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O mundo urbano cosmopolita e a autenticidade do campo: uma discussão sobre a adesão da classe operária rural francesa ao discurso de extrema-direita

COQUARD, Benoît. Ceux qui restent: faire sa vie dans les campagnes en déclin. Paris: La Découverte, 2019

A região francesa denominada atualmente de Grand-Est foi um centro industrial relevante. França e Alemanha disputaram um de seus territórios históricos - a Alsácia-Lorena - impactando o desenrolar das duas Guerras Mundiais (Hobsbawn, 1988; Furet, 1995FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.). Entretanto, o processo de desindustrialização e a deslocalização das empresas no capitalismo atual contribuíram para a decadência econômica em suas zonas rurais. A obra analisa os motivos de jovens adultos da classe trabalhadora permanecerem ali em uma pesquisa etnográfica realizada por Benoît Coquard, sociólogo do Intitut National de la Recherche Agronomique (Inra). O autor nasceu no meio rural do Grand-Est, um exemplo dos que se mudaram para a cidade. O trabalho sintetiza os seus principais temas de pesquisa: a juventude nas zonas rurais e os estudos de classe. O livro segue o argumento principal de sua tese de doutorado (Coquard, 2016) sobre a importância da construção de uma boa reputação na sociabilidade nas áreas rurais francesas e o impacto negativo da precariedade do mercado de trabalho para os seus moradores alcançarem o intento. A sua nova pesquisa amplia a discussão com a questão da adesão cada vez maior desses jovens aos discursos propagados pela extrema-direita política.

Parte de seus entrevistados participaram do movimento dos coletes-amarelos, que teve o seu período máximo de engajamento no final de 2018, com críticas às políticas fiscais implementadas pelo governo francês e a presença de discursos xenofóbicos. O primeiro capítulo descreve o perfil dos manifestantes em um dos atos realizados na região. A maioria nunca votou, apesar de demonstrar apoio ao partido de extrema-direita Front National1 1 O partido muda de nome para Rassemblement National em 2018. , e nem estiveram em qualquer manifestação antes. O autor relata a sua surpresa ao encontrar antigos informantes de sua pesquisa de doutorado ali. Os manifestantes apresentam um discurso contraditório em que criticam a interferência estatal na economia ao mesmo tempo que demandam uma melhor distribuição de riquezas e uma mudança mais ou menos radical da política. Para o autor, a imagem do Petit Blanc, caipiras racistas incapazes de se inserirem na vida cosmopolita citadina, não explica o comportamento do grupo. A dúvida levantada por uma de suas informantes (se alguém teria interesse por um livro sobre as suas vidas) prepara o leitor para o argumento central da obra. Os jovens que ficaram no campo não se sentem membros de um grupo mais amplo. Apesar de não ser citado pelo autor, o trabalho clássico de Durkheim (1999DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.) defende que a divisão do trabalho tem um efeito moralizador, ao fazer com que os indivíduos se integrem ao corpo social, o que se relaciona com o cenário descrito por Coquard de enfraquecimento dos laços comunitários com a falta de empregos nas zonas rurais em declínio econômico.

O capítulo seguinte aborda o sentimento de nostalgia de um passado que não vivenciaram. A defesa do empreendedorismo se atrela à percepção de que antigamente as pessoas tinham maior autonomia sobre as suas vidas. Coquard aponta para uma sociabilidade local baseada na manutenção de uma reputação respeitável. A ideia de liberdade expressada por eles decorre do êxito em alguém evitar que os outros façam comentários negativos sobre ele. A aceitação de alguém nos grupos locais mais seletivos e prestigiados, como os de caça, depende da permanência em um emprego. A decadência econômica aumentou o grupo de pessoas consideradas desajustadas2 2 Tradução livre da gíria francesa cassos. por não conseguirem uma ocupação estável, ou seja, há maiores possibilidades de atribuição de uma reputação negativa no momento atual.

Além disso, a obtenção de um posto nas zonas rurais não resulta do mérito pessoal, mas no estabelecimento de boas relações, seguindo as prerrogativas da sociabilidade local baseada nos laços de proximidade. Frequentemente, os homens buscam trabalhar assim que completam o ensino básico a fim de começar a solidificar vínculos com possíveis empregadores que os permitam obter uma melhor posição ocupacional no futuro. O terceiro capítulo descreve as opiniões dos moradores sobre a possibilidade de ir à universidade. Um caminho que se tornou mais factível após as políticas de expansão do ensino superior francês a partir da década de 1990. Grande parte qualifica esse percurso profissional como abstrato e instável, pois a escolha por uma carreira acadêmica implica em abandonar as relações de proximidade nas suas localidades de origem já que precisam se mudar para cursar uma universidade. Aqueles que não foram bem-sucedidos em conseguir uma carreira profissional nas grandes metrópoles relatam que perderam as suas amizades anteriores ao longo do período que passaram fora. Eles não conseguem se inserir no mercado de trabalho local, pois os seus diplomas universitários têm pouco valor em uma sociabilidade que valoriza as relações de proximidade. O autor, um exemplo daqueles que partiram para a cidade, relata que não manteve as suas relações de amizade oriundas de sua juventude e nem é tido como um modelo de sucesso entre os moradores da sua cidade natal. Aqueles que partiram se tornam esquecidos à medida que deixam de participar da vida cotidiana local. Então, as ocupações não manuais valorizadas em escala nacional são desprezadas nessas localidades3 3 Michèle Lamont (1992) critica o modelo bourdiesiano por generalizar a disputa envolvendo símbolos atrelados a uma alta cultura pelos parisienses para outros contextos culturais. A afirmação é comprovada no caso dos jovens do campo analisados por Coquard ao não se interessarem em disputar as ocupações mais valorizadas no âmbito nacional francês. .

A decisão de deixar o campo e cursar uma universidade pode ser qualificada como um percurso tipicamente feminino. Diferente do sentimento de nostalgia descrito no capítulo anterior, as moradoras nas zonas rurais não desejam ter a mesma trajetória de vida que a de suas mães. Ali, as mulheres vão deixando aos poucos a vida pública, perdendo mesmo o contato com os seus amigos da juventude, quando se casam. Isso gera dificuldades em obter bons postos de trabalho na região por não terem um grande círculo de amizade, além dos empregos considerados como tipicamente femininos serem mais precarizados do que os masculinos. Por isso, segundo o autor, as mulheres são as que mais tentam ir embora dali apesar da possibilidade de terem que retornar no caso de não se estabelecerem na cidade4 4 O exemplo das mulheres nas zonas rurais francesas segue a tendência mundial da presença maior das mulheres em relação aos homens no ensino superior nos últimos anos (Shavit, Arum & Gamoran, 2007). .

No final do capítulo três, Coquard apresenta o caso dos que são descriminalizados por sua origem familiar, normalmente devido a um caso de escândalo público anterior. Eles não têm condições de entrar no mercado local em razão da baixa reputação da família e nem recursos financeiros para se manterem na cidade durante o curso universitário decorrente da precariedade econômica de seus parentes.

Com a falta de postos de trabalho, os entrevistados expressam alguns caminhos de (i)migração considerados viáveis. O capítulo quatro descreve o sonho de conseguir obter um emprego na Suíça devido a um cenário econômico considerado mais estável do que em suas cidades de origem e a valorização do trabalho como bombeiro em Paris. Ambas as opções têm em comum, além da compatibilidade com o seu baixo nível educacional, o desejo de não abandonar os seus laços de proximidade. O sonho do “eldorado suíço” se relaciona com a possibilidade de levar os seus amigos para lá em caso de sucesso e continuar a morar no campo, apesar de geralmente essa trajetória não se concretizar. Já o trabalho de bombeiro permite retornar à localidade natal devido a grande quantidade de dias folgados.

Os dois capítulos subsequentes analisam mais densamente a sociabilidade local. O abandono dos espaços públicos resulta da influência na deslocalização dos postos de trabalho nas relações experienciadas pelos jovens no Grand-Est rural. A casa se torna o principal ponto de encontro, em detrimento aos bistrôs e aos clubes de baile. As pessoas deixam o centro das pequenas localidades e passam a investir em casas autoconstruídas a fim de receber os seus amigos no tempo de lazer. Como grande parte trabalha em localidades no entorno, o círculo de amizade se reduz aos vínculos construídos na juventude com a incorporação gradual dos colegas de profissão. Os entrevistados valorizam a ideia de chez soi 5 5 Em tradução livre, o termo designa a propriedade de uma casa. Os entrevistados o mobilizam com um sentido semelhante à expressão em português que delimita as pessoas que são de casa. em que um grupo se percebe como isolado das outras esferas da sociedade. Para eles, os seus companheiros são aqueles com quem eles podem contar. Essa concepção surge como defesa contra a precarização dos postos de trabalho, pois são os verdadeiros amigos que evitam que os outros saibam que um membro está desempregado ou ocupa um posto de trabalho precário em contraposição aos langues de pute 6 6 Possui um sentido próximo ao de língua grande ou linguarudo em português, ou seja, o vocábulo designa aqueles que fazem fofoca e geram desavenças. , aqueles que traem a confiança de alguém.

Mesmo se uma pessoa tem uma reputação respeitável, ela deve participar ativamente das atividades do grupo para ser aceita, incluindo a maior valorização dos amigos do que as obrigações conjugais. Coquard afirma que os eventos sociais na residência de um membro são fortemente controlados pelos homens; eles se divertem e as mulheres ficam sentadas no sofá verificando se o marido irá falar sobre algum assunto íntimo que possa prejudicar a reputação do casal, em caso de excesso de bebida. O autor atribui a diferença de gênero à sociabilidade local, que impõe às mulheres o abandono de um grupo ao qual pertencem, em caso de casamento ou de separação, e, sobretudo, à falta de empregos estáveis para elas - uma condição fundamental para construir uma imagem respeitável. E, no momento atual, parte significativa dos membros de um círculo de amizade são compostos por aqueles que se conheceram no trabalho. A desvalorização do espaço público resultou na invisibilização ainda maior das mulheres, pois alguns eventos direcionados a elas, como os concursos de miss, desapareceram com a decadência econômica. Portanto, os encontros em casa controlados pelos homens se tornaram praticamente a única oportunidade de convívio social nas localidades rurais atuais do Grand-Est.

No final do livro, Coquard retorna à questão sobre a posição política dos jovens que permanecem no campo. Para o autor, eles estabelecem uma solidariedade seletiva ao dividir aqueles com quem podem contar do restante do corpo social. Coquard afirma que os jovens adultos percebem muitas vezes os seus patrões como integrantes de um mesmo grupo que o seu, membros de uma mesma classe social. Ele atribui esse comportamento à desconfiança gerada pela concorrência por empregos. Grande parte dos membros de um grupo não disputam um mesmo posto de trabalho. A solidariedade local baseada em uma seleção em que todos expressam os mesmos gostos e um mesmo estilo de vida favorece a adesão ao discurso propagado pela extrema-direita. Coquard apresenta o caso de um casal que expressa recorrentemente concepções racistas, mas defendem dois amigos de origem magrebina com a justificativa de que eles são de confiança e não reivindicam uma identidade diferente dos demais.

O livro mostra os efeitos do capitalismo atual para a emergência de grupos mais restritos. O problema pode ser analisado para além dos efeitos provocados pela economia. George Simmel (1971a______. Group expansion and the development of individuality. In: LEVINE, Donald (Org.). On individuality and social forms. Chicago, IL; London: The University of Chicago Press, 1971a.) percebe um fenômeno trans-histórico gerado com a criação de uma sociedade cada vez mais ampliada e cosmopolita. Há um ganho de liberdade, termo definido por Simmel no caso de um indivíduo se perceber como um ser único. As mudanças da sociabilidade nas zonas rurais ampliaram as escolhas de seus moradores, como o caso das mulheres que podem seguir uma carreira universitária, rompendo com os laços locais em caso de sucesso. Porém, estar em um ambiente cosmopolita, como na caracterização simmeliana (1971b) sobre a cidade, pressupõe a mobilização de certas metafísicas universais. O conceito de investimento de forma7 7 O termo forma indica as maneiras de cooperação e coordenação entre os indivíduos (Simmel, 2006). , elaborado por Laurent Thévenot (1986THÉVENOT, Laurent. Les investissements de forme. In: ______ (Org.). Conventions économiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.), indica que as pessoas para generalizar as suas relações precisam atender a critérios universalmente aceitos. A ação dos atores se fundamenta através de um repertório pré-estabelecido por uma categoria (como operário ou patrão) quando se relacionam em situações não definidas (Thomas, 1966THOMAS, William I. Unadjusted girl: with cases and standpoint for behavior analysis. Nova York: Harper and Row, 1966.) pelos seus vínculos de proximidade. Os entrevistados por Coquard rejeitam a ideia de morar em Paris por considerarem a vida na capital fria e impessoal. Eles não percebem a mesma autenticidade das relações construídas com aqueles com quem podem contar. A análise simmeliana nos auxilia a compreender melhor a maior valorização das relações interclasse em detrimento das de intraclasse. Além da intensa competição por um posto, os jovens do campo se sentem mais próximos aos patrões por conviverem com eles, criando um vínculo que não possuem com outros membros da classe operária8 8 Um fenômeno percebido por Max Weber (1982) ao diferenciar as classes sociais, concebidas pelas condições objetivas que afetam a vida dos indivíduos, dos estamentos, que emergem do sentimento de formar uma comunidade ao compartilhar um mesmo estilo de vida. . O caso dos jovens rurais franceses nos leva ao seguinte problema: há uma solução possível entre o desejo de viver em liberdade em um mundo mais inclusivo e o de pertencer a um grupo singular com o qual construímos relações que percebemos como autenticas?

Referências

  • COQUARD, Benoît. Sauver l’honneur: appartenances et respectabilités populaires en milieu rural. Tese (Doutorado em Sociologia) - Université de Poitiers, 2016.
  • DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.
  • HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • LAMONT, Michèle. Money, moral & manners: the culture of the French and the American upper-middle class. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 1992.
  • SIMMEL, George. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
  • ______. Group expansion and the development of individuality. In: LEVINE, Donald (Org.). On individuality and social forms. Chicago, IL; London: The University of Chicago Press, 1971a.
  • ______. The Metropolis and Mental Life, in: LEVINE, Donald (Org.). On individuality and social forms. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1971b.
  • SHAVIT, Yossi; ARUM, R; GAMORAN, Adam (Orgs.). Stratification in higher education. Stanford, CA: Stanford University Press, 2007.
  • THÉVENOT, Laurent. Les investissements de forme. In: ______ (Org.). Conventions économiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.
  • THOMAS, William I. Unadjusted girl: with cases and standpoint for behavior analysis. Nova York: Harper and Row, 1966.
  • WEBER, Max. Classe, estamento e partido. In: GERTH, H.; WRIGHT MILLS, C. (Orgs.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1982.
  • 1
    O partido muda de nome para Rassemblement National em 2018.
  • 2
    Tradução livre da gíria francesa cassos.
  • 3
    Michèle Lamont (1992) critica o modelo bourdiesiano por generalizar a disputa envolvendo símbolos atrelados a uma alta cultura pelos parisienses para outros contextos culturais. A afirmação é comprovada no caso dos jovens do campo analisados por Coquard ao não se interessarem em disputar as ocupações mais valorizadas no âmbito nacional francês.
  • 4
    O exemplo das mulheres nas zonas rurais francesas segue a tendência mundial da presença maior das mulheres em relação aos homens no ensino superior nos últimos anos (Shavit, Arum & Gamoran, 2007).
  • 5
    Em tradução livre, o termo designa a propriedade de uma casa. Os entrevistados o mobilizam com um sentido semelhante à expressão em português que delimita as pessoas que são de casa.
  • 6
    Possui um sentido próximo ao de língua grande ou linguarudo em português, ou seja, o vocábulo designa aqueles que fazem fofoca e geram desavenças.
  • 7
    O termo forma indica as maneiras de cooperação e coordenação entre os indivíduos (Simmel, 2006).
  • 8
    Um fenômeno percebido por Max Weber (1982) ao diferenciar as classes sociais, concebidas pelas condições objetivas que afetam a vida dos indivíduos, dos estamentos, que emergem do sentimento de formar uma comunidade ao compartilhar um mesmo estilo de vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2021
  • Aceito
    03 Mar 2021
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