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A origem do céu e da terra

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O BRASIL

CONTO

A origem do céu e da terra

Getúlio Alho

Autor de Anbuera, Editora Marco Zero. Prêmios "Vladimir Herzog", "Estadual de Literatura", ambos em S. Paulo; e "Joaquim Namorado" em Portugal, todos por contos e o "Prêmio Cidade de Belo Horizonte", 1988, com o romance O Décimo Quinto Dia

Uma vez um índio macuxi-ingaricó, depois de vender uma pepita de ouro encontrada nas suas terras, na Serra do Sol, ficou rico e foi passear em Manaus. A Serra do Sol fica no alto rio Branco, pra lá de Malacacheta, já beirando as águas do Mau que limita o Brasil com o lado inglês.

Depois de providenciar o registro da lavra em nome de sua família, saiu pela cidade à procura de presentes para levar de lembranças. Andou, andou, olhou vitrines, viu exposições, experimentou roupas, testou eletrodomésticos. Nada o satisfez. Como já era noite, recolheu-se a um hotel, jantou e foi dormir. Minto, não dormiu. Tão logo se deitou bateram à porta. Era o camareiro que fora dar explicações a respeito do funcionamento das torneiras, das luzes, do ar condicionado, do vídeo, da tv e do computador. De pronto, o que parecia um quarto solitário, encheu-se de som e imagens vindas de uma grande tela que se abriu na parede fronteira à cama. Sobre a mesinha de cabeceira, junto à bíblia, havia um pequeno teclado; por ele, podia chamar a programação normal de tv, ver filmes (aventura, sexo, ficção, comédia, drama, informou o rapaz) jogar xadrez ou damas contra o computador (ou um dos cento e cinqüenta outros jogos, inclusive o come-come), chamar qualquer serviço do hotel e ver a lista viva das moças-de-companhia (ou rapazes, se preferisse). O camareiro mostrou algumas delas, que se chamavam Mary, Meg, Moema, Ninja, Nina, assim, em ordem alfabética, morenas, loiras, negras e até índias. Se não quisesse nada daquilo, podia desenhar usando o próprio dedo sobre a lousa, na parte debaixo do teclado.

Depois que o camareiro saiu, o índio macuxi-ingaricó tomou um banho de espuma e se deitou. Pegou o teclado e se pôs a brincar experimentando as teclas; uma mostrava a portaria, outra o restaurante, e o bar, a piscina, a lavanderia. Depois viu noticiários. Resolveu olhar a lista das moças, desde o começo. Uma a uma elas apareciam, diziam o nome e faziam poses, demoravam-se ou saíam rápidas, conforme ele próprio comandasse. Uma - morena - nada disse, olhou-o simplesmente, um olhar suave. Apertou o "s" de sim, a imagem sumiu, reapareceu depois, jogando as fotos das moças em mil pequenos fragmentos que se juntaram, para em seguida formar o rosto da morena. O computador pediu confirmação. Teclou o "s" de novo.

Quando ela entrou, ele via a paisagem de um campo verde e florido onde pastavam cavalos brancos, e por onde passavam veados, coelhos e garças. Deslocando a imagem para a direita apareciam cascatas, rios correndo tranqüilos entre pedras, e onde, de vez em quando, tombavam, lentas, folhas douradas. São plátanos, ela disse, já despida ao seu lado: tomou-lhe das mãos o teclado e com habilidade fez com que a luz do quarto fosse morrendo aos poucos à medida que o sol se punha no horizonte. Ouviu cantos de pássaros, murmulho de água correndo, uma voz que murmurava uma canção, ao mesmo tempo que miríades de estrelas apareciam no céu. Quando o sol se pôs de todo, luzes se acenderam em inumeráveis cores e formas, transformando o quarto num caleidoscópio assimétrico. As cores estavam em suas mãos, em seus corpos, e eram as próprias cores vagando pelo imponderável quadrimensional. O índio macuxi-ingaricó sentiu-se muito feliz.

Despertou pela manhã no seu horário habitual, tomou café e saiu. Numa loja de computadores, um chamou sua atenção por ter o teclado igual ao do hotel. Entrou, pediu explicações e demonstração, e satisfeito, comprou-o, junto com um vídeo de cristal e uma antena parabólica. Pensou na alegria da família e nem almoçou para não perder tempo. Pegou um táxi; no aeroporto um avião, e foi para Boa Vista, onde alugou um táxi-aéreo que o levou até o campo de pouso de Genérica, já nas margens do Mau. Ali, esperava-o o irmão, com uma canoa na qual subiram o rio. O irmão, curioso, queria saber do conteúdo das caixas, o porquê de tanto sorriso. E mais ele sorria, remando, remando, vencendo a correnteza, subindo corredeiras, atravessando estirões, furando igarapés. Tendo varado o dia, encostaram numa praia. Deitaram-se na areia e ficaram quietos olhando o céu escurecer. Ele disse ao irmão, lembra-te que os velhos contavam a história do nosso povo e de como tinham recebido a terra e o céu? Lembro. Lembra-te de como os perdemos? Lembro, foram os brancos, não foi? Que vieram com armas e levaram as raízes sagradas e inebriantes. Foi. Que é que tem? Pois é, consegui tudo de volta. Conseguiste o quê? Nossas origens, o universo. E como? Recuperaste as raízes? Não; trouxe um computador. Máquina de branco, igual das mineradoras? Não, é diferente; é uma outra que eles fizeram para devolver tudo que tomaram da gente. Abre, eu quero vê-la. Não, só depois de ligá-la, ela não funciona sozinha. Abre, vá, quero ver. Deixa de ser curioso, queres que o céu se perca aqui? Não te esqueças da origem da noite; não, só vamos abri-las quando chegarmos em casa. O irmão se aquietou e como era obediente nem chegou perto das caixas.

No dia seguinte continuaram a viagem até a aldeia sendo recebidos com festas. No terreiro, ergueram uma nova e grande casa onde foi instalado o computador. Usaram-no para controlar a produção de ouro, as finanças e, sobretudo, para guardar os mitos da tribo. Foi assim que os índios macuxi-ingaricó tiveram de volta a terra e o céu.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 1989
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