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Pensando a intervenção popular

CONSTITUINTE

Pensando a intervenção popular

Samuel Mac Dowell

Advogado, secretário geral da Associação Brasileira dos Juristas Democratas

A participação popular é um tema central para a política. Este ensaio, cuja segunda parte, com propostas e sugestões específicas para a conjuntura atual, publicaremos no próximo número, reflete, em profundidade, a relação entre liberdade política e a crescente importância do Estado.

O artigo equilibra questões clássicas de juristas e cientistas políticos. Nesta primeira parte do ensaio, a reflexão sobre o direito e o dever de crítica e de oposição desembocam no equacionamento da relação entre a ação à margem ou dentro das instituições.

Quem olhar com atenção para os cartazes espalhados em algumas ruas de Paris, com a fotografia de Jean Genet sobre uma inscrição que diz "Besta ou Fêmea"?, será levado a pensar em algumas questões. Genet odiava e repelia a sociedade. Dizia que o mais vil dos seres humanos lhe era mais próximo que o burguês mais virtuoso. O que significam, então, esses cartazes de Paris? Reage a sociedade contra aquele que era uma besta, como fazia o Figaro em 1949 ("estamos cheios destes malfeitores que merecem a forca, destes cárceres pervertidos onde se elabora a filosofia do século"), ou exercita a capacidade, que sempre tem, de transformar em fetiche e em exótico objeto de curiosidade intelectual pessoas que a ela se opõem com toda a força acumulada pelo ódio e pelo desprezo, diluindo e neutralizando todo o seu poder de subversão? Ou ainda: não faz a sociedade, na verdade, ambas as coisas?

A sociedade já foi responsável por transformações profundas da sua própria organização. O seu poder de transformação, que resultava do exercício da liberdade das pessoas, o qual nada mais significava, em tempos remotos, do que a sua prerrogativa de participar do poder político, redundava em mudanças na estrutura da organização social. Com o progressivo fortalecimento do Estado, entretanto, a sociedade viu diluir-se esse poder. Nos nossos tempos, quando lhe é possível exercê-lo, não o faz de modo mais do que periférico e marginal. É verdade que o faz com perfeição e age com gênio: sequer necessita tornar o que se quer que seja uma besta em outra coisa senão uma besta. Transforma-a, mas sem necessitar alterar a sua natureza. A grande infelicidade, portanto, está no fato de que a sociedade moderna permitiu, ou foi forçada a aceitar, a diluição do seu poder de participação e, conseqüentemente, de transformação. Ante essa dispersão, reúne as suas energias em torno de pequenas vinganças, como faz com aquele escritor que visceralmente repele. Esta é a sua única ação possível, pois já não tem como dirigi-la ao seu fim natural, que é a participação no poder político. Satisfaz-se com pequenos prazeres de gozo de liberdade, uma vez que perdeu toda a capacidade de buscar o essencial.

É curioso notar que as pessoas falam em participação popular, hoje, procurando meios formais de assegurá-la, como se a prática das instituições políticas incorporasse, em si, uma verdadeira tradição de participação. Fala-se em participação e se deseja estabelecê-la, às vezes candidamente, como se os efetivos detentores do poder político desejassem ou sequer pensassem em comparti-lo com uma sociedade realmente participativa. É indispensável, certamente, alcançar a formulação de instrumentos que garantam aos membros da sociedade a participação. Mas de nada valerá este esforço, se estiver baseado em uma premissa falsa, que considere que os princípios democráticos, enunciados nas Constituições de diversos países, correspondem a uma prática verdadeiramente participativa. Pensa-se que, através do aperfeiçoamento dos mecanismos representativos, em um plano, e da gestão direta da sociedade em alguns assuntos, em outro plano, se alcançará a garantia da participação e, por conseguinte, do exercício do poder pelo povo — que é de quem, segundo o princípio, emana esse poder. Seria indispensável, antes disso, desmistificar o próprio sistema representativo para que, descobrindo-o de toda hipocrisia que habitualmente o faz parecer mais eficiente do que realmente é, pudéssemos perceber por onde caminhamos.

A percepção desses fenômenos não implicaria, por si, tornar mais justa e eqüitativa a organização social, mas certamente tornaria mais fácil a compreensão dos fatores determinantes do afastamento da sociedade do poder político. Entre esses fatores, múltiplos e complexos, estão a dispersão das energias da sociedade, que são organizadas no desempenho de atividades de caráter marginal, ou sem importância, ou apenas planejadas para dar-lhe a ilusão de uma participação de fato inexistente; a deformação ou, melhor dizendo, a redução da idéia de liberdade, que deixou de relacionar-se com a concepção de liberdade política, igual a participação nos processos de decisão, para — como mostra Fábio Konder Comparato, em estudo recente — cingir-se ao conceito liberal das liberdades individuais e das liberdades públicas (liberdade de pensamento, de trabalho, de reunião, etc); e a incompreensão do processo de exercício do poder pelos representantes do povo, onde na realidade não há qualquer consentimento para com a idéia participativa. Ao lado disto, a magnitude do poder que o Estado moderno concentra — basta, para compreendê-lo, medir o peso da indústria internacional de armamentos ou a distância em que se encontram os parlamentos e as comunidades de decisões tão cruciais quanto o são as relativas à guerra e à intervenção em outros países, ou as relacionadas com o suprimento de matérias-primas importantes, como o petróleo, com a produção de energia nuclear, com a negociação da divida externa dos países terceiro-mundistas, etc. — tudo isso contribui para que tenhamos o sentimento de que o Estado moderno se organizou em uma dimensão superlativa, perante a qual a idéia de participação do homem nas decisões sobre o seu destino se reduz a uma reminiscência remota e melancólica, quase uma veleidade de alguns e poucos setores da população.

Se se pretende afirmar, ainda hoje, que o povo deve participar do poder político e atribuir a este princípio alguma eficácia, é então indispensável levar em conta todas essas questões. A mais essencial' delas diz respeito à identificação da verdadeira natureza do conceito de liberdade, para que se mantenha indissoluvelmente associado à concepção de liberdade política, no exato sentido de participação no poder político. Isto não implicará uma ingênua redescoberta de idéias antigas, a restabelecer formas participativas habituais em sociedades seculares, mas incompatíveis com a estrutura muito mais complexa do Estado moderno. Neste ponto, seria necessário ter em vista que o conceito de liberdade política e de participação somente poderá resistir aos tempos se os seus agentes estiverem convencidos de que não são detentores de liberdades, mas são sujeitos, também, de obrigações políticas. A referência à participação, assim, estará jungida às duas noções, de liberdade e de obrigação política. Isso conduz a que as formas tradicionais de participação e de exercício das liberdades públicas, como a objeção de consciência, a desobediência civil e outras que se confundem com a concepção liberal das liberdades — que, mesmo obviamente insuficiente, não as desmerece —, passem, por exigência do próprio sentido de sobrevivência de um corpo social livre, a revestir-se da função de obrigação.

II

Como se tornará possível, contudo, amoldar a concepção idealizada do exercício da liberdade política pela sociedade à crescente concentração de poderes pelo Estado? Este processo concentracionista e de enfeixamento de poderes é, sem dúvida, irreversível — pois onde se vêem profundas transformações impostas a governantes por governados, em nossos dias, senão nas nações mais pobres e de organização praticamente rudimentar, nas quais não se pode dizer, em sã consciência, que esteja presente o Estado moderno a que nos referimos? E é também verdade, por outro lado, que Estado e sociedade se apresentam como forças em constante contradição, em permanente contraposição, como se o poder de uma estivesse a desafiar, continuamente, o poder da outra. Como resolver, então, este paradoxo?

É necessário estabelecer, para que se torne possível resolver esta contradição, quais os limites das funções do Estado e da sociedade. Impõe-se conhecer até onde pode atuar o poder estatal, o que será o mesmo que saber até onde pode a sociedade, como corpo orgânico, fazer atuar, através da participação, o seu próprio poder. Esta verificação tem como ponto de partida, inevitavelmente, a constatação de que os homens têm falhado na tutela da sua própria liberdade. Séculos de história indicam que a tirania, travestida nas mais variadas formas de governo e de organização de Estados, se impõe e domina através de regimes de opressão. Pouco importando qual o grau desta opressão, manifesta-se ela, aqui, pela violência aberta e direta, ali pela injustiça social e pela desigual distribuição dos bens e dos recursos, em quase todos os lugares pelo corrompimento do aparelho administrativo.

Tudo sugere que a luta pela liberdade não conduzirá a humanidade a lugares melhores do que já conheceu, que será infinda e não terá sucesso. A reunião dos homens em sociedade parece indicar que isso é o que menos sabem fazer, que são incapazes de superar as suas próprias torpezas e não saberão, nunca, construir uma sociedade justa. As utopias das sociedades justas, então, são mesmo utopias. Tentativas esboçadas por muitas sociedades ditas socialistas, até hoje, mostraram que os métodos de governo e de direção preconizados exigiam, no seu desenvolvimento, que se utilizassem instrumentos de opressão muitas vezes semelhantes àqueles que visavam combater. E para viverem a suposição de que poderão alcançar a estabilização da sociedade, já sem Estado, já sem exército e com toda a administração devolvida à população, ora, para a manutenção dessa situação ideal dependerão de uma bondade que normalmente inexiste nos homens, ou que cede lugar, quando existente, à ambição fácil dos grupos que se instalam no poder, secionam a sociedade e aproveitam as mais sórdidas e baratas oportunidades para alcançar o seu proveito próprio, através da dominação do restante do corpo social. Isto nos conduz a um infindável círculo vicioso. Afirmar que a história não se repete representa, em parte, um equívoco. Podem não se repetir os fatos; mas são sempre os mesmos o grande interesse econômico, a ambição, a soberba. Podem não ser os mesmos os sismas sociais, visto que estão vinculados a circunstâncias e conjunturas que, de modo diverso, condicionam os homens e a sociedade, mas são produto, invariavelmente, do mesmo processo de cancerização dos órgãos da administração (leia-se, ainda aqui, "grupos": não existem órgãos da administração pública que se movimentem, senão pelas pessoas que os compõem e que a eles se apegam como as cracas aos cascos dos navios).

Tudo isso será falso se os agentes sociais forem diferentes, hoje, nos seus desígnios próprios, do que eram séculos atrás. Mas não são. Pode sê-lo determinada sociedade, até mesmo — diga-se, por pura concessão — o mundo como um todo, pois os fatores que se agregam no desentrosado balé das nações contemporâneas não são, obviamente, sequer semelhantes aos da era antiga ou aos de qualquer outra. O recheio, contudo, é sempre este: a ambição à dominação e à riqueza.

Diante de uma tal visão dos destinos das sociedades, existe um fator que deve ser considerado e que deve ser tido como essencial à preservação do status da organização social: é o precário equilíbrio que persiste, em certos momentos mais estável, em outros menos, entre a sociedade e o Estado. São dois pólos, a sociedade e o Estado, dotados de poder de força de fato. Não se cogite do poder jurídico da sociedade, de investir o seu governo de um poder de mando também jurídico. As bases desse equilíbrio, as regras dessa ecologia social, nada têm de conceito jurídico preexistente. São os fatos sociais, anteriores à organização institucional e ao estabelecimento do ordenamento jurídico, os únicos que determinam as regras da realidade: o poder de fato da sociedade, contra o poder de fato de quem reuniu as condições necessárias para impor-se como seu governante. Justamente porque a sociedade não dispensa que se a governe, necessitará, para assegurar a sua própria sobrevivência, da manutenção do equilíbrio dessas forças que, a cada momento, se contrapõem entre si. A sua ruptura sempre sairá cara: pela tirania e pela opressão sem contrastes, ou pela eclosão das mais violentas revoluções. É na manutenção desse equilíbrio, cevado no antagonismo e na contradição de forças, que reside o objetivo máximo da luta pelas formas de participação. E também o limite de todas as pretensões que pode alimentar.

Seria dispensável ressaltar que essa polarização dos dois entes, a sociedade e o Estado, como se fosse cada um deles um corpo monolítico e homogêneo, não desnatura e sequer desconsidera o fato de possuir a sociedade, no seu atual estágio de organização, um caráter eminentemente classista e de ser segmentada em categorias sociais. Este é, aliás, o fator que constantemente realimenta o seu enfraquecimento perante o Estado e, não só isso, propicia ao seu grande inimigo a inesgotável fonte do seu poder. Ou seja: os setores economicamente poderosos do corpo social deste se deslocam para se associarem à sombra do poder e usufruir das suas vantagens. O Estado, afinal, não é uma entidade vaporosa, teórica, abstrata e estranha à sociedade das pessoas reais; antes disso, ou tão-somente, é uma instituição formal que agasalha sob um comando uniforme, que determina, sanciona e executa as leis, de acordo com o seu próprio interesse, os segmentos da sociedade que detêm o poder concreto e efetivo de mando e os meios de coerção.

Esses segmentos, ao efetuarem a sua própria descolagem do corpo social, assumem o poder do Estado e, por conseqüência, a função do governo. Por diversas vias subtraem da sociedade toda a capacidade de decisão — desvios do sistema representativo, poder econômico ou simples arbítrio — e passam a nessa órbita concentrar tais poderes que fica estabelecida uma inequívoca confusão entre Estado e governo. Este processo é levado ao nível do paroxismo nos governos autoritários do Estado moderno, onde não fará sentido se diferenciarem Estado e governo: a realidade é a de um verdadeiro governo-Estado, produto da descolagem dos segmentos mais fortes da sociedade. Pelas mesmas razões, é irrelevante caracterizar-se a sociedade como sociedade civil, no sentido de reunião dos indivíduos que convivem à distância das esferas do poder. Basta ter em mente a referência pura e simples a sociedade e a Estado, no primeiro caso se referindo ao que comumente se designa como sociedade civil e, no segundo, abrangendo essas forças indistintas que são o Estado e o governo.

Se assim é, e se é também verdade que o equilíbrio da organização social depende do antagonismo dessas forças, é justo pensar que a primeira obrigação política de alguém que acredite na existência de um interesse social a ser defendido será opor-se ao poder. Dito isto, pode-se concluir que o exercício da liberdade política é corolário da postura de oposição ao poder, que se realizará de modo autônomo, quando se tratar de uma oposição aberta e frontal às instituições (desobediência e revolução), ou heteronômico, quando se utilizarem os instrumentos reconhecidos nas próprias instituições (partidos políticos e formas tradicionais ou modernas de participação).

III

Pode ocorrer — e ocorre — que a distância que separa a sociedade de seu governo seja de tal proporção, que signifique o rompimento do equilíbrio da organização social. Tantas são as formas pelas quais se manifesta a ausência de legitimidade e tão profundo é o grau que pode alcançar, que em muitos casos não haverá qualquer razão verdadeira para que se estabeleça a distinção entre Estado e governo, inequivocamente confundidos. Se a sociedade, contudo, em tais situações já não pode contar com a proteção de uma estrutura institucional, se não pode defender-se, sequer, com as regras que teoricamente orientavam o funcionamento do Estado, mas se vê antagonizada por esse governo-Estado dotado do poder de fato mais forte e impositivo, por todos os meios necessitará atribuir-se autonomia para produzir o enfrentamento, como única forma de restabelecimento do equilíbrio. Autonomia de meios significa, neste caso, a prerrogativa que tem a sociedade de valer-se de instrumentos de atuação política inteiramente estranhos à ordem jurídica estabelecida, como sejam a desobediência civil e a revolução, ou qualquer outro meio que redunde na sua intervenção no, senão contra, o Estado.

Não é possível catalogar as circunstâncias em que se torna ilegítimo o opressor exercício do poder. A dificuldade para tanto seria, na verdade, insuperável, pois as hipóteses são diversas, assistemáticas e inclusive surpreendentes. Mas isso pouco importa. Se o Estado desperdiçou os elementos originários de sua legitimidade, e somente na expressão da riqueza nacional procura ponto de apoio, sem distribuição eqüitativa do produto, será Estado opressor. E o será, também, se a aceitação do seu governo pelo povo for substituída por uma submissão preservada às custas da tortura, da violência e da repressão; se a concentração da riqueza em poucas mãos for realidade não-negligenciável; se a corrupção for protegida pela imunidade desautorizada; se o sistema representativo nada mais significar que uma prática privada de certos grupos sociais, à sombra das instituições; e em muitos outros casos, que todos conhecem.

Reconhecia-se, na Idade Média, que a resistência à opressão era um direito inerente a todos os homens, como declarava a Magna Carta, de 1215. Também a Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789 e, depois, a Declaração dos Direitos do Homem norte-americana reconheciam aos indivíduos e ao povo o direito de resistência. A evolução da construção jurídica, todavia, afastou dos textos constitucionais o reconhecimento desse direito. Não há hoje uma só Constituição de qualquer país que reconheça o direito de resistência e de oposição ao Estado. Cabe observar, ainda assim, em primeiro lugar, que isso não fez desaparecerem a tirania e a opressão; em segundo, que a não-positivação do direito de resistência, ativa ou passiva, dele não fez um não-direito, um ilícito ou uma prerrogativa meramente moral; e, em terceiro, que essa faculdade não somente dispensa reconhecimento prévio, mas é capaz de tornar-se, pelo seu exercício, em toda a fonte de um ordenamento jurídico novo.

A eliminação da resistência do povo do rol das liberdades enseja justificativas que, embora sugiram o contrário, na realidade não passam de reacionárias: aperfeiçoamento das instituições, elaboração da segurança social, superação das técnicas medievalescas, etc. Desse modelo estático é que surge a concepção das liberdades, de inspiração liberal, mas de conteúdo marcadamente reacionário, como direitos do povo e dos indivíduos, reconhecidos e tutelados pelo Estado. Compreende-se que os grupos sociais que exercem o poder estatal e a doutrina que constroem se recusem a incluir, na categoria das normas jurídicas, tudo aquilo que não seja dotado da força coercitiva que eles próprios dominam; e é de mais fácil compreensão, ainda, que nesta mesma categoria de normas jurídicas nada que lhes possa ser oposto seja incluído.

Não obstante, ao estudar a questão da legitimidade do poder, a doutrina jurídica reconhece a existência de regimes de fato e de regimes de direito. Estes últimos são os implantados em conformidade com as normas do direito positivo, enquanto os de fato nascem de uma atuação de força (golpe, revolução), deles tendo sido exemplos mais freqüentes as ditaduras militares que se plantam, corriqueiramente, nos países do Terceiro Mundo. A doutrina jurídica também procura formulações que expliquem a legitimação a posteriori dos regimes estabelecidos pela força, recorrendo, para tanto, ao grau de aceitação que os mesmos alcançam no seio das comunidades que governam, ou à adoção de um procedimento dito democrático que venha a institucionalizá-los. Percebe-se que o sentimento subjacente a uma parte dessas idéias identifica a legitimação do poder com o próprio mérito do seu exercício. Vale dizer, o exercício do poder de fato poderia legitimar-se de acordo com o grau da sua aceitação popular. Isto conduz a que se reconheça, também, que regimes instalados na mais estrita obediência às regras formais do sistema representativo repetidas vezes se distanciam daquilo que era sua legitimidade originária, para desenvolverem governos descomprometidos com qualquer prática democrática e orientados apenas pelo arbítrio.

É justamente quando leva em conta que legitimidade e ordem jurídica estabelecida são conceitos que não guardam, necessariamente, uma inter-relação, que a doutrina jurídica mais aproxima o estudo da ciência do direito do seu fim maior, que é servir o bem social. Seria pueril atribuir-se a essa doutrina, com a facilidade que há em dizer-se uma frase qualquer, que estivesse comprometida com os grupos sociais que exercem o poder. É decididamente cabível afirmar, porém, que o positivismo tende a esquecer as razões e as finalidades mais primárias da própria existência do ordenamento jurídico, que residiriam, idealmente, em regular de modo eqüitativo os conflitos e os interesses sociais. Porque isolam o fato jurídico do fato social e porque afirmam, por exemplo, que as causas da revolução e ela própria só interessam à sociologia, importando à ciência jurídica apenas na medida em que se torna fonte de novo direito, positivistas e racionalistas terminam por elaborar um tecnicismo estéril, que entre outras coisas tem servido, até hoje, para justificar e alcunhar de Estado de direito meras ditaduras militares que nos submeteram há poucos anos.

Pode-se pensar, portanto, que a prerrogativa que tem o povo de resistir ao poder do Estado, por qualquer meio e inclusive pela via revolucionária, independe, mesmo a partir de um ponto de vista exclusivamente jurídico, de um reconhecimento formal que a erija à categoria de norma jurídica. Porque, de um lado, essa prerrogativa depende apenas de um poder de fato da sociedade; porque, de outro lado, o ordenamento jurídico, que todos como tal aceitam, é também apenas resultante de um poder de fato dos grupos que se investem do poder do Estado e da função do governo; e porque, por último, se isto que não resulta de nada além da atuação de uma força mais poderosa é reconhecido como pertencente à categoria jurídica, também o que resulta da atuação da força do conjunto social deverá — por maiores razões ainda, se não estamos esquecidos da razão das coisas e se continuamos a acreditar nos nomes que lhes damos! — pertencer à categoria jurídica.

É diante dessa realidade, que o fenômeno jurídico e o fenômeno social estão inseparavelmente relacionados, reduzidos e fundidos em um contexto único, que a desobediência e a revolução representam instrumentos de exercício de liberdades políticas pela sociedade. Em relação às formas de participação por todos aceitas de um modo, vamos dizer, pacífico, merecem a única diferenciação de serem formas de exercício de liberdade autônomas, por não serem reconhecidas por aqueles contra quem podem ser endereçadas.

É muito provável que a discussão sobre as formas de resistência e a revolução careça de interesse atual, ante o que se disse, nos dois capítulos anteriores, a respeito do crescimento do poder do Estado moderno, que o faz desmedidamente superior ao da sociedade. Já se disse, contudo, que a opressão é amplamente apoiada pelas incapacidades dos oprimidos: seu desamparo econômico, falta de educação, incapacidade de expressão e, mais importante que tudo, sua dispersão, desunião, incompetência e isolamento político. Os setores dominantes da sociedade conspiram, abertamente, para manter essas incapacidades, fato que é facilmente observável em questões relacionadas, por exemplo, com a educação e com a utilização dos instrumentos formadores de opinião pública, como a televisão. A inércia que advém dessa situação só poderá ser quebrada por uma luta política aberta, se tivermos uma ambição maior do que assegurar, apenas, o equilíbrio da desigualdade.

Se houver, em dado momento, uma tensão das forças sociais cuja eclosão seja capaz de fazer com que os oprimidos rompam com o medo de sua própria incapacidade, se a força das injustiças sociais atingir uma tal radicalização que torne também mais radical o sentido de liberdade das pessoas, haverá ainda oportunidades para que a sociedade restabeleça o seu poder de intervenção, possa autodeterminar-se e possa exercer, plenamente, a sua soberania.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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