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RESENHAS

Silvia Helena Simões Borelli

Prof. do Departamento de Antropologia - PUC-SP

A MODERNA TRADIÇÃO BRASILEIRA - RENATO ORTIZ - Brasiliense, São Paulo, 1987

Localizar o campo onde se insere a discussão sobre o moderno, a tradição e a cultura brasileira demanda, no mínimo, o fôlego suficiente para penetrar em diferentes áreas do conhecimento e dar conta de um empreendimento supostamente multidisciplinar.

Invadir os meandros da cultura brasileira, com a preocupação de articular parâmetros da modernidade, processos de modernização e espaços da tradição, implica observá-la com olhar ambivalente. Ora, o olho disposto na direção do padrão, da norma e da regra ordenadora do cultural, ora o olhar voltado para heterogeneidades e diversidades, para rupturas e transgressões, que apontam o novo e possibilitam as transformações.

Para tanto, se faz necessária a reconstrução da história, ou de períodos significativos da história da cultura brasileira, levando em conta instituições, manifestações e movimentos culturais; identificando lutas e conflitos que se desdobram no interior dos vários campos; desvendando o relacionamento da cultura com o Estado e com outros organismos articuladores do social; e finalmente, assumindo que o cultural se revela também através de dimensões que comportam o lúdico, os devaneios, os traços do imaginário, além de serem produtos de vivências e experiências cotidianas.

Tal tarefa requer o constante passear pelos labirintos da história, da sociologia, da política e da antropologia, além da penetração nos domínios da estética e das artes.

O trbalho de Renato Ortiz, A Moderna Tradição Brasileira , enfrenta o desafio de circular por diferentes áreas e articular conhecimentos diversificados, amarrando solidamente suas reflexões nos referenciais de uma sociologia da cultura.

Sua preocupação é mapear, de maneira ampla e detalhada, o campo da discussão sobre o processo de modernização da cultura brasileira e se indagar, logo de início, sobre a razão da ausência, durante longo período, do debate sobre cultura de massa e conseqüentemente sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado. Logo, o esclarecimento para a pergunta surge da constatação, largamente exemplificada, de que esta falta de reflexão se deve ao fato de não ter existido ao longo da história da cultura brasileira, antagonismo entre cultura artística e cultura de mercado, entre esferas de circulação restrita como arte e literatura, e de circulação ampliada como jornalismo, entre outras. Ou seja, o questionamento se resolve pelo esclarecimento de que no Brasil, sempre ocorreu um intercâmbio e uma coexistência de esferas culturais distintas regidas por lógicas diferenciadas; trânsitos entre literatura e imprensa, teatro e televisão.

Sua análise se constrói, portanto, a partir da reflexão sobre o advento no Brasil, de uma cultura popular de massa. E os olhos do autor se voltam para o passado, na tentativa de localizar os embriões de uma "sociedade de massa", ainda incipiente, mas em construção, a partir dos anos 40 e 50.

O que se pode obvervar na montagem deste quadro de época é o entrecruzamento de várias histórias. De um lado, histórias institucionais dos meios de comunicações como rádio, cinema, imprensa, publicidade e televisão, que compõem o painel do relacionamento entre cultura e sociedade. De outro lado, a mesma história espelhada através dos depoimentos de vários produtores culturais, como autores, atores, diretores e editores. Estes depoimentos são utilizados numa perspectiva de reconstrução da memória coletiva do período. E no confronto entre relatos individuais e movimento real da construção dos meio de comunicação, a constatação de que as trajetórias individuais estão intrinsecamente amarradas à esfera institucional, e à lógica empresarial do recrutamento pessoal e da mobilidade social.

Resulta da análise dos anos 40 e 50 a conclusão sobre a incipiência e até mesmo, sobre a inexistência de uma indústria cultural no Brasil. Esta conclusão se fundamenta pela reflexão sobre o relacionamento entre cultura e Estado, e sobre os parâmetros que configurariam a existência da modernidade e do processo de modernização.

O que se verifica primeiramente durante este período é a ausência de um organismo que possa exercitar o "caráter integrador", fator preponderante para a definição dos limites de uma indústria cultural. Nos anos 40 e 50, o Estado não se configura como o espaço de integração das múltiplas partes que compõem a nação brasileira; e a realidade de uma sociedade de massa tem como base de sustentação, a presença de um Estado nacional.

Além do caráter do Estado, Renato Ortiz associa à fragilidade da configuração de uma sociedade de massa, a ausência objetiva de um processo de modernização da sociedade brasileira, neste período. Para fundamentar sua suposição utiliza-se de referenciais bastante polêmicos como a noção de "anterioridade"e de "idéias fora do lugar", contidas respectivamente nas análises de F. Fernandes e R. Schwarz. Estes referenciais servem de apoio para demonstração de que nos países periféricos sempre existiu uma aspiração e um desejo de modenização; mas o que ocorre na realidade é a existência de uma lacuna entre a intenção de "ser moderno"e a realização possível da modernização.

Com isso definido, segue uma série de exemplos - nas esferas do rádio, televisão, publicações, artes, etc. - na tentativa de esclarecimento desta defasagem e de conclusão que "a noção de modernidade está 'fora do lugar' na medida em que o modernismo ocorre no Brasil sem modernização... ele 'antecipa* mudanças que irão se concretizar em anos posteriores".

Da incipiência de uma sociedade de massa e dos modernismos "fora do lugar", o trabalho se orienta em direção aos anos 60 e 70, época de consolidação de um mercado de bens culturais.

Período de reorganização da economia, de internacionalização do capital, de crescimento industrial; momento do aparecimento do Estado autoritário, integrador nacional das diversidades sociais, e responsável por um política de cultura; e finalmente, fase de confirmação e de expansão de um mercado de bens simbólicos ligados à televisão, livros , revistas, filmes, discos, publicidade e jornais.

Todos esses dados - amplamente analisados no corpo do trabalho — aliados ao avanço de uma racionalidade e à criação de nova mentalidade empresarial, servem de sustentáculo para a implantação da indústria cultural; a cultura, passa a ser então concebida enquanto investimento comercial e a cultura de massa, produto por excelência de uma sociedade modernizada.

Outro ponto que o trabalho evidencia é que o advento da indústria cultural implica um amplo processo de despolitização da sociedade, na medida em que o Estado, elemento fundamental para a configuração do período, assume funções que são diferenciadas: por um lado, agente e propulsor da modernização, e por outro, espaço do autoritarismo, da censura e da castração política e cultural. Os efeitos da consolidação da indústria cultural produzem reflexos diretos sobre os veículos de comunicação de massa que devem agora, responder também, pela tarefa da integração nacional. A nação integrada pressupõe a interligação de consumidores, e ao nacional se incorpora a dimensão de mercado.

Mas não só a elementos ligados à nacionalidade se desdobram as considerações. A indústria cultural tem no seu bojo, claramente configuradas, dimensões que são obviamente de caráter nacional; mas é impossível se pensar a moderna sociedade brasileira e sua produção de cultura de massa voltada para o mercado excluindo uma de suas esferas, que é objetivamente intenacional. Através do levantamento de dados sobre televisão, publicidade e mercado de discos, Renato Ortiz observa que indústria cultural no Brasil contém estas duas dimensões; e que o eixo da discussão para um sociedade que se modernizou, e que responde finalmente pela adequação entre "intenção"e "possiblidade concreta", deveria se deslocar da questão do nacional-popular, para a relação entre internacional e popular.

E ao final, naquilo que o autor denomina "Inconclusão", encontram-se articuladas as questões centrais que norteiam o trabalho: tradição, moderno, moderna-tradição, projetos, utopias, permanências e rupturas. E Renato Ortiz, de início, assume com Octavio Paz, não só o referencial para o título do trabalho, como também a idéia de que o moderno como um valor, uma qualidade, deve ser encarado enquanto tradição; mas que a tradição não é aquela que se identifica como o passado, no sentido da permanência; é aquela que incorpora rupturas e aponta sempre em direção ao novo.

Contudo, na sequência, suas "inconclusões"se distanciam de Octavio Paz, ao endereçar seu olhar de observador perspicaz à situação brasileira, e retirar dela a idéia de que nosso moderno foi muito mais tradição, do que tradição da ruptura. E numa confirmação um tanto quanto pessimista com relação às nossas possibilidades, afirma que "os sinais da modernidade brasileira indicam que realmente 'somos*, e que por isso não mais devemos nos rebelar em direção a outro futuro".

O trabalho de Renato Ortiz tem o mérito de colocar - de forma clara e precisa - para o campo da sociologia da cultura questões que em geral vêm sendo desenvolvidas no campo de discussão da estética e das artes.

Se a análise das noções de moderno, modernismo, modernização e modernidade são avaliadas em sua vinculação com as condições reais do desenvolvimento das sociedades, é possível se concluir que na história da cultura brasileira, sempre houve um descompasso entre intenção e possibilidades concretas de realização.

Mas por outro lado, a modernidade pode ser entendida positivamente enquanto antecipação e intenção de rompimento das alternativas presentes; a ruptura e as transformações virtuais podem estar contidas em projetos, que hoje não se viabilizam, mas que potenciam algo para o futuro.

Se possível pensar com Walter Benjamin "que cada época sonha a seguinte", poder-se-ia recuperar de novo o pensamento de Octavio Paz; pensamento que não pressupõe o ajustamento obrigatório entre intenção e viabilização, mas que remete à idéia do eterno construir, e do nunca supor que a conclusão esteja completa; e isto porque o tempo vivido no presente é sempre o tempo futuro, o vir a ser; e com relação a ele nos diria Octavio Paz: "Um futuro que os antigos olhavam com temor e que nós daríamos a vida para conhecer seu rosto radioso — um rosto que nunca veremos". Não seria, esta, a grande utopia?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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