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RESENHAS

Mauro W. B. Almeida

Antropólogo e Professor da UNICAMP

O Trem Fantasma/A Modernidade na Selva

Autor: Francisco Foot Hardman

Editora: Companhia das Letras, São Paulo; 1988.

e

Shamanism, Colonialism and the Wild Man/A Study in Terror and Healing

Autor: Michael Taussig

The University of Chicago Press, Chicago - USA, 1987.

Foot Hardman conta como uma ferrovia de 400 Km foi construída na selva, para ser em seguida abandonada à tarefa destruidora do tempo. Desde então projetos de utilidade duvidosa e de duração efêmera continuam a ser iniciados no cenário amazônico. Ferrovias e rodovias que levam de nada a lugar-nenhum parecem ser ainda ingredientes inevitáveis de esquemas clientelísticos onde se misturam interesses de empreiteiros com delírios políticos. Para Hardman, porém, o que interessa em empreendimentos como esse é menos sua rentabilidade econômica e suas implicações políticas, e mais sua função simbólica. As catedrais góticas eram não apenas instrumentos de devoção, mas também monumentos que formulavam confiança na ordem medieval. Ferrovias são não apenas meio de transporte mas também monumentos à modernidade. São símbolos privilegiados da cultura industrial

A montagem é uma das técnicas prediletas de Hardman. É por meio da montagem que vou organizar, numa seqüência que não é a do autor, sentenças e imagens. Primeira imagem básica: o mercado mundial como palco. A história do que Wallerstein chamou de sistema mundial tem, como um de seus capítulos, a construção de ferrovias na transição para o século XX. O lado imaginário desse processo e a difusão mundial da "forma-fetiche da mercadoria" , a "fantasia lúdica" do progresso. O ferro como signo. No "transe lúdico do fetiche-mercadoria", o maquinismo não é mais apenas força produtiva. É espetáculo. O ferro fundido das torres metálicas, das locomotivas e das pontes seria o meio de expressão por excelência para a mimesis moderna, A "objetividade espectral" das "quimeras de ferro" mostra que a tecnologia tem efeito mágico. O movimento do capital traz, junto com um universo de utilidade prática, ilusionismo, feitiços e deuses.

Segunda imagem; o espetáculo na selva. O "imaginário do maquinismo" é levado à periferia do mundo pelo "movimento do capital". A montagem do "espetáculo na selva", corri destaque para as estradas de ferro que levam de nada a lugar-nenhum, produz uma convicção de que o espaço da modernidade não tem limites. O tema desse espetáculo é assim "o trânsito sutil entre natureza e cultura, entre geografia e história, entre caos selvagem e ordem nacional". Mas a encenação do fetichismo industrial nos limites da civilização tem um alto custo em figurantes e em cenários. Esse custo é a "dilapidação das forças produtivas", através de "formas compulsórias de exploração". Na Madeira-Mamoré, trabalhadores de cinqüenta países são recrutados para resgate rápido no coração da treva amazônica, na construção de uma "ferrovia do diabo" na qual sobrevivem em média menos de um ano, encerrados numa "prisão sem paredes", que é a própria floresta. ("Ferrovia do Diabo" é o título do livro de Manoel Rodrigues Ferreira que. juntamente com a narrativa de Neville Craig, constitui a inspiração básica de Hardmari.)

Terceira imagem: a história como melancolia. Pois o episódio da Madeira-Mamoré, como vários outros nas fronteiras do sistema mundial, não evolui numa seqüência de inovação, progresso e desenvolvimento. A modernização da selva era, afinal, apenas uma ilusão. Momento de uma "senda de equívocos em que a ilusão aparece entranhada nas coisas" e onde "operários sonham com o ultraleve de Santos Dumont" mas viajam em "negreiros a vapor" pára serem "consumidos também em meio ao desmoronamento precoce da paisagem". Em lugar do modo narrativo triunfal (como nas passagens "modernistas" do Manifesto Comunista que Marshall Befrhan explora em Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, outra inspiração básica de Hardman), resta aqui uma prosa triste que fala de ruínas, de envelhecimento precoce, de fantasmagorias, Expressão típica desse tom é a descrição dos seringueiros: "fantasmas de fantasmas", figurantes de um "baile melancólico" , "dançarinos de uma história que literalmente os jogou no fim dá linha", paradigmas de solidão, de ausência de sociabilidade (nisso tudo Hardman ecoa não apenas o tom de páginas célebres de Euclides da Cunha; e de outras menos célebres de Lévi-Strauss, mas também teses de antropólogos como Steward e Murphy sobre a regressão social de sociedades extrativistas). Voltarei à isso.

A fantasia de poder do maquinismo, porém, desloca-se dá realidade e gera, na periferia, "efeitos grotescos desses objetos deslocados no tempo e no espaço": as ruínas de locomotivas encobertas pela selva. Trens fantasmas. O movimento do capital, que Trotsky descreveu como desigual e combinado, é antes igual e descombinado. Ilustram-nos as ferrovias fantasmas, as transamazônicas convertidas em atoleiros, os teatros de ópera fluviais. Lévi-Strauss conclui Tristes Trópicos com a idéia de que a expansão ocidental gera entropia em suas fronteiras. Transformação daquilo que era estrutura em valor, predação de pessoas e da natureza, etnocídio e desagregação da paisagem em prol de maior energia nos centros: modo de predação.

Há um fascínio nesse ritmo de séculos de solidão, nessa realidade fantástica. Nem a explicação sociológica nem a denúncia moral capturam esse clima. Não é portanto à toa que Lévi-Strauss não escreve seu livro no tom da sociologia, e sim no estilo de livro de viagem, ao mesmo tempo ao redor do mundo e de si mesmo. No caso de Hardman, a montagem de fragmentos literários, pictórios, cinematográficos, arquitetônicos e autobiográficos leva o leitor a uma jornada obsessiva à atmosfera enevoada das estações ferroviárias, ao delírio das construções na floresta. Como não sucumbir ao fascínio da "modernidade na selva"? Como Hardman deixa claro nos poucos comentários ao livro de Márcio Souza, o problema que o interessa é o da narrativa moderna da modernidade,

É o momento de mencionar, embora sumariamente, outro livro que coloca explicitamente esse problema. A tradução do título do livro de Michael Taussig, inédito em português, é: Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem - Um Estudo sobre Terror e Cura (há ainda um artigo intitulado "Cultura do Terror, Espaço da Morte na Amazônia", do autor, publicado na revista Religião de Sociedade, número 10, novembro de 1983).

O terror de que fala Taussig é parte do cenário histórico da construção da Madeira-Mamoré. Assim como essa estrada de ferro foi concluída durante a expansão do mercado para a borracha amazônica, o terror que se abate sobre os índios Witoto deve-se à sede de borracha. Mas, assim como a construção da estrada de ferro era redundante economicamente antes mesmo do colapso da borracha amazônica, o etnocídio Witoto pareceria antieconômico numa região onde o trabalho era escasso. Sobra então um resíduo nas explicações que se centram unilateralmente naracionalidade capitalista. Da mesma maneira como as estradas de ferro eram parte de um espetáculo- mundial, segundo Hardman, para Taussig a violência etnocida contra os indígenas era parte de uma cultura de terror. Tanto Hardman como Taussig transmutam a noção marxista de fetichismo da mercadoria de modo a capturar essa dimensão cultural da acumulação, essa espécie de perversão do senso prático capitalista, o potlatch moderno. O fetichismo da dívida pessoal, que metamorfoseava pessoas em coisas, era tão fantástico e misterioso quanto o fetichismo do maquinismo, que transformava coisas em pessoas.

Como, porém, representar a "densidade mítica do espaço da morte", associada ao fetichismo da dívida, à escravidão de pessoas que na aparência compravam e vendiam como agentes livres? Taussig distingue três modos. Um é o estilo melo-dramático; outro, o estilo realista; um terceiro é o que "tenta penetrar o eu e contudo reter sua qualidade alucinatória". O último é representado por Joseph Conrad, em Coração da Treva. Os estilos melodramático e realista talvez possam ser exemplificados por obras como La Vorágine (de Eustáquio Rivera) e A Selva (de Ferreira de Castro). Já o livro de Conrad "evoca e combina um movimento duplo de interpretação em uma ação combinada de redução e revelação - a hermenêutica da suspeita e da revelação em um ato de subversão mítica inspirado pela própria mitologia do imperialismo". Em vez de explicar os mitos do capitalismo, trata-se de colocá-los ante o leitor como algo que ele tem que experimentar por si mesmo -"avançando cada vez mais no coração da treva até sentir o que está em jogo". O problema com o modo melodramático e com o modo realista não está na afirmação do dramático nem na denúncia da realidade: está na Taita de eficácia simbólica e, portanto, na limitação de seu alcance político.

Há um risco nessa tentativa de "des-realização mítica do real". O risco é que o envolvimento com a densidade simbólica do que é descrito termine por ser dominado pela mitologia. Por exemplo, o fascínio pela grandeza horrível de tipos como Fitzcarraldo. O problema básico da contra-representação está então em não perder a qualidade alucinatória da forma-fetiche, sem sucumbir inteiramente a ela numa poética fascista que estetiza a junção da modernidade com a violência (como ocorreu no caso do futurismo).

Taussig lembra a essa altura que uma saída para a dificuldade poderia estar no apelo ao "modo narrativo dos próprios indígenas". Nisso, concorda com aqueles que reivindicam que a história dos "povos sem história" seja escrita de seu ponto de vista. Começa aqui, em seu livro, a parte mais longa e que não tenho espaço para comentar - não uma "narrativa no modo indígena", mas um diálogo com um xamã que leva, por uma outra via, ao problema da eficácia do simbolismo. Para concluir meus comentários, em vez de tentar resumir o restante do livro de Taussig, conto uma fábula que circula entre seringueiros do alto rio Juruá. Às vezes acontece que pessoas que mergulharam na água dos rios desaparecem para sempre. Elas foram capturadas por aparelhos submersos para extraírem delas a banha humana que abastece os motores silenciosos dos aviões "super-sonho" - que riscam o céu antes de fazer qualquer ruído. Teoria que não é tão absurda: alguns seringueiros sabem também que a borracha amazônica que eles produzem já abasteceu o esforço de guerra norte-americano, e que o látex natural é a matéria-prima insubstituível dos pneus de aviões até hoje. Essas idéias são generalizadas na teoria nativa segundo a qual toda a riqueza do mundo é alimentada pela borracha - única fonte de valor. Ao se defrontarem com a nova onda de modernização - a invasão atual de suas florestas por fazendas de gado - os seringueiros não precisaram, contudo, renunciar completamente a essa versão nativa da teoria da exploração. Numa versão nova, mas apoiada na anterior, afirmam que sua riqueza, mais que a borracha, é o patrimônio natural que reproduzem ao trabalhar na selva: competência que passa a ter valor político no sistema mundial obcecado pela ecologia. Desde fins da década de 70 seringueiros realizavam empates, ações coletivas contra a derrubada da floresta. Em vez de serem exemplos de resistência à modernização, os empates são hoje parte de uma luta moderna por alternativas de desenvolvimento. Vozes inesperadas vindo de "fantasmas desfigurados para sempre" e supostamente despojados de toda sociabilidade, esses discursos são mais modernos que os delírios de colonização cujas ruínas se alastram na forma de capoeiras improdutivas e terras esterilizadas. Assim o "modo narrativo" dos figurantes da história mundial, como numa vingança, se faz presente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1988
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