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Sobre a teoria da subjetividade coletiva

Sobre a teoria da subjetividade coletiva

José Maurício DOMINGUES. Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999. 268 páginas.

Josué Pereira da Silva

O livro de José Maurício Domingues é formado por sete capítulos mais uma introdução e uma conclusão. Já nas primeiras linhas da introdução o autor anuncia que o eixo de seu trabalho "é a articulação do conceito de subjetividade coletiva com os temas da evolução social e da criatividade social, de um lado, e a modernidade brasileira contemporânea e a mudança social, de outro" (p. 7). Segundo ele, o livro pretende ser "uma contribuição à teoria crítica, concebida de uma forma ampla" (p. 11), e, ao mesmo tempo, é também "um desdobramento do programa de pesquisa centrado no conceito de subjetividade coletiva" (p. 12). De fato, ao longo de sua argumentação, Domingues deixa claro que os conceitos de subjetividade coletiva e de criatividade social são fundamentais para sua concepção de teoria crítica, que, como foi dito antes, não se limita à chamada Escola de Frankfurt.

Uma apreciação de conjunto indica, por outro lado, que o livro tem dois momentos. O primeiro, constituído pelos quatro capítulos iniciais, é dedicado a uma discussão teórica de natureza mais abstrata, na qual, a partir dos conceitos de subjetividade coletiva e de criatividade social, o autor dialoga criticamente com diversas tradições da teoria social. O segundo momento, correspondendo aos três capítulos restantes, embora também centrado no diálogo crítico com outros autores, está mais voltado para a interpretação de contextos empíricos mais concretos como a modernidade em geral e a modernidade brasileira contemporânea, em particular.

Nas páginas que seguem falarei desses dois momentos. Em primeiro lugar, discutirei cada um deles individualmente; em seguida, tratarei de sua articulação, já que essa articulação é o eixo do livro.

Sem negar a devida especificidade aos conceitos de criatividade social e de subjetividade coletiva, pode-se afirmar que a argumentação desenvolvida nos quatro primeiros capítulos do livro é bastante semelhante ao que Jeffrey Alexander chamou de "novo movimento teórico" (ver RBCS, n. 4, 1987). Este movimento consiste num conjunto de tentativas, feitas em geral por autores teoricamente orientados, de superar positivamente as velhas, mas sempre presentes, dicotomias que marcaram as ciências sociais, e sobretudo a Sociologia, desde o seu início. Sem entrar no mérito das diversas nomenclaturas utilizadas por diferentes autores para expressar essas dicotomias, é bastante razoável dizer que elas aparecem mais ou menos traduzidas na divisão existente na Sociologia entre programas teóricos que privilegiam, de um lado, os conceitos de ação, agência e processo e, de outro, os que privilegiam os conceitos de função, sistema e estrutura. É claro que as tentativas recentes são no sentido não de afirmar, mas de superar essas dicotomias através de um movimento de síntese, que evite a unilateralidade própria das abordagens puramente acionalistas ou puramente funcionalistas. Essa seria a essência do "novo movimento teórico", segundo Alexander.

Embora a forma como cada autor empreende sua tentativa de resolver o problema assuma traços específicos, pode-se resumir as atuais tentativas de síntese em dois grandes blocos: um que busca a superação das dicotomias mediante uma articulação dialética das duas dimensões, mas ao mesmo tempo mantém a separação analítica entre elas (a teoria crítica de Jürgen Habermas ilustra bem este caso), e outro que procura resolver o mesmo problema por meio da elaboração de um conceito central a partir do qual se busca a articulação das duas dimensões (um bom exemplo aqui é a teoria da estruturação de Anthony Giddens).

A contribuição de Domingues situa-se no interior desse mesmo movimento, aproximando-se, porém, mais da tentativa de Giddens que da de Habermas. Digo isto porque, embora o conceito de subjetividade coletiva de Domingues seja diferente do conceito de dualidade da estrutura de Giddens, a mesma intenção subjacente na obra deste último de encontrar um conceito-chave que sintetize dialeticamente os dois pólos daquilo que, por comodidade, chamarei aqui de ação e estrutura parece estar presente também no trabalho de Domingues.

Um bom exemplo disso é a sua tipologia de subjetividade coletiva, apresentada em seu livro anterior, Sociological theory and collective subjectivity (Londres, Macmillan, 1995). Para Domingues, subjetividade coletiva pode incluir diversas formas de agrupamentos sociais, que variam segundo o nível ou grau de centramento. Os agrupamentos com menor nível de centramento são as redes, seguidas pelas categorias (classes sociais, gêneros e raças ou grupos étnicos), os grupos (comunidade de vizinhança e família), encontros, movimentos sociais, organizações e, finalmente, sociedades. Subjetividade coletiva aparece, portanto, como uma categoria suficientemente abrangente para poder incluir coletividades de natureza tão diferente como, por exemplo, movimento social, organização ou sociedade. Mas não ficou claro para mim de que forma a teoria da subjetividade coletiva se relacionará com as diversas teorias específicas, muitas delas elaboradas para explicar cada uma das coletividades indicadas na tipologia acima. Creio que a teoria da subjetividade coletiva precisa explicitar a forma como lidará com as teorias já existentes sobre classe, gênero, família etc. em termos concretos.

O segundo momento do livro, no qual se postula a concretização da "relação entre teoria e empiria" (p. 144), é menos abstrato que o anterior e está voltado para a discussão da modernidade brasileira contemporânea. Esta é, evidentemente, analisada como parte de um contexto mais amplo, definido pelo autor como modernidade reflexiva. A ênfase de Domingues no caso brasileiro busca realçar a particularidade da modernização no Brasil, sem perder de vista sua inserção no quadro mais amplo de um mundo globalizado. Daí ele poder concluir que o tipo de modernidade vivenciada no Brasil é também uma modernidade reflexiva. Aqui, ao definir sua concepção de modernidade, Domingues aproxima-se mais uma vez das formulações de outros autores, como Ulrich Beck e o próprio Giddens, os quais, como é sabido, também concebem a modernidade contemporânea como modernidade reflexiva.

Por fim, ao falar da modernidade brasileira, Domingues afirma que "o desafio da teoria sociológica brasileira é precisamente compreender conceitualmente e estimular a investigação empírica dessa teia complexa" (p. 172). Esta afirmação deixa entrever o caráter indicativo e ainda programático de seu empreendimento. Assim, embora seja um empreendimento ousado e promissor, a teoria da subjetividade coletiva ainda precisa passar no teste empírico para se consolidar como um projeto teórico viável. Isto depende, evidentemente, de tempo e de pesquisa, principalmente sobre os diversos tópicos abordados. Mas isto pode perfeitamente ser o passo seguinte de tal empreendimento.

Tudo isso, no entanto, não tira o valor de um livro que atesta o grande domínio de seu autor sobre a literatura pertinente, assim como sua vocação para trabalhar com teoria. Apesar da complexidade de sua temática, o livro, por ser bem escrito, é uma leitura bastante agradável.

JOSUÉ PEREIRA DA SILVA é professor de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2001
  • Data do Fascículo
    Fev 2001
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