Resumo
Este artigo analisa a participação da Argentina e do Brasil como países convidados de honra (em 2010 e 2013, respectivamente) na Feira do Livro de Frankfurt. Remetemos tais presenças à história recente da feira e ao seu papel na estrutura dos fluxos e circuitos de edição e tradução em nível mundial, estrutura esta regulada pelas relações desiguais entre distintos países e mercados linguísticos. Analisamos as negociações entre entidades do poder público e da política setorial que deram origem a tais participações; as ênfases temáticas escolhidas para compor os estandes; e as características socioprofissionais dos autores de cada delegação. A conclusão é que tais casos permitem observar relações específicas entre intelectuais e Estado em cada contexto, na medida em que fazem emergir não apenas as tensões entre cultura e economia, mas também os modos específicos como cada país “traduz” questões locais para um âmbito de trocas simbólicas transnacionais.
Palavras-chave:
mercado editorial; tradução; Feira do Livro de Frankfurt; Brasil; Argentina
Abstract
This paper analyzes the participation of Argentina and Brazil as guests of honour at the Frankfurt Book Fair (in 2010 and 2013 respectively). We relate these events to the recent history of the fair and to its role in the flows and circuits of publishing and translation at a worldwide scale, considering that the structure of those flows is regulated by the unequal relationships between different countries and linguistic marketplaces. We examine the negotiations among public entities and sectoral bodies involving such interactions; the thematic emphases chosen for the stands; and the socio-professional profile of the authors of each delegation. As a main conclusion, the study relates the differences between both cases to the specific relations between intellectuals and the state in each context, considering not only the tensions between culture and economy, but also the ways in which each country “translates” local issues into an occasion of transnational symbolic exchanges.
Keywords:
publishing market; translation; Frankfurt Book Fair; Brazil; Argentina
Introdução
A Feira do Livro de Frankfurt é o maior e mais importante evento do mercado editorial em nível mundial. Anualmente, milhares de editores, autores, agentes literários e executivos desse setor se dirigem a este influente centro financeiro europeu, em busca de oportunidades na compra e venda de direitos de tradução. As atividades, reuniões e leilões realizados aí definem boa parte das ofertas de publicação em todo o mundo. Em 2013, a feira reuniu 7.275 expositores de 102 países, e atraiu 170 mil visitantes profissionais, que compareceram aos seus cerca de três mil eventos.
Gustavo Sorá, ao referir-se às feiras e exposições como os lugares mais “primitivos” dos mercados, destaca que
desde “a alta Idade Média” as feiras têm regulado os intercâmbios de produtos entre lugares distantes e articulado a construção sócio-histórica dos mercados a par da diferenciação de unidades políticas estatais (Sorá, 2003_____. Traducir el Brasil: una antropologia de la circulación internacional de ideas. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003.: 210).
As origens da Feira do Livro de Frankfurt remontam a essa tradição centenária, vinculada às grandes feiras comerciais que se realizavam nessa importante cidade germânica. No século XVII, ela se autonomiza da grande feira e se torna a principal feira de livros da Europa, ainda que nos séculos seguintes tenha de disputar essa hegemonia com sua homóloga de Leipzig. É somente a partir de 1949 - após uma interrupção forçada pela Segunda Guerra Mundial - que ela vai paulatinamente se constituindo como ponto nevrálgico do mercado global de livros, onde são definidos muitos dos grandes êxitos comerciais do setor livreiro mundo afora.
Ainda que se deva considerar, para explicar tal logro, a histórica localização estratégica de Frankfurt como centro financeiro e de negócios, entroncamento rodoferroviário e aéreo importante da Europa, essa supremacia se explica também à luz da decadência da feira de Leipzig, já que com a Guerra Fria e a divisão das duas Alemanhas, esta cidade ficou sob domínio soviético, relativamente isolada dos mercados ocidentais.
A hegemonia da Feira do Livro de Frankfurt no período pós-guerra é tributária de dois fenômenos interdependentes: a transformação de evento de vendas a livreiros em evento de negociação de direitos; e a maior participação de outros países e línguas. É desse modo que ela vai se tornando um evento de enormes proporções e logra constituir-se como polo de institucionalização (Dujovne & Sorá, 2010DUJOVNE, Alejandro; SORÁ, Gustavo. Un hecho de política cultural: Argentina en la República Mundial de la Edición. In: FAILLACE, Magdalena (Coord.). Feria del Libro de Frankfurt. Argentina, país invitado de honor 2010. Buenos Aires: Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto, 2010.), primeiro do mercado editorial alemão e, logo, do mercado internacional. Ainda que os mercados de língua alemã tenham certa preponderância na feira, os mercados editoriais britânico e norte-americano passam a ocupar um espaço significativo. Os setores de língua inglesa se configuram como lugares de passagem quase obrigatória, à medida que esta se configura como língua central no sistema mundial de circulação de textos1 1 . Segundo Gustavo Sorá (2003: 222), “depois da Segunda Guerra Mundial, em quase todos os mercados nacionais o inglês representa a origem de cerca de 75% dos títulos traduzidos”. .
Na intrincada rede de fluxos que constitui um sistema mundial de traduções que se organiza na forma centro-periferia, o inglês ocupa uma posição hipercentral2 2 . O autor distingue quatro grupos de línguas, segundo diferentes níveis de centralidade no sistema de traduções: posição hipercentral (inglês), central (alemão e francês), semicentral (sete ou oito línguas, dentre as quais o espanhol e, talvez, o português) e periférica (línguas que têm menos de 1% de participação no sistema, ainda que possuam grande número de falantes) (Heilbron, 2010: 2). Os dados oferecidos por Renato Ortiz (2004: 12ss.) são expressivos da hegemonia que o inglês adquire nas últimas décadas, seja como idioma estrangeiro ensinado nas escolas secundárias, seja como língua mais publicada e citada nos periódicos científicos. , não só porque seus níveis de versão (neste caso, transposição do inglês para outra língua) são muito maiores que os de tradução (transposição de outra língua para o inglês), mas também porque determina a relação entre distintas línguas periféricas:
A comunicação entre grupos periféricos frequentemente acontece através de uma língua mais central. O que é traduzido de uma língua periférica a outra depende muitas vezes do que foi traduzido dessas línguas periféricas para línguas centrais. Assim, quanto mais central é uma língua no sistema de traduções, mais ela é capaz de funcionar como língua intermediária ou língua veículo, ou seja, como um meio de comunicação entre grupos de línguas que são, eles próprios, periféricos ou semiperiféricos (Heilbron, 2010HEILBRON, Johan. Structure and dynamics of the world system of translation. Unesco International Symposium “Translation and cultural mediation”, Fev. 2010. Disponível em: <http://portal.unesco.org/culture/en/files/40619/12684038723Heilbron.pdf/Heilbron.pdf>. Acesso em: 4 Ago. 2014.
http://portal.unesco.org/culture/en/file... : 5).
Gustavo Sorá (2003_____. Traducir el Brasil: una antropologia de la circulación internacional de ideas. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003.: 189-213), a partir de uma etnografia da feira, vê tal desequilíbrio do sistema refletido na própria estrutura espacial do evento, que dedica maior área física e maior visibilidade aos países e idiomas centrais em detrimento dos periféricos. Para o autor, o arranjo espacial do evento
se faz corpo e docemente introduz uma hierarquia de valores e formas de classificação sublimadas quando os editores e demais especialistas regressam a seus lugares ordinários de trabalho (Sorá, 2003_____. Traducir el Brasil: una antropologia de la circulación internacional de ideas. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003.: 211).
Peter Weidhaas (2011WEIDHAAS, Peter. Una historia de la Feria de Francfort. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica , 2011.), ex-diretor da Feira de Frankfurt, relata as pressões que, ano a ano, a crescente hegemonia dos mercados anglófonos exerceu sobre a organização do evento: o espaço cada vez mais amplo demandado pelas editoras americanas e britânicas entrava em choque com o objetivo da feira de dar espaço aos demais mercados. De algum modo, a decisão de apresentar certos países como convidados de honra, a partir de 1988, simboliza a necessidade de instaurar uma espécie de “território de exceção”, imune a tais pressões, no interior da feira, no sentido de dar mais visibilidade a mercados menos centrais, que se revezam anualmente na ocupação desse lugar.
Neste trabalho, analisamos comparativamente a participação da Argentina (2010) e do Brasil (2013) como países convidados de honra da Feira do Livro de Frankfurt. Depois de apresentar o papel desta feira nas tramas do mercado editorial global, abordamos os marcos políticos e legais que conformaram a presença dos dois países no evento. Por fim, detemo-nos na análise quali-quantitativa do conjunto de autores chamados a fazer parte das duas ocasiões. Buscamos interpretar as características morfológicas de ambas as comitivas à luz tanto do contexto imediato dessas participações como da conformação de médio e longo prazo de seus respectivos espaços literários/intelectuais nacionais.
O problema sociológico que guia esta análise diz respeito, fundamentalmente, ao papel de dois condicionantes específicos na configuração dos mecanismos de consagração simbólica e econômica dos campos intelectuais latino-americanos: (1) as possibilidades de circulação internacional de seus agentes, produtos, repertórios e práticas; (2) as relações de cooperação, disputa e interdependência entre os intelectuais e o Estado em cada contexto considerado.
Fluxos e circuitos do mercado editorial global
A “moderna” Feira de Frankfurt se desenvolve e ganha dimensões gigantescas nas três últimas décadas do século XX, momento em que os fluxos e as circulações passam a cobrar atenção especial das ciências sociais. A escala do Estado-nação segue tendo relevância analítica para o estudo da edição se consideramos o alcance das políticas que regulam e fomentam a atividade editorial, moldando a produção e a distribuição nos respectivos territórios. A unidade nacional é não só o âmbito de ação dos organismos responsáveis por tais políticas, mas também “o critério de classificação dominante da estrutura espacial” (Sorá, 2002_____. Frankfurt y otras aduanas culturales entre Argentina y Brasil: una aproximación etnográfica al mundo editorial. Cuadernos de Antropología Social, n. 15, p. 125-143, 2002.: 129) da Feira de Frankfurt e de suas congêneres, fazendo emergir daí certas identidades culturais e literárias ancoradas nas distintas tradições nacionais.
Por outro lado, o caráter global do mundo dos livros impõe-se como objeto de estudo num momento histórico onde a atividade dos agentes se vê condicionada pelas decisões de companhias transnacionais como Pearson, Random House, Bertelsmann, Hachette; pelos diagnósticos e recomendações de órgãos supranacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc); e pelas negociações feitas em “aduanas” culturais como Frankfurt, Barcelona, Londres, Bolonha e Guadalajara. Constitui, assim, um desafio às histórias da edição, tradicionalmente construídas em bases nacionais3
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. A esse respeito, propõe Mollier: “o marco nacional desses estudos é, sem dúvidas, um espaço cômodo e útil para seu desenvolvimento, mas não deve ocultar as porosidades, as circulações de um território a outro, os múltiplos e multiformes intercâmbios que se podem haver produzido, as adaptações, traduções, cópias ou mutilações e censuras dos textos. É a partir desses aspectos que uma perspectiva transnacional dos fenômenos produz certamente o melhor resguardo frente aos riscos de fechamento ou cegueira que ameaçam todo pesquisador que trabalhe com um objeto tão proteico” (Mollier, 2012: 271).
, num momento em que os países a partir dos quais tais histórias são escritas “deixam de ser unidades autônomas, independentes, que interagem entre si, para se constituírem em territórios atravessados pelo fluxo da modernidade-mundo” (Ortiz, 2004 ORTIZ, Renato. As ciências sociais e o inglês. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, p. 5-23, Fev. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n54/a01v1954.pdf>. Acesso em: 4 Ago. 2014.
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n54/a...
: 9).
Para esta análise, dois tipos de circulação nos interessam. O primeiro é a circulação dos produtos culturais. Este é, afinal, o elemento que justifica a ocorrência de eventos como a Feira de Frankfurt: os múltiplos encontros entre autores, editores e agentes literários do mundo todo têm como finalidade básica estabelecer acordos que tornem possível a publicação de títulos para além de seus territórios de origem. Diversos pesquisadores têm assinalado a importância dos trânsitos internacionais de textos para a formação dos mercados culturais e para o estabelecimento de hierarquias entre tradições intelectuais e mercados linguísticos. Esses trânsitos dão a ver uma constante luta pela redefinição dos territórios de distribuição de produtos industriais/culturais entre os distintos centros e entre os centros e a periferia (Sapiro, 2009SAPIRO, Gisèle (Org.). Les contradictions de la globalisation éditoriale. Paris: Nouveau Monde; Sociétés et Représentations, 2009.).
Os fluxos globais de edição e tradução, mais do que operações textuais, são resultado de operações sociais que envolvem, além de editores e autores, agentes literários, tradutores, diretores de coleção, prefaciadores - gate keepers e descobridores (Bourdieu, 2002 BOURDIEU, Pierre. Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 145, n. 5, p. 3-8, 2002.: 4-5) posicionados de modos específicos nos campos de origem e destino das obras. Esses agentes “cosmopolitas” e “poliglotas” (Casanova, 2002CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.: 37) atuam como cambistas num mercado global em que os graus de consagração e as capacidades de difusão são desigualmente distribuídos entre autores, gêneros, países e línguas.
O estudo dos mercados editoriais contemporâneos exigiria, nesse sentido, assentar em primeiro plano as tensões por meio das quais o “nacional” e o “global” se constituem reciprocamente. A circulação transnacional dos textos é um aspecto fundamental para uma análise desse tipo, uma vez que, considerada em sua espacialidade e em sua temporalidade, deixa à mostra a construção de relações desiguais entre países e/ou comunidades linguísticas. Nesse sentido, a Feira do Livro de Frankfurt, mais do que configurar um ponto de “conexão” do mercado editorial global, constitui um “nó” para onde convergem e de onde emergem tensões de ordem cultural, política, econômica e linguística. Ao imaginário de uma rede desterritorializada, capaz de produzir um “mundo sem fronteiras”, é necessário contrapor a ideia de um mundo onde a circulação de produtos, ideias e textos é diuturnamente disputada pelos agentes, pelas comunidades intelectuais e por organismos públicos e privados.
No caso do mercado de livros, essa circulação ocorre principalmente de duas formas. A primeira é a da importação e exportação de produtos (ou seja, de livros comercializados em suas edições e línguas “originais”, ainda que sejam eles próprios resultados de operações de traduções prévias). A segunda é aquela resultante de operações de versão e tradução, como as que são negociadas em Frankfurt; nesse caso, o que está em jogo é a comercialização de matérias-primas editoriais, com o objetivo de criar produtos adaptados às realidades locais. Trata-se, portanto, de dois circuitos distintos, mas complementares.
O segundo aspecto que nos interessa aqui, e neste caso subordinado ao primeiro, é o da circulação de pessoas. Ainda que não detenham a escala quantitativa dos fenômenos turísticos, a larga duração das migrações e diásporas, ou as implicações políticas dos exílios, certos modos “fugazes” de circulação das elites intelectuais são essenciais para compreender os arranjos assumidos pela produção simbólica nos distintos territórios. Objetos como as turnês, as residências artísticas, as expedições, os estágios de estudo e pesquisa, os congressos e as feiras ganham importância analítica, à medida em que podem revelar a construção de vínculos, grupos, redes que irão condicionar de distintas maneiras o trabalho intelectual das partes envolvidas para além do breve espaço-tempo do encontro presencial. Se em alguns casos podem apontar para o estabelecimento de conexões inéditas entre grupos ou tradições intelectuais até então isoladas umas das outras, em outros casos esses eventos transnacionais darão a ver o fortalecimento ou a reconfiguração de intercâmbios previamente estabelecidos.
Evidentemente, tais encontros não estão regidos apenas pela lógica da cooperação e do mutualismo. Ainda que essa dimensão esteja presente, importa considerar os aportes de dependência e dominação que configuram uma geopolítica das relações intelectuais, onde os agentes - e os lugares de onde provêm - tendem a desempenhar papéis desiguais nas trocas. Essa dimensão pode ser vislumbrada tanto nas relações mais “desinteressadas”, que não envolvem nenhum tipo de troca material direta, quanto em ocasiões como Frankfurt, onde o que ocorre são fundamentalmente reuniões de negócios entre executivos do mercado editorial. Em um e outro caso, as partes envolvidas comumente ocupam posições desiguais: uns como compradores, importadores, receptáculos, replicadores; outros como vendedores, exportadores, fornecedores, modelos. Portanto, o que tais circulações propiciam, para além dos contatos, são contratos, com todos os problemas conceituais e práticos que daí derivam.
Países convidados, identidades nacionais em disputa
Este pavilhão não tem nada a ver com a Itália. Aqui não vemos os desempregados do Sul, os viciados em drogas, não vemos a Máfia ou a Itália que trabalha realmente. Aqui estamos em meio à hipocrisia da mediocridade. Como pode uma cultura viver debaixo de papel-machê? (Aldo Busi apud Weidhaas, 2011WEIDHAAS, Peter. Una historia de la Feria de Francfort. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica , 2011.: 219).
Foi assim que o polêmico escritor italiano Aldo Busi se referiu ao pavilhão da Itália, primeiro país a ser convidado de honra da Feira de Frankfurt, em 1988. A crítica inscrita em seu discurso - que remete à distância entre realidade e representação, ou à superficialidade da imagem de nação aí forjada - se tornaria uma constante no evento. A partir daquele ano, a Feira do Livro de Frankfurt promove anualmente a participação de um país - ou, em algumas exceções, de comunidades linguísticas infra ou supranacionais - como convidado de honra do evento. O objetivo é dar um lugar destacado, dentro de um espaço expositivo de dimensões gigantescas, a tradições de produção editorial existentes para além dos mercados centrais4 4 . Anteriormente, a partir de 1976 e com periodicidade bienal, a Feira de Frankfurt havia estabelecido o modelo dos “temas centrais”. Foram eles: “América Latina” (1976), “A criança e o livro” (1978), “África negra” (1980), “Religião” (1982), “Orwell 2000” (1984) e “Índia” (1988). .
Aponta Gustavo Sorá que
a escolha de um país como convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt acentua as disputas internas de um campo editorial nacional (a divergência de seus interesses, suas linhas de força, seus pontos de apoio coletivo etc.) e põe em evidência o teor das relações entre os editores e o Estado (Sorá, 2013 SORÁ, Gustavo. El mundo como feria. In(ter)dependencias editoriales en la Feria de Frankfurt. Comunicación y Medios, n. 27, p. 102-128, 2013.: 104).
Tais momentos parecem-nos interessantes para investigar as disputas em torno do espraiamento da produção editorial (em especial da literatura) de países periféricos, num contexto em que a circulação internacional de livros está hegemonicamente concentrada por agentes que se interessam por tais países fundamentalmente como mercados tradutores e consumidores. Ainda que não implique reversão ou equilíbrio dos fluxos de tradução e versão, a participação de países convidados na Feira é o momento oportuno para que mercados não centrais se projetem de modo singular num espaço altamente hierarquizado. É como se tal presença fosse capaz de pôr em suspensão a estrutura fortemente desigual da circulação internacional de textos.
Trata-se, evidentemente, de um fato econômico, dado que a Feira de Frankfurt gira em torno da compra e venda de direitos. Nesse sentido, a ocupação desse espaço privilegiado significa para um país e para os seus autores a possibilidade de ampliar sua participação nos fluxos de tradução. Entretanto, tais negócios não estão isentos de teor simbólico, já que esses intercâmbios e as possibilidades de tradução que eles trazem são capitais importantes para os agentes do setor. A presença internacional permite a eles disputar reconhecimento de crítica e de público em outros países, êxitos que depois podem ser reconvertidos em maior prestígio em seus campos de origem. Além disso, em nível mais amplo, a presença em Frankfurt - com o conjunto de espaços físicos, eventos e autores - gera a construção de imagens específicas do país no exterior. Isso não quer dizer que essa participação não tenha objetivos econômicos, mas que responde fundamentalmente a uma estratégia de soft power, ou seja, à criação de uma identidade ou marca cultural/literária do país a ser exportada e cujos efeitos simbólicos, políticos e econômicos nem sempre são calculáveis no curto prazo.
Os únicos países latino-americanos que já ocuparam esse espaço de visibilidade no evento foram México (1992), Argentina (2010) e Brasil (1994 e 2013); este, por sua vez, foi o único país a repetir sua participação como convidado - o que se repete em 2016, com Holanda/Flandres (dobradinha que já havia sido tema em 1993). Brasil e Argentina foram convidados de honra em vários outros eventos do mercado editorial global que passaram a adotar essa estratégia, dando lugar de destaque a países, cidades ou áreas linguísticas.
Argentina e Brasil: arquitetando presenças
O acordo que definiu a participação da Argentina foi assinado em 2007 e o planejamento do evento começou em setembro de 2008. Em uma reunião com editores e representantes das câmaras do livro, a presidenta Cristina Fernández, a partir do Decreto n.o 1.316/08, declarava a participação argentina em Frankfurt de interesse nacional. Decidiu-se que o projeto seria levado a cabo por uma comissão especial, o Comité Frankfurt 2010 (Cofra). Esta foi formada por 14 pessoas, incluindo representantes da Cámara Argentina del Libro (CAL) e da Cámara Argentina de Publicaciones (CAP)5 5 . Ao contrário do Brasil, onde os editores estão unificados sob a Câmara Brasileira do Livro (CBL), na Argentina eles se dividem em duas câmaras: a Cámara Argentina del Libro (CAL), constituída por pequenas e médias editoras nacionais; e a Cámara Argentina de Publicaciones (CAP), que reúne sobretudo grandes editoras e conglomerados estrangeiros. O Comité Frankfurt 2010 (Cofra) reuniu também representantes destes organismos: Secretaría General de la Presidencia de la Nación, Jefatura de Gabinete de Ministros, Secretaría de Medios de Comunicación de la Nación, Secretaría de Cultura de la Nación, Secretaría de Turismo de la Nación, Fundación Exportar, Fundación El Libro e Sociedad Argentina de Escritores. , e dirigida pela embaixadora Magdalena Faillace, responsável por Assuntos Culturais na Cancillería6 6 .Nome que designa o Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto, equivalente ao Itamaraty. Na análise de Bayardo e Mihal (2012: 17), “a centralidade da Cancillería na Cofra aparecia como uma forma de priorizar o comércio internacional e a visibilidade do país no exterior através de um organismo que dispõe de instrumentos específicos para isso”. . Nessa ocasião, comunicaram-se os ícones que representariam a Argentina na feira: Eva Perón, Che Guevara, Diego Maradona e Carlos Gardel.
Uma polêmica invadiu jornais e suplementos culturais: diversos agentes do campo cultural protestavam contra a decisão do governo de não incluir figuras literárias. Logo, a Cancillería informou que aos quatro ícones se somariam Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, dois dos escritores argentinos mais conhecidos e traduzidos. A polêmica continuou e, por meio de uma carta aberta, um conjunto de escritores pediu que fossem incluídos também os nomes de Rodolfo Walsh, Alfonsina Storni, Manuel Puig e Alejandra Pizarnik. Solicitavam, além disso, que o governo trabalhasse em prol da difusão de novos escritores, abrindo-lhes portas no mercado internacional. Essa posição foi respaldada pelo diretor da feira, Jürgen Boos, para quem o país convidado deveria apresentar um panorama atual e diversificado da cultura nacional, com ênfase nos jovens autores. Alguns meses depois, era anunciada a criação do Programa Sur, que dá subsídios a editoras estrangeiras para traduzir autores argentinos.
É importante notar que o planejamento da participação em Frankfurt e a criação do Programa Sur se dão quase na ausência de marcos legais anteriores: a Ley de Fomento al Libro y a la Lectura, sancionada em 2001, dedica pouco espaço à difusão internacional do livro argentino e, ainda assim, dá ênfase ao Mercosul e ao restante da América Latina (cf. Argentina, 2001, art. 3º, § k e m). Já no caso brasileiro, a internacionalização aparece, ainda que de forma tímida, na lei que estabelece a Política Nacional do Livro7 7 . O artigo 1º menciona, dentre outras diretrizes, as de “propiciar os meios para fazer do Brasil um grande centro editorial” e “competir no mercado internacional de livros, ampliando a exportação de livros nacionais”. Já o artigo 13 define a responsabilidade ao Poder Executivo de “instituir programas, em bases regulares, para a exportação e venda de livros brasileiros em feiras e eventos internacionais” (Brasil, 2003). . Diretrizes mais concretas surgem com o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), instituído três anos depois (cf. Brasil, 2006), e que rege atualmente as políticas setoriais no país8 8 . O documento-base do PNLL estabelece quatro eixos de ação. O último - “Desenvolvimento da economia do livro” - é composto de quatro subeixos, dos quais o derradeiro menciona a participação em feiras internacionais, programas de exportação de livros e apoio para a tradução de livros brasileiros (Brasil, 2006: 30). De modo complementar, o subeixo 4.3 (Apoio à cadeia criativa do livro) menciona “Programas de apoio à tradução” (idem, ibidem), sem definir se se trata de fomento à versão ou à tradução. . Apesar das prévias definições legais, é possível dizer que, tal como no caso argentino, ações mais efetivas passam a ser implementadas quando a Feira do Livro de Frankfurt aceita a proposta de que o Brasil participe como convidado. Esse parece ser o estopim para o emprego mais sistemático de recursos destinados à internacionalização da produção editorial e literária.
O acordo que permitiu a participação do Brasil como país convidado foi firmado em outubro de 2010 (durante a edição da feira na qual a Argentina era o país central). O comitê organizador foi composto pela entidade que firmou tal acordo, o Ministério da Cultura (MinC), e outros quatro órgãos - Ministério das Relações Exteriores (MRE), Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Fundação Nacional de Artes (Funarte) e Câmara Brasileira do Livro (CBL). A Academia Brasileira de Letras (ABL) e a Liga Brasileira de Editoras (Libre) foram consultadas e convidadas a participar da programação, que contou também com o apoio da Agência Brasileira de Promoções de Exportações e Investimentos (Apex). O conselho diretivo9 9 . Constituído pelos seguintes executivos: presidente da FBN; presidente da Funarte; diretor do Departamento Cultural do MRE; diretor de Relações Internacionais do MinC; diretor do Centro Internacional do Livro da FBN; gerente executiva do projeto; presidente da CBL. do projeto convocou, ainda, três curadores - Manuel da Costa Pinto, Maria Antonieta Cunha e Antonio Martinelli - para definir a programação do evento e selecionar os 70 autores que fariam parte da expedição.
A participação do país convidado em Frankfurt prevê, geralmente, formas de fomento à tradução. No caso argentino, o Programa Sur começou a ser planejado em 2009, por ocasião do próprio convite. Após a realização do evento, em 2010, com quase 300 obras já traduzidas, o programa foi confirmado como política de Estado, com orçamento anual e funcionamento regular. O Brasil, em contrapartida, já possuía, desde 1991, o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior. Trata-se da principal iniciativa do Centro Internacional do Livro (CIL) - parte integrante da FBN, vinculada ao MinC -, que promove outras iniciativas de internacionalização da produção editorial brasileira. Apesar dessa longevidade, foi somente em 2010, por ocasião da escolha do Brasil para 2013, que se decidiu por uma maior ênfase e um aporte suplementar de recursos ao programa. A diferença é bastante expressiva: se entre 1991 e 2009 foram oferecidos pelo programa 161 subsídios a tradução, somente entre 2010 e 2013 foram 422 subsídios (ou seja, 72% do total da série em apenas quatro anos).
A análise das participações da Argentina e do Brasil como países convidados de honra da Feira de Frankfurt - respectivamente em 2010 e 2013 - permite notar a importância que a presença nesse evento adquiriu para os mercados editoriais locais. Tal relevância se expressa objetivamente pela presença na feira de gestores públicos da alta cúpula, pela quantidade de recursos empregados e pela ampla cobertura da imprensa especializada. Os países também se tornaram tema de dezenas de eventos paralelos em Frankfurt e em outras cidades alemãs.
Em 2010, com o lema “Argentina, cultura em movimento”, o espaço do país central foi desenhado pelo cenógrafo Emilio Balsadúa para render tributo a seus dois grandes nomes literários: no acesso principal, o desenho de um jogo de amarelinha no chão (em homenagem ao clássico Rayuela, de Cortázar) dava acesso a um labirinto (referência a Borges), onde o visitante podia passear por painéis-vitrines que traziam fotos de aproximadamente 50 autores (além das personalidades não literárias) dos séculos XIX e XX, com trechos de suas obras e objetos relacionados. Dentro do pavilhão, um espaço especial foi dedicado a escritores e jornalistas desaparecidos na última ditadura militar: aí figuravam suas fotos e nomes, bem como lenços das Madres de Mayo simbolizando a luta pela memória.
É preciso ressaltar alguns elementos contextuais que deram contornos específicos à participação argentina. De um lado, ela coincidiu com o bicentenário da Independência, o que trouxe implicações para a formulação de uma identidade nacional no exterior, plasmada por debates e comemorações que já estavam em vigor dentro e fora do país (ver Sorá, 2012_____. Editar la nación. Bicentenario argentino en Frankfurt. In: BATTICUORE, Graciela; GAYOL, Sandra (Comp.). Tres momentos de la cultura argentina: 1810-1910-2010. Buenos Aires: Prometeo Libros; UNGS, 2012.). De outro lado, a designação, pela Unesco, do título de Capital Mundial do Livro 2011 a Buenos Aires exigiu certa conciliação de interesses entre o governo federal e o governo da capital, que também queria garantir presença em Frankfurt. O governo da cidade acabou por lançar seu próprio programa de tradução e montou um estande próprio na feira, o que deixa entrever o elevado grau de hostilidade entre os dois níveis da administração pública, comandados, naquele momento, por rivais políticos. Tal disputa refletiu, ainda, conflitos historicamente pendentes:
a confrontação entre federalismo e centralismo, o interior “latinoamericano” com a capital “europeia”, a diversidade cultural “argentina” com a concentração editorial “portenha” (Bayardo & Mihal, 2012BAYARDO, Rubens; MIHAL, Ivana. Argentina en la Feria del Libro de Frankfurt. Notas sobre política cultural. Publicar, Ano X, n. 13, p. 9-29, Dez. 2012.: 19).
Já a participação brasileira - cujo lema foi “Brasil: uma terra cheia de vozes” - se dá num momento de explosão da visibilidade do país no exterior, antecedido por êxitos econômicos e caracterizado pela expectativa dos grandes eventos esportivos (a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016). Essa somatória converte o Brasil em objeto crescente de interesse internacional e plasma uma imagem de grande potência que os agentes políticos, culturais e econômicos do país passam a capitalizar de distintas maneiras. O pavilhão brasileiro foi concebido por Daniela Thomas e Felipe Tassara. Em um dos ambientes, painéis traziam fotos de grandes autores da literatura nacional; em outro, os visitantes podiam pedalar bicicletas fixas, gerando imagens sobre a história do país. Em outros locais, era possível sentar-se em redes para ouvir canções de músicos como Chico Buarque e Caetano Veloso; ver reproduções de edifícios de Niemeyer em papel prensado; ver uma instalação que representava paisagens brasileiras em relação a obras literárias onde foram retratadas. Buscou-se, sobretudo, erigir representações que fugissem dos estereótipos de samba, carnaval, futebol e verde-amarelo, ainda que referências esparsas estivessem presentes. Ao contrário do que ocorreu no caso argentino, a escolha de figuras extraliterárias não suscitou grandes críticas por parte de intelectuais brasileiros. Contudo, a remissão a Frankfurt 2010 era inevitável10 10 . Isto evidencia a atualidade das análises que mostram como os dois países têm constituído historicamente suas identidades um em contraposição ao outro. Ver, a esse respeito, os aportes de Sorá (2003) e Grimson (2007). : uma fonte da CBL declarou, com ironia: “todo o nosso parâmetro foi ver o quanto a Argentina fez e fazer maior”.
Brasil e Argentina: os autores convidados
As identidades literárias forjadas pelos países convidados em Frankfurt são o resultado de relações objetivas que operam em cada um dos espaços editoriais, envolvendo uma sucessão heterogênea de práticas e representações dos interessados. Além do objetivo mais imediato de explicar os mecanismos de funcionamento de um evento editorial global a partir de dois casos latino-americanos, a abordagem desse objeto parece-nos relevante à medida que contribui para compreender os nexos entre Estado, cultura e economia na constituição das indústrias culturais latino-americanas. Exige, de todo modo, considerar as políticas culturais - e, mais especificamente, as de projeção da cultura nacional em espaços internacionais - como terreno comum à intervenção do Estado, do setor privado e do setor associativo, ou seja, de instâncias que
envolvem uma pluralidade de autores, com distintas magnitudes e capacidades de decisão, com diferentes formas organizativas e lógicas de funcionamento, e com objetivos e interesses diversos (Bayardo & Mihal, 2012BAYARDO, Rubens; MIHAL, Ivana. Argentina en la Feria del Libro de Frankfurt. Notas sobre política cultural. Publicar, Ano X, n. 13, p. 9-29, Dez. 2012.: 12).
A presença de autores nacionais, convidados especialmente para participar do evento, busca promover a circulação de certa elite intelectual e fortalecer o espraiamento de sua produção em outros mercados, aumentando as possibilidades de negociar sua publicação no exterior, derivando daí lucros simbólicos e econômicos para autores, editoras, tradutores e agentes literários. Funciona, assim, de modo complementar a outras estratégias (programas de fomento à tradução e publicação no exterior, catálogos de divulgação da literatura nacional). Entretanto, essa dimensão é insuficiente para compreender essa circulação de pessoas, porque a seleção de autores pressupõe a formação de um consenso a partir de operações de inclusão e exclusão, formas de exercício de poder entre os agentes envolvidos nesse processo.
Um locus privilegiado de análise, nesse sentido, são as tomadas de posição dos excluídos ou dos que se propõem a falar em nome deles. Foi o caso dos escritores brasileiros Marcelo Mirisola, que criticou a curadoria do evento por não lhe haver incluído na comitiva, e Paulo Coelho, que se recusou a participar por não concordar com a seleção de escritores, que excluía nomes jovens do tipo de ficção que ele próprio pratica. Mirisola, autor caracterizado por seus escritos irônicos e escatológicos, dirigiu suas críticas particularmente ao curador Manuel da Costa Pinto, a quem acusou de incoerência, ao passo que Coelho, grande best-seller da ficção brasileira atual, fez críticas mais amplas às políticas culturais do governo federal (apud Meireles, 2013MEIRELES, Mauricio. Paulo Coelho cancela participação na Feira de Frankfurt. O Globo, 4 Out. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/paulo-coelho-cancela-participacao-na-feira-de-frankfurt -10250775>. Acesso em: 18 Ago. 2014.).
No caso argentino - como já foi mencionado -, destacaram-se as declarações contrárias à decisão unilateral de o governo privilegiar figuras clássicas da argentinidade em detrimento das personalidades capazes de consolidar uma imagem mais moderna da literatura nacional e de gerar dividendos simbólicos e econômicos às editoras e aos autores locais. Ao contrário da participação brasileira, cujas discussões se concentraram em torno da seleção dos autores vivos e se deram no calor dos acontecimentos, na Argentina o principal motor dos debates, ainda na fase de preparação, foi o privilégio de figuras literárias já consagradas e de figuras extraliterárias. Na ótica dos detratores, isso mostrava uma ignorância do Estado nacional com relação aos objetivos da feira. No Brasil, os posicionamentos focaram a constituição de um presente literário que se pudesse mostrar ao mundo, ao passo que no caso argentino o centro da contenda foi a tensão entre um passado (literário ou não) estabelecido e um presente literário em busca de visibilidade.
Os discursos de abertura foram expressivos das preocupações que cada país trasladou a Frankfurt e das relações entre intelectuais e Estado. Na participação argentina, a dramaturga Griselda Gambaro destacou o papel dos intelectuais perseguidos em seu país durante a última ditadura militar, comparando tal episódio ao regime nazista alemão. Em tom lírico, falou da literatura como capacidade de imaginar outros mundos possíveis e exigiu da política o mesmo papel, mencionando de soslaio os governos latino-americanos de esquerda (ver Gambaro, 2010). Luiz Ruffato também se referiu a mazelas do passado nacional (o genocídio indígena e a escravidão africana), mas centrou-se em problemas atuais: desigualdade social, privação de direitos, violência estatal, machismo, homofobia, analfabetismo funcional (ver Ruffato, 2013). Ainda que tenha mencionado o papel libertador da literatura e destacado alguns êxitos recentes do país, o tom de manifesto crítico incomodou autoridades presentes. Se, por um lado, Gambaro fez eco às ênfases que o Estado nacional argentino quis dar ao evento, o discurso de Ruffato representou um pequeno ato de rebeldia contra as representações politicamente depuradas do estande brasileiro.
A análise do conjunto de autores selecionados por cada país dá acesso aos contornos de uma identidade cultural/literária forjada por frações de suas elites intelectuais sob auspícios do Estado. Permite, também, dar inteligibilidade sociológica às disputas vigentes antes e durante a ocupação desse espaço privilegiado. Tal análise deve considerar três conjuntos de condicionamentos: primeiro, as características estruturais dos respectivos espaços intelectuais, que, por sua vez, refratam as relações de força vigentes em cada uma das sociedades nacionais; segundo, a conjuntura em que cada país planejou sua presença; terceiro, os critérios de seleção da curadoria, lidos à luz das pressões individuais, coletivas e institucionais que lhe deram forma. Sem pretender esgotar as possibilidades de análise, consideramos alguns dados morfológicos dos conjuntos de autores convidados para compor as comitivas da Argentina e do Brasil - 56 e 70 autores, respectivamente.
Com relação à representatividade de gênero, o número de homens é maior que o de mulheres nas duas delegações, mas o conjunto argentino tem um índice (55%) bem mais igualitário que o conjunto brasileiro (67%). Quanto às faixas geracionais, os dois países apresentam conjuntos semelhantes: as médias de idade no ano de participação foram de 59,0 e 59,4, respectivamente. Nos dois casos, a proporção de autores nascidos até 1960 representou cerca de 65% do conjunto (sendo que 25% dos argentinos e 20% dos brasileiros nasceram antes de 1940). Essa composição, à luz de outros dados, mostra que os dois países optaram por levar a Frankfurt intelectuais com trajetórias mais longas, maior número de livros publicados e posições mais consolidadas no campo, em detrimento dos recém-chegados. Em contrapartida, a amostra brasileira possui maior proporção de jovens (nascidos na década de 1970): 12,8% (nove autores), contra apenas 5,3% (três autores) no caso argentino.
A projeção internacional parece ter sido levada em consideração na inclusão dos únicos três autores do conjunto argentino nascidos na década de 1970. Destaca-se, aqui, a figura de Samanta Schweblin (1978- ), mais jovem da delegação de seu país, cujas obras já haviam sido traduzidas em 13 idiomas e publicadas em 22 países. Seu segundo livro, Pájaros en la boca, obteve o prêmio Casa de las Américas, considerado um dos mais importantes da literatura de língua espanhola. Viveu temporariamente no México, na Itália e na Alemanha, onde reside atualmente. Também Ariel Magnus (1975- ) tem fortes vínculos com o país da feira, não apenas por sua ascendência, mas também porque ali viveu entre 1999 e 2005 e estudou com subsídio da Fundação Friedrich Ebert Stiftung. Por fim, Félix Bruzzone (1976- ), além de já ter livros publicados em francês e em alemão, é filho de desaparecidos da última ditadura militar, fato que o tornou altamente adequado a uma programação cultural com bastante ênfase nos temas da memória e dos direitos humanos, em consonância com a agenda social e política vigente no país naquele momento.
No caso do Brasil, os três mais jovens autores também apresentam graus consideráveis de projeção internacional. O escritor Daniel Galera (1979- ), que atua também como tradutor de literatura em inglês, integrou em 2012 a seleção de jovens autores brasileiros da revista britânica Granta. Antes da participação em Frankfurt, já tinha obras publicadas na Itália, Portugal, Argentina e França, além de figurar em antologias internacionais. Já os irmãos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon (1976- ), quadrinistas que assinam diversas parcerias com autores de outros países, têm obras publicadas nos Estados Unidos, na Itália e na Espanha. Foram os primeiros brasileiros a ganhar um prêmio no Eisner Awards, principal honraria do universo das HQs em nível internacional11 11 . Os outros autores brasileiros do conjunto nascidos nos anos 1970 - Andrea del Fuego (1975- ), Carola Saavedra (1973- ), Fernando Vilela (1973- ), Férrez (1975- ), Michel Laub (1973- ), Veronica Stigger (1973- ) - também contavam, no momento da feira, com algum grau de internacionalização: obras publicadas no exterior; participação em antologias publicadas fora do Brasil; períodos de vivência e estudos em outros países; prêmios internacionais no âmbito da literatura ou das artes. .
Já a análise dos locais de nascimento mostra diferenças importantes: na delegação argentina, estão representadas 9 das 24 unidades federativas (37,5%); na comitiva brasileira, há autores nascidos em 14 das 27 unidades (51,8%). Na amostra argentina, os portenhos representam 62,5% (35) e, somados aos nascidos na província de Buenos Aires, totalizam 78,5% (44) do conjunto. Entre os autores brasileiros, 21% (15) são paulistanos e 17% (12) cariocas. A totalidade de naturais dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul - 53 autores (75,7%) - é proporcionalmente menor que a soma de portenhos e bonaerenses.
Tais diferenças são expressivas do contraste entre os dois campos intelectuais quanto à configuração espacial. A Argentina, país demograficamente concentrado em Buenos Aires e em seu conurbano, tem na capital federal o epicentro absoluto de sua atividade intelectual, literária e editorial. De outro lado, o Brasil, onde a concentração demográfica não é tão forte, tem a hegemonia de seu campo cultural disputada por São Paulo e Rio de Janeiro, capitais que dividem espaço ainda com cenas locais, como as de Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre, relativamente mais importantes que Córdoba e Rosario, por exemplo.
Apesar dessa diferença, tanto Buenos Aires como o eixo Rio-São Paulo tendem a funcionar como polos de atração de intelectuais, escritores e artistas provenientes de outras capitais e do interior. Isso ocorre não só porque tais capitais concentram as instâncias de difusão e consagração do campo cultural, mas porque representam oportunidades de inserção laboral em atividades conexas (setores editorial, jornalístico, publicitário, televisivo, teatral etc.). Não casualmente, dentre os brasileiros e argentinos convocados a Frankfurt, nota-se uma quantidade considerável dos que nasceram no interior e transladaram-se para essas capitais, onde desenvolvem boa parte de suas trajetórias intelectuais e literárias.
A questão da diversidade regional esteve presente nos dois casos. No planejamento da participação argentina, a embaixadora Magdalena Faillace havia declarado tais intenções: “Em 2010, mostraremos um país federal e todas as paisagens culturais estarão representadas” (Magdalena Faillace apud Reinoso, 2008REINOSO, Susana. Turquía aprovechó la gran vidriera de Francfort. La Nación, “Cultura”, p. 18, 19 Out. 2008. ). Contudo,
[...] a perspectiva da diversidade cultural esteve praticamente ausente dos debates sobre a participação argentina na feira, que se apresentava como um marco propício para colocar um tópico relevante para o mercado editorial do país na agenda pública (Bayardo & Mihal 2012BAYARDO, Rubens; MIHAL, Ivana. Argentina en la Feria del Libro de Frankfurt. Notas sobre política cultural. Publicar, Ano X, n. 13, p. 9-29, Dez. 2012.: 26).
Já durante a participação brasileira, o escritor cearense Ronaldo Correia de Brito gabou-se, com ironia, de ser o único nordestino que mora no Nordeste dentre os brasileiros presentes (ver Brito, 2013). Ao tema da diversidade regional somou-se o da diversidade étnica, já que a comitiva de autores brasileiros, à exceção de Paulo Lins e Daniel Munduruku, era fundamentalmente branca (ver, por exemplo, Rodrigues et alii, 2013RODRIGUES, Abelardo et alii. Nota de repúdio pela ausência de escritores negros na lista dos 70 autores brasileiros feira pelo Ministério da Cultura do Brasil para a Feira de Frankfurt 2013. 2013. Disponível em: <http://www.buala.org/pt/mukanda/ausencia-de-escritores-negros-brasileiros-na-feira-de-literatura-de-frankfurt>. Acesso em: 18 Ago. 2014.
http://www.buala.org/pt/mukanda/ausencia...
; O Globo, 2013).
Por fim, é preciso notar, nas comitivas brasileira e argentina, o considerável número de autores que se estabeleceram de forma passageira ou definitiva no exterior, onde traçaram trajetórias que pudessem ser reconvertidas em notoriedade e capital social em seu país de origem e em outros meridianos. É o caso da escritora Adriana Lisboa, do neurocientista Miguel Nicolelis e da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, brasileiros que residem nos Estados Unidos, país onde vive também a poeta e crítica argentina María Negroni; o poeta brasileiro Age de Carvalho, radicado em Viena; e a escritora franco-argentina Laura Alcoba, que mora em Paris. Muitos outros passaram por universidades estrangeiras, onde completaram seus estudos ou trabalharam como professores visitantes; atuaram como diplomatas (caso do poeta brasileiro João Almino); participaram de residências artísticas e literárias ou de estágios de pesquisa na Europa ou nos Estados Unidos. Também forjaram inserções internacionais não necessariamente atreladas ao deslocamento físico: traduzem e são traduzidos; estabelecem redes e parcerias com autores estrangeiros.
A análise comparada dos gêneros de ficção e não ficção que os autores das duas delegações representam dá uma ideia das ênfases de cada participação12 12 . O cálculo realizado baseou-se na atribuição de um gênero principal a cada indivíduo do universo amostral, descartando-se por ora os gêneros secundários da produção de cada um. Tal rotulação, por sua vez, baseou-se na quantidade de obras escritas em cada gênero, bem como nas categorias usadas pela crítica e pelos próprios autores para referir-se a si próprios. . O conjunto de autores dedicados principal ou exclusivamente aos gêneros literários clássicos (romance, contos, poesia e teatro) constitui maiorias expressivas nos dois casos: são 33 (58,9%) no caso argentino e 38 (54,3%) no caso brasileiro. Desse conjunto, os maiores contingentes são compostos pelos romancistas (32% e 30%), e os menores pelos dramaturgos (3,5% e 1,5%); poetas (14% e 10%) e contistas (8,9% e 12,8%), que ocupam posições intermediárias.
Essa preponderância dos romancistas, contistas e poetas no conjunto dos autores convidados é significativa da centralidade da literatura nas políticas de internacionalização do livro levadas a cabo pelos dois países, ênfase que se mostra ainda mais dominante no conjunto de obras escolhidas pelos respectivos programas de fomento à tradução. Esses números também expressam uma tendência geral da circulação internacional de ideias: países como Brasil e Argentina conseguem exportar principalmente sua literatura e têm mais dificuldade para difundir sua produção humanística e científica, campos hegemonizados pelos países centrais. Isso fica mais claro à luz dos dados dos mercados editoriais locais: a rubrica “literatura” corresponde a 26,4% dos títulos publicados na Argentina em 2013 (CAL, 2013) e a 8,05% dos títulos publicados no Brasil em 2010 (CBL, Snel & Fipe, 2011)13 13 . Os relatórios de produção editorial produzidos pela CBL e pelo Snel para os anos posteriores não apresentavam caracterização por gênero. ; não obstante, constitui a maioria dos livros que tais países logram difundir em outros idiomas.
Na sequência, os gêneros de não ficção (ensaio/humanidades, crítica literária, biografia/memória e ciências) representam 28,5% (16) e 24,3% (17) das comitivas da Argentina e do Brasil, respectivamente. Nesse universo, a diferença mais expressiva entre os dois países fica por conta da ênfase bem mais pronunciada da participação argentina na linha de biografias e memórias: cinco personalidades (8,9%), contra duas (2,8%) no caso brasileiro.
Este é, na verdade, um indicador da preocupação com o tema da recuperação do passado da ditadura militar e da luta pelos direitos humanos. É o que justifica, por exemplo, a presença de figuras relativamente alheias ao mercado editorial, como Estela de Carlotto (presidenta da associação Abuelas de Plaza de Mayo) e Elsa Oesterheld (viúva de Hector Germán Oesterheld)14 14 . Hector Germán Oesterheld se notabilizou pela HQ El eternauta. Tendo se envolvido com a militância montonera, foi sequestrado em 1977 pelas Forças Armadas, tornando-se um dos milhares de desaparecidos da última ditadura militar argentina, assim como suas quatro filhas, além de genros e netos. , bem como de escritores como Analía Argento (autora de De vuelta a casa: historias de hijos y nietos restituidos) e Ulises Gorini (que escreveu, entre outros livros do tipo, uma história das Madres de Plaza de Mayo em dois tomos).
Contudo, tal ênfase extrapola a rubrica da memória na comitiva argentina: também as obras ficcionais de Leopoldo Brizuela e Elsa Osorio e os ensaios de Eduardo Jozami trazem questões relativas à ditadura militar e ao retorno à democracia. Destacam-se ainda, no conjunto de intelectuais convidados para participar da feira, figuras como Ricardo Forster, Horácio González e Osvaldo Bayer, bastante próximos do ideário sustentado pelos governos Kirchner. No caso brasileiro, ainda que alguns dos intelectuais convidados a Frankfurt estejam publicamente identificados com o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) - caso da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl -, o conjunto parece não apresentar forte ênfase nas pautas defendidas nesse âmbito.
Por fim, as categorias histórias em quadrinhos e literatura infanto-juvenil encontram bem mais espaço na delegação brasileira: os praticantes de tais gêneros representam, respectivamente, 12,8% (nove) e 8,5% (seis) do universo de brasileiros, ao passo que na delegação argentina esses percentuais são de 8,9% (cinco) e 3,5% (dois). Ao considerar que a participação do setor de literatura infanto-juvenil na produção dos dois países é equivalente - cerca de 15% dos títulos publicados por ano -, tal diferença talvez possa ser remetida (a) à ênfase da participação argentina em temas “adultos”, como a questão da memória e (b) a uma estratégia do Brasil que tenha levado em conta a participação como país convidado na Feira do Livro Infantil de Bolonha, em 2014, quando o país usou a mesma logomarca e o mesmo lema da presença em Frankfurt.
Conclusões
Ao se referir à crescente hegemonia da língua inglesa na circulação transnacional de livros, Gustavo Sorá observa:
Todos os outros domínios linguísticos com certa mobilidade no mercado internacional se movem com um alto grau de intervenção de políticas estatais de cultura. Essa tendência cresce proporcionalmente à “globalização” da economia (Sorá, 2003_____. Traducir el Brasil: una antropologia de la circulación internacional de ideas. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003.: 222).
Isso parece explicar não só a importância que os editores dos países periféricos cada vez mais atribuem à ida a Frankfurt, mas também o emprego de recursos que garantam essa presença, de origem pública (dos governos e de seus órgãos de cultura), privada (dos próprios editores) e associativa (das câmaras do livro).
Esse é, portanto, o pano de fundo institucional sobre o qual essa feira germânica se consolida, nas últimas décadas, como um espaço-tempo onde
se montam os requisitos “aduaneiros” de efeitos decisivos na configuração dos mercados culturais e espaços de produção intelectual dos países da América Latina (Sorá, 2002_____. Frankfurt y otras aduanas culturales entre Argentina y Brasil: una aproximación etnográfica al mundo editorial. Cuadernos de Antropología Social, n. 15, p. 125-143, 2002.: 127).
É, também, o solo sobre o qual se assentam programas de tradução que buscam mitigar a estrutura altamente desigual e hierárquica de nações, línguas e literaturas da qual Frankfurt exerce a função tanto de símbolo como de ritual onde tal estrutura é reafirmada, contestada e disputada.
A presença dos países convidados na Feira de Frankfurt é um objeto que deixa entrever a clássica oposição bourdieusiana entre mercado e cultura. De modo mais específico, é possível encontrar aí duas “lógicas” opostas, mutuamente constitutivas, e duas “estratégias” a elas correspondentes, que disputam protagonismo na conformação geral dessa participação e na escolha dos autores convidados.
De um lado, está a lógica econômica, que opera pela maximização dos retornos financeiros. Na disputa pela “vitrine” de Frankfurt, tal lógica encarna-se nos agentes e nas tomadas de posição que tendem a privilegiar autores e obras com maior possibilidade de espraiamento massivo a outras línguas e países. É nessa chave que se pode entender o convite a autores de altas tiragens como Paulo Coelho e Silvia Plager, cuja difusão não depende de subsídios estatais. Ainda que tenha sua legitimidade questionada pela crítica literária, a eleição de Coelho pelo conselho curador da mostra Brasil 2013 certamente fundamenta-se na projeção internacional de suas obras. Em contrapartida, a recusa de Coelho em participar do evento, embora tenha como pretexto um posicionamento crítico em favor de autores não contemplados (o que lhe dá certo ar de desinteresse), mostra mais que tudo um considerável grau de desprezo pelas supostas benesses econômicas e simbólicas que sua presença lhe poderia render.
De outro lado, a lógica simbólica pressiona as decisões dos agentes envolvidos na direção dos critérios tradicionais de avaliação das obras. Embora o conjunto de convidados à feira seja de autores vivos e atuantes, sua eleição pressupõe expectativas, nem sempre anunciadas, de passar a fazer parte dos cânones nacionais. A Feira de Frankfurt, ainda que se configure sobretudo como evento comercial, é uma instância privilegiada de ingresso na “República Mundial das Letras” (Casanova, 2002CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.): a presença em Frankfurt significa, para os escritores, mais chances de ser traduzido para outras línguas, e particularmente as línguas centrais. Essa conquista, além de significar ganhos econômicos, pode ser posteriormente capitalizada no pleito a posições de prestígio no campo literário local.
Esse esquema dual, contudo, não esgota a análise, pois não dá conta de uma terceira lógica que atravessa as duas anteriores e a que poderíamos chamar de “política”. Esta se relaciona às disputas em torno do “nacional” e dos elementos que devem constituí-lo neste momento em que o país se mostra ao mundo. Daí provêm os distintos investimentos que caracterizaram ambas as presenças analisadas: as pressões por contemplar a diversidade regional do país; as disputas por representações calcadas no presente ou no passado, na literatura ou fora dela. Tais pressões, reguladas em cada caso por distintos graus de interdependência entre os intelectuais e o Estado, têm como efeito, para além de traduzir as respectivas literaturas nacionais no exterior, “traduzir” questões locais em um espaço de alcance global.
A consideração dessa lógica política e de suas relações com lógicas concorrentes parece-nos particularmente relevante para o estudo da produção simbólica de países como Brasil e Argentina, onde o Estado possui algum protagonismo como regulador e financiador das práticas simbólicas. Ainda que precise disputar com outros agentes a imposição de uma representação do “nacional”, seu papel articulador da presença em Frankfurt e o aporte financeiro que dá à empreitada o situa em posição privilegiada na definição de suas formas e conteúdo.
Este estudo comparado ilumina algumas especificidades da formação dos espaços editoriais brasileiro e argentino em duas escalas que são interdependentes: de um lado, as disputas em torno da construção da identidade nacional e da ocupação de posições de prestígio no campo cultural; de outro, um espaço internacional de confrontos, produzido pelos fluxos desiguais de edição e tradução entre diferentes países e línguas.
Ainda que não seja nosso objetivo explorar os condicionantes gerais dos dois espaços editoriais nacionais, tal discussão traz dois panos de fundo: a constituição histórica do setor editorial-livreiro nos dois países, moldada por fatores de ordem política, econômica, cultural e educacional; e a posição relativa de Brasil e Argentina nos respectivos mercados linguísticos (português e espanhol) e destes mercados no sistema internacional. Implica, portanto, considerar as semelhanças e as diferenças na capacidade de cada país de constituir públicos letrados e leitores, bem como de responder às demandas de públicos estabelecidos para além de suas fronteiras; o desenvolvimento de mercados com maior ou menor dependência do Estado, seja como regulador, seja como cliente ou patrocinador da atividade editorial; e o modo como os dois países lograram formar atores coletivos capazes de marcar presença nos assuntos de interesse setorial (instituições públicas e privadas, grupos de pressão etc.).
Ao se considerar esses fatores para o estudo contrastado de ambos os espaços editoriais, as presenças arquitetadas pelos dois países em Frankfurt nos parecem objetos frutíferos, pontos de partida e de chegada para a compreensão de tais injunções históricas, apreendidas em suas semelhanças e diferenças.
Referências
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Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no XXXVIII Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu (MG), 2014. Agradecemos a todos os colegas que colaboraram com sugestões naquela ocasião.
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. Segundo Gustavo Sorá (2003: 222), “depois da Segunda Guerra Mundial, em quase todos os mercados nacionais o inglês representa a origem de cerca de 75% dos títulos traduzidos”.
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. O autor distingue quatro grupos de línguas, segundo diferentes níveis de centralidade no sistema de traduções: posição hipercentral (inglês), central (alemão e francês), semicentral (sete ou oito línguas, dentre as quais o espanhol e, talvez, o português) e periférica (línguas que têm menos de 1% de participação no sistema, ainda que possuam grande número de falantes) (Heilbron, 2010: 2). Os dados oferecidos por Renato Ortiz (2004: 12ss.) são expressivos da hegemonia que o inglês adquire nas últimas décadas, seja como idioma estrangeiro ensinado nas escolas secundárias, seja como língua mais publicada e citada nos periódicos científicos.
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. A esse respeito, propõe Mollier: “o marco nacional desses estudos é, sem dúvidas, um espaço cômodo e útil para seu desenvolvimento, mas não deve ocultar as porosidades, as circulações de um território a outro, os múltiplos e multiformes intercâmbios que se podem haver produzido, as adaptações, traduções, cópias ou mutilações e censuras dos textos. É a partir desses aspectos que uma perspectiva transnacional dos fenômenos produz certamente o melhor resguardo frente aos riscos de fechamento ou cegueira que ameaçam todo pesquisador que trabalhe com um objeto tão proteico” (Mollier, 2012: 271).
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. Anteriormente, a partir de 1976 e com periodicidade bienal, a Feira de Frankfurt havia estabelecido o modelo dos “temas centrais”. Foram eles: “América Latina” (1976), “A criança e o livro” (1978), “África negra” (1980), “Religião” (1982), “Orwell 2000” (1984) e “Índia” (1988).
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5
. Ao contrário do Brasil, onde os editores estão unificados sob a Câmara Brasileira do Livro (CBL), na Argentina eles se dividem em duas câmaras: a Cámara Argentina del Libro (CAL), constituída por pequenas e médias editoras nacionais; e a Cámara Argentina de Publicaciones (CAP), que reúne sobretudo grandes editoras e conglomerados estrangeiros. O Comité Frankfurt 2010 (Cofra) reuniu também representantes destes organismos: Secretaría General de la Presidencia de la Nación, Jefatura de Gabinete de Ministros, Secretaría de Medios de Comunicación de la Nación, Secretaría de Cultura de la Nación, Secretaría de Turismo de la Nación, Fundación Exportar, Fundación El Libro e Sociedad Argentina de Escritores.
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6
.Nome que designa o Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto, equivalente ao Itamaraty. Na análise de Bayardo e Mihal (2012: 17), “a centralidade da Cancillería na Cofra aparecia como uma forma de priorizar o comércio internacional e a visibilidade do país no exterior através de um organismo que dispõe de instrumentos específicos para isso”.
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. O artigo 1º menciona, dentre outras diretrizes, as de “propiciar os meios para fazer do Brasil um grande centro editorial” e “competir no mercado internacional de livros, ampliando a exportação de livros nacionais”. Já o artigo 13 define a responsabilidade ao Poder Executivo de “instituir programas, em bases regulares, para a exportação e venda de livros brasileiros em feiras e eventos internacionais” (Brasil, 2003).
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8
. O documento-base do PNLL estabelece quatro eixos de ação. O último - “Desenvolvimento da economia do livro” - é composto de quatro subeixos, dos quais o derradeiro menciona a participação em feiras internacionais, programas de exportação de livros e apoio para a tradução de livros brasileiros (Brasil, 2006: 30). De modo complementar, o subeixo 4.3 (Apoio à cadeia criativa do livro) menciona “Programas de apoio à tradução” (idem, ibidem), sem definir se se trata de fomento à versão ou à tradução.
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9
. Constituído pelos seguintes executivos: presidente da FBN; presidente da Funarte; diretor do Departamento Cultural do MRE; diretor de Relações Internacionais do MinC; diretor do Centro Internacional do Livro da FBN; gerente executiva do projeto; presidente da CBL.
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10
. Isto evidencia a atualidade das análises que mostram como os dois países têm constituído historicamente suas identidades um em contraposição ao outro. Ver, a esse respeito, os aportes de Sorá (2003) e Grimson (2007).
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11
. Os outros autores brasileiros do conjunto nascidos nos anos 1970 - Andrea del Fuego (1975- ), Carola Saavedra (1973- ), Fernando Vilela (1973- ), Férrez (1975- ), Michel Laub (1973- ), Veronica Stigger (1973- ) - também contavam, no momento da feira, com algum grau de internacionalização: obras publicadas no exterior; participação em antologias publicadas fora do Brasil; períodos de vivência e estudos em outros países; prêmios internacionais no âmbito da literatura ou das artes.
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12
. O cálculo realizado baseou-se na atribuição de um gênero principal a cada indivíduo do universo amostral, descartando-se por ora os gêneros secundários da produção de cada um. Tal rotulação, por sua vez, baseou-se na quantidade de obras escritas em cada gênero, bem como nas categorias usadas pela crítica e pelos próprios autores para referir-se a si próprios.
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13
. Os relatórios de produção editorial produzidos pela CBL e pelo Snel para os anos posteriores não apresentavam caracterização por gênero.
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14
. Hector Germán Oesterheld se notabilizou pela HQ El eternauta. Tendo se envolvido com a militância montonera, foi sequestrado em 1977 pelas Forças Armadas, tornando-se um dos milhares de desaparecidos da última ditadura militar argentina, assim como suas quatro filhas, além de genros e netos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016
Histórico
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Recebido
29 Jun 2016 -
Aceito
03 Out 2016