Acessibilidade / Reportar erro

DEMOCRACIA, LEGITIMIDADE E JUSTIÇA: UM ARGUMENTO SOBRE O DIÁLOGO INTERINSTITUCIONAL1 1 Agradeço aos colegas Lucas Petroni e Rúrion Melo pela leitura atenta e os comentários a versões anteriores do artigo. Não poderia deixar de mencionar também a contribuição substantiva dos pareceristas anônimos da Lua Nova para o aprimoramento do trabalho.

DEMOCRACY, LEGITIMACY AND JUSTICE: AN ARGUMENT FOR INTERINSTITUTIONAL DIALOGUE

Resumo

A teoria democrática apresenta inúmeras perspectivas sobre o que assegura a autoridade das decisões coletivas. Parte da literatura sustenta que o valor a justificar a reivindicação de legitimidade seria a autonomia moral, que não pode ser violada por critérios substantivos sujeitos ao desacordo razoável - isto é, uma norma seria legítima se os cidadãos (ou seus representantes) forem os responsáveis pela decisão final. De outro lado, sugere-se que o resultado dos procedimentos democráticos deve ser julgado à luz de parâmetros substantivos de justiça - ou seja, a moralidade da democracia se sustenta sobre uma avaliação dos resultados a partir de critérios substantivos independentes. O objetivo deste trabalho é apresentar uma saída para o dilema: a partir da perspectiva deliberativa, será apresentado o argumento que afirma a mútua pressuposição entre o valor da democracia e os direitos fundamentais. Tendo em vista a inexorabilidade de um conflito entre os requisitos procedimentais e substantivos para a legitimidade política, sustento que o diálogo interinstitucional e, não, a última palavra, seria uma resposta normativamente mais adequada para o problema da autoridade legítima. Argumento no texto que a abordagem dos sistemas deliberativos incorpora a tensão entre procedimento e substância e apresenta uma compreensão bem fundamentada sobre a dinâmica política que envolve a formulação de normas capazes de reivindicar justificabilidade perante uma sociedade democrática.

Palavras-chave:
Democracia Deliberativa; Justiça; Legitimidade; Diálogo Interinstitucional; Sistemas Deliberativos

Abstract

Democratic theory presents numerous perspectives on what ensures the authority of collective decisions. Part of the literature argues that the value to justify the legitimacy claim would be moral autonomy, which cannot be violated by substantive criteria subject to reasonable disagreement - that is, a norm would be legitimate if citizens (or their representatives) are the ones responsible for the final decision. On the other hand, studies suggest that the result of democratic procedures should be judged in light of substantive parameters of justice - that is, the morality of democracy lies on an evaluation of outcomes from independent substantive criteria. Hence, this paper presents a way out of this dilemma: from a deliberative perspective, it affirms the mutual presupposition between the value of democracy and fundamental rights. Given the inexorability of a conflict between procedural and substantive requirements for political legitimacy, the article argues that interinstitutional dialogue, rather than the last word, would be a more normatively adequate response to the issue of legitimate authority. The deliberative systems approach incorporates the tension between procedure and substance and presents a well-grounded understanding of the political dynamics surrounding the formulation of norms capable of claiming justification in a democratic society.

Keywords:
Deliberative Democracy; Justice; Legitimacy; Interinstitutional Dialogue; Deliberative Systems

Introdução

Na tradição do pensamento político, a democracia corresponde genericamente a uma forma de organização política que expande até o limite factível as oportunidades de os cidadãos viverem sob leis que eles mesmos escolheram (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.). Em um arranjo político democrático, o poder deve emergir das decisões coletivas tomadas pelos membros da comunidade sobre a qual recairão tais decisões: é facultado aos cidadãos, portanto, decidir a respeito dos valores e das leis e políticas públicas que organizam a estrutura básica da sociedade. Na democracia, a construção da opinião pública e a formação da vontade democrática ocorrem mediante processos, nos quais todos devem desfrutar de oportunidades equitativas de participação (Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.).

O debate na teoria política contemporânea sobre os sentidos da democracia suscitou uma série de interpretações distintas do ideal de autogoverno. Um pressuposto fundamental da ideia de democracia é o de que o exercício do poder político deve ser autorizado pelos cidadãos, entendidos como pessoas livres e iguais. A partir dessa formulação abstrata, para dar forma a uma concepção de democracia, precisamos definir os critérios para se reivindicar o pertencimento à cidadania e, nesse aspecto, o que torna uma decisão propriamente coletiva (Cohen, 1998COHEN, Joshua. 1998. Democracy and Liberty. In: Elster, Jon. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press., p. 185). Reconhecendo o fato do pluralismo razoável - “o fato de que [sob instituições livres] há concepções de valor distintas, incompatíveis, cada uma razoável, segundo as quais as pessoas se sentem sob condições favoráveis para o exercício de sua razão prática” (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular., p. 117) -, as diversas interpretações na teoria democrática procuram dar conteúdo à ideia de autorização para o exercício da autoridade coletiva mediante uma base ora mais voltada ao procedimento por meio do qual as decisões são tomadas, ora se referindo ao conteúdo substantivo dessas decisões.

Nesse sentido, a ideia de legitimidade2 2 Segundo Martí (2006, p. 136), o objeto da legitimidade política são as decisões políticas (cada uma delas, individualmente); uma estrutura institucional será legítima na medida em que seja capaz de gerar decisões consideradas válidas. se fundamenta, seja em valores procedimentais (quem pode reivindicar autoridade e por qual o método as decisões devem ser tomadas), seja em princípios substantivos (qual o conteúdo justo ou correto das decisões). As diferentes concepções na teoria democrática se sustentam em modelos distintos de legitimidade política. Os critérios de legitimidade incorporam uma dimensão prática e, em certo sentido, uma prescrição político-moral. Quando afirmamos que uma decisão é legítima, fica implícito que ela engendra certo dever de obediência, mesmo que não se esteja plenamente de acordo com o seu conteúdo (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.). Em outras palavras, poderíamos dizer que uma decisão pode reivindicar autoridade na medida em que ela seja justificável aos olhos dos membros da associação (Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.).

Neste trabalho, pretendo debater a ideia de legitimidade a partir de duas perspectivas normativas concorrentes quanto ao que assegura que as decisões coletivas sejam publicamente justificáveis. De um lado, uma visão procedimentalista, segundo a qual a democracia se configura como uma série de dispositivos decisórios sustentados em uma concepção de autonomia moral e na proteção estrita dos direitos e liberdades integrais à institucionalidade democrática (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.; Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.); de outro, uma visão substantivista, orientada para os resultados do processo político, que afirma a necessidade de um controle contramajoritário dos procedimentos e decisões como forma de assegurar a moralidade democrática (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.).

A primeira perpectiva parte de uma premissa poderosa, a de que, seja o que for considerado o bem comum, os valores da justiça ou da autonomia, devemos olhar com cautela redobrada para argumentos que sugiram o domínio de um conhecimento objetivo sobre o que é mais valioso para a associação política.3 3 Essa premissa é uma releitura do princípio rousseauniano da equidade, de acordo com o qual leis não podem ser impostas às pessoas por indivíduos que não estão, eles mesmos, sujeitos a essas leis (Dahl, 1989). Quando decisões coletivas são tomadas, as reivindicações de cada cidadão são igualmente válidas e devem ser, portanto, equitativamente consideradas (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.; Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.). Já a segunda, igualmente eloquente, sugere que a combinação de uma legislação democrática, direitos constitucionais e revisão judicial é a melhor maneira de assegurar a manutenção e a realização contínua dos direitos relativos ao autogoverno. Nessa perspectiva, um sistema que relega a proteção dos direitos individuais ao sabor de consensos populares, inevitavelmente sujeitos ao sabor de ondas movidas por crises econômicas e políticas, não pode ser considerado realmente democrático, pois não respeita o princípio fundamental da igual consideração e respeito por todos (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.).

Não obstante o que as distancia, as duas perspectivas parecem convergir para a conclusão de que uma instituição do corpo político deveria ter a última palavra nas decisões coletivas. Ao constituir um arranjo institucional para a tomada de decisões capaz de reivindicar obediência, deverá ser conferida prioridade ao procedimento mais afeito à soberania popular ou ao conteúdo substantivo das decisões proferidas. Nesse aspecto, simplificando muito as coisas, a legitimidade seria assegurada por meio de uma estrutura que assegure, seja ao corpo de representantes eleitos, o legislativo, seja ao fórum da razão pública, o judiciário, a prerrogativa de proferir um juízo definitivo sobre os direitos e liberdades fundamentais. Grosso modo, então, poderíamos dizer os sistemas que privilegiam o Parlamento favoreceriam o aspecto procedimental, ao passo que o estabelecimento de um mecanismo judicial de controle de constitucionalidade conferiria prioridade a uma concepção substantivista.

Parte da literatura argumenta que deveríamos conferir paridade aos valores procedimentais e substantivos. Um regime democrático se constitui de princípios formais (como a reciprocidade, a publicidade e o accountability) e substantivos (como as liberdades básicas e a igualdade de oportunidades) (Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.). Em outra formulação conhecida, afirma-se que não haveria um conflito entre procedimento e substância, ou entre democracia e direito, pois, conceitualmente, a soberania popular e os direitos e liberdades básicos seriam cooriginários (Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.).

Nesse sentido, se consideramos que a autonomia pública e privada são componentes fundamentais da democracia, para que seja capaz de reivindicar legitimidade, um sistema institucional não poderá renunciar a nenhum desses ideais. No entanto, ainda que possamos reconhecer a mútua pressuposição entre os valores procedimentais e substantivos, eles farão, eventualmente, reivindicações conflitantes em relação ao arranjo institucional. Se não podemos abrir mão de forma definitiva de princípios que poderão ocasionalmente estar em conflito, sob pena de desfigurar o caráter legítimo da ordem institucional, faz-se necessário elaborar uma estratégia teórico-política sobre como lidar com esse paradoxo (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.).

Gostaria de sustentar, neste trabalho, que, a abordagem dos sistemas deliberativos pode nos oferecer uma alternativa para evitar a escolha de Sofia entre procedimento e substância. A visão dos sistemas deliberativos, que deu novos contornos à teoria deliberativa da democracia, sugere que o processo decisório seria uma atividade comunicativa que se espraia em múltiplas arenas e espaços, cada qual com características particulares e uma forma peculiar de comunicação. (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
; Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.;). Essa posição, que não situa a reivindicação de legitimidade em instituição específica (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.), sugere que, em vez de pensar em quem deve ter a “última palavra” nas decisões coletivas, seria mais adequado nos voltarmos à ideia de um “diálogo interinstitucional” (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP.). Desse modo, um diálogo aberto e prolongado entre as instituições do sistema político e os fóruns públicos da sociedade civil, e não a atribuição a uma instituição específica da prerrogativa de definir a configuração das normas, aparece como fundamento para a construção de decisões capazes de reivindicar legitimidade.

O trabalho está organizado de acordo com a ordem sugerida acima. Na primeira parte examino a abordagem procedimentalista, que destaca a importância da autonomia moral e sugere a primazia das instituições representativas no veredicto final sobre as decisões políticas mais importantes. No segundo tópico, analiso a perspectiva substantivista, lançando luz sobre o conteúdo das decisões políticas e sustentando a importância de se proteger, via controle de constitucionalidade, mesmo os direitos não associados diretamente ao procedimento democrático tradicional. A terceira seção será dedicada à tese da cooriginalidade, segundo a qual as autonomias pública e privada estariam em uma relação de mútua pressuposição, não sendo adequado, portanto, estabelecer uma forma de hierarquização entre procedimento e substância. Por fim, na última parte, a partir do reconhecimento dos conflitos entre os valores procedimentais e substantivos, discuto o argumento do diálogo interinstitucional, que rechaça a ideia de “última palavra”, realçando, a partir da perspectiva dos sistemas deliberativos, o dinamismo do sistema político democrático, cujas decisões, seja em qual instância venham a ser tomadas, são sempre provisórias e sujeitas a revisões. Desse ponto de vista, os sistemas legal e político, bem como a sociedade civil e a esfera pública, cumprem papeis distintos e que, em uma configuração ideal, seriam capazes de se articular em um concerto institucional em que os resultados alcançados em termos de decisões, leis e políticas públicas estão continuamente abertos ao julgamento da sociedade e podem ser revisados e modificados no futuro.

A versão procedimentalista

Sem a pretensão de sustentar a homogeneidade das perspectivas reunidas sob esta denominação, parece-me plausível afirmar que, de acordo com os autores que aderem a essa posição, afora a eliminação dos mecanismos que compõem o núcleo do arranjo político democrático - eleições livres e igualitárias, direitos à associação e à liberdade de expressão política -, não devem haver limites à vontade democrática aferida mediante o processo de competição pela opinião pública e o voto. Em uma das formas de apresentar o argumento, sustenta-se que “nenhum princípio deve ser inviolável além daqueles que são integrais ao processo democrático” (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press., p. 182, tradução livre).4 4 No original: “no principles should be inviolable beyond those integral or essential to the democratic process”. Fora desse domínio, cujas fronteiras cambiantes não podem ser estabelecidas de antemão por critérios substantivos - ainda que sujeitos ao desacordo razoável -, a sociedade deve ser livre para escolher as políticas que lhe convenham, decidir acerca do equilíbrio entre liberdade e controle e sobre as melhores formas de solucionar os conflitos que inevitavelmente irão emergir em uma sociedade marcada por uma diversidade de concepções distintas sobre os valores fundamentais. Admitir que o processo democrático não predetermina seus resultados e que, em muitos casos, são tomadas decisões que não satisfazem um critério de justiça, não deve nos levar imediatamente a estabelecer restrições à autolegislação. Decisões coletivas que geram resultados injustos ou que restringem direitos e liberdades externos ao núcleo da democracia, desde que tenham sido aferidas em procedimentos democráticos, são plenamente legítimas e não podem ser proscritas em nome de critérios de avaliação independentes.

Pela firme adesão à vontade popular tal como gerada pelas regras do jogo político, o procedimento é considerado, em si, um bem valioso, que merece proteção acima daquela conferida a valores que podem ser objeto de desacordo razoável entre os membros da associação política. É o que nos diz Dahl no trecho abaixo.

Se pessoas adultas devem participar das decisões coletivas no intuito de proteger seus interesses pessoais, incluindo os seus interesses como membros de uma comunidade, para desenvolver as suas capacidades humanas e para agir como seres autodeterminantes e moralmente responsáveis, então, o processo democrático é necessário para tais fins. Visto sob essa luz, o processo democrático não é apenas essencial para um dos bens políticos mais importantes - o direito de governarem a si mesmos - como é também um pacote rico de bens substantivos. (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press., pp. 174-175, tradução livre)5 5 No original: If adult persons must participate in collective decisions in order to protect their personal interests, including their interests as members of a community, to develop their human capacities, and to act as self-determining, morally responsible beings, then the democratic process is necessary to these ends as well. Seen in this light, the democratic process is not only essential to one of the most important of all political goods - the right of people to govern themselves - but is itself a rich bundle of substantive goods.

De acordo com essa versão do argumento procedimentalista, portanto, a autoridade para tomar decisões vinculantes se conecta com a questão da justiça na medida em que os cidadãos lançam mão de seu poder político para criar normas para si mesmos. Isto é, a ação política direcionada a promover a justiça na sociedade (ou reduzir as injustiças de todos os gêneros) depende de os cidadãos estarem convencidos de que essa é a coisa certa a fazer (Vita, 2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
https://doi.org/10.5007/%25x...
).6 6 Uma variação desse argumento surge na literatura que distingue “democracia política” de “sociedade democrática”. De acordo com essa compreensão, a legitimidade política seria garantida pelos procedimentos formais da competição política - entre outros, a depender da versão da teoria democrática -, ao passo que uma sociedade democrática seria um ideal mais abrangente, que envolve uma noção de justiça substantiva. Ver, por exemplo, Vita, 2007. É preciso, dessa maneira, observar com cautela redobrada argumentos que nos sugiram a conveniência de se restringir os procedimentos democráticos ou seus resultados em busca de um ideal de bem comum que não emerja da própria sociedade mediante processos políticos que assegurem a todos os direitos de participação política. O reconhecimento da autonomia moral dos cidadãos, conforme nos diz Dahl (1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.), requer que seja ampliada até o limite a área em que os indivíduos realizam a autodeterminação. Mesmo em situações, sobremaneira comuns, em que nos deparamos com conflitos irreconciliáveis de valores e escolhas últimas, o julgamento acerca dos trade-offs depende de acesso privilegiado a particularidades ou singularidades que só podem ser identificadas pelo indivíduo sobre quem recairão as suas consequências. Apenas os procedimentos democráticos stricto sensu são capazes de maximizar as oportunidades de que os indivíduos devem desfrutar de tomar essas decisões por si mesmos - o núcleo da legitimidade política encontra-se, assim, na prerrogativa conferida aos cidadãos (ou ao órgão representativo eleito e controlado por eles) de definir as normas que vão regular a sua conduta. Na medida em que a barganha de interesses parciais não restringe as liberdades integrais ao procedimento político, não há déficits democráticos significativos ou que nos devam levar a optar por estabelecer amarras constitucionais à soberania popular (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.).

Seria equivocado, portanto, descartar a soberania popular apenas porque, em algumas circunstâncias, ela não nos leva aos melhores resultados do ponto de vista de uma concepção substantiva de justiça. Embora certas formas de regulação das liberdades dos modernos possam ser consideradas injustas, elas não seriam, necessariamente, ilegítimas. Seria ilegítimo, isto sim, estabelecer limites à autolegislação com base no argumento da Odisseia, de Ulisses (Elster, 2009ELSTER, Jon. 2009. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. (Tradução Cláudia Sant’Anna Martins). São Paulo: Editora UNESP.). Ou seja, deveríamos considerar inadequado restringir os resultados aferidos pelos mecanismos tradicionais do autogoverno coletivo devido a uma descrença nas capacidades morais dos cidadãos que participaram das decisões de resistir ao canto das sereias. Nesse aspecto, a decisão tomada pelos cidadãos suíços em 2009,7 7 Em plebiscito realizado no dia 29 de novembro de 2009, a maioria (57,5%) dos eleitores suíços que foram às urnas (o voto não é obrigatório no país) endossaram a iniciativa popular “Contra a construção de minaretes”, proposta pelo SVP (Partido Popular Suíço), legenda de orientação conservadora. Além de ter contado com a maioria dos votos, a proposta ainda cumpriu a necessidade de ser respaldada pela maioria em 22 dos 26 cantões. por meio de um plebiscito, de proibir a construção de novos minaretes não poderia ser considerada ilegítima, pois o que torna uma decisão política e moralmente justificável é o procedimento mediante o qual foi construída e, no exemplo em questão, ele obedeceu estritamente aos ritos legais da fórmula democrática - especialmente se consideramos ter sido uma decisão tomada diretamente pelos cidadãos por meio de consulta direta à população.

Essa posição se baseia em ao menos duas premissas teórico-políticas de enorme potencial heurístico, quais sejam: (1) todos os membros possuem uma qualificação mínima para participar das decisões coletivas; e (2) nenhum participante é tão bem qualificado/informado a ponto de lhe confiarmos decisões que recaem sobre todos nós. Ser moralmente autônomo, nesse sentido, é autogovernar-se no domínio das escolhas moralmente relevantes. Qualquer limite às oportunidades de se viver sob leis que nós mesmos escolhemos restringe, por extensão, o alcance da autonomia moral.8 8 É interessante notar que essa linha de argumentação rompe com as teorias democráticas que marcaram o início do século XX. O “elitismo democrático”, como ficou popularmente conhecida essa vertente teórica, buscando uma solução para a estabilidade política em um contexto marcado pela ampliação do mercado político, sustentava, “realisticamente”, a necessidade de se reconfigurar a ideia de democracia: ao invés de um método de decisões políticas por meio do qual os cidadãos governam a si mesmos, Schumpeter (1961, p. 328) afirma que a democracia consiste em um “sistema institucional, para a tomada de decisões política, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. A vertente pluralista retoma a ideia de autogoverno a partir de uma visão normativa da autonomia moral, o que o “elitismo democrático” considera incongruente com as capacidades e interesses dos indivíduos. De acordo com essa visão, portanto, a “última palavra” em um arranjo democrático deve recair sobre uma instituição responsiva aos titulares do autogoverno. Nesse argumento, a comunidade respeita a independência moral de seus membros à medida que permite a eles reconciliarem o seu pertencimento à associação com um componente de autorrespeito, entendido como a igual liberdade de escolher e seguir as suas convicções éticas, além de defendê-las publicamente. Embora a restrição de liberdades adjacentes aos mecanismos políticos consagrados na institucionalidade tradicional das democracias liberais possa ser considerada injusta, imoral, inadequada, ela não deveria ser, por isso, revista por mecanismos que se contraponham ao autogoverno (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.).

Na perspectiva pluralista apresentada, um arranjo institucional legítimo é aquele que confere igual consideração aos interesses de todos. O argumento procedimentalista recebe uma leitura particular em Waldron (1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.). Segundo o autor, a democracia não é incompatível com a existência de direitos individuais. Haveria mesmo uma relação natural entre democracia e direitos, pois o reconhecimento de um indivíduo como portador de direitos expressa o respeito da sociedade por suas capacidades morais, em especial pela sua capacidade de formar um senso de justiça e se adequar às decisões coletivas, mesmo que em desacordo com a sua própria concepção política de justiça. Essa crença na competência das pessoas para participar das decisões coletivas a partir de critérios razoáveis é a mesma convicção na qual se assenta a atribuição igual de direitos (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.).

O autor reconhece, no entanto, a existência de uma via de mão dupla entre o procedimento político majoritário e a garantia dos direitos individuais. Uma concepção adequada da democracia é incongruente com uma visão dos cidadãos como indivíduos meramente egoístas e irresponsáveis, assim como não admite a indiferença pela sorte dos direitos individuais em um sistema majoritário de decisão coletiva. Muitos direitos, incluindo aqueles não relacionados diretamente ao processo democrático, são baseados no respeito à agência moral individual, que é inerente à democracia (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.).

Poderíamos pensar, assim, em dois tipos de direitos, a saber: (1) direitos constitutivos dos procedimentos democráticos; e (2) direitos que, embora não sejam formalmente constitutivos desses procedimentos, são condição necessária à sua realização. Embora não haja consenso acerca do procedimento ideal - ou mesmo se a democracia seria tão somente um procedimento ideal -, a literatura tende a concordar que a democracia exige que, nas decisões vinculantes, seja oferecido a todos direitos iguais de participação. No caso de (2), considera-se que a relação entre a democracia e a regra da maioria só faz sentido, do ponto de vista moral, dadas certas condições, dentre as quais, a mais óbvia é a garantia dos direitos “liberais” à liberdade de expressão e de associação, necessários ao estabelecimento de um contexto comunicativo para a tomada de decisões políticas formais. Outras liberdades menos claramente procedimentais podem estar associadas ao pertencimento dos cidadãos, na qualidade de membros livres e iguais, à comunidade política (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.).9 9 Argumento semelhante pode ser encontrado no debate sobre a liberdade de expressão entre “coletivistas”, como Alexander Meiklejohn, e “liberais”, como Robert Post. Não terei tempo para entrar nesse debate no momento, mas acredito ser válido o registro de tal semelhança. O debate sobre a melhor interpretação do princípio da liberdade de expressão, de forma análoga à discussão entre procedimentalistas e substantivistas, opõe, de um lado, aqueles que sustentam a importância de uma proteção estrita à liberdade de expressão, desde que o que se expressa represente uma contribuição para o debate político, ao passo que, de outro lado, situa-se a posição segundo a qual não se deveria fazer tal distinção no que tange à garantia dos direitos expressivos, ver Meiklejohn, 1948 e Post, 1995.

Portanto, Waldron (1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.) considera que o exercício legítimo dos direitos que recaem em (1) pressupõe a existência de alguns direitos que pertencem à rubrica (2), isto é, o segundo conjunto de direitos é condição necessária à realização a contento dos primeiros. A questão da legitimidade torna-se central à medida que os direitos de participação não são inócuos e, assim, não podem ser apenas uma questão de liberdade individual. O exercício dessas liberdades é capaz de alterar o próprio status legal dos demais membros da sociedade, por vezes em sua desvantagem, em certos casos contra a sua vontade. Destarte, “ter esse impacto sobre o outro é permissível apenas sob certas condições, e tais condições podem ser representadas como direitos assegurados a qualquer um que possa estar sujeito a este impacto” (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press., p. 284).10 10 No original: “having this impact on other is permissible only under certain conditions, and those conditions may be represented as rights held by anyone who is liable to be subject to such impact”.

Essa perspectiva implica algo como o que Estlund (2000ESTLUND, David. 2000. Jeremy Waldron on Law and Disagreement. Philosophical Studies. v. 99, n. 1, pp. 111-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/371nBwO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/371nBwO...
) chamou de “procedimentalismo equitativo”, que apresenta basicamente duas asserções sobre a ideia de legitimidade política, uma positiva, outra negativa. A primeira delas sugere que a autoridade política deriva a sua legitimidade de um procedimento equitativo para todos os indivíduos e pontos de vista de uma sociedade. A segunda, por sua vez, sustenta que nenhuma concepção sobre os ideais de democracia, justiça ou legitimidade está além do desacordo razoável. Tomadas separadamente, as duas posições parecem plausíveis e condizem com um ideal forte de igualdade política. Em conjunto, todavia, elas soam incoerentes pois expressam uma espécie de “anarquismo filosófico” ou, simplesmente, a afirmação de que nenhuma reivindicação à autoridade pode reivindicar legitimidade. Se o desacordo razoável se encontra em um nível tão profundo quanto parece sugerir esse argumento, sendo as próprias regras do jogo democrático passíveis de dissenso razoável, torna-se impossível determinar em que medida o próprio procedimento seria passível de aspirar legitimidade (Estlund, 2000ESTLUND, David. 2000. Jeremy Waldron on Law and Disagreement. Philosophical Studies. v. 99, n. 1, pp. 111-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/371nBwO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/371nBwO...
).

Uma alternativa, sugerida por Estlund, seria simplesmente sustentar que a equidade do procedimento está além dos limites do desacordo razoável, de modo a salvar o “procedimento equitativo” como fonte geradora de autoridade legítima. Um exemplo de um procedimento como esse seria a regra da maioria, que oferece ao voto de cada um o mesmo peso. Contudo, para além dos problemas práticos enfrentados na materialização desse ideal em sociedades complexas, essa seria apenas uma entre outras formas de procedimento equitativo. Arranjos aleatórios, como o sorteio - rejeitado por Waldron, vale dizer -, também podem ser considerados equitativos por esse mesmo critério. A única conclusão plausível seria, assim, a de que o procedimentalismo equitativo não seria capaz de produzir, por si mesmo, leis legítimas (Estlund, 2000ESTLUND, David. 2000. Jeremy Waldron on Law and Disagreement. Philosophical Studies. v. 99, n. 1, pp. 111-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/371nBwO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/371nBwO...
, p. 119-120).

O procedimento “legítimo”, obtido mediante um processo justo de agregação de interesses, poderá promover decisões que nós, democratas genuínos, consideraríamos repugnantes. Não seria necessário pensar em temas que suscitam forte desacordo moral, o caso mais típico sendo a discussão sobre o aborto legal. Em determinadas circunstâncias, como em contextos de grave crise econômica ou de legitimidade, a sociedade pode ser levada a tomar decisões de restringir direitos de minorias étnicas ou de imigrantes - como, aliás, tem sido o caso nas democracias iliberais11 11 Para uma discussão sobre as democracias iliberais, ver Mounk (2019). que vem se constituindo desde o início dos anos 2010 - por meio seja de representantes eleitos, seja por consultas públicas feitas diretamente à população. Deveríamos, apesar disso, considerá-las legítimas e reafirmar o dever de obediência sob o argumento de que foram geradas democraticamente ou, como Waldron aposta, por serem erros cometidos por nós mesmos, os titulares do autogoverno? Formas profundas de injustiça, sobretudo quando são o resultado frequente de determinados arranjos políticos, acabam por solapar a própria validade procedimental de um sistema institucional, com consequências nefastas até mesmo para a sua estabilidade (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 157).

Parece-me que a objeção apresentada por Estlund expõe uma lacuna considerável no que estou chamando aqui de procedimentalismo. Dada a impossibilidade de sustentar a autoridade política na equidade do procedimento, seria necessário reelaborar a questão da relação entre procedimento e substância na promoção da legitimidade política. A aposta de Estlund seria considerar o caráter epistêmico de determinados procedimentos políticos, de forma a estabelecer uma relação de mútua pressuposição entre o conteúdo e a forma da legislação, inferindo a capacidade desses processos de produzir resultados legítimos. A pergunta, nesse aspecto, remete a uma questão de antiga cepa filosófica: como aumentar a possibilidade de que os procedimentos democráticos, marcados inevitavelmente pela incerteza e o pluralismo, produzam resultados justos? Está implícita nessa pergunta, porém, que questões de correção substantiva são importantes para a legitimidade política. Apenas se admitimos haver certo padrão de adequação substantiva das decisões políticas, podemos pensar em arranjos institucionais que nos aproximem de decisões que estejam de acordo com esse padrão. Nesse aspecto, os próprios procedimentos poderão ser valorizados, segundo o grau em que nos aproximam de uma concepção política de justiça (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 156).

Waldron poderia objetar que o fato de haver um desacordo razoável entre concepções de justiça tornaria logicamente impraticável estimar, nesses termos, a capacidade de um procedimento qualquer de gerar resultados que não sejam razoavelmente rejeitáveis. Todavia, se assumimos um princípio liberal de legitimidade política, saída aventada por Estlund, não podemos, ao mesmo tempo, afirmar que o desacordo razoável alcança toda e qualquer base de legitimidade da autoridade política. O princípio liberal representa um lance claramente mais alto nos requisitos necessários ao acordo razoável, que talvez nos encaminhe para uma proposta que não esteja ao alcance do procedimentalismo puro (Estlund, 2000ESTLUND, David. 2000. Jeremy Waldron on Law and Disagreement. Philosophical Studies. v. 99, n. 1, pp. 111-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/371nBwO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/371nBwO...
, p. 122-123).

Uma “posição mista” em relação à legitimidade (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.) reconhece a validade de concepções substantivas de justiça como parte importante do critério de legitimidade política, o que pressupõe admitir um conjunto de critérios substantivos que precede e é independente do procedimento para a tomada de decisões. Estão descartadas, nesse aspecto, as posições metaéticas mais radicais que defendem qualquer espécie de ceticismo moral. O recurso a critérios substantivos não implica, como sugere Waldron, a adesão a uma forma de objetivismo em sentido forte: “nada nos obriga a aceitar que a dita existência deva ser real” (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 163). A independência dos critérios substantivos se apresenta como uma autonomia em relação aos “procedimentos reais concretos de tomadas de decisões e das preferências e crenças reais dos cidadãos” (Martí, p. 164). Os valores substantivos podem ser constituídos intersubjetivamente, sendo a sua validade fundada, em última instância, nas atitudes e na vontade dos cidadãos.12 12 Os valores intersubjetivos se distinguem, ainda, dos valores meramente subjetivos absolutamente dependentes das atitudes e da vontade dos indivíduos, ver Martí, 2006, p. 163.

A versão substantivista

A segunda posição teórica a ser considerada aqui faz uma aposta no sentido contrário. Isto é, para a perspectiva substantivista, o principal critério para avaliar a legitimidade de uma decisão não seria o procedimento por meio do qual a decisão foi tomada, mas se o seu conteúdo não vai de encontro aos valores fundamentais de uma sociedade justa. O “substantivismo”13 13 Desnecessário ressaltar que, assim como na perspectiva procedimentalista, tampouco pretendo afirmar que haja um consenso absoluto sobre as características do arranjo político defendido pela vertente ora em exame. sustenta que a moralidade da democracia pressupõe a proteção a certos direitos e liberdades que não se restringem às regras da competição política. Ainda que pessoas razoáveis discordem a respeito das condições necessárias e suficientes à democracia, mesmo que, na comunidade política, não haja - e seja mesmo difícil alcançar - um consenso acerca dos direitos que formam o núcleo da moralidade política, é possível estabelecer critérios a partir dos quais julgar as decisões políticas que possam ser objeto de acordo entre pessoas que professam diferentes concepções abrangentes do bem (Rawls, 2008RAWLS, John. 2008. Uma Teoria da Justiça. Tradução Jussara Simões. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.; 2011). Se admitimos a plausibilidade de definir tais critérios, torna-se importante estabelecer mecanismos institucionais que sejam capazes de assegurar a proteção aos direitos e liberdades considerados fundamentais, direitos que ultrapassam o rol de características associadas estritamente aos procedimentos democráticos (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.).

Aceitando essa premissa, se nos apresenta a necessidade de moldar procedimentos e arranjos, eventualmente (ou provavelmente) contramajoritários, que incidam mais diretamente sobre a substância das decisões coletivas, de modo a evitar decisões que, embora formalmente respeitem os elementos formais de uma ordem política democrática, resultem na violação de certos aspectos mais substantivos de uma concepção de justiça - digamos, algumas liberdades fundamentais que não compõem o rol de liberdades integrais ao que a posição analisada na seção anterior atribui à democracia. Uma forma de conceber esse ideal é formatar uma distinção analítica entre democracia e justiça, atribuindo prioridade. Vejamos o que nos diz Van Parijs na passagem a seguir:

Se não podemos supor uma harmonia preestabelecida entre a justiça e a democracia - se, ao contrário, há razões profundas para esperar conflitos agudos entre elas -, então temos que perguntar qual delas é preferível sacrificar. A minha resposta a essa questão é clara. Vamos aderir à justiça e sacrificar a democracia. Pois esta última não é um ideal importante por si mesmo. Ela constitui somente um instrumento institucional, do qual é legítimo se afastar se a busca do ideal assim o exigir (Van Parijs, 1995VAN PARIJS, Philippe. 1995. A justiça e a democracia são incompatíveis? Estudos Avançados, v. 9, n. 23, pp. 109-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3OPPWqO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/3OPPWqO...
, p. 118)14 14 Perceba-se que, nesse caso, a discussão se afasta da legitimidade para se dirigir a um ideal, por certo mais exigente, de justiça.

Poder-se-ia argumentar que as condições da democracia constituem, em si, uma condição necessária à implementação de certos critérios de justiça, como quando Rawls (2008RAWLS, John. 2008. Uma Teoria da Justiça. Tradução Jussara Simões. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.) inclui o valor equitativo das liberdades políticas em seu primeiro princípio de justiça. A questão central, nesse sentido, seria estabelecer quais instrumentos de decisão coletiva satisfariam melhor essas condições, de modo a possibilitar a implementação dos princípios, tal como determinado pelos critérios estabelecidos por uma concepção de justiça. Segundo Van Parijs (1995VAN PARIJS, Philippe. 1995. A justiça e a democracia são incompatíveis? Estudos Avançados, v. 9, n. 23, pp. 109-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3OPPWqO . Acesso em: 30 abr. 2022.
https://bit.ly/3OPPWqO...
, p. 119-120), “a engenharia democrática pode ser vista como a busca de melhores trade-offs entre a independência e a submissão dos eleitos à sua base eleitoral; ou entre a regra da maioria e as limitações constitucionais; ou ainda entre a estabilidade política e a expressão da opinião da maioria”. Ao buscar a melhor forma de organização institucional, no entanto, o norte deve ser um ideal de justiça, ao qual a democracia serve tão somente como um instrumento importante.

Ao contrário do que sugere Van Parijs, não parece evidente que, ao nos perguntarmos sobre a melhor forma de realizar a justiça, seja necessário considerar a democracia um mero instrumento ou mesmo renunciar ao autogoverno se for esse o único caminho para a constituição de uma sociedade justa - entre outras razões, pelo fato de os critérios de justiça serem objeto de desacordo razoável entre posições comprometidas com um ideal de democracia. Os arranjos democráticos de que dispomos não consistem em mais do que um esforço capaz de realizar uma forma de “justiça procedimental imperfeita” (Rawls, 2008RAWLS, John. 2008. Uma Teoria da Justiça. Tradução Jussara Simões. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.). A pergunta que fica é como proceder para aperfeiçoarmos esses mecanismos - sem, é claro, abrir mão daqueles que consideramos mais importantes - no intuito de nos aproximarmos, tanto quanto possível, da constituição de uma sociedade mais justa ou menos desigual, sem fazer exigências excessivas em relação à virtude dos cidadãos.15 15 Vita (2007) encara tal desafio contrapondo propostas mais participativas a versões competitivas da democracia.

Em uma interpretação algo diversa sobre essa questão, argumenta-se que a melhor estratégia para evitar que os direitos fundamentais sejam violados por meio de procedimentos majoritários seria a sua proteção por meio de instrumentos de controle de constitucionalidade (Vita, 2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
https://doi.org/10.5007/%25x...
).16 16 Segundo Vita (2007), quando se trata de “elementos constitucionais essenciais” e “questões de justiça básica”, deveríamos optar pelo estabelecimento de princípios constitucionais ou cartas de direitos, que retirem da legislação ordinária a prerrogativa de restringir liberdades consideradas fundamentais. Para as demais decisões, como sobre os instrumentos de tributação e outras formas de política econômica, restam os mecanismos de representação tradicional. De acordo com essa posição, não se pode relegar a proteção de certos direitos ao sabor de maiorias cambiantes sob o risco de se constituir uma estrutura básica que não respeita o princípio de igual consideração e respeito por todos, condição necessária para um regime democrático. Tais direitos podem ser considerados como parte constituinte de uma concepção mais robusta de democracia. Nesse aspecto, a norma de igual consideração e respeito precede normativamente as ideias de representação de interesses e do consenso popular, pois está inscrita na moralidade do próprio regime democrático (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.).

Contra uma visão que olha com desconfiança para as decisões judiciais que removem certas questões dos fóruns sob influência direta da sociedade civil, argumenta-se que as cortes constitucionais melhoram a qualidade do debate público e a própria representação política. Quando um tema é considerado por essas instâncias, a argumentação perpassa questões de moralidade política que dificilmente emergiriam nos debates parlamentares que estão mais envolvidos em questões de eficiência, no retorno político de certas decisões e na articulação de interesses do que em questões de princípio. Ademais, a notoriedade que assumem na opinião pública a partir de então eleva tais debates a um patamar de destaque na comunicação pública, tornando-os temas de intensa discussão nas diversas arenas da comunicação mediada, nas universidades e nos diálogos interpessoais, como sói acontecer nos regimes políticos democráticos nos quais o exercício do poder encontra-se sob escrutínio constante da esfera pública. Quando as decisões são submetidas às cortes constitucionais, o debate público torna-se mais congruente com a ideia de razão pública. É importante perceber que essa posição não estipula, com isso, que as decisões judiciais sejam legítimas per se, mas, antes, que as características do processo decisório nas cortes aumentam a probabilidade de que as decisões tomadas nesse fórum se aproximem de um critério substantivo de justiça definido independentemente do processo em si. É por entender que a democracia não pode prescindir de uma pretensão epistêmica que se defende a importância de instituições que ampliem a probabilidade de decisões corretas. As escolhas institucionais recorrem, assim, a uma espécie de “juízo probabilístico”, ou seja, deverão ser acolhidas na estrutura constitucional aqueles arranjos que mais nos aproximem da probabilidade de decisões que estejam de acordo com os princípios de justiça17 17 Não seria, portanto, uma simples subordinação do procedimento à substância. Mais importante do que a instituição a quem se confere a prerrogativa de decidir, é que tenhamos uma decisão que se aproxime tanto quanto for possível de um ideal estabelecido por princípios de justiça. As cortes, segundo Rawls (2011a), podem se valer do ideal da “razão pública” a fim de impedir que consensos populares transitórios desfigurem a estrutura constitucional. (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.; Rawls, 2008RAWLS, John. 2008. Uma Teoria da Justiça. Tradução Jussara Simões. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.; 2011RAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .).

Em qualquer sociedade é necessário reconhecer a possibilidade perene de que a distribuição desigual de recursos - econômicos, sociais, cognitivos e outros - acabe se transformando em desigualdade política. Ademais, não podemos deixar de lado a vicissitude, para a qual nos alertam autores de Tocqueville à Mill, de que maiorias morais venham a fazer valer a força do maior número em questões que dizem respeito aos valores e opiniões que cultivamos e que participam da constituição das normas que regulam a nossa conduta. A dinâmica que organiza as sociedades pluralistas torna as dimensões socioeconômica, política e moral continuamente intercambiáveis, permitindo que o autointeresse ou a força moralizante da opinião pública se afirmem por meio da barganha entre grupos de interesses e partidos políticos ou mesmo nos fóruns da cultura pública de fundo e da cultura política não-pública (Rawls, 2011RAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .). Há situações em que não se trata sequer da apropriação do poder político mediante o uso de recursos econômicos, o que seria condenável, mesmo na visão mais procedimental da democracia. Sem esse escrutínio contramajoritário, a democracia poderia dar sustentação a decisões baseadas na força da maioria ou na organização de minorias politicamente ativas com preferências intensas. E, como nos alerta Vita (2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
https://doi.org/10.5007/%25x...
), isso poderá ocorrer mesmo nas instâncias que permitem uma participação mais efetiva da sociedade civil organizada, também afeita às formas de desigualdade que se reproduzem no sistema legislativo tradicional.

Compreendendo a capacidade que os procedimentos corretos têm de levar a decisões que violem, por exemplo, o direito à livre expressão da religiosidade (como no caso suíço mencionado anteriormente, mas poderíamos pensar também no veto ao uso do véu na França), torna-se necessário, segundo Dworkin, construir diques contramajoritários que impeçam que o populismo moral, inevitavelmente presente no debate político, venha a restringir liberdades ou direitos fundamentais. Impor tais restrições seria uma forma de proteger liberdades e direitos importantes à construção de uma sociedade plenamente democrática (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.). Nesse aspecto, seria plenamente justificável, do ponto de vista político e moral - seria plenamente legítimo, portanto -, interpor barreiras à vontade da maioria no intuito de proteger valores considerados fundamentais, conferindo às cortes de controle de constitucionalidade a última palavra quando se trata de temas relativos aos já mencionados elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.; Vita, 2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
https://doi.org/10.5007/%25x...
).

Como na versão procedimental sustentada no ideal de autonomia moral, haveria razões fortes para endossar o argumento aqui exposto. Democratas convictos, de diversas matrizes ideológicas, reconhecem a inevitabilidade do conflito entre os reclamos do autogoverno e as exigências da liberdade, da tolerância e da justiça. O que talvez não apareça como absolutamente evidente é a plausibilidade da virada estabelecida pelos autores da visão substantivista. Reconhecer, por um lado, a necessidade de certos direitos como condição de possibilidade de um sistema democrático e a fragilidade do apelo às decisões majoritárias em questões sobre as quais não existe acordo na sociedade, não implica, por outro, que a escolha por procedimentos contramajoritários ou orientados para o conteúdo das decisões não padeça de fragilidades correlatas, com implicações diretas sobre o fundamento das decisões coletivas. Se desconfiamos da capacidade dos cidadãos e de seus representantes eleitos de tomarem decisões sobre liberdades fundamentais, por que haveríamos de confiar essas mesmas decisões àquelas que são, em geral, as instituições mais aristocráticas e herméticas do sistema institucional? Não corremos o risco, ao adotar tal estratégia, de conferirmos espaço demasiado para que cortes (idealmente) independentes do escrutínio público possam paulatinamente ampliar seu raio de influência relativamente às instituições de representação da cidadania, fundamentais à legitimidade democrática? (Machado, 2015MACHADO, Francisco Mata. 2015. O Estado na democracia deliberativa: as raízes de uma antinomia. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 95, pp. 225-258. DOI: 10.1590/0102-6445225-257/95
https://doi.org/10.1590/0102-6445225-257...
).

É preciso questionar as implicações de um sistema no qual as condições da democracia, seja o sistema de direitos que assegura as autonomias pública e privada, sejam os procedimentos políticos por meio dos quais se conduz o autogoverno, são definidas em arranjos institucionais cujos titulares estão fora do alcance do poder soberano do povo. Quando um grupo de atores, autodenominados imparciais e neutros frente ao jogo político, decide denegar uma legislação construída mediante um procedimento democrático, estamos sempre em um limiar tênue e impreciso do sentido do autogoverno - a despeito dos méritos da decisão, que são, eles mesmos, objetos de desacordo razoável em uma sociedade pluralista. A lógica do poder democrático, em sua origem plebeísta (Araújo, 2004), sugere que sejam atribuídos aos titulares do autogoverno os direitos de participação, seja em questões de princípio, seja em temas envolvendo os arranjos políticos e constitucionais. Há algo de democraticamente incompleto em um sistema político que confere a um grupo de atores, sejam juízes ou não, imunes ao controle político dos cidadãos, a autoridade de rejeitar leis que são as respostas do corpo político a questões sujeitas à contestação em bases razoáveis. Essa estratégia, além disso, pode dar origem a decisões incapazes de reivindicar o consentimento informado dos cidadãos, que percebem serem o resultado de um processo do qual foram excluídos (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.).

De um lado temos, portanto, uma compreensão da democracia como “um cenário buliçoso no qual homens e mulheres ousados discutem apaixonada e veementemente sobre que direitos nós temos, sobre o que exige a justiça e sobre o que corresponde ao bem comum” (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press., p. 305).18 18 No original: “noisy scenario in which men and women of high spirit argue passionately and vociferously about what rights we have, what justice requires, what the common good amounts to”. Levar os direitos a sério, como pretende Dworkin, exige uma determinada postura frente ao desacordo; postura que se desdobra no comportamento dos membros da comunidade política perante o choque inevitável entre diferentes filosofias de vida e interesses. Para Waldron (1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.), as liberdades de consciência e expressão, bem como outros direitos associados à democracia e à justiça, são mais respeitadas quando prevalece um espírito de liberdade entre os cidadãos e os legisladores do que quando são impostos por declarações formais ou qualquer outro arranjo institucional destinado a proteger os cidadãos deles mesmos.19 19 Empiricamente, Waldron compara o debate público em países que não adotam as cortes constitucionais com aquele que se dá nos Estados Unidos. Segundo ele, em diversas ocasiões, não parece haver melhor qualidade na discussão pública estadunidense em relação, por exemplo, à Nova Zelândia e à Inglaterra, países que não possuem um sistema de controle de constitucionalidade nos mesmos termos. Além disso, ainda que se pudesse comprovar o efeito esperado por Dworkin, não parece haver uma razão de fundo para sustentar que o debate promovido por juízes isolados do quadro político possa substituir ou guiar as práticas discursivas dos que deverão tomar decisões vinculantes nas sociedades democráticas: “pode-se esperar, decerto, que o exercício do poder por algumas celebridades togadas fascine uma população articulada. Mas isso dificilmente corresponde à essência da cidadania ativa” (Waldron, 1999, p. 291).

De outro, temos uma posição que, ou bem distingue democracia e justiça, conferindo prioridade à justiça, ou bem pretende proteger valores substantivos relacionados a uma compreensão sobre a moralidade da democracia ou a critérios independentes de correção - estendendo a proteção contramajoritária a direitos e liberdades “liberais”, que, embora não se localizem no núcleo da política democrática, assegurariam as condições necessárias à sua realização. Seja como for, para a versão substantivista, a prerrogativa do consenso popular construído pelos procedimentos democráticos tradicionais pode - e deve - ser restrita no intuito de salvaguardar certos direitos e liberdades, estabelecidos por critérios de justiça, contra a possibilidade de que maiorias eventuais ou minorias dotadas de recursos distribuídos desigualmente venham a restringir direitos fundamentais de outros membros da comunidade política. Sugere-se que, em um arranjo que confere às cortes constitucionais a última palavra, protege-se, de forma mais apropriada, as condições procedimentais e substantivas do autogoverno.

Procedimento e substância da legitimidade

O debate apresentado até aqui procurou evidenciar a dificuldade para sustentar a validade de normas e políticas em valores puramente procedimentais ou puramente substantivos. Resta claro, a partir dos argumentos expostos acima, que não há um consenso na teoria democrática acerca dos ideais que asseguram a justificabilidade das decisões coletivas. Por um lado, considerando o fato do pluralismo, há boas razões para questionar a plausibilidade de encontrarmos uma base compartilhada de valores a partir dos quais tais decisões possam ser justificáveis para todos os cidadãos. Por outro, decisões tomadas pelo procedimento correto podem ser rejeitadas por violarem certos valores substantivos fundamentais à democracia ou mesmo certas liberdades não vinculadas diretamente à soberania popular. A questão a ser enfrentada nesta seção é, portanto, a de compreender em que medida faz sentido separar reivindicações procedimentais de reivindicações substantivas, e investigar a possibilidade de articular esses ideais e escapar da necessidade de conferir prioridade a um deles na constituição de uma estrutura institucional que produza decisões válidas de um ponto de vista político-moral.

Na famosa formulação de Cohen (2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular., p. 115), “[a] ideia fundamental da legitimidade democrática é a de que a autorização para exercer o poder estatal deve surgir das decisões coletivas dos membros da sociedade que são governados por tal poder”. Diferentemente das concepções minimalistas da democracia, na democracia deliberativa não basta, para justificar as decisões, que elas sejam o resultado de uma agregação justa de interesses. Como afirma Habermas (1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press., p. 107, tradução livre), em uma sociedade democrática, “apenas serão válidas aquelas normas de ação com as quais todas as pessoas possivelmente afetadas poderiam concordar como participantes em discursos racionais”. A democracia deliberativa impõe, então, um dever de se apresentar razões para as decisões coletivas que estejam sustentadas em valores que os membros de uma associação política não poderiam razoavelmente rejeitar (Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press., p. 3). A pretensão dessa formulação seria solucionar o dilema exposto nas seções anteriores, que nos levaria à escolha de Sofia entre princípios procedimentais ou substantivos como critério último para avaliar a legitimidade das decisões políticas.

Em uma visão deliberativa da democracia, a legitimidade não pode prescindir dos direitos políticos formais nem tampouco das condições efetivas ao seu exercício por todos - o que pode implicar, eventualmente, a admissão de normas que se interponham à autolegislação coletiva, no intuito de oferecer a todos o que Warren denomina “autoridade da voz” (1996WARREN, Mark. 1996. Deliberative Democracy and Authority. The American Political Science Review. v. 90, n. 1, pp. 46-60. DOI: 10.2307/2082797
https://doi.org/10.2307/2082797...
, p. 50)20 20 No original: authority of voice. ou mesmo o que se convencionou denominar “as liberdades dos modernos”,21 21 É claro que a expressão originalmente remete ao discurso proferido por Benjamin Constant, no Athenee Royal de Paris, em 1819. garantia que não seria diretamente política, mas remete à extensão do reconhecimento público de que todos são membros iguais do corpo político soberano (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular., p. 128).22 22 Ou o “princípio da inclusão deliberativa” (Cohen, 2007, p. 128). Em uma ordem política democrática, agência, consentimento e autoridade estão sempre em uma relação de proximidade, pois, sem os primeiros, o pressuposto moral da obediência não encontra fundamento lógico ou normativo.

Podemos perceber, portanto, que a justificação de um Estado constitucional democrático encontra-se inevitavelmente submetida a uma lógica circular entre a democracia e os requisitos institucionais da soberania popular, de um lado, e os direitos fundamentais, incluindo um sistema de normas que os proteja do consenso popular eventual, de outro:

o princípio da democracia só pode aparecer como o coração de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos conforma um processo circular no qual o código legal, ou a forma legal, e o mecanismo para produzir leis legítimas - portanto, o princípio democrático - são constituídos cooriginariamente (Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press., p. 122-123, tradução livre)

Nesse aspecto, seriam cooriginárias as autonomias pública e privada, a autodeterminação política e os direitos individuais que protegem os cidadãos contra a autoridade arbitrária da comunidade. O arranjo institucional e as decisões por ele propaladas serão consideradas legítimas quando reconhecidas pelos membros da associação política como o resultado de um acordo baseado em razões aceitáveis (ou não rejeitáveis) e discursos em que os sujeitos estão incorporados. Como complemento lógico da identificação dos cidadãos como autores das normas sob as quais se encontram, devem ser-lhes assegurada uma proteção estrita da autonomia privada. O medium do direito seria, portanto, a um só tempo, um constrangimento ao alcance do autogoverno e um instrumento necessário à sua plena realização. As normas legais são engendradas na prática da autolegislação de cidadãos livres e iguais, mas operam também como limites fundamentais a fim de evitar que a democracia produza os instrumentos de sua própria derrocada (Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press., p. 263-264).

A legitimidade política, por esse ângulo, apresenta reivindicações que vão além do procedimentalismo que subjaz à ideia de democracia política, mas que não exigem, como fundamento da autoridade legítima, o respeito a uma concepção substantiva de justiça, que pode ser objeto de profundo desacordo na sociedade. Nessa concepção, a lógica que subjaz à proteção das liberdades não diretamente associadas à autodeterminação pública, que recai sob o “princípio da inclusão deliberativa”, não é nem estritamente política, nem, tampouco, antipolítica. A ideia é que restrições a essas liberdades comprometem a posição dos cidadãos como membros iguais do povo soberano, pois impõem a negação da força de razões para as decisões coletivas que, à luz de concepções do bem razoáveis por eles endossadas, são convincentes. Uma sociedade cujos princípios constitucionais se orientam pela mútua pressuposição dos ideais de democracia e direitos encontra-se aberta às diversas concepções razoáveis do bem e oferece oportunidades equitativas aos membros de todos os grupos e associações que eventualmente se formarão em seu interior (Cohen, 1998COHEN, Joshua. 1998. Democracy and Liberty. In: Elster, Jon. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.; 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.).

A definição de democracia aqui apresentada toma como sua orientação fundamental a ideia de uma comunidade auto-organizada de cidadãos livres e iguais. Nessa visão, o fato fundamental da sociologia política é a relação horizontal, comunicativa, entre cidadãos que se reconhecem e agem enquanto tais; a democracia estabelece o arranjo institucional que torna o exercício do poder sensível a essa relação. Tal concepção de democracia tem dois componentes: o primeiro associa-se à definição, em termos abstratos, de uma associação auto-organizada de cidadãos livres e iguais cujo exercício do poder coletivo é sensível ao processo comunicativo entre os titulares do autogoverno;23 23 É preciso assumir, primeiramente, que tal concepção é dirigida a uma sociedade pluralista, que desfruta de uma cultura reflexiva que conscientemente aceita uma distinção entre o fato de que uma prática é socialmente aceita e a legitimidade dessa prática (entre facticidade e validade, vale dizer), cuja complexidade impede que a sua coordenação seja realizada tão somente por meio da comunicação, tomada como distinta das trocas de mercado e do poder administrativo. o segundo é uma consideração sobre as condições de possibilidade de tal sociedade, ou seja, é uma pergunta a respeito da medida ou do grau em que o ideal normativo que se desenvolve a partir de determinadas suposições sociopolíticas pode se aplicar às sociedades contemporâneas dadas as motivações humanas plausíveis (Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.).

Embora as concepções deliberativas aqui examinadas sejam estritamente procedimentais, elas o são de um modo diferente daquele assumido por concepções fundadas na competição política e na formação de equilíbrios contingentes a partir da defesa de interesses particulares. Seria incorreto dizer que a legitimidade das decisões se refere em última instância ao próprio procedimento político baseado no princípio majoritário. Tampouco poderíamos dizer que ela se sustenta em uma noção metafísica de justiça ou em uma concepção fundacionalista de “direitos naturais”. Assim sendo, o exercício do autogoverno, o processo de autodeterminação pública, vale dizer, está inevitavelmente ancorado nos direitos e liberdades comumente associados à proteção da autonomia privada. É nesse sentido que podemos afirmar a cooriginalidade entre autonomia pública e privada e a mútua pressuposição entre a proteção, eventualmente contramajoritária, das liberdades, de um lado, e o fundamento da autolegislação democrática dos cidadãos livres e iguais, de outro.

Emerge da formulação apresentada acima uma posição intermediária entre o procedimentalismo e o substantivismo puros. De acordo com essa formulação, uma decisão será legítima na medida em que seja o resultado de um procedimento reconhecido como válido e respeite, em algum sentido, certos valores substantivos (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.; Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.; Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.). Todavia, afirmar que os valores procedimentais e substantivos são cooriginários (ou mesmo que, portanto, sejam ambos irrenunciáveis) não leva a que desapareçam por completo os dilemas advindos dos conflitos práticos entre eles. A tese da cooriginalidade evidencia que não se trata de uma situação em que tenhamos de escolher em definitivo entre um ideal e descartar por completo o outro. Contudo, admitindo que, em sociedades marcadas pelo pluralismo razoável, teremos de lidar concretamente com as tensões permanentes envolvendo reivindicações opostas, somos forçados a pensar em saídas teórico-políticas capazes de evitar o “pluralismo ontológico” ou a conclusão de que não podemos encontrar nenhum critério válido de legitimidade (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 159). Nas palavras de Martí,

[o] paradoxo, concretamente, consiste em que dois conjuntos de valores que se implicam mutuamente podem entrar em conflito entre si. O resultado do paradoxo em termos práticos é que quando tentamos articular sistemas institucionais legítimos de tomada de decisões em algumas ocasiões nos vemos obrigados a priorizar um valor sobre o outro ou, em outras palavras, a sacrificar um deles (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 154)

Não basta, portanto, afirmar teoricamente a relação entre esses valores sem apontar o modo por que a sociedade se organiza institucionalmente no intuito de assegurar que o processo de autodeterminação pública não ponha em risco os direitos e liberdades necessários à sua própria realização.24 24 Dentre os recursos institucionais essenciais ao exercício do autogoverno estão tanto os direitos à liberdade de expressão e associação política quanto também o que Rawls (2011a) denominou as “bases sociais do autorrespeito”. O exercício das liberdades políticas está associado de forma impositiva às bases sociais do autorrespeito, à medida que são entendidas como condições necessárias às capacidades morais de exercer um senso de justiça e de professar uma concepção abrangente da boa vida. O autorrespeito aparece como um bem fundamental por ser uma pré-condição para que as pessoas possam perseguir seus objetivos. Ele se ancora, em parte, no reconhecimento que o indivíduo tem de si mesmo como um membro igual que compartilha a responsabilidade de fazer julgamentos, com autoridade, sobre questões sociais e políticas. Quando os demais compartilham com o indivíduo essa percepção, eles confirmam a ele o senso de seu valor igual. Isso ocorre quando os demais membros de uma sociedade reconhecem e protegem o direito do indivíduo de usar o seu senso de justiça em decisões sobre as questões que são postas à associação política. Na próxima seção, pretendo argumentar que uma saída possível para o paradoxo enunciado acima deve se afastar das teorias da “última palavra” e reconsiderar o espaço em que se produz a legitimidade das decisões. Sem que tenhamos de rejeitar por completo a tese da cooriginalidade ou o fato de que as autonomias pública e privada se pressupõem mutuamente, pretendo sustentar que, de uma perspectiva do processo deliberativo ampliado no espaço e no tempo, as instituições que se vinculam aos princípios procedimental e substantivo encontram-se em constante interação entre si.

Gostaria de sugerir, na próxima seção, que a ideia normativa da sociedade como um sistema deliberativo, tal como vem sendo discutida pela quarta geração das teorias deliberativas (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
), pressupõe a existência de um processo aberto e contínuo em que a legitimidade das decisões políticas não depende exclusivamente de um fórum específico. Essa visão será articulada com as teorias do diálogo interinstitucional, que rechaçam as concepções da “última palavra”, ampliando o fundamento do diálogo para os fóruns políticos públicos e a cultura de fundo.

O argumento do diálogo interinstitucional

A apreensão sistêmica que vem ganhando espaço na teoria política contemporânea sugere que a sociedade democrática pode ser pensada em termos das funções normativas a serem atribuídas a cada uma das instâncias deliberativas, cada qual contribuindo para a conformação de um sistema deliberativo, em que a interação discursiva na sociedade civil e no Estado, e entre a sociedade civil e o Estado, não condiz com a atribuição, seja às instâncias de representação da vontade popular, seja às cortes de controle de constitucionalidade, da palavra final no processo de autogoverno (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
; Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.).

De modo geral, as teorias do diálogo interinstitucional25 25 Para os propósitos deste artigo, vou discutir as teorias do diálogo interinstitucional como um bloco, em que pese as inúmeras divergências e descontinuidades entre elas. Uma excelente revisão pode ser encontrada na tese de Conrado Hubner Mendes, defendida em 2008, no DCP-USP. Tese da qual, em boa medida, me valho para a reconstrução a seguir. acolhem a ideia de que a deliberação envolve não apenas indivíduos e grupos em instituições, mas pode ser pensada também entre instituições. Frequentemente, as imagens construídas por essa perspectiva tomam os três poderes consagrados na institucionalidade política moderna - Legislativo, Executivo e Judiciário - como os protagonistas dessa interação. A despeito das variações no escopo da vertente dialógica, há ao menos dois pontos que parecem pacíficos nessas teorias: (1) o rechaço ao monopólio do Poder Judiciário como intérprete das normas constitucionais; e (2) a rejeição à própria ideia de “última palavra” como prerrogativa exclusiva das cortes (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., pp. 105-106). Há ao menos duas formas de olhar para o diálogo interinstitucional. A primeira, de caráter normativo, sustenta que as cortes, ao exercer o controle de constitucionalidade, devem considerar a interações com o poder legislativo. Já a segunda, que toma como ponto de partida uma análise empírica, afirma que a interação institucional decorre do próprio desenho institucional que força os tribunais a dialogar com os legisladores (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., p. 106).

Para as teses do diálogo interinstitucional, as cortes realizam um papel importante na democracia deliberativa. As decisões proferidas (ou não proferidas), todavia, ao invés de encerrarem uma resposta definitiva aos problemas colocados, concorrem para o espraiamento da comunicação pública sobre uma temática levada ao pronunciamento das instâncias do Poder Judiciário. Seja por meio do silêncio ou da não-decisão, seja por uma estratégia mais ativa, de aconselhamento e tematização do debate, a função dos instrumentos contramajoritários é promover a virtude democrática da interação comunicativa entre instituições. Interpretada nessa chave, a revisão judicial é plenamente compatível tanto com a perspectiva procedimentalista quanto com a leitura substantivista. As cortes que realizam o controle de constitucionalidade, nesse sentido, ocupam um lugar de destaque não apenas ao proferir decisões com base na interpretação de princípios constitucionais substantivos, mas contribuem também para aprimorar a qualidade epistêmica do procedimento legislativo.

Na interpretação dialógica, afirma-se, ademais, que as manifestações dos juízes das cortes superiores, longe de consistirem em uma norma afastada da política ordinária mediante sua consideração como instâncias isoladas do jogo político, que paira sobre o conflito ideológico inerente às sociedades plurais, configuram uma espécie de “construção coordenada” (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., p. 125), cujo texto pode e deve ser continuamente revisitado e discutido pela sociedade e os demais poderes. Dessa forma, as decisões das instâncias judiciais tendem a ser repetidamente desafiadas, em um jogo iterativo no qual dificilmente podemos vislumbrar o início ou o fim. Qualquer acordo, nesse aspecto, será, via de regra, provisório e sujeito a revisões pelo movimento e a interação dos atores políticos e sociais. Ademais, de acordo com essa abordagem, as instâncias jurídicas de controle de constitucionalidade dificilmente estão de todo apartadas da sociedade que lhes deu origem e que lhes conferiu poder. Na medida em que as decisões tomadas pelas cortes, ao menos idealmente, se afastam das construções e opiniões públicas, a despeito do mérito de seu conteúdo, essas instituições, que de alguma maneira já estão em dissonância com a discussão pública cotidiana, perdem ainda mais aderência com a sociedade, enfraquecendo a crença mesmo na validez de suas manifestações (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., pp. 104-109).

Nessa visão deliberativa sobre a democracia, as leis e políticas públicas serão o resultado do diálogo e da negociação entre os poderes - e entre eles e a sociedade à qual estão inevitavelmente ancorados -, que fazem um esforço no sentido de prever e antecipar a reação uns dos outros, manejando o seu próprio posicionamento em função das expectativas mútuas que se estabelecem em sua relação ao longo do tempo. Em oposição ao que se poderia esperar das teorias que identificam a oposição e o confronto direto entre as posições do judiciário e do legislativo, o que a perspectiva em tela sugere é a existência de uma acomodação e de uma influência recíproca, em que nenhum dos lados irá ser submetido pelo outro em um horizonte mais amplo.

De acordo com essa versão, a separação dos poderes seria o reconhecimento da complementaridade e do equilíbrio entre diferentes instituições, que operam a partir de uma linguagem distinta. Quando observamos com mais cautela, notamos um papel importante da revisão judicial, distinto daquele que esperam as teorias da supremacia das cortes em termos da qualidade da deliberação e do conteúdo de suas decisões. Ao reconhecermos os limites às prerrogativas decisórias dos juízes, como o colegiado, as instâncias inferiores e até a opinião pública, percebemos a constituição de ciclos de aproximação e afastamento entre as cortes e a deliberação pública no que Rawls (2011RAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .) denominou de “cultura pública de fundo”. As cortes, o legislativo e a sociedade civil oscilam entre momentos de maior “liderança” e o exercício de um papel mais passivo ou reativo.

Diversos instrumentos, como as normas de argumentação, o status e a própria tradição que se consolida paulatinamente, conferem aos juízes certo capital político, que os protegem em decisões eventualmente impopulares. Mas esse capital não é absoluto e infindável, o que de certo modo mantem os juízes sob alguma forma de escrutínio da sociedade e de seus representantes eleitos. Nesse aspecto, as cortes cumprem um importante papel na legitimidade das decisões coletivas, pois cobram o exercício da responsabilidade dos demais atores e, por seu ritmo diferenciado, permitem a elaboração interpretativa mais detida e, por isso, menos sujeita ao impulso de maiorias eventuais motivadas por um contexto político específico. A função dos vetos e da revisão judicial torna-se mais afeita ao debate na medida em que notamos que, ao invés de encerrar, ela possibilita e até estimula a resposta legislativa, dos fóruns políticos não-públicos e da cultura pública de fundo, que questionam não apenas as decisões em si, mas também a própria validade de um instrumento contramajoritário como esse, fomentando o surgimento de uma temática que, de outra forma, sequer figuraria no debate parlamentar e na esfera pública (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., p. 147).

Essa argumentação, parece-me, ao lado dos experimentos institucionais que têm buscado reconstruir o diálogo interinstitucional no âmbito do sistema político formal26 26 O exemplo que surge inevitavelmente é o canadense, que estabeleceu, em 1980, uma Carta de Direitos, mas que submeteu as decisões das cortes ao escrutínio do Parlamento (Mendes, 2008, pp. 144-53). - afastando, portanto, uma compreensão da revisão judicial como bastião da moralidade democrática e como titular inquestionável da “última palavra” -, reforçam uma compreensão da democracia como um sistema deliberativo. A concepção sistêmica da democracia deliberativa avança nessa interpretação ao afirmar que os procedimentos deliberativos - e não cada instância deliberativa em si - devem ser avaliados pelo crivo da legitimidade discursiva (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.).

Os arranjos institucionais das sociedades democráticas são constituídos com alguma pretensão epistêmica, isto é, buscando encontrar um método de organização do processo decisório que seja capaz de levar aos melhores resultados possíveis. A ideia de “melhores resultados” poderia se referir a uma concepção qualquer de justiça (à ideia rawlsiana de justiça como equidade, por exemplo). Para os nossos propósitos aqui, contudo, não precisamos ir tão longe, embora tampouco precisaríamos nos contentar com uma estrutura institucional capaz de assegurar uma estabilidade no sentido de um modus vivendi ou um equilíbrio contingente como suposto pelas teorias minimalistas da democracia. Basta dizer que os “melhores resultados” correspondem aos resultados que poderiam ser aceitos como razoáveis pelos cidadãos considerados como pessoas livres e iguais, considerando não apenas o procedimento por meio do qual as decisões foram proferidas, mas incorporando também as razões substantivas que devem ser mobilizadas para tais decisões.

Parece-me que uma boa forma de fazer avançar a perspectiva do diálogo interinstitucional para a reconstrução de uma teoria normativa da democracia deliberativa possa recorrer à concepção de “sistema deliberativo”, que vem ganhando corpo nos últimos anos entre autores inseridos em alguma das perspectivas da democracia deliberativa. Embora haja, nas últimas décadas, uma acentuação da importância de um processo deliberativo de qualidade para a legitimidade das decisões políticas, notamos em geral duas estratégias distintas para promover a deliberação: a primeira delas lança luz sobre a deliberação que ocorre nas instituições deliberativas tradicionais e nos processos que elegem os seus participantes; a segunda está preocupada mais diretamente com a criação, o desenho institucional e o empoderamento promovido por iniciativas deliberativas mais restritas, nas quais os cidadãos são capazes de discutir sob condições mais favoráveis. Um elemento central na abordagem dos sistemas deliberativos se refere a certa divisão do trabalho deliberativo. Isto é, os critérios para avaliar a qualidade deliberativa não se aplicam igualmente a cada parte, mas devem ser observadas pelo Sistema como um todo (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
, p. 144).27 27 As diversas partes do sistema seriam responsáveis por suplementar e corrigir as falhas eventuais que poderiam ocorrer em cada uma delas (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016). Segundo Mansbridge et al.,

Para entender o objetivo mais amplo da deliberação, sugerimos que é necessário ir além do estudo de instituições e processos particulares a fim de examinar a sua interação no sistema como um todo. Reconhecemos que a maioria das democracias são entidades complexas nas quais uma ampla variedade de instituições, associações e espaços de contestação realizam tarefas políticas - incluindo redes informais, os meios de comunicação, grupos organizados de defesa de interesses, escolas, fundações, instituições privadas e não-lucrativas, legislaturas, agências executivas, e as cortes. Sustentamos, portanto, o que poderia ser chamado de uma abordagem sistêmica da democracia deliberativa. (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26., p. 1-2, tradução livre)28 28 No original: “To understand the larger goal of deliberation, we suggest that it is necessary to go beyond the study of individual institutions and process to examine their interaction in the system as a whole. We recognize that most democracies are complex entities in which a wide variety of institutions, associations, and sites of contestation accomplish political work - including informal networks, the media, organized advocacy groups, schools foundations, private and non-profit institutions, legislature, executive agencies, and the court. We thus advocate what may be called a systemic approach to deliberative democracy”.

Antes de tudo, essa abordagem nos permite pensar a democracia deliberativa para a sociedade de modo mais amplo. A deliberação face-a-face só é possível, de fato, em pequena escala, ao tempo que a deliberação nas instâncias tradicionais está confinada às formas de deliberação estruturalmente organizadas. Em nenhum desses casos há uma elaboração sobre a possibilidade de a sociedade como um todo, a comunidade política, se engajar em um processo deliberativo conjunto. Além disso, uma abordagem como a proposta pela tese dos sistemas deliberativos é coerente com posição do diálogo interinstitucional, ampliando o seu escopo para incorporar também as diversas instâncias da sociedade civil.

A premissa básica dessa concepção tem como raiz o reconhecimento de que a modernidade se caracteriza por uma intensificação da distinção entre domínios de atividades e organizações em termos dos valores a que servem. Assim, a diversidade funcional ganha legitimidade na medida em que serve também a valores diversos. Em termos práticos, isso significa que conferimos autoridade aos arranjos políticos por sua capacidade de realizar as funções a eles designadas e em virtude das possibilidades que oferecem de justificação da autoridade exercida. Essa abordagem apresenta uma noção, inspirada em Habermas, de sociedade descentralizada, que não confere a qualquer instituição em particular a prerrogativa de superioridade decisória sobre as demais - consistente com a vertente do diálogo interinstitucional, mas alargando o seu escopo para incorporar elementos que ultrapassam o sistema político formal. No modelo sistêmico, as instituições são avaliadas levando-se em conta a sua capacidade de realizar as funções necessárias ao cumprimento dos objetivos atribuídos normativamente pela teoria ao sistema democrático. Seriam três as funções relativamente comuns em sua aplicação geral e que podem servir para ilustrar a abordagem sistêmica, a saber, as funções epistêmica, ética e democrática (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.).

A função epistêmica do sistema deliberativo consiste em engendrar opiniões, interesses e decisões políticas bem fundamentados em informações relevantes e na consideração adequada das razões apresentadas: “um sistema deliberativo saudável é aquele em que considerações relevantes são trazidas à luz de todos os cantos, transmitidas, discutidas e apropriadamente pesadas” ( Mansbridge et al., p. 11). Já a sua função ética consiste, prioritariamente, em encorajar o senso de pertencimento dos cidadãos, fomentando as condições para que se estenda o respeito mútuo entre eles. Essa forma de respeito mútuo é o que permite que o sistema continue em funcionamento; eticamente, ele é um bem em si mesmo e um requisito básico do ideal de igualdade que está no núcleo de qualquer sociedade que se pretenda democrática. A sua base moral está no dever de tratar a todos como autores das normas que distribuem os encargos e benefícios da cooperação social.29 29 Ainda que a base moral não seja objeto imediato de controvérsia, a interpretação da ideia de respeito mútuo está aberta à discussão pública: “teóricos e cidadãos igualmente discordam sobre o que significa o mútuo respeito, o que constitui a sua bem-sucedida realização e quão importante é em comparação com outras considerações” (Mansbridge et al., 2012, p. 11). Por fim, a sua função democrática consiste na promoção de um processo político inclusivo em termos do oferecimento de oportunidades equitativas de influência política. Perceba-se que o imperativo de incluir uma diversidade de vozes, interesses e pontos de vista não é apenas uma exigência ética, mas é o que torna o sistema deliberativo propriamente democrático. A dinâmica de inclusão e exclusão confere a alguns a oportunidade de influir sobre o alcance e o sentido da deliberação. Quando parte da sociedade é privada do acesso às oportunidades deliberativas, o sistema torna-se menos legítimo aos olhos dos excluídos. O sistema deliberativo deve ser inclusivo de duas formas: ele não deve excluir qualquer cidadão sem uma razão legítima, além de ativamente promover e assegurar oportunidades iguais de participação a todos - o que envolve os direitos e liberdades necessários à participação, bem como as bases sociais do autorrespeito, ou o senso, individual e coletivo, de que somos membros plenamente iguais e livres da sociedade, que compartilham os mesmos direitos e deveres associados às decisões coletivas. Segundo os autores, “a realização bem-sucedida de todas as três funções [epistêmica, ética e democrática] promove a legitimidade da tomada de decisões razoavelmente sólidas em um contexto de mútuo respeito entre os cidadãos e um processo inclusivo de escolha coletiva” (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26., pp. 11-12, tradução livre).30 30 Decerto que poderá haver tensões, em qualquer sistema deliberativo, entre as três funções enumeradas acima. Conflitos acerca da prioridade de cada uma delas deverão ser solucionados, provisoriamente, por meio dos próprios instrumentos deliberativos disponíveis.

A ruptura mais importante da perspectiva dos sistemas em relação às teorias deliberativas que a precederam consiste, de um lado, em uma compreensão ampliada do que pode ser propriamente identificado como deliberação, e, de outro, em certo relaxamento dos critérios para avaliar a sua qualidade. Os críticos dessa abordagem sugerem que a atenuação dos elementos que compõem o ideal deliberativo poderia acarretar em uma redução de seu potencial normativo, que retira sua força justamente da possibilidade de contrastar a interação deliberativa com outras formas de interação política (Neblo apudElstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
, p. 146). Portanto,

Se a abordagem sistêmica torna a democracia deliberativa mais prática e fácil de se realizar (mediante a divisão do trabalho entre as partes; a aceitação de nem que todas as normas da democracia deliberativa serão ativadas em um lugar; o argumento de que algumas partes não deveram incorporar nenhum elemento da deliberação; a sugestão de que processos que são deletérios à qualidade deliberativa podem ainda ser características essenciais do sistema e o afrouxamento geral dos critérios do que conta como deliberação), é ainda importante lembrar que a democracia deliberativa é um ideal regulatório. (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
, p. 146)

A legitimidade das normas construídas no sistema deliberativo, nesse sentido, continua dependendo de que sejam consideradas, pelos membros da comunidade política, como decorrentes de um acordo livre e racional entre eles, como participantes plenamente iguais de um discurso público que oferece a todos oportunidades equitativas de engajamento.31 31 O Estado constitucional, todavia, segue como um projeto em aberto. A constituição, em todos os casos, continua sendo um processo de construção permanente, no qual a sociedade democrática interpreta, revisa e reinterpreta o sistema de direitos, buscando institucionalizá-lo e torná-lo continuamente mais amplo e radical. No sistema deliberativo, de um modo geral, emergem as razões que são consideradas aceitáveis para sustentar as decisões coletivas. A legitimidade política é determinada, portanto, (1) por oportunidades institucionalizadas de desafio discursivo e (2) por uma cultura pública crítica, institucionalizada em esferas públicas autônomas em intercâmbio comunicativo (Warren, 1996WARREN, Mark. 1996. Deliberative Democracy and Authority. The American Political Science Review. v. 90, n. 1, pp. 46-60. DOI: 10.2307/2082797
https://doi.org/10.2307/2082797...
, p. 55).32 32 A legitimidade democrática é corroída por dentro quando os “contextos de desafio crítico” (Warren, 1996, p. 56) são marcados por desigualdades estruturais, de status etc. Nesse sentido, a influência do dinheiro, por exemplo, torna-se um problema grave à medida que restringe a capacidade do público de impor questionamentos críticos às autoridades responsáveis por tomar decisões vinculantes.

Considerações finais

Onde, portanto, podemos encontrar o substrato da autoridade legítima se não pretendemos abrir mão, em definitivo, dos valores procedimentais ou substantivos que conformam a validade das normas autorizadas pelo corpo político? As teorias da democracia sustentam que a legitimidade das decisões coletivas está ancorada na autorização conferida pelos cidadãos que estão sujeitos à autoridade política (Cohen, 1998COHEN, Joshua. 1998. Democracy and Liberty. In: Elster, Jon. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.; 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.). Como vimos, no entanto, essa ideia fundamental é objeto de profunda divergência na literatura, variando de noções que afirmam a prioridade do procedimento como critério impositivo de aferição da validade das decisões (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.; Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.), até uma perspectiva que confere primazia ao seu conteúdo, que deve ser analisado por meio de um critério substantivo de justiça independente (Dworkin, 2010DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.).

A visão deliberativa da democracia fundamenta o ideal de igual pertencimento na necessidade de oferecer razões para as decisões coletivas que possam ser aceitas por todos os membros da comunidade entendidos como pessoas livres e iguais. Ela se estrutura, portanto, a partir da exigência de justificação política como pressuposto da validade das normas. A teoria deliberativa afirma que a base da legitimidade se encontra no processo discursivo estruturado em condições sociais e institucionais que oferecem condições adequadas para o debate público livre entre cidadãos iguais (ou, como prefere Cohen, para o “raciocínio público”). O poder político se justifica, dessa forma, na medida em que está ancorado nessa interação argumentativa ao nível da sociedade civil (Cohen, 1998COHEN, Joshua. 1998. Democracy and Liberty. In: Elster, Jon. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.; 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.; Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.; Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.;).

Esse modelo se afastaria da dicotomia apresentada anteriormente, uma vez que permite a reconciliação da democracia com os direitos e liberdades fundamentais. A deliberação pública, sugerem os autores, incorpora não apenas os valores democráticos associados ao livre debate entre os cidadãos, mas prescinde também de condições substantivas que viabilizam a sua plena realização (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.; Habermas, 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.). Nesse aspecto, se estende uma proteção estrita igualmente às “liberdades dos modernos” (o “princípio da inclusão deliberativa”) e às “liberdades dos antigos” (o “princípio de participação”). O processo deliberativo não pode legitimamente restringir nem o exercício das liberdades não vinculadas diretamente à participação na deliberação pública, como a livre expressão de um credo religioso, o que implicaria uma negação da própria condição de igualdade, nem os direitos de participação, em condições efetivamente iguais, das decisões políticas (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.). Constituir-se-ia, assim, uma forma de paridade entre os princípios procedimentais e substantivos (Gutmann e Thompson, 2004GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.).

O argumento exposto no artigo sugere que, embora possa haver uma relação de mútua pressuposição entre os princípios democráticos do autogoverno e os direitos fundamentais, não podemos deixar de considerar as circunstâncias em que eles se colocam em tensão. Decisões procedimentalmente corretas podem violar valores substantivos importantes, como a igual dignidade e a autonomia individual. Da mesma forma, poderíamos pensar também na situação inversa, ou seja, uma decisão tomada mediante procedimento não democrático poderia ser adequada segundo critérios substantivos - essa seria a situação, por exemplo, em que um governo não eleito implementa normas que concorrem para a realização da justiça social (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.).

Estamos, portanto, diante do seguinte dilema: reconhecemos, por um lado, que não podemos renunciar em absoluto nem aos valores procedimentais, nem aos princípios substantivos, uma vez que constituem em conjunto o ideal de legitimidade política; por outro, somos forçados, em algumas ocasiões, a renunciar a um deles em favor do outro. Posto nessas condições, sugeri que uma estratégia para lidar com esse dilema teórico-político seria recusar as teorias da última palavra em favor de uma perspectiva que ponha em evidência o diálogo interinstitucional (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP.). De acordo com as teses do diálogo interinstitucional, a gramática da estrutura institucional das democracias modernas, para além da virtude da moderação, realiza uma importante função de relativizar a “última palavra” (Mendes, p. 194). Ora, se procedimento e substância, em conjunto, são os elementos fundamentais da legitimidade, a estrutura institucional se fortalece ao incorporar essa tensão inerente. A existência de um conjunto de instituições que interagem por meio do discurso poderá estimular uma tensão mais virtuosa entre valores que são a um só tempo complementares e concorrentes (Mendes, p. 209-210).

A política democrática, nessa concepção, estende-se no espaço e no tempo. Quando pensamos a democracia como um processo contínuo de troca de razões em público, é possível identificar o seu caráter eminentemente aberto ao debate, ao julgamento, à crítica e ao desacordo. Reconhecendo a inevitabilidade do diálogo, percebemos que a dinâmica política não se encerra em uma decisão específica, seja das instâncias representativas, seja das cortes de controle de constitucionalidade. Além disso, ademais das instituições políticas formais, os diversos fóruns que se multiplicam na estrutura básica contribuem para que a política ultrapasse a temporalidade restritiva exposta nas teses da última palavra, promovendo as práticas do julgamento fundamentado e do debate político iterativo. Assim, a construção da opinião pública e da vontade democrática emerge ao palco central da política, surgindo como elemento essencial de um regime que oferece condições formais e efetivas ao exercício das liberdades políticas de forma equitativa a todos os membros da sociedade.

A extensão espaço-temporal da democracia, conforme sugeri acima, nos leva, finalmente, à teoria dos sistemas deliberativos. A ideia normativa de que a sociedade se constitui como um sistema deliberativo consiste na afirmação de que os sistemas político e judicial, assim como a sociedade civil e a esfera pública, podem exercer, em conjunto, funções epistêmicas, éticas e democráticas fundamentais. Nesse aspecto, a constante interação entre o parlamento, as cortes e a esfera pública promove um teste contínuo da justificabilidade das decisões coletivas, impactando não apenas as decisões em si, mas as expectativas mútuas de cada uma dessas esferas e, como não poderia deixar de ser, seu comportamento nas rodadas futuras.

Sustentei no trabalho que um sistema deliberativo complexo e multifacetado permite a construção de decisões coletivas congruentes com uma noção de legitimidade que abarca a tensão entre o procedimento e a substância dessas decisões. Conforme nos dizem Mansbridge et al. (2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26., p. 5), “normativamente, na abordagem sistêmica, todo o peso da tomada de decisões e da legitimidade não recai sobre um fórum ou instituição, mas é distribuído entre diferentes componentes em diferentes casos”.

Quando uma associação política, tendo em vista o fato do pluralismo razoável, está em desacordo acerca dos valores que justificam as decisões coletivas, que alternativa lhes resta, senão continuar dialogando? (Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 172) Não se trata, convém esclarecer, de negar o dever de obediência com base em um desacordo moral. As decisões seguem sendo obrigatórias, sobretudo quando resultam de um processo democrático e deliberativo. Trata-se, na verdade, de afirmar que todo resultado a que chegamos nos processos deliberativos, todas as decisões tomadas e as razões oferecidas para justificá-las, mesmo que consideradas politicamente legítimas e passíveis de reivindicar obediência, são provisórias, pois a deliberação se estende temporalmente e está fundamentalmente aberta ao julgamento da cidadania.

Bibliografia

  • COHEN, Joshua. 1998. Democracy and Liberty. In: Elster, Jon. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
  • COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular.
  • CONSTANT, Benjamin. 1985. Da liberdade dos antigos se comparada à dos modernos. Tradução Loura Silveira. Revista Filosofia Política, n. 2, pp. 9-25. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3N7RjQn Acesso em 30 abr. 2022.
    » https://bit.ly/3N7RjQn
  • DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.
  • DWORKIN, Ronald. 2010. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeiras. São Paulo: WMF Martins Fontes.
  • ELSTER, Jon. 2009. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. (Tradução Cláudia Sant’Anna Martins). São Paulo: Editora UNESP.
  • ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
    » https://doi.org/10.1080/19460171.2016.1175956
  • ESTLUND, David. 2000. Jeremy Waldron on Law and Disagreement. Philosophical Studies. v. 99, n. 1, pp. 111-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/371nBwO Acesso em: 30 abr. 2022.
    » https://bit.ly/371nBwO
  • GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. 2004. Why Deliberative Democracy. Princeton: Princeton University Press.
  • HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press.
  • MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26.
  • MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons.
  • MEIKLEJOHN, Alexander. 1948. Free Speech and Its Relation to Self-Government. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3y54QDR Acesso em: 23 jan. 2018.
    » https://bit.ly/3y54QDR
  • MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP.
  • MOUNK, Yascha. 2019. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras.
  • POST, Robert C. 1995. Meiklejohn’s Mistake: Individual Autonomy and the Reform of Public Discourse. In: POST, Robert C. Constitutional Domains - Democracy, Community, Management. Londres: Harvard University Press.
  • RAWLS, John. 2008. Uma Teoria da Justiça. Tradução Jussara Simões. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes.
  • RAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .
  • SCHUMPETER, Joseph A. 1961. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura.
  • MACHADO, Francisco Mata. 2015. O Estado na democracia deliberativa: as raízes de uma antinomia. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 95, pp. 225-258. DOI: 10.1590/0102-6445225-257/95
    » https://doi.org/10.1590/0102-6445225-257/95
  • WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press.
  • WARREN, Mark. 1996. Deliberative Democracy and Authority. The American Political Science Review. v. 90, n. 1, pp. 46-60. DOI: 10.2307/2082797
    » https://doi.org/10.2307/2082797
  • VAN PARIJS, Philippe. 1995. A justiça e a democracia são incompatíveis? Estudos Avançados, v. 9, n. 23, pp. 109-128. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3OPPWqO Acesso em: 30 abr. 2022.
    » https://bit.ly/3OPPWqO
  • VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
    » https://doi.org/10.5007/%25x
  • 1
    Agradeço aos colegas Lucas Petroni e Rúrion Melo pela leitura atenta e os comentários a versões anteriores do artigo. Não poderia deixar de mencionar também a contribuição substantiva dos pareceristas anônimos da Lua Nova para o aprimoramento do trabalho.
  • 2
    Segundo Martí (2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 136), o objeto da legitimidade política são as decisões políticas (cada uma delas, individualmente); uma estrutura institucional será legítima na medida em que seja capaz de gerar decisões consideradas válidas.
  • 3
    Essa premissa é uma releitura do princípio rousseauniano da equidade, de acordo com o qual leis não podem ser impostas às pessoas por indivíduos que não estão, eles mesmos, sujeitos a essas leis (Dahl, 1989DAHL, Robert. 1989. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press.).
  • 4
    No original: “no principles should be inviolable beyond those integral or essential to the democratic process”.
  • 5
    No original: If adult persons must participate in collective decisions in order to protect their personal interests, including their interests as members of a community, to develop their human capacities, and to act as self-determining, morally responsible beings, then the democratic process is necessary to these ends as well. Seen in this light, the democratic process is not only essential to one of the most important of all political goods - the right of people to govern themselves - but is itself a rich bundle of substantive goods.
  • 6
    Uma variação desse argumento surge na literatura que distingue “democracia política” de “sociedade democrática”. De acordo com essa compreensão, a legitimidade política seria garantida pelos procedimentos formais da competição política - entre outros, a depender da versão da teoria democrática -, ao passo que uma sociedade democrática seria um ideal mais abrangente, que envolve uma noção de justiça substantiva. Ver, por exemplo, Vita, 2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
    https://doi.org/10.5007/%25x...
    .
  • 7
    Em plebiscito realizado no dia 29 de novembro de 2009, a maioria (57,5%) dos eleitores suíços que foram às urnas (o voto não é obrigatório no país) endossaram a iniciativa popular “Contra a construção de minaretes”, proposta pelo SVP (Partido Popular Suíço), legenda de orientação conservadora. Além de ter contado com a maioria dos votos, a proposta ainda cumpriu a necessidade de ser respaldada pela maioria em 22 dos 26 cantões.
  • 8
    É interessante notar que essa linha de argumentação rompe com as teorias democráticas que marcaram o início do século XX. O “elitismo democrático”, como ficou popularmente conhecida essa vertente teórica, buscando uma solução para a estabilidade política em um contexto marcado pela ampliação do mercado político, sustentava, “realisticamente”, a necessidade de se reconfigurar a ideia de democracia: ao invés de um método de decisões políticas por meio do qual os cidadãos governam a si mesmos, Schumpeter (1961SCHUMPETER, Joseph A. 1961. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura., p. 328) afirma que a democracia consiste em um “sistema institucional, para a tomada de decisões política, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. A vertente pluralista retoma a ideia de autogoverno a partir de uma visão normativa da autonomia moral, o que o “elitismo democrático” considera incongruente com as capacidades e interesses dos indivíduos.
  • 9
    Argumento semelhante pode ser encontrado no debate sobre a liberdade de expressão entre “coletivistas”, como Alexander Meiklejohn, e “liberais”, como Robert Post. Não terei tempo para entrar nesse debate no momento, mas acredito ser válido o registro de tal semelhança. O debate sobre a melhor interpretação do princípio da liberdade de expressão, de forma análoga à discussão entre procedimentalistas e substantivistas, opõe, de um lado, aqueles que sustentam a importância de uma proteção estrita à liberdade de expressão, desde que o que se expressa represente uma contribuição para o debate político, ao passo que, de outro lado, situa-se a posição segundo a qual não se deveria fazer tal distinção no que tange à garantia dos direitos expressivos, ver Meiklejohn, 1948MEIKLEJOHN, Alexander. 1948. Free Speech and Its Relation to Self-Government. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3y54QDR . Acesso em: 23 jan. 2018.
    https://bit.ly/3y54QDR...
    e Post, 1995POST, Robert C. 1995. Meiklejohn’s Mistake: Individual Autonomy and the Reform of Public Discourse. In: POST, Robert C. Constitutional Domains - Democracy, Community, Management. Londres: Harvard University Press..
  • 10
    No original: “having this impact on other is permissible only under certain conditions, and those conditions may be represented as rights held by anyone who is liable to be subject to such impact”.
  • 11
    Para uma discussão sobre as democracias iliberais, ver Mounk (2019MOUNK, Yascha. 2019. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 12
    Os valores intersubjetivos se distinguem, ainda, dos valores meramente subjetivos absolutamente dependentes das atitudes e da vontade dos indivíduos, ver Martí, 2006MARTÍ, José Luis. 2006. La República Deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons., p. 163.
  • 13
    Desnecessário ressaltar que, assim como na perspectiva procedimentalista, tampouco pretendo afirmar que haja um consenso absoluto sobre as características do arranjo político defendido pela vertente ora em exame.
  • 14
    Perceba-se que, nesse caso, a discussão se afasta da legitimidade para se dirigir a um ideal, por certo mais exigente, de justiça.
  • 15
    Vita (2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
    https://doi.org/10.5007/%25x...
    ) encara tal desafio contrapondo propostas mais participativas a versões competitivas da democracia.
  • 16
    Segundo Vita (2007VITA, Álvaro de. 2007. Sociedade Democrática e Democracia Política. Política & Sociedade, v. 6, n. 11, pp. 159-181. DOI: 10.5007/%25x
    https://doi.org/10.5007/%25x...
    ), quando se trata de “elementos constitucionais essenciais” e “questões de justiça básica”, deveríamos optar pelo estabelecimento de princípios constitucionais ou cartas de direitos, que retirem da legislação ordinária a prerrogativa de restringir liberdades consideradas fundamentais. Para as demais decisões, como sobre os instrumentos de tributação e outras formas de política econômica, restam os mecanismos de representação tradicional.
  • 17
    Não seria, portanto, uma simples subordinação do procedimento à substância. Mais importante do que a instituição a quem se confere a prerrogativa de decidir, é que tenhamos uma decisão que se aproxime tanto quanto for possível de um ideal estabelecido por princípios de justiça. As cortes, segundo Rawls (2011aRAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .), podem se valer do ideal da “razão pública” a fim de impedir que consensos populares transitórios desfigurem a estrutura constitucional.
  • 18
    No original: “noisy scenario in which men and women of high spirit argue passionately and vociferously about what rights we have, what justice requires, what the common good amounts to”.
  • 19
    Empiricamente, Waldron compara o debate público em países que não adotam as cortes constitucionais com aquele que se dá nos Estados Unidos. Segundo ele, em diversas ocasiões, não parece haver melhor qualidade na discussão pública estadunidense em relação, por exemplo, à Nova Zelândia e à Inglaterra, países que não possuem um sistema de controle de constitucionalidade nos mesmos termos. Além disso, ainda que se pudesse comprovar o efeito esperado por Dworkin, não parece haver uma razão de fundo para sustentar que o debate promovido por juízes isolados do quadro político possa substituir ou guiar as práticas discursivas dos que deverão tomar decisões vinculantes nas sociedades democráticas: “pode-se esperar, decerto, que o exercício do poder por algumas celebridades togadas fascine uma população articulada. Mas isso dificilmente corresponde à essência da cidadania ativa” (Waldron, 1999WALDRON, Jeremy. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press., p. 291).
  • 20
    No original: authority of voice.
  • 21
    É claro que a expressão originalmente remete ao discurso proferido por Benjamin Constant, no Athenee Royal de Paris, em 1819.
  • 22
    Ou o “princípio da inclusão deliberativa” (Cohen, 2007COHEN, Joshua. 2007. Procedimento e Substância na Democracia Deliberativa. In: WERLE, Denílson Luis; MELO, Rúrion Soares. Democracia Deliberativa. São Paulo: Editora Singular., p. 128).
  • 23
    É preciso assumir, primeiramente, que tal concepção é dirigida a uma sociedade pluralista, que desfruta de uma cultura reflexiva que conscientemente aceita uma distinção entre o fato de que uma prática é socialmente aceita e a legitimidade dessa prática (entre facticidade e validade, vale dizer), cuja complexidade impede que a sua coordenação seja realizada tão somente por meio da comunicação, tomada como distinta das trocas de mercado e do poder administrativo.
  • 24
    Dentre os recursos institucionais essenciais ao exercício do autogoverno estão tanto os direitos à liberdade de expressão e associação política quanto também o que Rawls (2011aRAWLS, John. 2011. O Liberalismo Político. Tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes .) denominou as “bases sociais do autorrespeito”. O exercício das liberdades políticas está associado de forma impositiva às bases sociais do autorrespeito, à medida que são entendidas como condições necessárias às capacidades morais de exercer um senso de justiça e de professar uma concepção abrangente da boa vida. O autorrespeito aparece como um bem fundamental por ser uma pré-condição para que as pessoas possam perseguir seus objetivos. Ele se ancora, em parte, no reconhecimento que o indivíduo tem de si mesmo como um membro igual que compartilha a responsabilidade de fazer julgamentos, com autoridade, sobre questões sociais e políticas. Quando os demais compartilham com o indivíduo essa percepção, eles confirmam a ele o senso de seu valor igual. Isso ocorre quando os demais membros de uma sociedade reconhecem e protegem o direito do indivíduo de usar o seu senso de justiça em decisões sobre as questões que são postas à associação política.
  • 25
    Para os propósitos deste artigo, vou discutir as teorias do diálogo interinstitucional como um bloco, em que pese as inúmeras divergências e descontinuidades entre elas. Uma excelente revisão pode ser encontrada na tese de Conrado Hubner Mendes, defendida em 2008, no DCP-USP. Tese da qual, em boa medida, me valho para a reconstrução a seguir.
  • 26
    O exemplo que surge inevitavelmente é o canadense, que estabeleceu, em 1980, uma Carta de Direitos, mas que submeteu as decisões das cortes ao escrutínio do Parlamento (Mendes, 2008MENDES, Conrado Hübner. 2008. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP., pp. 144-53).
  • 27
    As diversas partes do sistema seriam responsáveis por suplementar e corrigir as falhas eventuais que poderiam ocorrer em cada uma delas (Elstub, Ercan e Mendonça, 2016ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. 2016. Editorial introduction: The fourth generation of deliberative democracy. Critical Policy Studies, v. 10, n. 2, pp. 139-151. DOI: 10.1080/19460171.2016.1175956
    https://doi.org/10.1080/19460171.2016.11...
    ).
  • 28
    No original: “To understand the larger goal of deliberation, we suggest that it is necessary to go beyond the study of individual institutions and process to examine their interaction in the system as a whole. We recognize that most democracies are complex entities in which a wide variety of institutions, associations, and sites of contestation accomplish political work - including informal networks, the media, organized advocacy groups, schools foundations, private and non-profit institutions, legislature, executive agencies, and the court. We thus advocate what may be called a systemic approach to deliberative democracy”.
  • 29
    Ainda que a base moral não seja objeto imediato de controvérsia, a interpretação da ideia de respeito mútuo está aberta à discussão pública: “teóricos e cidadãos igualmente discordam sobre o que significa o mútuo respeito, o que constitui a sua bem-sucedida realização e quão importante é em comparação com outras considerações” (Mansbridge et al., 2012MANSBRIDGE, Jane; BOHMAN, James; CHAMBERS, Simone; CHRISTIANO, Thomas; FUNG, Archon; PARKINSON, John; THOMPSON, Dennis; WARREN, Mark. 2012. A Systemic Approach to Deliberative Democracy. In: PARKINSON, John; MANSBRIDGE, Jane. (eds.). Deliberative Systems: deliberative democracy at the large scale. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-26., p. 11).
  • 30
    Decerto que poderá haver tensões, em qualquer sistema deliberativo, entre as três funções enumeradas acima. Conflitos acerca da prioridade de cada uma delas deverão ser solucionados, provisoriamente, por meio dos próprios instrumentos deliberativos disponíveis.
  • 31
    O Estado constitucional, todavia, segue como um projeto em aberto. A constituição, em todos os casos, continua sendo um processo de construção permanente, no qual a sociedade democrática interpreta, revisa e reinterpreta o sistema de direitos, buscando institucionalizá-lo e torná-lo continuamente mais amplo e radical.
  • 32
    A legitimidade democrática é corroída por dentro quando os “contextos de desafio crítico” (Warren, 1996WARREN, Mark. 1996. Deliberative Democracy and Authority. The American Political Science Review. v. 90, n. 1, pp. 46-60. DOI: 10.2307/2082797
    https://doi.org/10.2307/2082797...
    , p. 56) são marcados por desigualdades estruturais, de status etc. Nesse sentido, a influência do dinheiro, por exemplo, torna-se um problema grave à medida que restringe a capacidade do público de impor questionamentos críticos às autoridades responsáveis por tomar decisões vinculantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2019
  • Aceito
    14 Mar 2022
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br