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Democracia e representação

Democracia e representação

A história da democracia é, quando menos, uma história curiosa e paradoxal. Na Antiguidade Clássica, prevaleceu a democracia do Agora, isto é, todo o povo reunido na praça para fazer valer a vontade dos cidadãos. Quando algum governante traía as aspirações da maioria, era jogado no ostracismo. Só que cidadãos eram os homens livres, pois os escravos — quem, efetivamente, produzia para a coletividade — não tinham direito à cidadania.

Depois, a democracia se converteu em uma palavra de ordem contrária à manutenção dos privilégios e das hierarquias e, desde o fim da Idade Média, além da luta contra o poder despótico, se transformou, também, em mote contra o poder absoluto do Príncipe. A primeira expressão dessa luta foi o Parlamento. Era preciso colocar a lei (isto é, as regras do jogo) acima da vontade particular de quem quer que seja e, para isso, para expressar a vontade geral, era preciso que um corpo específico de representantes da Nação pudesse se reunir. Em sua luta contra os privilégios da aristocracia, à burguesia apaixonou-se pela democracia e, para fazer os seus interesses, fez as revoluções burguesas, como se sabe, muito violentas.

Quanto mais se desenvolviam as conquistas democráticas, mais claro tornava-se aos olhos de todos que o direito de cidadania não interessava apenas, nem especialmente, aos burgueses, mas sim ao povo deserdado dos privilégios e dos direitos. Ou seja, à massa de explorados do novo sistema criado pela burguesia. A partir daí, a luta pela democracia tornou-se uma bandeira em mãos dos trabalhadores, dos assalariados e de todos os que tinham de viver do seu trabalho. E, como lembrava bem, algumas décadas atrás, Harold Laski — esse grande ideólogo do socialismo inglês — o matrimônio entre a democracia e o capitalismo duraria, apenas, enquanto o exercício dos direitos democráticos não ameaçassem os privilégios dos capitalistas. Ou seja, enquanto as grandes massas permanecessem fora da política e não pressionassem para que os direitos de cidadania valessem também para elas.

Depois que as massas populares entraram na política, a luta pela democracia — isto é, a igualdade de todos, em tudo, perante a lei — passou a ameaçar os privilégios da burguesia e, muitas vezes, foi ela quem procurou limitar a própria democracia. O neoconservadorismo, em todo o mundo, mostra isso com clareza.

No Brasil, esse exemplo é visível. Antes de 1964, já tinha ocorrido muitas vezes. E mais grave foi o que os grupos dominantes fizeram, em nosso país, com uma das mais típicas instituições democráticas, a instituição da representação: tornaram-na, não o lugar de expressão da vontade geral da Nação, mas um lugar de representação particularista, de grupos privilegiados que estão ali, apenas, para assegurar os seus interesses por sobre os da maioria da Nação. O resultado foi a desmoralização a que assistimos, em 1985, do Congresso Nacional. Mais de 8 mil projetos permanecem sem serem examinados e, enquanto isso, jetons, privilégios e garantias são defendidos a unha. A própria convocação da Assembléia Nacional Constituinte adotou uma solução que, ao invés de facilitar a renovação da representação parlamentar, assegura aos atuais deputados e senadores os seus privilégios.

É por isso que, quando se recoloca o debate sobre a questão da democracia, no Brasil, surpreende que tanta gente que é conivente com tudo isso encha a boca para defender as regras democráticas sem, contudo, nada fazer para mudar a eficácia da instituição da representação. Poderá haver transição efetiva da ditadura para a democracia desse jeito?

José Álvaro Moisés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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