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Estado e mercado, público e privado

WELFARE E EXPERIÊNCIAS NEOLIBERAIS

Estado e mercado, público e privado*

Giuseppe Vacca**

Professor de História das doutrinas políticas na Universidade de Bari e diretor do Instituto Gramsci de Roma

1. As características do Estado contemporâneo podem ser definidas por suas diferenças com o Estado liberal clássico. Para isso, é preciso voltar às grandes mudanças da economia e da sociedade na Europa Ocidental a partir dos últimos decênios do século passado e, no que concerne às transformações do Estado, aos anos 20. Deve-se lembrar em primeiro lugar o advento do capital monopolista, que determinou o enorme desenvolvimento da produção industrial e a formação da moderna classe operária "central". Gostaria em seguida de recordar a mudança de forma das crises econômicas, que a partir da Grande Depressão dos anos 80 assumiram um caráter cada vez mais difuso, sincrônico (nos vários países) e destrutivo. Finalmente, gostaria de mencionar os percursos do movimento operário organizado nos últimos decênios do século.

Ocorrem nessas condições mudanças em algumas funções clássicas do mercado e do Estado parlamentar. O mercado já não garante "automaticamente" (por meio da livre concorrência) a reprodução ampliada do capital, nem a desorganização e a fragmentação atomística dos produtores. Com a difusão das organizações dos trabalhadores o mercado não é mais o lugar no qual a troca para a produção assume a aparência da troca de equivalentes; portanto, esse não é mais o principal instrumento de legitimação da ordem social e política existentes.

De outra parte, após a organização política das classes trabalhadoras, e a progressiva expansão do sufrágio, o Parlamento não pode mais funcionar como sede da unificação política das classes proprietárias. Não é mais o lugar onde as classes dominantes podem elaborar a agenda política nacional e centralizar a decisão sem pactuar com as classes subalternas. Por isso, não pode mais ser a sede fundamental da organização das classes dominantes como classes dirigentes, nem o principal centro de dinamismo da "esfera pública".

2. A primeira guerra mundial determinou uma padronização e uma ativação de imensas massas nunca vistas. As classes dominantes foram então compelidas a elaborar um novo tipo de Estado. Na busca do objetivo enfrentaram múltiplos problemas.

Havia a necessidade de proceder à desorganização das classes trabalhadoras, de modo até mesmo violento (como acontecera por exemplo nos Estados Unidos, nos primeiros decênios do século, ou como nas experiências do fascismo italiano e dos fascismos europeus); ou então de "reduzir ao econômico" e de isolar a classe operária, para impedir que, desenvolvendo a sua presença nas instituições representativas e as suas alianças, ela conquistasse a direção do Estado. Nasceu então a exigência de organizar as classes subalternas "do alto", para controlá-las. As experiências do fascismo italiano apresentam a esse respeito significativas antecipações. Em toda a Europa desenvolveram-se ideologias de massa nacionalistas, ou então, - é o caso do Concordato entre a Igreja e o fascismo na Itália — foram entregues ao enorme aparato ideológico das organizações eclesiásticas, funções modernas de legitimação e estabilização da ordem social. Enfim, as classes dominantes deviam promover o consenso político das massas. Com esse sentido desenvolveram-se os partidos de massa da burguesia e a indústria cultural.

Surgiram posteriormente problemas novos no plano econômico. Em 1929 manifestou-se uma forma de crise que não só teve uma difusão simultânea em quase todos os países capitalistas desenvolvidos, como também se apresentou como crise de superprodução e de subconsumo. Embora durante a crise se produzisse uma extraordinária concentração de capital, se desse início a um poderoso salto tecnológico e o desemprego bastante difuso criasse uma enorme disponibilidade de mão-de-obra barata, os mecanismos do mercado enquanto tais não eram suficientes para a retomada dos investimentos e da produção.

Com o desenvolvimento da produção de massa e com o crescente papel dos grandes oligopólios, a acumulação do capital dependia cada vez menos da possibilidade de atrair a poupança entre os investimentos e cada vez mais da possibilidade de sustentar os investimentos mediante a expansão do consumo. Para a produção em série já fora preparada (nas grandes indústrias) a organização taylorista do trabalho; mas não existia ainda uma organização da sociedade capaz de difundir o consumo. Para este fim foi amoldada a máquina do Estado. As suas funções se estenderam. Nasceram o Banco Central e o papel-moeda, instrumentos indispensáveis para concentrar nas mãos dos governos a direção dos capitais necessários para sustentar os investimentos e para regular o ciclo econômico. Desenvolveram-se os gastos públicos, os aparelhos da reprodução, políticas de plena ocupação, o consumo individual.

3. O modelo que lembrei aqui sumariamente já se encontrava claramente delineado em alguns países ocidentais nos anos 30. Mas foi após a segunda guerra mundial (e a reconstrução pós-bélica) que se difundiu em todo o Ocidente, sobre aquelas bases, um tipo (relativamente) homogêneo de sociedade e de Estado. Refiro-me aos anos 50 e 60, e à subseqüente expansão do Estado social nos países europeus. É este o tipo de Estado que encontramos nos dias de hoje.

Gostaria de recordar os pressupostos internacionais da sua difusão. Em primeiro lugar, o novo sistema monetário, que foi acionado com os acordos de Bretton Woods; em segundo lugar, o plano Marshall, logo após a conclusão da guerra, sustentando a reconstrução das economias capitalistas européias e a "guerra fria". Através desses instrumentos impuseram-se o interesse do grande capital oligopólico (americano em primeiro lugar) na liberação dos intercâmbios e no alargamento do mercado mundial, e o modelo produtivo e de consumo americano se difundiu. Finalmente, um terceiro pressuposto foi a disponibilidade de matérias-primas a baixo custo com a qual os países capitalistas podiam contar, graças ao neocolonialismo, impondo crescente desigualdade de desenvolvimento aos países produtores.

Devem ser ainda lembradas algumas conseqüências funcionais da difusão do "Estado social". A passagem a um tipo de desenvolvimento sustentado pela expansão do consumo individual e regulado pelo Estado impôs às classes dominantes a necessidade de um sistema de relações contratadas com o movimento operário. Para este último abriram-se então grandes possibilidades de negociar a redistribuição da renda e de influir sobre a destinação dos gastos públicos e de maneira geral, no desenvolvimento.

Enfim, para o grande capital surgiu a necessidade crescente de "socializar" os custos da produção e de abaixar os custos de reprodução da força de trabalho. Para estes objetivos contribuíram o enorme desenvolvimento dos gastos públicos e a extraordinária extensão dos aparelhos da reprodução. Cresceram, pois, os gastos estatais para a inovação tecnológica e a pesquisa científica, e definiu-se um amplo campo de encontro com as classes trabalhadoras, que reivindicavam segurança social, formação profissional, mobilidade vertical, assistência sanitária, padrão de consumo mais elevado e garantido.

Neste tipo de sistemas políticos não existiam mais classes ou grupos sociais não organizados ou excluídos. A representação e a decisão eram cada vez mais assumidas pelos partidos de massa e pelas "organizações de interesses". Esses se tornaram os principais veículos de legitimação do sistema, pois ofereciam retorno em forma de consenso em troca de uma crescente influência sobre a destinação dos gastos públicos, sobre a redistribuição da renda e em geral sobre a utilização dos recursos nacionais. Esta é, em grandes linhas, a estrutura óssea econômica e política do welfare state europeu dos anos 60. Nele culminou a época do desenvolvimento nacional: uma época em que a expansão da economia mundial teve os seus epicentros nas economias nacionais e os maiores impulsos propulsivos do seu pleno desenvolvimento.

4. A partir do fim dos anos 60 manifestam-se formas de crise que parecem específicas deste tipo de Estado: a crise fiscal, a crise de legitimação, a crise de governabilidade. Antes de entrar num rápido exame delas, quero recordar alguns pressupostos seus, de caráter internacional: o fim do padrão dólar e dos câmbios fixos (como conseqüência da crescente concorrência interimperialista) e a mudança das razões de intercâmbio entre o conjunto das economias de transformação mais desenvolvidas e os países produtores de matérias-primas (os choques do petróleo foram as suas demonstrações mais evidentes).

No interior dos Estados sociais o primeiro gerador de crise é a estratificação social. A extensão inusitada do trabalho dependente torna árduo comprimir os salários e isolar socialmente a classe operária. Conseqüentemente, nas relações entre salário e lucro desenvolvem-se tensões e conflitos crescentes. As conquistas sociais dos trabalhadores não podem ser facilmente tocadas e disso deriva uma crescente inflação de custos e um enrijecimento das bases fiscais do Estado.

A composição de classes do capitalismo tardio alimenta tensões contraditórias: por um lado, em favor do consumo afluente, para satisfazer as exigências de modernização das camadas protegidas (as chamadas "economias posicionais"); em favor de um gasto social improdutivo, por outro lado, para vir de encontro às necessidades elementares das camadas marginais, aliás cada vez mais numerosas (trabalhadores desempregados, jovens à procura do primeiro emprego, trabalhadores ocasionais e emigrantes, mulheres expulsas do processo produtivo, idosos, etc). Além disso, crescem os gastos públicos para sustentar os médios e pequenos agricultores, empresas artesanais, pequenas empresas, que reúnem camadas intermediárias corporativas e protegidas, essenciais no sistema de alianças do capital monopolista, e que por isso obtêm do Estado fluxos de recursos a vários títulos (facilidades crediticias e fiscais, transferências de renda, várias formas de ajuda).

Nasce daí uma crescente dificuldade de financiar a demanda sempre mais difusa de serviços e de gastos públicos de caráter social. As arrecadações estatais se enrijecem e além de um certo limite não podem ser alimentadas. Tem lugar a crise fiscal do Estado. A esta se junta a crise de legitimação. Deve ser considerada, a propósito, a organização social welfare state. O desenvolvimento do Estado social produz a sociedade de massa. O Estado promove, entre outros, a escolarização, as comunicações de massa e a indústria cultural, o pleno emprego e o consumo. Sob o ponto de vista cultural estes processos podem ser vistos como agentes de secularização da sociedade, que põem em crise sobretudo a família nuclear, patriarcal e sexista, célula fundamental da reprodução social inspirada em critérios hierárquicos e no princípio da autoridade.

Por outro lado, a enorme difusão da escolaridade de massa determina uma desconexão estrutural entre o sistema educativo e as dinâmicas do mercado de trabalho. A escola não pode satisfazer a demanda cada vez mais difusa de formação profissional, nem ser um meio adequado de inserção no mercado de trabalho. A intensificação e a difusão dos fluxos de informação incrementam os processos de padronização. Com base nisso desenvolvem-se expectativas crescentes dos trabalhadores no sentido de controlar as condições, os ritmos, a quantidade e os fins do próprio trabalho. Enquanto isso, ao contrário, a organização e a divisão social do trabalho desenvolvem funções sempre mais repetitivas e polaridades antagonísticas entre projeto, execução e controle nos processos de trabalho. Enfim, os processos de emancipação e liberação das mulheres colocam em crise a possibilidade de continuar a descarregar sobre a família e sobre a "esfera privada" os custos principais da reprodução da força de trabalho.

Estes eventos amadurecem num contexto em que a integração oligopolista transnacional muda profundamente o sistema das empresas. Resulta disso a centralização mais acentuada dos processos produtivos através da articulação e a integração dos ciclos, de um lado, e da concentração das funções dirigentes, do outro. Paralelamente à grande empresa taylorista coloca-se a "fábrica difusa", projetada em qualquer ponto do mundo, de acordo com as conveniências oferecidas pelos diversos mercados de trabalho, pelas matérias-primas e pelos capitais.

Nas metrópoles capitalistas derivam disso impulsos acelerados para a transformação "quaternária" (grandes reestruturações produtivas acarretadas pela produção cada vez mais ampla de mercadorias-informação) e uma "composição demográfica" na qual o trabalho precário, o trabalho clandestino, o trabalho a domicílio, o trabalho ocasional são um dado estrutural e em expansão. Torna-se orgânica a tendência à desmotivação das funções e à "recusa do trabalho", unida a demandas crescentes de consumos "supérfluos" e do imaginário.

Desta nova divisão social do trabalho derivam movimentos e formas de ação coletiva, que tendem a negar legitimidade ao sistema político e social. Vista "de baixo", a crise de legitimação apresenta-se sobretudo como crise de representação das classes trabalhadoras, as quais, na nova "composição demográfica", estão sempre menos representadas seja pelas organizações sindicais seja pelos partidos operários tradicionais. No sistema político a crise de representação reverbera em crise de governabilidade: dificuldade crescente para equilibrar acumulação e legitimação.

5. A crise de governabilidade deve ser vista antes de tudo em relação ao cenário internacional. A crescente internacionalização do capital e dos mercados, a invasão dos oligopólios transnacionais, a interdependência sempre maior das economias ocidentais promovem novas desigualdades entre os próprios países capitalistas desenvolvidos e determinam novas formas de dependência dos países menos fortes em relação aos países mais fortes. A manutenção do dólar como regulador do comércio internacional (a despeito da sua inconvertibilidade e do fim da longa e solidária expansão das economias ocidentais), o peso crescente dos balanços de pagamentos no desenvolvimento dos diferentes países, os condicionamentos que derivam da nova divisão internacional do trabalho impõem novos vínculos à (relativa) autonomia dos Estados e dos mercados nacionais. Determina-se assim, um forte redimensionamento da soberania territorial.

No interior dos Estados, o crescente desenvolvimento da função dos partidos e o peso crescente das organizações de interesse contribuem por sua vez para esvaziar as instâncias de representação. Nas democracias européias o sistema parlamentar coincide substancialmente com o sistema dos partidos. Estes, para poder ter peso no "mercado político", tendem a penetrar sempre mais nos órgãos do Estado e nos gânglios da economia pública.

Por força desses processos esfarela-se a unidade da burocracia. Os órgãos da administração pública e do Estado são "enfeudados" pelos partidos. Vem daí uma crise sempre maior da burocracia: do seu "espírito de corpo" e do "espírito de serviço". Esgota-se a aparente neutralidade dos órgãos e das técnicas administrativas, que constituía um elemento essencial da motivação, unidade e identidade dos corpos burocráticos. A perda de homogeneidade incentiva os conflitos políticos no seu interior. Perdem-se a aura do civil servant e a expectativa de comportamentos homogêneos e leais por parte dos funcionários. Este é talvez o aspecto mais relevante da crise da decisão.

Isto acarreta conseqüências para os próprios partidos. Estes estendem o seu domínio sobre os órgãos públicos e estatais, mas mostram-se cada vez mais incapazes de conferir unidade de objetivo e funcionalidade aos órgãos do Estado. Em sociedades desenvolvidas e complexas como as que citamos, as decisões fundamentais, referentes ao desenvolvimento, à produção, ao consumo, à informação e assim por diante, provêm em escala crescente dos vértices dos grandes aparelhos, que tendem a uma crescente autonomia. Atingidos por conflitos de poder cada vez mais agudos, esses aparelhos decidem-se contudo a prescindir dos partidos. Continuidade e mudanças são determinadas sempre mais por linhas internas, na base de conflitos de interesses, de culturas e de competências que percorrem os aparelhos. Os partidos se encontram envolvidos nisso como apêndices das tecno-estruturas e como mediadores entre os objetivos elaborados por elas e os interesses da própria base eleitoral. Enfraquecem-se, porém, as suas características como sujeitos autônomos de proposta e decisão.

Na crise dos partidos cabe enfim distinguir os partidos de governo da burguesia daqueles das classes trabalhadoras. Quanto aos primeiros, a crise de representação se manifesta sobretudo como impossibilidade de unificar sob a égide do próprio partido (tradicionalmente colocando-se no centro do sistema político) os setores fundamentais das classes dominantes e o seu "bloco" de alianças.

Nos diferentes países os processos de internacionalização envolvem segmentos cada vez maiores da burguesia e tornam difícil uma função unitária e nacional das classes dominantes segundo os moldes e as figuras tradicionais. Pelo contrário, assiste-se à sua crescente segmentação e concorrência ao recorrerem a parceiros internacionais mais fortes para garantir o seu apoio, em troca, às vezes, da mediação da crescente dependência do seu próprio país.

Quanto aos partidos de governo das classes trabalhadoras, o elemento fundamental da sua crise parece-me vir da insuficiente capacidade de dominar as transformações capitalistas e a crise do Estado social (no horizonte do qual eles tornaram-se cada vez mais confinados) e de responder-lhes com um programa de valor nacional e internacional.

6. A crise do welfare (crise fiscal, crise de legitimação, crise de governabilidade) surge, pois, na conclusão do longo ciclo do desenvolvimento nacional e mistura-se com a crise do Estado-nação. Aliás, este aparece como o elemento dominante do processo. O declínio do Estado-nação na Europa data de há mais ou menos um século. Mas no final da segunda guerra mundial verificou-se um salto de qualidade. Com o advento das armas nucleares e a divisão do mundo em dois blocos opostos os Estados europeus perdiam o elemento principal da sua autonomia: a decisão sobre a guerra e a paz. No trintênio seguinte outros elementos constituintes do Estado-nação foram postos em discussão.

No início do modo de produção capitalista, os Estados europeus constituíram-se a partir da necessidade de determinar e proteger (os respectivos) mercados nacionais, da necessidade de guerrear para concorrer pela expansão do próprio domínio sobre os mercados do mundo, da intenção de organizar e controlar as competências elaboradas pela ciência moderna e pelo desenvolvimento na técnica, na produção e no comércio, com a finalidade de consolidar as bases do desenvolvimento capitalista.

Entre as características de tal forma estatal, são essenciais a centralização do intelecto científico e a sua transformação em potência política. Sobre estas bases o novo modo de produção se consolidou e pôde expandir-se como uma verdadeira formação mundial, e graças sobretudo à assimilação das ciências pelo capital. Fundamental, pois, foi o papel do Estado-nação na conformação e no desenvolvimento do espírito científico moderno.

Neste século e cada vez mais nos últimos decênios verifica-se, porém, um declínio dos Estados nacionais na formação e no controle da inteligência científica. Também em virtude das suas características intrínsecas, a ciência se desenvolve e se organiza em circuitos e organismos cada vez mais transnacionais.

Existe um extraordinário desenvolvimento das formas e dos meios de comunicação, que se integram em um inédito sistema mundial centralizado, caracterizado por desequilíbrios e conflitos crescentes. Este é o acelerador mais potente dos processos de unificação e internacionalização dos intercâmbios e completa as polarizações que configuram o conjunto de modalidades do desenvolvimento desigual. O Estado-nação não é mais o terreno essencial das lutas pela hegemonia. A dilatação inaudita da oferta de informação, proveniente do desenvolvimento de uma rede mundial dominada por grandes oligopólios transnacionais, constitui talvez o fator desagregador mais potente da autonomia e da soberania dos Estados.

Da nova revolução técnico-científica, da mundialização da economia, da centralização do sistema internacional das comunicações provém uma mudança morfológica das forças produtivas. Esta se caracteriza por uma renovada vitalidade e expansão da forma de mercadoria , e pela sua inédita capacidade de penetrar em âmbitos de vida até então tradicionalmente subtraídos, pela organização estatal, da reprodução social, e que haviam sido aperfeiçoadas, expandidas e garantidas pelo welfare state. Sobre o pano de fundo de todos os processos brevemente descritos destaca-se, pois, o fim da economia nacional.

7. Diante de tais mudanças, aspectos essenciais do welfare state não são defensáveis e não devem ser defendidos. Trata-se, ao contrário, de repensar inteiramente a organização e o controle democráticos da reprodução, as combinações de público e privado, em uma palavra, as formas de regulação. Deve-se analisar primeiramente o pensamento neo-conservador, que ocupou o campo nestes anos. O seu cavalo de batalha é o neo-liberalismo. A sua palavra de ordem, "menos Estado, mais mercado". Terapia proposta, a privatização de recursos e funções que no welfare tinham sido destinadas à esfera pública.

No plano teórico, ninguém objetaria à necessidade de distinguir os binômios Estado/mercado e público/privado. Mas o fato é que quando em política se atacam os defeitos - verdadeiros ou presumíveis - do setor público, por exemplo a sua ineficiência (é o caso da escola) ou a falta de pluralismo (é o caso da informação), o remédio que se propõe habitualmente é "menos Estado, mais mercado".

A razão mais plausível da equiparação de ambos binômios conceituais reside provavelmente no fato de que, durante uma longa fase histórica (todo o ciclo do Estado moderno) nos países europeus, "público" coincidiu com o estatal e "privado" designava tudo aquilo que era atribuído à regulação do mercado. Nos últimos cento e cinqüenta anos, a equação entre público e estatal coincidiu com o desenvolvimento das legislações democráticas: grandes conquistas foram realizadas através da extensão das funções do Estado (das limitações do direito de propriedade à regulamentação das relações do trabalho e à afirmação dos direitos de cidadania). Estão, pois, em jogo interesses de classe evidentes quando se propõe "menos Estado, mais mercado".

A fórmula, aparentemente neutra, esconde uma verdade política elementar. De fato, o liberalismo nada mais é que um programa de redistribuição de renda e do poder com vantagem para os mais fortes. Os seus defensores aproveitam-se da longa identificação das esquerdas com a equação entre público e estatal, que se tornou insustentável, e a investem como em um espelho. Quando o equilíbrio entre público e privado não se sustenta mais, ao agitarem a palavra de ordem "menos Estado, mais mercado" as forças conservadoras ganham a vantagem adicional de aparecer como promotoras de inovações desejáveis.

Distinguir o binômio público/privado de Estado/mercado responde então à dupla exigência de combater a ofensiva neo-conservadora e de redesenhar as coordenadas de um programa de reformas.

8. Durante toda uma fase a equiparação de público e estatal correspondeu a exigências "objetivas" do desenvolvimento histórico contemporâneo. No cenário do desenvolvimento capitalista que significado assumiu a atribuição de funções cada vez mais numerosas ao Estado ("Estado empreendedor", "Estado financiador", desenvolvimento das políticas sociais e dos direitos de cidadania)? Pode-se adiantar a seguinte tese: tratou-se de uma divisão de tarefas entre o Estado e o mercado nacional por um lado e o mercado internacional por outro, em função do desenvolvimento econômico nacional.

Para avaliar corretamente o processo é fundamental levar em conta que se tratou de um único desenvolvimento histórico, que ao fundo sempre esteve o mercado mundial, e que mesmo nas fases de maior desenvolvimento do welfare os Estados sociais nunca deixaram de fazer parte do mercado mundial e de verem determinadas por ele condições e possibilidades do desenvolvimento nacional.

Se, sob esta ótica, tentamos repercorrer as fases de intervenção do Estado, este parece ter exercido principalmente duas funções:

a) levar ao pleno desenvolvimento os recursos de um mercado nacional determinado (para ficar no exemplo italiano, a este objetivo corresponderam o protecionismo, a criação das infra-estruturas modernas e da "economia mista", o assumir os custos da pesquisa e as funções da reprodução da força de trabalho);

b) criar um mercado em campos onde não existiam porque não podia ser criado por "privados" (emblemático o caso da indústria cultural: rádio, discografia, cinema e TV).

Se inserimos os desenvolvimentos nacionais no desenvolvimento mundial, a equação entre público/privado e Estado/mercado aparece como um fenômeno correlato historicamente com as desigualdades e as diferenças nacionais do desenvolvimento capitalista. Ela foi, portanto, uma conseqüência da presença e da função original dos Estados nacionais (europeus sobretudo) na formação do sistema da economia mundial.

Neste cenário a intervenção do Estado foi maior ou menor dependendo da duração do desenvolvimento nacional e a distância de cada país - em épocas diferentes - do centro da economia global (podem-se citar como exemplos, a "via prussiana" e, ainda, o protecionismo italiano). Além disso, essa intervenção visa setores diversos de acordo com a função internacional do país (lembremos o papel do complexo militar-industrial americano relativamente à função mundial que os Estados Unidos foram assumindo neste século).

O misto de público e privado realizado pelas diversas combinações de Estado e mercado não pode ser então avaliado em termos de princípio. Mesmo de um ponto de vista produtivista, não se poderia afirmar historicamente uma maior eficiência do privado. A combinação dada de Estado e mercado pode ser mais ou menos avaliada conforme tenha promovido (e promova) mais ou menos desenvolvimento nacional, e sob qual forma.

9. Os elementos até aqui lembrados parecem-me indispensáveis para enquadrar corretamente os problemas que surgem hoje nos sistemas nacionais, após as mudanças em curso há vinte anos no cenário mundial.

Merece atenção o seguinte dado: a "grande transformação" tecnológica e as novas características dos processos de internacionalização mudam o paradigma das relações entre mercados nacionais e mercado mundial. Delineiam-se uma nova divisão internacional do trabalho, novas interdependências e novos fatores das relações de força e das hierarquias internacionais. A difusão do desenvolvimento não é mais (ou é sempre menos) mediada pelas economias e pelos Estados nacionais. As diferenciações nacionais do desenvolvimento dependem cada vez menos das possibilidades de escolha dos Estados.

São estes os processos que influem sobre as combinações nacionais de Estado e mercado. A crise de consenso para a antiga mescla de público e privado (caracterizado pelo predomínio ideal do público) anda em condições de igualdade com a crise dos recursos que afeta os sistemas mistos nacionais (após os processos de internacionalização da economia). Esta é uma conseqüência do sensível redimensionamento da autonomia do conjunto dos Estados-nações europeus.

A este propósito, a experiência italiana das PpSs, dos transportes, da pesquisa, da universidade e da indústria cultural (TV, cinema e discografia) - entre os anos 70 e 80 - é bem emblemática.

10. Neste contexto se insere a ofensiva ideológica neo-conservadora e dele podemos tirar os elementos para avaliar concretamente a sua dimensão e o seu significado político.

A fórmula "menos Estado, mais mercado", por exemplo no sistema educacional, propõe em resposta aos problemas de produtividade do aparelho, um desenvolvimento dos elementos de mercado e um modelo de legitimação individualista, contra o modelo solidarista-welfarista que prevalecem até agora, ao qual se atribuem as ineficiências do sistema.

Como avaliar essa posição? O que quer dizer "menos Estado, mais mercado" no quadro dos vínculos internacionais, das interdependências nacionais e dos processos de internacionalização em curso? Tendo como fundo os fenômenos que vimos sumariamente, a resposta parece indubitável. De um ponto de vista econômico aquela fórmula quer dizer:

a) mais recursos para os privados;

b) maior dependência nacional dos núcleos fortes da economia mundial;

c) "espontaneísmo" econômico (mediado teoricamente pelo determinismo tecnológico) e homologação aos processos de "modernização" dados.

Em termos sociais almeja-se uma redistribuição mais elitista dos recursos e uma composição de classe mais desigual. Em termos políticos tudo isto implica um direcionamento antinacional (ou pelo menos não-nacional) das classes dominantes.

Em contraste com isso, a combinação preferível de público e privado é estabelecida de acordo com o papel que um determinado país possa e deva exercer no desenvolvimento internacional e no conjunto das nações. A ótica não pode ser outra senão aquela da autonomia e do desenvolvimento equilibrado do país. Conseqüentemente, da valorização de todos os seus recursos. Esta tarefa, como se sabe, o mercado como tal não pode cumprir; pelo contrário, ele a contradiz.

No plano ideal e político estes objetivos pressupõem escolhas que se originem não da suposta alternativa entre Estado e mercado, quase como se fosse uma questão de princípio, mas da combinação e do equilibrio que se quer buscar entre o elemento nacional e o elemento internacional do desenvolvimento.

  • * Publicado originalmente em Tra Itália e Europa;poliliche e cultura deli' alternativa. Milão, Franco Angeli, 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1991
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