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Diários índios: Os Urubus-Kaapor

Um senador na aldeia indígena

Darcy RIBEIRO. Diários índios. Os Urubus-Kaapor. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 627 páginas.

Betty Mindlin

Viajar com Darcy Ribeiro para aldeias indígenas e para a floresta do Maranhão tal como eram há quase 50 anos, conviver com os índios Kaapor, Tembé e Timbira, é um privilégio ao nosso alcance que devemos ao livro, essa invenção maravilhosa, felizmente ainda em voga em plena sociedade tecnológica. Que o leitor não se assuste com as 600 páginas de extensão. É mais fácil que os 1.500 quilômetros de caminhadas por picadas na mata, os perigos e incertezas enfrentados pelo autor, os pés inchados e feridos continuando a andar, movidos por uma curiosidade insaciável. A leitura vale a pena. Os bons diários têm a qualidade mágica de nos fazer viver o cotidiano dos outros como se estivéssemos ali, neste caso participando de um mundo tão outro e espantoso que quase nos parece ficção, embora descrito de maneira fiel e realista.

Os diários são escritos na forma de uma longa carta de amor à primeira mulher de Darcy, Berta Ribeiro. Compreendem as duas viagens de Darcy, como etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entre 1949 e 1951, cada uma com seis meses de duração, destinadas a estudar, documentar, filmar e defender os índios Kaapor, contactados 20 anos antes. O pano de fundo do diálogo amoroso traz uma emoção adicional à leitura: a beleza da lealdade, da ternura, da colaboração, até o fim da vida, entre estes dois pesquisadores incansáveis. No prefácio, Darcy conta como, atingidos os dois pelo câncer, continua a visitar Berta quase inconsciente, a beija na boca, promete casar outra vez com ela.

Um dos subprodutos da viagem foi o livro A arte plumária dos índios Kaapor, escrito em colaboração com Berta Ribeiro. Darcy fez-se acompanhar de um lingüista de valor, Max Boudin, e de um cineasta, Heinz Foerthmann, para auxiliá-lo na documentação. Os resultados rivalizam com os da mais exigente Antropologia européia ou americana. Só que nesta não costuma haver o mesmo empenho desesperado pela sobrevivência dos povos, o duplo compromisso com a produção rigorosa das ciências sociais e com os índios e os brasileiros, nem um amor tão marcado pela sede de beleza e de arte dos índios. Vale para Darcy o que ele escreve de Mário de Andrade: "o leitor tem em mãos uma obra incomparável de amor e erudição, abraçados um ao outro, ardentemente".

O que terá levado Darcy Ribeiro — e ele mesmo se faz essa pergunta — a embrenhar-se, tão jovem, aos 27 anos, pela solidão da lonjura tropical brasileira, misturando sua vida à de dezenas de aldeias indígenas? No Brasil, são raríssimos os intelectuais com este percurso, com a coragem de ir ver de perto e de dentro, durante longos meses, a condição social, material e cultural dos destituídos, e mais, a de outros povos, compartilhando suas alegrias e sofrimentos. Poderia ter feito outras escolhas profissionais e, como sabemos, acabou se tornando um grande político, ministro, senador da República, fundador e reitor de uma universidade, mestre, como escreveu Antonio Candido, na arte de lidar com as instituições, construí-las sem perder a irreverência e a indignação diante da injustiça. Sua dedicação aos povos indígenas, massacrados pelo Brasil colonizador, marginalizados e desprezados pelo racismo e pelo pensamento dominante brasileiro, fez dele um pensador original na esquerda brasileira e na formulação de políticas públicas, preocupado não só com o socialismo, as liberdades democráticas e a igualdade, mas também com a identidade étnica e a diferença cultural, direitos humanos fundamentais dos primeiros brasileiros e de muitos outros povos. Darcy promete a Berta — ao indagar se há alguma esperança para a convivência dos índios com a nossa sociedade, e que papel a política e o indigenismo comprometidos com os índios podem ter —, se não puder salvar os índios, ao menos ouvi-los, publicar, gritar, protestar e escrever: "esse livro, querida, com ele nós nos faremos mais dignos de nós e do partido". Este partido do qual depois ele se afastou, sem jamais se apartar dos ideais éticos, igualitários, e da defesa dos povos diferenciados.

Um rigor científico e uma etnologia clássica em um paladino da justiça. Os Diários, despretensiosos, coloquiais, fluentes e agradáveis como leitura, dando a impressão de serem escritos ao sabor da pena e dos acontecimentos, contêm resultados de pesquisa que, em seu conjunto, são um dos melhores estudos antropológicos brasileiros. Na segunda viagem, em especial, quando a intimidade com os índios já foi atingida e Darcy alcançou segurança do que observou, a análise e a escritura saem prontas, como um livro já bem burilado. Com exceção do livro sobre os Kadiwéu, Darcy não publicou nenhuma monografia longa sobre um povo indígena, mas aí está, neste livro, a mais completa possível. Seguimos a economia dos Kaapor, seu complexo sistema de parentesco, os ricos rituais de nominação, como uma festa em que o padrinho embala o afilhado pequenino nos braços, tocando para o nenê maravilhado uma flauta de canela de gavião adornada com plumas. Refletimos sobre as chefias, com distinção entre tuxauas e capitães. Temos a surpresa de acompanhar as genealogias que recuam a 1800, uma pessoa citando mais de mil antepassados, numa demonstração da memória, da virtude da tradição oral e da capacidade indígena de passar a história de geração a geração.

Não falta a análise da situação de contato com o capitalismo brasileiro, a visão e a descrição da população pobre, negra ou mestiça muitas vezes, que é vizinha dos índios, o desespero com o sarampo que está dizimando os Kaapor, a quem Darcy tenta medicar e salvar na primeira viagem. Há a descrição da cultura material, da cerâmica, da tecelagem, da arte plumária, das matérias-primas, pássaros, animais e plantas que contribuem para a alimentação e para o artesanato indígena, dos padrões e tabus alimentares, da caça, pesca, coleta etc. Aprendemos receitas culinárias e letras de música. Há uma documentação fidedigna da antropofagia passada dos Kaapor, que os interlocutores de Darcy reconhecem como parecida com a dos Tupinambá, seus antepassados. São muitos os dados sobre a morte: os suicídios, a decisão de morrer de tristeza, os ritos funerários, a loucura, a busca da Terra sem Males, a dramática história de Uirá, que Darcy escreveu como livro e que virou um filme.

A vida sexual dos selvagens. A palavra selvagem adquiriu uma outra conotação com Darcy, tão inovadora quanto a que exibe O pensamento selvagem de Lévi-Strauss, livre do peso depreciativo que a opõe à suposta civilização. Os Kaapor são os moradores da floresta (de kaa, mato, por, morador), silvícolas, selvagens em sua autodenominação. Se quisesse, Darcy poderia ter escrito, como Malinowski, A vida sexual dos selvagens, tanto conseguiu aprender sobre esse lado da vida indígena — um aspecto, alíás, que se orgulhava de conhecer e viver bem em sua própria vida. Prova da relação próxima, íntima e respeitosa que teve com os índios é ter conseguido aprender tanto sobre seus amores, sobre os múltiplos e simultâneos pais do filho de uma mesma mulher, sobre partos, sobre quem pode sururucar quem, sobre os rituais da menarca, os namoros precoces e "pré-casamentos", mesmo antes da puberdade. Há novidades sobre a couvade, dieta e tabus de comportamento para pais e mães de recém-nascidos, sempre expostos a perigos sobrenaturais, sobre amores extraconjugais e sobre o risco para as crianças que porventura nascerem, pois os pais não oficiais não se submetem às regras alimentares e tabus. Intrigam os conceitos sobre o pudor, a nudez e a impudicícia; ouvimos sobre os tuxauas que "amarram o membro" de seus afilhados na iniciação à idade adulta, fazendo-os seus soldados miaçus. Estes e muitos outros aspectos da reprodução estão descritos sistematicamente, com cuidado, e aparecem na vida cotidiana da aldeia, quando ele vai descrevendo o que se passa diariamente, os namoros dos seus amigos, os retratos de mulheres faceiras, de homens sedutores, de cenas de ciúme, as técnicas amorosas que lhe relatam.

A densidade de informações sobre este assunto, escassas na Antropologia brasileira, o tom concreto dos acontecimentos diários observados, vão reaparecer sob outra forma no clima erótico de Maíra, já recriado, elaborado em ficção, capaz de transmitir o encanto da liberdade amorosa, das trocas e segredos, dos colares e enfeites retribuindo noites de prazer, denunciando a identidade dos amantes. Faltaria à sua observação da sexualidade indígena a perpectiva feminista e feminina? Nem isto é seguro, tal o seu olho para a alteridade, a sensibilidade para traduzir quem pensa, vive e sente de modos diferentes.

As personagens brasileiras. Os 57 mitos dos Diários, belissimamente escritos, poderiam em si compor um livro, muito útil para os índios e para as escolas brasileiras. Vemos a gestação dos deuses-personagens de Maíra, Maíra e Micura, que no romance aparecem decidindo o destino dos homens, com desejos e dramas próprios, investigando e habitando o lado de dentro de homens e mulheres. Alguns mitos são jóias para o colecionador do imaginário, como o do Curupira que amarra o caçador com uma cobra e o sodomiza — assunto ausente da etnologia e dos mitos brasileiros. Ou o mito do "tempo dos gêmeos e dos pajés". Em muitos povos indígenas brasileiros, o nascimento de gêmeos significava maldição, resultado de uma transgressão, e uma ou as duas crianças eram mortas. Nos Kaapor, segundo o mito, parece que não só os gêmeos são bem recebidos e criados como, se meninos, serão pajés (e melhor para ser pajé o que tiver pênis pequeno). Seria outro, então, o significado da cena inicial de Maíra, com o parto de gêmeos natimortos. Indicações preciosas as que Darcy obteve, difíceis de registrar, pois quando os Diários foram escritos os Kaapor já não tinham pajés, apenas a memória da pajelança, e procuravam formar aprendizes com os pajés Tembé.

Fim da viagem e uma vida coerente. Darcy Ribeiro, com sua coragem característica, dedicou o último dia e o último fio de vida a concretizar a Fundação Darcy Ribeiro e o seu antigo Projeto Caboclo, destinado a fixar à terra os legítimos donos da Amazônia, os índios e os caboclos, preservando o seu saber sobre a floresta. As raízes dos Diários índios desabrocharam em mais uma árvore, em rara e bem-vinda união (que deveria ser sempre a da boa Antropologia) entre o terreno, a teoria e políticas públicas para solucionar os problemas sociais brasileiros.

BETTY MINDLIN

é antropóloga do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA) e colaboradora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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