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A filosofia da cirurgia: a doutrina da filosofia da cirurgia é centrada no paciente, um ser humano

EDITORIAL

A filosofia da cirurgia - a doutrina da filosofia da cirurgia é centrada no paciente, um ser humano

Henrique Walter Pinotti

Professor Titular de Cirurgia do Aparelho Digestivo da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, SP, Brasil. Professor Emérito da USP. Fundador do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva e da Revista Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva - ABCD

A cirurgia deve ser conceituada como ciência e arte que, através da melhor organização das sociedades e do progresso técnico, foi ampliando os seus horizontes, aproximando-se cada vez mais do indivíduo, entendendo suas enfermidades, suas emoções e sua função na sociedade. Ao cirurgião, como protagonista dessa especialidade, cabe o papel não só do tratamento eficiente, mas do conhecimento das causas e criação de atitudes preventivas das enfermidades cirúrgicas e de seus respectivos ônus sociais, micro e macroeconômicos, e de aprofundar-se na visão bio-psico-social do paciente.

Hipócrates (450 a.C.), o Pai da Medicina, já havia estabelecido os elos entre medicina e filosofia. Afirmava: "O médico que é, ao mesmo tempo, filósofo: assemelha-se aos deuses. Não há grande diferença entre a medicina e a filosofia, porque todas as qualidades do bom filósofo devem ser encontradas no médico: o desinteresse, o zelo, o pudor, a dignidade no aspecto, a seriedade, a tranqüilidade de julgamento, a serenidade, a decisão, a pureza de vida, o hábito das sentenças, o conhecimento de tudo quanto é útil e necessário na vida, a reprovação de tudo quanto é mau, a alma livre de suspeitas e a devoção à divindade." Claudius Galenus (138-201), o renomado Galeno, publicou suas obras em cerca de quatrocentos volumes, alguns reeditados 16 séculos após, na Europa no século XIX!... Era tido como genial, utilizando sua experiência e observações práticas em torno da doutrina de Hipócrates. Sentindo que a prática da medicina exigia o conhecimento da filosofia, pôde asseverar: Quod optimus medicus sit quoque philosophus, isto é, "O ótimo médico necessita ser também ótimo filósofo".

A filosofia como ciência que basicamente lida com o saber racional, pode ser definida como reflexão crítica sobre os fundamentos do conhecimento, que são seus valores cognitivos, e sobre os seus valores normativos, que são: a lógica, a ética e a estética

A Filosofia da Cirurgia é admitida como ciência, cujos conhecimentos e objetivos da sua pratica transcendem os de todas as outras filosofias, porque lida, diretamente, com a vida humana, com toda a complexidade das atitudes que a sua prática requer, conduzida sob o signo da ética, com fins iminentes de gerar felicidade para o operado e seus dependentes.

A Filosofia da Cirurgia é, também, fortemente robustecida na sua direção individual e na missão social pela sua aplicação no exercício cotidiano, principalmente, quando o profissional possui grande sensibilidade humana e largo campo de formação técnica e ética.

É importante frisar que, enquanto no Direito existe o princípio de "tratar de maneira distinta os desiguais", a Cirurgia, embora recomende procedimentos diferentes de acordo com a doença e o estado do doente, trata, porém, igualmente os socialmente desiguais. Na doença todo mundo é igual, paciente anestesiado e descoberto pertence ao mundo dos iguais.

A doutrina da Filosofia da Cirurgia tem finalidades elevadas, superando as de todas as profissões, porque coloca as necessidades do paciente acima dos interesses pessoais do cirurgião.

A cirurgia supera todos os ramos da atividade humana em relação às suas exigências na formação e atuação do profissional e no conjunto de responsabilidades assumidas perante a vida dos pacientes. Esta transcendência confere à Cirurgia não só características de profissão, mas toda a estrutura, meios e fins de ciência, com que se constitui numa Filosofia.

Como se sabe, nos tempos remotos das antigas civilizações, a prática da cirurgia era empírica, desprovida de bases, exercida por sacerdotes, charlatões, mágicos e aventureiros. E a cirurgia persistiu desta maneira por mais de nove mil anos, até a era de Hipócrates (459-355 a.C.), quando surgiram os princípios elementares do seu exercício e a figura do médico responsável pela sua condução.

A limitação de conhecimentos da cirurgia continuou na era cristã, sempre diante da obscuridade da sua prática, por desconhecer-se o fundamental, a anatomia do corpo humano, ignorância de saber o que estava abaixo da pele e no interior das cavidades torácica e abdominal e as suas respectivas funções.

Esse longo período, designado de fase de eclipse da anatomia, estende-se desde os primórdios da civilização até o Renascimento, quando se iniciaram os estudos de anatomia por dissecção do corpo humano que consagraram Leonardo da Vinci (1452-1519) e Andreas Vesalio (1514-1564).

Considerando-se que os conhecimentos havidos de anatomia humana abriram caminho para estudos sobre fisiologia, da circulação sangüínea por William Harvey (1578-1657) e, logo depois, de outros setores do organismo que estimularam a prática da cirurgia, permite-se concluir que a cirurgia é uma ciência com cerca de 500 anos apenas.

Houve rápida sucessão de conquistas técnicas e a realização das operações pioneiras após os anos setenta do século XIX. É impactante pensar que, desde os tempos antigos até meados do século XIX, adoecer com enfermidade cirúrgica significava ingressar no espectro da morte.

No decurso do século XX e, principalmente, no seu último quarto, o progresso da cirurgia foi vertiginoso: acordávamos pela manhã com inovações acontecidas na véspera!...

Todos esses fatores melhoraram a realização do ato cirúrgico, tornando-o mais preciso, seguro, factível e confortável para o cirurgião de resultados repetidos e por isso confiável e aceitável pelo paciente.

A cirurgia em todas as especialidades tem contribuído para a melhora da qualidade de vida, bem como, com importante parcela, para o aumento da idade média do homem.

Todos os avanços tecnológicos criaram, entretanto, um distanciamento do médico ao paciente, e todo o sistema de atendimento materializou-se, mecanizou-se e monetarizou-se. É necessário um redirecionamento para evitar-se a perda de dignidade do paciente, com o desconhecimento do seu sofrimento substituído pela sua capacidade de pagar a conta.

A doutrina da Filosofia da Cirurgia, refletida e dissertada nos seus diferentes tópicos, é centrada no ser humano, o paciente. No dizer de Ignacio Chávez "a medicina tem humanismo, quando aspira a ser algo mais do que tratar enfermidades, dando ao homem completo sentido à sua dignidade e liberdade".

O humanismo em cirurgia inicia-se com o cirurgião conhecendo-se a si mesmo, a sua personalidade e a autenticidade da sua vocação, a sua formação e capacidade profissional, os limites da sua competência, o senso de profissionalismo, a vontade de manter-se atualizado e o desenvolvimento dos seus atributos de liderança.

"O humanismo, acentuava Leriche, é uma atitude de emoção, que devemos exercer na prática da cirurgia e que se sente despertar no contato com o sofrimento e a angústia do ser humano..."2. Por isso afirma-se que, no real espírito de humanismo do cirurgião, deve existir emoção recíproca, isto é, a sensibilização do próprio cirurgião perante o quadro de emoções referidas pelo paciente ao enfrentar a doença e o ato cirúrgico.

Este é o núcleo da doutrina, em torno do qual vão desenrolar-se, na relação médico-paciente, as atitudes de despojamento de vantagens pessoais, financeiras ou de outros interesses sobre o paciente que não o de procurar exclusivamente servi-lo.

Reforça-se o propósito de praticar procedimentos iguais para todos os enfermos, independentemente do seu nível social e educacional, do pobre ao nobre, do analfabeto ao douto. Existe, nesta linha de atitudes, o aperfeiçoamento da visão social do cirurgião, esmerando-se na escolha e realização de procedimentos cirúrgicos, objetivando oferecer ao paciente boa qualidade de vida que lhe capacite o retorno ao seu meio social para sua atividade laborativa e convivência usual.

Todo exercício da cirurgia conduzido dentro do espírito de humanismo tem absoluta coerência com a moral dos deveres, a deontologia, e a moral dos direitos, a diceologia, sustentáculos da moral da prática médica, a ética.

Deve reconhecer-se, igualmente, a sua relatividade, seu caráter mutável no tempo e no espaço, sua evolução que acompanha as transformações sociais. A Ética, como teoria da Moral, do mesmo modo, varia e se diversifica no tempo, baseando-se, porém, sempre no princípio "de empregar meios éticos para fins éticos".

Na atividade mental do cirurgião, no cotidiano, é fundamental, como mecanismo reflexivo, o uso da razão para conhecimento da verdade e da realidade, não só na condução dos atos do tratamento, mas também na interpretação do conjunto da moral e ética. Foi com esse objetivo que essa matéria foi analisada nesta publicação, dando ênfase a que a realidade ou verdade científica em cirurgia é também mutável.

Afinal, toda essa transitoriedade, como o próprio nome expressa, traduz movimento. Realmente, vivemos num universo que se movimenta e num planeta em contínua movimentação cíclica e rítmica. Sobre ele existe o constante movimento, como o ciclo da água, que evapora e retorna ao solo. O próprio corpo se movimenta e nele, o ciclo do oxigênio e do ritmo dos batimentos cardíacos, tudo é movimento com ritmo e tudo é fenômeno, como realçava Hegel1. O organismo humano, também, se modifica e o ser organizado, embora seja o mesmo, é também outro.

Nas estruturas sociais, igualmente, nota-se esse jogo, em que causa e efeito são representações sem valor essencial que se fundem e se permutam de modo contínuo, de maneira que o que é efeito, aqui e agora, passa em outro lugar, logo mais, a ser causa e vice-versa3.

Tudo se transforma, é sempre um advir, sujeito à dialética dos contrários, na conceituação de Hegel, para chegar-se à harmonia e à síntese.

Correspondência: cbcd@cbcd.org.br

  • 1. Leriche, R. La Chirurgie discipline de La Connaissance. Nice: La Diane Française, 1949.
  • 2. Hegel GWF. Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. Coordenação Editorial: Janice Florido. São Paulo: Editora Nova Cultural. 1999.
  • 3. Politzer G, Besse G, Caveing M. Princípios fundamentais de Filosofia. 2Ş ed. Tradução de João Cunha Andrade. São Paulo: Fulgor, 1963.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2008
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