seus compromissos populares e não acaba com as indignidades da vida política no país, será vencida por esse ou outros Jânios que virão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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