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O neoliberal disfarçado ou os percalços de uma certa lógica

ORDEM MUNDIAL

O neoliberal disfarçado ou os percalços de uma certa lógica

Luiz Carlos Bresser Pereira

Foi ministro de Administração e Reforma do Estado no primeiro mandato Fernando Henrique Cardoso e atualmente é ministro da Ciência e Tecnologia

Imagine a seguinte situação: você, leitor, vivia nos anos 50, Stalin estava no poder, e você se opunha sempre à proposta comunista, através dos seus escritos, de suas palavras, e de suas ações políticas concretas como o voto, a participação em reuniões, a assinatura de manifestos.

Entretanto você compartilhava com os comunistas a idéia de que o Estado deve garantir de forma universal saúde para todos. Nesse momento, não importando que sua proposta de como garantir a universalidade da saúde fosse muito diferente da estalinista, surgem dois acadêmicos e escrevem um longo artigo dizendo: você é um comunista; um estalinista disfarçado; você simula ser democrático e progressista, mas, como você a favor da saúde pública e universal, você logicamente defende a ditadura do proletariado, e portanto, ainda que no mais você pareça não ser estalinista, você é de fato estalinista. Surpreendido, você reage: quem disse que eu defendo a ditadura do proletariado: eu sempre me manifestei contra isto, de forma absolutamente clara. Não importa, dizem os seus críticos. É preciso ver por trás das palavras e dos atos. Você está propondo um sistema de saúde universal, e nós sabemos que só defensores da ditadura do proletariado podem propor tal reforma. Logo você é a favor da ditadura do proletariado, e portanto é comunista. Mais cientificamente, é um estalinista que pratica "atos perlocussionais".

Leia Habermas e John Austin para saber do que se trata. São os atos que ocorrem quando o ator, envolvido em ação estratégica ao invés de em ação comunicativa, não declara ou admite seus objetivos como tais. Você quer parecer democrata, fala como democrata, age como democrata, recusa expressamente a proposta da ditadura do proletariado, mas você é a favor da universalidade da saúde, logo tudo o mais é simulação: você é um estalinista, ou melhor, um estalinista disfarçado.

Neste momento você me dirá: mas isto é loucura, é non-sense, é lógica linear sem pé nem cabeça, é um non sequitur atrás do outro. Um tipo de atitude como esta é produto de um pensamento autoritário, que parte de uma raciocínio lógico dedutivo alucinado, que nem o filósofo analista ou o economista neoclássico mais radicais adotariam. Pode ser loucura, mais foi o que vi em Lua Nova (nº 45, 1998), lendo o artigo "O Discurso da Nova Administração Pública", de Cristina A. Andrews e Alexander Kouzmin. Ao invés de estalinista leia neoliberal, ao invés de a favor da ditadura do proletariado leia a favor da escola da escolha racional, e ao invés de defesa do direito universal à saúde leia defesa da reforma gerencial da administração pública, e terá esta incrível lógica diante de si.

Em 18 das 28 páginas do artigo os autores se dedicam a analisar minhas idéias sobre a reforma do Estado e da administração pública, com base em três trabalhos meus de 1996 e 1997, nos quais eu defendo a reforma gerencial da administração pública brasileira, de maneira a dar mais autonomia e mais responsabilidade aos administradores públicos, tornando sua ação mais eficiente e mais responsabilizada não só perante seus superiores hierárquicos mas também perante a sociedade. Ora, deduzem meus críticos, quem é a favor da reforma gerencial é necessariamente a favor da escola da escolha pública, e quem é a favor dessa escola é neoliberal ou neoconservador. Logo, Bresser Pereira é um neoliberal, ainda que disfarçado. Só faltaram dizer: disfarçado e portanto desonesto, porque ser neoliberal não implica em ser desonesto, mas quem é e nega sê-lo está mentido, simulando: é desonesto.

Deus do céu, em que mundo vivemos! Não importa que nos próprios textos analisados existam páginas e páginas (que os críticos reconhecem), criticando a própria teoria da escolha pública ou racional. Não importa que em um debate, quando os críticos apresentaram uma versão anterior desse texto (Seminário Internacional "Reestruturação e Reforma do Estado: Brasil e América Latina no Processo de Globalização, São Paulo, FEA, USP, maio 1998), em que afirmavam diretamente, sem "lógica", que eu era a favor da escola pública e eu lhes tenha dito que, pelo contrário, eu era contra. Os meus críticos mudaram o texto: ao invés de ser um defensor da escolha racional aberto sou disfarçado, e continua válida a conclusão: Bresser Pereira é um neoliberal. Eu posso falar e escrever contra a escolha pública e o neoliberalismo; posso afirmar que embora favorável à privatização de empresas competitivas, sou contra privatizar monopólios naturais; posso afirmar que o Estado cresceu de forma desordenada e excessiva e ao mesmo tempo criticar agências, como o Banco Mundial, que confundem reforma do Estado com downsizing; posso dizer que reformar é reconstruir o Estado, é dotá-lo de poupança pública positiva, de um corpo de servidores públicos competente e bem pagos, com capacidade gerencial, e de políticos legitimados pelo voto; posso dizer que sou de centro-esquerda porque estou disposto a arriscar a ordem em nome da justiça; posso insistir na idéia de que apenas o aprofundamento da democracia e o fortalecimento da sociedade civil (que por definição envolvem um risco para a ordem injusta vigente) nos darão uma sociedade mais justa e mais respeitosa dos direitos de cidadania; posso desenvolver todo um argumento para demonstrar que a única forma de contrabalançar os efeitos desestabilizadores e injustos da globalização, ou seja, da expansão dos mercados a nível mundial, é fortalecer o Estado e fazê-lo agir compensatoriamente; posso argumentar que fortalecer o Estado é aumentar sua governabilidade e sua governança, ou seja, sua legitimidade democrática e sua capacidade de implementar as decisões tomadas; posso sugerir que para isto a primeira coisa é afirmar o direito republicano à república e combater aqueles que, por cobiça, tentam privatizar o Estado, buscando capturá-lo para servir seus próprios interesses; posso afirmar que a reforma gerencial, ao contrário da burocrática, pressupõe a democracia, e é uma forma mais avançada de afirmação dos direitos de cidadania; posso insistir na idéia de que há reformas e reformas: quando elas privatizam monopólios naturais, eliminam direitos legítimos do trabalhador, fazem o país depender da poupança e do crédito externo, chamam de reforma administrativa apenas cortar servidores públicos, elas são neoliberais, mas quando elas eliminam privilégios, desprivatizam e fortalecem o Estado, elas são social-democráticas; posso dizer o que quiser nesta linha de pensamento, de nada servirá. Como também não importa que a teoria da escolha racional, embora consistente com o pensamento neoliberal, tenha expoentes social-democratas como Adam Przeworski; não importa que eu cite Przeworski, Hirschman, Evans e outros cientistas sociais progressistas e critique os neoliberais. Tudo isto é disfarce, simulação. Por uma questão de lógica, como eu sou a favor da reforma gerencial, eu sou adepto da teoria da escolha pública ou racional, e portanto eu sou um neoliberal, um desonesto conservador disfarçado.

O mais grave em tudo isto é que Habermas é convocado para substanciar um raciocínio desse jaez. Habermas que defende a ação comunicativa, que afirma que todo discurso que segue os princípios democráticos da ação comunicativa exige respeito pelo interlocutor, requer o compartilhamento de uma série de regras sobre o discurso, pressupõe um common ground, que tornem viável a argumentação e, afinal, a persuasão, que dificilmente será unilateral: o persuadido também persuadirá.

Tudo isto é muito triste. Ensina-nos apenas que o caminho em direção à democracia é longo e cheio de escolhos e armadilhas. Na democracia nada é mais importante do que a liberdade, mas a liberdade tolerante e respeitosa. A liberdade que rejeita a reivindicação de verdade absoluta para qualquer uma das partes. A liberdade que se exerce através do debate, mas um debate em que os debatedores partem da confiança e do respeito mútuo. Para isto não é preciso ser ingênuo. Podemos ter confiança em um primeiro nível de consciência, e a partir daí agir em relação aos outros, mas, em um segundo nível, estarmos atentos em relação à mentira e a desonestidade, e reagir com firmeza quando elas se comprovam. Minha crítica aos neoliberais da escolha racional, aliás, é exatamente esta. A partir dos princípios individualistas radicais que importaram para a ciência política da teoria microeconômica neoclássica, eles recusam a confiança, sem a qual a convivência e a solidariedade são impossíveis, e afirmam que cada indivíduo age apenas no seu auto-interesse, de forma egoísta, sendo impossível a ação coletiva de grandes grupos. é dessa forma que eles concluem pelo Estado mínimo, já que Estado significa ação coletiva. Paradoxalmente, foi dessa forma que meus críticos me trataram: acusaram-me de neoliberal a partir do pressuposto neoliberal de que ninguém presta, de que apenas o auto-interesse explica as ações humanas, usando um raciocínio lógico-dedutivo tão alucinado quanto autoritário e desrespeitoso.

Escrevi esta nota porque fiquei indignado. Mas, também, porque sou um inveterado defensor do debate democrático, e acredito que, não obstante os interesses e ideologias conflitantes, há sempre a possibilidade do entendimento. Publiquei em outubro último, mais ou menos ao mesmo tempo que esse artigo era publicado na Lua Nova, um livro sobre a reforma gerencial da administração pública, Reforma do Estado para a Cidadania (São Paulo: Editora 34, 1998), onde faço uma extensa crítica da escolha racional e da perspectiva neoliberal. Quem sabe meus críticos leiam o livro e esta nota, e decidam rever em parte suas posições. Afinal, sem confiança não existe sequer o debate.

Levei a sério esta crítica, e procurei respondê-la seriamente, porque ela é representativa de um pensamento linear e preconceituoso muito espalhado nas sociedades contemporâneas. Vou, entretanto, terminar esta nota de forma mais leve, ilustrando os percalços da lógica linear através da história do Antônio, que morava entre o João e o Pedro. Um dia Antônio viu Pedro lendo um livro. Que livro é este? perguntou. Um livro de lógica. Como assim? É simples: tens bolas em sua casa? Tenho. Logo tens crianças. E se tens crianças, são teus filhos e de sua mulher. Logo és casado, portanto não és veado. Antônio ficou maravilhado, comprou o mesmo livro, e no outro dia encontrou seu outro vizinho, João, que lhe perguntou. Que livro é este? Um livro de lógica. E o que é isto? Ora, é muito simples: tens bolas em sua casa? Não. Logo, és veado! Ou melhor, corrijo, logo és veado disfarçado — ou neoliberal disfarçado?

* O presente texto é uma réplica ao artigo "O discurso da nova administração pública", publicado no n.o 45/1998 de Lua Nova, no qual se criticavam posições expressas no artigo de Luiz Carlos Bresser Pereira "A reforma do Estado dos anos 90: Lógica e mecanismos de controle", publicado no mesmo número. (Nota da redação)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    1999
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