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Pacto democrático, negociação e autoridade (reflexões sobre a questão da democracia)

QUESTÕES DA POLÍTICA

Pacto democrático, negociação e autoridade (reflexões sobre a questão da democracia)

Régis de Castro Andrade

Cientista político, diretor do CEDEC e professor de Ciência Política na USP

Na literatura do contratualismo, o pacto político é a forma de constituição da autoridade legítima - seja ela o Soberano, o Legislador, ou o Poder Executivo - encarregada de promover o bem comum. O fundamento da legitimidade é o consenso; e se a promoção do bem comum depende essencialmente da consolidação da autoridade, a política se ocupará sobretudo da ampliação das suas bases consensuais. Ora, a democracia moderna é um regime de dissenso, em que os partidos e outras organizações da sociedade confrontam-se a propósito de opções políticas, da distribuição de bens materiais e do sentido da existência social. A afirmação dos próprios interesses (e da própria identidade) tende, para cada sujeito, a prevalecer sobre a sustentação do bem comum. Nessa perspectiva, a expressão pacto democrático parece encerrar uma contradição nos termos e uma impossibilidade teórica. Nessas notas, quero esboçar argumentos em contrário. Sugiro que a democracia, enquanto resultante da livre manifestação de projetos contraditórios, supõe e requer o conceito de ordem democrática como objeto racionalmente construído. Ê, para encurtar uma longa história, direi apenas que, se isso é verdade, a ordem democrática constitui o interesse geral, matéria necessária de todo pacto político. Essa orientação geral se desdobra nos temas da negociação, da decisão política, da governabilidade e da representação, que iluminam de vários ângulos o núcleo intencional e construtivista da questão democrática. O rol dos aspectos relevantes dessa questão, por suposto, é bem maior; considero apenas aqueles que, por sua particular importância, sobretudo no caso brasileiro, não podem ser omitidos. A referência ao país deve-se, em boa parte, às urgências da época; mas convém manter a intenção de dar ao argumento um alcance mais amplo, sem o que a trivialidade do debate desmereceria seu próprio tema.

1. Esboço de fundamentação do pacto democrático

Em termos simples, pode-se descrever a sociedade moderna como pluralidade de sujeitos com pretensões diversas e conflitantes sobre bens em disponibilidade. Os sujeitos serão individuais ou coletivos, públicos ou privados; os bens serão materiais ou imateriais, atuais ou futuros - isso não importa aqui. Apesar de sua simplicidade e natureza "empírica", essa proposição inicial privilegia um ângulo de acesso ao problema da sociabilidade (o ângulo da ação social ou política) e define um pressuposto com respeito a ela (a interação social envolve desigualdades e é conflitiva).

Posto aqui, caberia perguntar em primeiro lugar: em que condições a interação conflitiva pode ser chamada de "democrática"? Em resumo: a) quando o direito de participação em todas as esferas da vida social é efetivamente assegurado a todos os membros da sociedade; b) quando, entre os bens em disputa, inclui-se o exercício do poder ou da autoridade legítima; e c) quando os conflitos se resolvem, fundamentalmente, pela negociação e pelo voto.

Em segundo lugar: se o termo democracia alude a um padrão estável de relação, o que garante a continuidade do ordenamento democrático? Quanto ao principal, tal garantia provém da consolidação de um princípio de autoridade democrática capaz de evitar a dissolução desse tipo de ordenamento por efeito dos conflitos a ele inerentes, em particular quando as condições sociais, culturais e políticas prevalecentes possam exacerbar aqueles conflitos ao ponto da ruptura. O princípio de autoridade manifesta-se especificamente em decisões soberanas relativas às condições básicas de preservação e desenvolvimento da democracia.

Essas observações têm implicações contraditórias: implicam a desigualdade (de preferências, recursos, projetos) como elemento constitutivo da sociedade e também a redução da desigualdade como condição da sua estabilidade e aperfeiçoamento democrático.

Essa segunda implicação requer alguma elaboração. Trata-se de analisar a maneira .pela qual, num contexto democrático, se processa a redução das desigualdades. O processo básico pode ser descrito como segue: as desigualdades que, na avaliação dos próprios interessados, forem consideradas inaceitáveis, serão reduzidas na medida da sua capacidade de mobilização de recursos de convicção e negociação (entre os quais a nitidez e a fundamentação racional das demandas, a organização, o estabelecimento de alianças, o poder de ameaça, etc.) em face da capacidade do adversário.

Contudo, um modelo de interação racional de tipo democrático (conducente, em teoria, a uma distribuição aceitável dos bens em disputa), que descreve adequadamente a democracia em ato, presta-se menos à análise da democracia em construção. Isso porque o exercício democrático: a) supõe sempre uma situação herdada de desigualdades (uma situação não-democrática) e, por isso mesmo, b) traz em si, ao constituir-se como livre confrontação, o risco de agravamento futuro daquelas desigualdades, a ponto de torná-lo inviável. O argumento é delicado: se a "situação"e o "risco"são incorporados à análise como determinações centrais, resvala-se para o autoritarismo. Uma possível via de superação do impasse seria delimitar o alcance da intervenção construtiva, restringindo-se à redução das desigualdades incompatíveis com a ordem democrática e aos "casos críticos". Restaria, naturalmente, precisar esses dois conceitos.

Consideremos, por um momento, a seguinte objeção: a democracia se constrói democraticamente, nos limites impostos pela situação. Ou ainda, em outras palavras: o aperfeiçoamento político depende da habilidade dos atores que, na formulação da sua estratégia, levam em conta a totalidade dos elementos da situação. Nessa formulação, nada escapa à esfera do jogo democrático jogado segundo as regras vigentes. O sucesso é o sucesso do sujeito democrático comprometido com sua própria lógica de ação e capaz de torná-la vencedora. O argumento supõe, é claro, que existam chances de sucesso. O que acontece então se, no jogo democrático, a desigualdade inicial é historicamente tão grande que a probabilidade da sua redução tende a zero (ou que a probabilidade de sua ampliação tende à unidade)? A resposta é clara: os conflitos acentuam-se, as regras são desrespeitadas e a democracia (ou, se se prefere, o sujeito democrático) se deslegitima. A interação estratégica, sem a incerteza do resultado, torna-se um jogo de cartas marcadas que não pode ser continuado. A partir desse ponto, três atitudes são possíveis: arrepender-se de ter entrado no jogo, admitir a derrota para um adversário que, de uma forma ou de outra, soube ganhar, ou denunciar a fraude. A primeira significa a renúncia da política. A segunda, a renúncia da política como esfera de uma ética racional, do que decorre a impossibilidade da denúncia. A terceira atitude implica a afirmação de uma ordem democrática racionalmente concebida e de um interesse geral.

A hipótese discutida não é irrealista e disso sabemos todos. A sociedade brasileira abriga um conjunto de formações de temporalidades diversas num contexto predominantemente urbano-industrial, compondo um cenário de extrema concentração de recursos políticos, econômicos e intelectuais nas mãos de uns poucos (setores de classe e corporações), os quais, por isso mesmo, tendem a valer-se dos aparelhos mais que da competição para manter suas posições. Não obstante, a história recente nos mostra que já não se pode governar o país sem eleições e sem negociação. Seria possível explicar assim o ritmo lentíssimo e os impasses de transição.

A ilustração apenas dramatiza uma proposição geral: nas sociedades complexas, a desigualdade, matriz da democracia e fonte, portanto, dos conflitos de estratégias, tende a transmitir-se no tempo sob a forma de situações entrópicas em que a fatalidade da derrota leva alguns jogadores a recusar as próprias regras do jogo. Ora, a competição interessa a todos: aos que têm menos recursos, porque podem aumentá-los; aos que têm mais, porque, justamente por isso, avaliam com otimismo suas possibilidades de êxito. Contrario sensu, os que têm menos temem que, sem competição, sua situação se petrifique ou deteriore; os demais temem perder a possibilidade de ganhos suplementares.

De outro ângulo, e sem desenvolver o tema, a ordem democrática é o âmbito necessário da identificação social: se os sujeitos não se constituem por referência a uma situação de nascimento ou a uma hierarquia predefinida, mas, nas sociedades modernas, por referência à liberdade do outro, a afirmação dos projetos particulares face aos demais constitui o momento essencial do reconhecimento mútuo. Subsistir em liberdade é um ganho que compensa perdas eventuais num mundo de incertezas democraticamente admitidas.

Tais são os fundamentos do pacto democrático, pelo qual se atribui à autoridade pública a tarefa de estabelecer, por vias preventivas (reformas necessárias e políticas sociais) e corretivas (intervenções tópicas em fracassos graves de negociações), as condições materiais e formais do jogo democrático. Note-se que, desse ponto de vista, não cabe ao Estado Social, como dimensão do Estado Democrático, "corrigir injustiças sociais"ou "proteger os mais fracos"; nem cabe ao Estado Econômico "promover o desenvolvimento econômico". O Estado fará tudo isso porque lhe compete zelar pela democracia, e apenas na medida em que as situações de ruptura - potenciais ou atuais - se manifestem como situações práticas, vitais.

No caso das intervenções preventivas, a probabilidade de ruptura se manifesta na demanda explícita de ação estatal ou na demanda de continuidade de políticas atuais. As intervenções, nesse tipo de situação, envolvem decisões de risco por parte da autoridade. Não lhe compete, porém, prejulgar quanto à natureza do "caso crítico": a identificação da "desigualdade intolerável"requer a atualidade da sua não-aceitação por parte dos prejudicados em situações tópicas. Essas distinções têm valor simplesmente analítico; elas apontam para situações de tensão que podem ou não sinalizar insatisfações mais "estruturais". Em todo caso, a probabilidade de ocorrências dessas situações incide sobre a negociação política com o Estado daqueles que se defrontam com poderes (econômicos ou políticos) inexpugnáveis: nessa negociação, entra em linha de conta a ameaça de ruptura do pacto.

Da premissa da desigualdade constitutiva da sociedade, em oposição ao requisito da igualdade, decorre a legitimidade do dissenso. A política democrática visa o processamento dos conflitos e não a formação do consenso, exceto num ponto, que é o fortalecimento do pacto democrático. No Brasil isso significa, em primeiro e principal lugar, o desenvolvimento de estruturas político-institucionais, coercitivas e morais que impeçam a iniciativa da violência. Carl Schmitt disse que a substância da política é a possibilidade da guerra. O que se propõe aqui,pelo contrário, é que a política democrática requer a crescente improbabilidade da guerra.

2. Uma nota sobre a negociação política

A democratização passa pela diferenciação das identidades políticas e envolve a substituição de procedimentos de unificação autoritária por procedimentos de negociação. Esse último conceito requer algumas especificações. A democracia como negociação implica uma dupla incerteza: quanto aos resultados e quanto à própria natureza das pretensões ( os contendores podem mudar de idéia ao longo dos confrontos). De qualquer forma, o que está em jogo não é a Verdade; são pretensões bem fundamentadas ou não, sobre certos bens. A fundamentação racional de uma pretensão, contudo, é um poderoso recurso de negociação.

A negociação é um princípio de solução de conflitos, e não mero instrumento, a ser utilizado quando lhes convenha, pelos que tenham o poder de esmagar o adversário numa determinada situação tópica. A negociação não é um instrumento do poder. Isso não significa fechar os olhos para os efeitos do poder na política; afirma-se apenas que, num contexto democrático, o poder é um instrumento da negociação. Ocupando uma certa posição econômica, política, moral, etc..., as partes negociantes fazem referência, de modo explícito ou implícito, ao poder que têm, e o resultado, entre outras coisas, depende disso.

Enfim, convém não confundir a negociação política em geral (envolvendo o Estado, partidos e organizações da sociedade em várias combinações possíveis de confronto) e a negociação de mercado. Em política, a negociação não diz respeito apenas aos objetos da transação, mas também às regras que a presidem. Além disso, no mercado, em regra a identidade das partes não se altera ao longo da transação; na negociação política a identidade está ela própria em jogo (à racionalidade instrumental soma-se a comunicação, no sentido de Habermas).

3. Sobre a decisão política democrática

Numa linha de análise em que se atribui à autoridade legítima uma função central na consolidação da democracia, o tema da decisão política torna-se relevante. A que se refere essa expressão no âmbito destas notas?

A decisão política opera sobre alternativas da situação e consiste numa escolha arriscada: o resultado depende de como os diversos agentes afetados se comportem face a ela. Ou seja, o ato decisório não se reduz à otimização dos meios com respeito a desenlaces objetivamente determináveis. A responsabilidade política, portanto, é substantiva. Trata-se, efetivamente, de criar o futuro, no âmbito de uma dada situação. O ato compromete a autoridade responsável e constitui em boa parte a dignidade da política. Num contexto democrático, a decisão concentra, em sua fundamentação e comando, a aspiração generalizada de ampliação das liberdades. O alto custo representado pelo abandono de outras alternativas - entre outras, a de não decidir - será reposto se, da escolha feita, resultar o aperfeiçoamento da ordem democrática.

O tema não é usual no pensamento político brasileiro; nossa experiência, contudo, histórica como recente, recomenda que a ele se dê maior atenção. Uma constatação inicial: a política nacional, desse ponto de vista, oscila entre uma verdadeira "ética de indecisão"e um decisionismo desbragado. De um lado, "contemporizar", "dar tempo ao tempo", "deixar ficar para ver como fica", "evitar o açodamento": refiro-me a uma atitude de princípio, erigida em suprema virtude política, e não à contemporização como opção estratégica ditada por uma situação particular. A "raposa"do folclore, o "político experiente"e o político do PSD que "não apóia nem A nem B, muito pelo contrário", são personagens famosos pela sua habilidade em não decidir. Do outro lado, temos as variantes do decisionismo ditatorial, do caudilhismo, do "pacote"militar tecnocrático e do "rouba mas faz". Os resultados dessa esquizofrenia são conhecidos. A análise feita por Wanderley Guilherme dos Santos das causas de 64 fornece exemplos dos impasses profundos que daí decorrem. De modo geral, e descontadas as exceções, o Congresso,'os partidos e os políticos, com sua inoperância, e o Executivo mais Forças Armadas, com seu decisionismo entranhado, se condicionam e se merecem. Isso bastaria para justificar meu ceticismo com respeito a autores de inspiração liberal, para quem o problema simplesmente não existe, ou, se existe, é porque há algo de muito "errado"no país em questão. Tome-se o seguinte exemplo, a seguinte proposição: na democracia, "um pode coordenar-se ao outro sem a presença coordenadora de um terceiro, sem um fim comum dominante, sem regras que prescrevem taxativamente as relações recíprocas"(Lindblom). Essa posição teria a seu favor a recusa de um modelo em que as decisões são concentradas nas mãos de uma autoridade onisciente. Mas a alternativa não é essa. Não se trata de optar entre a racionalidade difusa, impessoal do mercado, e a racionalidade do Grande Planejador.

A decisão política é um ato de autoridade: auctoritas non ventas facit legem. É verdade que a máxima afirmava, classicamente, o primado absoluto da legalidade sobre qualquer outra ordem de considerações, inclusive a fundamentação racional das leis. Penso, no entanto, que se pode mantê-la interpretando-a de outra forma. Modernamente, a decisão como fiat só é legítima se se reveste de racionalidade no contexto em que é tomada. Cabe distinguir, portanto, na estrutura do ato, um momento racional e um momento puramente decisório. Na elaboração de um plano econômico - em que a autoridade é um Ministério técnico -, o primeiro aspecto predomina. Num plebiscito nacional, em que a autoridade é exercida diretamente pelo conjunto dos cidadãos, predomina o segundo. O interesse maior da distinção está em mostrar que a intervenção da autoridade democrática não se reduz ao seu momento racional; na impossibilidade, a que se referia Aristóteles, do cálculo perfeito em política, toda decisão envolve um risco; e, na descontinuidade da cadeia causal, o ato decisório ganha uma dimensão criadora. O momento decisório é importante porque afeta a autoridade democrática no que ela tem de fundamental: a legitimidade. Esta se adquire no momento de sua formação (na escolha pelo voto), mas se mantém ou confirma pelo desempenho na área própria de competência. O critério geral de desempenho, como já se indicou, é a capacidade de criação e preservação das condições materiais e formais do jogo democrático. Se o desempenho for ruim - ou melhor, se o mandato não for cumprido -, a democracia sofre em sua base. Nessa linha, espera-se que o Legislativo vote iniciativas próprias e de outros, que controle decididamente o Executivo. Deste espera-se que formule políticas, discuta-as, submeta-as ao Legislativo quando couber, e as cumpra.

Espera-se que o Judiciário julgue as pendências com rapidez e que os partidos decidam sobre programas coerentes e factíveis. Espera-se que as autoridades e os políticos tenham a sabedoria política de assumir riscos, de se posicionar. A decisão democrática nega a indecisão como substância da política e a decisão como mero ato de poder.

4. Governabilidade: uma análise do caso brasileiro.

É claro que a decisão política como ato de governo não depende apenas da vontade dos governantes e nem mesmo da necessidade de decidir. Depende também de recursos que a possibilitem e, em seguida, que a façam valer. Da possível defasagem entre as demandas dirigidas à autoridade e os recursos a sua disposição nasce o problema da governabilidade.

O tema alude, na linguagem corrente, à ampla gama de questões, que vão de avaliações de conjuntura - "esse governo está em crise"- até afirmações de alta filosofia, do tipo "esse país é ingovernável". Sempre é possível pinçar fatos que demonstrem a plausibilidade de semelhantes teses, e pelo alarme que causam em geral não passam de movimentos no jogo de poder. Convém evitar esse terreno movediço. Num outro plano de considerações, a literatura sobre o assunto diz respeito às contradições e impasses do sistema capitalista em geral. Em Habermas, a crise de governabilidade se apresenta, simplificando, como o resultado de um círculo vicioso: o sistema administrativo não consegue atender à demanda de controle proveniente do sistema econômico (crise de racionalidade) e, perdendo legitimidade, gera uma situação em que aquele controle torna-se ainda mais necessário. Em 0'Connor, a crise tem origem na contradição entre a função de acumulação e a função de legitimação do Estado e se expressa como crise fiscal. O interesse dessas análises para a teoria do capitalismo maduro é evidente; mas, para compreender o funcionamento de um regime democrático, requer-se outro tipo de reflexão.

Huntington se acerca da questão no plano propriamente político: "a governabilidade de uma democracia", diz ele, "depende da relação entre a autoridade de suas instituições de governos e a força das suas instituições de oposição". Ditas as coisas dessa forma, o recurso por excelência do governo é a autoridade, ou a legitimidade das instituições democráticas; a ela se contrapõem as pressões (reivindicações, críticas, não-cooperação) da oposição organizada, danosas à democracia. A dificuldade maior dessa definição está em que, posta a questão nesses termos, recursos e demandas apresentam alto grau de interdependência, como em vasos comunicantes. De fato, não se pode conceber um governo altamente legítimo (em virtude das instituições que o sustentam) que tenha contra si oposições poderosas a ponto de impedi-lo de governar. A existência de tais oposições, por outro lado, manifestaria a deslegitimação da autoridade democrática e poderia levar à sua destituição. No contexto geral do pensamento de Huntington, de resto, a "oposição"é sobretudo o pretorianismo, característico das democracias em formação. Ora, apesar da relevância do tema no Brasil, não é satisfatório reduzir a questão da governabilidade à menor possibilidade de intervenção militar.

Reexaminemos, portanto, o problema de outro ângulo. Admitamos em tese que a governabilidade mede a relação entre a capacidade de governo (e não a legitimidade do governo em exercício) e a demanda de governo. Essas duas variáveis são relativamente independentes. A capacidade depende de recursos econômicos (não a receita fiscal anual, mas a taxa fiscal global "tolerável"no período em questão, mais os recursos de empréstimos e as modalidades usuais de sua utilização) e institucionais (do ponto de vista de sua operacionalidade política e técnica). A demanda de governo designa expectativas históricas ou atuais, traduzidas em reivindicações concretas e apresentadas ao governo eleito, qualquer que seja ele. Em certa medida, a legitimidade também afeta a governabilidade: um governo dotado de grande legitimidade, sobretudo em situações de emergência, pode pedir sacrifícios e, por essa via, reduzir a demanda, aumentar os recursos à sua disposição ou ambos. Mas, na perspectiva aqui adotada, a legitimidade é mais um pré-requisito que uma solução do problema.

Evidentemente, o não-atendimento da demanda de governo pode ser atribuído a dois fatores: ampliação acelerada das reivindicações e/ou a insuficiência ou má utilização dos recursos. O Brasil enfrenta graves problemas de governabilidade porque os dois fatores operam ao mesmo tempo. No fundo, trata-se da dificuldade de conduzir um país de capitalismo dinâmico e selvagem, com dívidas enormes e habitado por uma população miserável em sua grande maioria. Mas isso não explica muita coisa e, além disso, por desastrosa que seja a situação, o país tem de ser governado. Como se traduz essa problemática geral em termos de governabilidade?

A demanda de governo se decompõe em dois tipos de pressões: a que exige o atendimento da "dívida social"e a que reivindica mais participação democrática. A "dívida social"acumulou-se ao longo da história. Só recentemente, porém, a população tomou consciência dela; isso significa, na prática, uma súbita extensão dos direitos sociais, em ritmo muito superior ao do crescimento dos recursos necessários para a sua satisfação. A demanda de participação política, contida sob o regime militar, também explodiu com o fim do regime e ativou-se ainda mais com as promessas da Nova República.

Com que recursos contam os governos? A receita pública representa uma proporção alta do produto nacional. O problema é outro. Face à demanda de inovação no campo social, o governo deve dispor de recursos para investimentos de ruptura, isto é, de excedentes sobre seus gastos estruturais em pessoal e em capital (inclusive manutenção da própria área social). Ora, os "gastos estruturais"são enormes, e crescentes, devido ao empreguismo, transferências às empresas estatais, etc; o Estado se endivida internamente e os juros dessa dívida incorporam-se aos custos de sua mera manutenção.

Do ponto de vista institucional, e sem mencionar o grau de autonomia das Forças Armadas, o governo tem baixa capacidade de ação, particularmente na área social, devido à ineficiência da burocracia (mal paga, incompetente e superinflada) e à inadequação das instituições políticas (partidos heterogêneos e volúveis, Congresso desprestigiado e inoperante, judiciário moroso, etc).

Para governar, os governantes suprem as carências econômicas com emissões e aumento da dívida; as dificuldades institucionais são contornadas por distribuição de cargos e favores a grupos e facções políticas. Vistas as coisas desse modo, a inflação e a política de clientela, o nepotismo e o loteamento dos governos são expressões da ingovernabilidade democrática.

É evidente que esse quadro não configura uma "crise fiscal"(a corrigir por uma readequação de receitas e despesas), nem uma "crise de racionalidade"(que em seu aspecto técnico reclamaria mais planejamento).

A crise de governabilidade no Brasil é antes de mais nada uma crise política, isto é, diz respeito ao seu pré-requisito: ela só pode resolver-se pela ampliação da legitimidade popular das instituições. Ao lado de iniciativas diretas no sentido de aumentar a capacidade de governo, é indispensável atacar o problema no plano do sistema político global. Sua solução envolve uma revolução democrática.

A questão, em suma, não se resolve simplesmente pela troca de governantes. A legitimidade eleitoral não dá ao presidente poderes de alterar as funções de demanda e de capacidade de governo porque a implementação de políticas no país requer, ademais, a legitimação pelas elites. Depende, em outras palavras, do apoio dos caciques políticos, dos governadores, de grupos fisiológicos e corporativos. Ora, o aumento da capacidade de governar (mediante a racionalização dos gastos públicos, redução e qualificação do funcionalismo, alteração do regulamento do Congresso, etc.) fere, precisamente, os interesses daquelas elites legitimadoras.

É evidente que se as instituições (e os políticos) se legitimam pela sua sensibilidade às demandas sociais, a situação é outra. A ampliação da legitimidade popular é um processo que, no Brasil, requer aperfeiçoamento do processo eleitoral, das modalidades de representação e das condições de participação direta da população nos negócios do governo.

5. Representação política e sociedade

A representação é tema central da grande e espinhosa questão do hiato entre sociedade e Estado no Brasil. Em boa parte, o famoso hiato se deve ao desprestígio dos "políticos", tidos em geral por corruptos, incompetentes e mentirosos: os cidadãos não se sentem representados. Isso não impede, é verdade, que sigam votando. O povo não quer a ditadura, embora não preze as instituições democráticas e não as defenda. Talvez desponte no país o vago sentimento de que os órgãos representativos são instrumentos indispensáveis da democracia; mas para que esse sentimento se consolide, as características de representação no país têm de ser profundamente modificadas. O grau de desmoralização dos "políticos", em todos os níveis, e a generalização do debate sobre a questão podem favorecer algumas mudanças necessárias.

No Brasil tem prevalecido, na doutrina e na prática, duas modalidades de representação. A primeira é a representação simbólica, eletiva ou não, própria de situações em que um grande líder encarna o povo ou, ainda, em que um governo militar encarna a nação do futuro e pretende legitimar-se a posteriori. A segunda é uma corruptela da representação política liberal ou fiduciária, caracterizada pelo mandato livre. Ambas procedem à unificação ilusória da base representada por sobre a diversidade real da sociedade: num caso, o representado é o povo ou a nação (a quem se deve proteger e guiar); no outro é a cidadania, ou melhor, o "eleitorado"anônimo e crédulo, ao qual não se deve nada senão promessas pré-eleitorais. A crítica da esquerda é conhecida: no Brasil, a representação é uma ficção a serviço dos interesses dominantes. À parte o fato de que a função simbólica da constituição da unidade política é inerente a toda autoridade legítima, a critica é eficaz. Ela leva, implícita ou explicitamente, à idéia de uma representação sociológica dos interesses.

Nesse paradigma, o órgão representativo espelha a sociedade, dando-se assento, nas assembléias, a representantes de classes, grupos de interesses, minorias, etc, na proporção do tamanho desses setores. O mandato, naturalmente, torna-se mais específico e imperativo. Espera-se que, dessa forma, a) os eleitores possam controlar de perto os mandatários, e que b) esses últimos possam defender melhor os interesses dos representados junto ao governo (função de intermediação). Trata-se, evidentemente, de um modelo em que se confere ao compromisso ético-político de "defesa dos interesses"dos representados, próprio do mandato político, as características da representação jurídica, isto é, a especificidade das instruções e a revogabilidade dos mandatos.

A proposta é atraente. É verdade que a função de intermediação é própria das formas primitivas do Parlamento, em que os representantes dos Estados barganhavam com o monarca; mas a prevalência do Executivo no Brasil não configura uma situação similar? Por outro lado, a ausência de controles e a impunidade de que gozam os parlamentares estão a justificar medidas drásticas de correção. Todavia, no projeto de consolidação democrática que se esboça, essas propostas têm aplicação limitada. Os modernos parlamentos são parte do governo: representam os cidadãos face ao Estado e, face a eles, são parte do Estado. Ademais, o modelo padece de uma "ilusão sociológica": a de que uma situação social (de classe ou outras) bem definida gera automaticamente políticos que lhe correspondem (G. Sartori). Pode-se admitir que a distância entre sociedade e política possa ser reduzida por via do mandato imperativo, mas nessa hipótese cria-se um sério obstáculo à realização da função central dos órgãos legislativos, que é a de debate e negociação das decisões próprias e de outros poderes. Por último, resta a dificuldade de definir os setores sociais a serem representados, e em que proporção. Qualquer definição a priori dessa questão é arbitrária. A possibilidade de identificação objetiva dos agregados sociais não fere o argumento, porque a conformação política da sociedade diverge, às vezes profundamente, da sua estrutura de interesses setoriais, valores, padrões de comportamento, etc. A configuração política retém da sociedade o que ela tem de politicamente relevante, e a relevância política de um setor se mede pela sua capacidade de intervir na esfera pública (ou seja, pela sua capacidade de mobilizar, pressionar, eleger, persuadir, fazer alianças).

É provável que a representação política da nação já não possa sustentar-se em seus elementos simbólicos simplesmente, apesar da importância que as grandes personalidades, como Tancredo Neves, possam ter na reconstituição do sentido da existência comum. Ou melhor: a imagem da unidade tende a destacar-se, a fixar-se em sua função puramente simbólica, como uma condição implícita de possibilidade dos conflitos reais. Pode-se explicar dessa forma o amplo apoio que fórmulas mais ou menos parlamentaristas de governo têm hoje, em que se procura reforçar a majestade do chefe do Estado e protegê-lo das vicissitudes do dia-a-dia. Essa evolução recoloca o problema da representação de maneira dramática.

A ficção da cidadania homogênea se desfez; a representação liberal, de base fiduciária, nas condições brasileiras, não se sustenta nem mesmo em discussões de doutrina. A sociedade é plural e suas contradições penetram a esfera política por todos os lados. Mas tampouco resolve-se o problema por via da representação sociológica. Além das razões apontadas, ela não é de nossa tradição política - bem ao contrário. O corporativismo varguista, pelo qual se impôs a representação classista, tinha mais função de controle do que de representação. O impasse apenas reforça a necessidade de levar adiante a reflexão sobre a representação democrática entre nós, mesmo que as condições de seu desenvolvimento sejam muito desfavoráveis.

A esse respeito, duas questões interligadas merecem atenção: a de saber quem ( ou que interesses) são representados, e a da responsabilidade do representante. Quanto à primeira, deparamo-nos de início com uma dificuldade. O mandato é essencialmente político; o mandatário se obriga a agir em favor do interesse geral, que é a consolidação e aperfeiçoamento da democracia. Contudo, ele não é eleito pela nação ou pelo povo, mas por um setor social, ou por uma região, perante os quais também se responsabiliza. A dificuldade se resolve pela mediação partidária: os termos do mandato são definidos por programas políticos que, embora diferentes, contemplam a sociedade como um todo, e não interesses particulares isoladamente. Mesmo os partidos de base ou ideologia classista têm de atender a essa condição. Mas, como tendência geral, num contexto de competição democrática, a multiplicidade dos interesses sociais não se transfere de forma bruta à esfera política, mas por via de opções globais que agregam aqueles interesses. A representatividade sociológica persiste, em grau maior ou menor, segundo o partido, mas o elemento especificamente político, base do mandato, é a articulação dos interesses representados a um programa de governo para o conjunto da sociedade.

Desse ponto de vista, a representação eletiva envolve um triplo compromisso: do partido face aos eleitores, dos eleitos face ao partido e dos eleitos face aos eleitores. A sorte dos candidatos depende, evidentemente, do desempenho partidário; se o partido não cumpre o programa, ou não tem competência para defendê-lo, todos perdem. Por isso mesmo, cabe aos partidos exigir de seus representantes fidelidade a suas propostas. Mas os representantes têm compromissos assumidos pessoalmente com sua base. A conseqüência mais importante dessas observações é a distinção entre responsabilidade funcional ou independente, dos representantes, que concerne a seu desempenho na promoção do interesse geral tal como definido no programa partidário, e sua responsabilidade pessoal, ou dependente, com respeito aos setores particulares que o elegeram (G. Sartori). Os representantes são ao mesmo tempo ligados ao partido e ao eleitorado; tal é o fundamento racional de um sistema eleitoral misto, majoritário e proporcional (com base em listas partidárias).

A responsabilidade tem primazia sobre a representitividade, mas a responsabilidade pessoal dos parlamentares permanece e, no Brasil, como salta aos olhos, tem de ser reforçada. Como a possibilidade de revogação do mandato a qualquer momento pelas bases traz mais danos que benefícios, restam três mecanismos de controle de ação dos mandatários. O primeiro é a pressão da opinião pública, com base em ampla informação pela mídia ou outros meios, sobre o seu comportamento. O segundo é a aplicação rigorosa do código de ética partidária. O terceiro é a redução da circunscrição eleitoral, de maneira a vincular mais estreitamente o representante a uma base distrital definida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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