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HISTÓRIAS PARA DESCOLONIZAR O PENSAMENTO

HISTORIAS PARA DESCOLONIZAR EL PENSAMIENTO

STORIES TO DECOLONIZE THOUGHT

Leslão, J.. (2015). A princesa e a costureira.Rio de Janeiro: Metanoia.

No final de 2015 fomos presenteada(o)s com o lançamento do livro infanto-juvenil A princesa e a costureira, o primeiro conto de fadas brasileiro que narra uma história de amor entre suas protagonistas. O livro conta a história da princesa Cíntia, moradora do reino de EntreRios, prometida em casamento para o príncipe do reino vizinho. Preocupada com a fixidez e inexorabilidade da promessa, sua fada madrinha resolve lançar um encantamento no dia do nascimento de Cíntia. Nele, a princesa somente se casaria com a pessoa pela qual estivesse, de fato, apaixonada. Para tanto, receberia um sinal - um toque em suas costas. Até aí uma história como outra qualquer, não fosse o encantamento estipulado pela fada que barra o ordenamento pretensamente natural dos acontecimentos. Esse gesto é responsável por mudar o rumo da narrativa que há séculos é contada para as crianças: quem toca as costas da princesa e a faz enamorar-se não será o príncipe, mas sim a costureira responsável por confeccionar seu vestido de casamento, Isthar. O momento em que isso acontece é assim descrito pela autora, a psicóloga e escritora Janaína Leslão:

Uma luz tomou conta de todo o ambiente. Um redemoinho de vento se formou na sala, girando Cíntia e Isthar junto com as flores que ali estavam. As duas deram-se as mãos por medo e, passado o susto, continuaram assim, girando e sorrindo, desfrutando da magia daquele encontro. (Leslão, 2015Leslão, J. (2015). A princesa e a costureira. Rio de Janeiro: Metanoia., p. 17)

A trama, a partir daí, consiste nas tentativas de ambas de provar que aquilo que sentiam era “tão amor quanto outros amores” (p. 19). Para isso, enfrentam desafios, são encerradas em altas e obscuras torres, jogadas na lama, isoladas e quase vencidas, não fosse a obstinação em fazer valer a dignidade do sentimento vivido e a solidariedade de algumas pessoas em auxiliá-las: parentes, comunidade, o próprio príncipe para o qual Cíntia estava destinada. A narrativa, pois, é feita de agenciamento e resistência e vale ler o livro para saber como a princesa e a costureira conseguem criar brechas e convencer a toda(o)s de que seu amor é tão legítimo quanto os demais.

Gostaria de deter-me um pouco, agora, nos desdobramentos que o lançamento desse livro causou: contando com financiamento coletivo obtido pelo site Catarse para o pagamento de um ilustrador e lançado por uma editora carioca, a notícia do lançamento do livro espalhou-se pelas redes sociais e pelo perfil da autora, criado na rede social Facebook com o intuito de divulgar a obra, de maneira contundente. Em pouco tempo, inúmeros acessos mostravam que o tema não deixava ninguém indiferente. Após 48 horas da postagem que anunciava a chegada do livro, um milhão e meio de pessoas havia visualizado a publicação. As reações passavam por ataques e ofensas pessoais de conteúdo racista (a princesa era negra) e homofóbico e, sobretudo, multiplicaram-se convites para a apresentação do livro em espaços diversos (unidades do SESC, prefeituras, centros de convivência, redes de televisão, jornais de grande porte, blogs, vlogs e universidades de dentro e de fora do país). Um grupo de teatro de Santo André (SP) - Teatro da Conspiração -, interessado no tema, decidiu fazer uma peça inspirada na história de Cíntia e Isthar e, em novembro de 2015, foi ganhador do prêmio lançado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC), voltado para discussões referentes à temática da promoção da diversidade sexual. Com o recurso obtido através da premiação, a peça, que estreou no mês de abril desse ano, tem previsão de ser apreciada nas cidades paulistas de Santo André, São Bernardo do Campo, Guarujá e Santos. Com a posterior aprovação no edital ProArt Educação da cidade de São Paulo, em abril de 2016 a peça foi cadastrada para eventuais apresentações nos equipamentos de educação administrados pelo governo municipal.

A partir das repercussões provocadas pelo livro A princesa e a costureira, parece-me possível afirmar que essa narrativa tem atuado como uma tecnologia contra-hegemônica, uma escritura de resistência a serviço da descolonização do pensamento, uma ferramenta que permite a abertura de subjetividades “outras”, de falas plurais sobre as existências das diferentes mulheres, sejam elas “cis”, “trans” ou “tecnos1 1 De acordo com Preciado (2014b), mulheres e homens “cis” conservam o gênero que lhes foi designado no momento do nascimento, ao passo que mulheres e homens “trans” e “tecno” apelam para tecnologias hormonais, cirúrgicas e/ou legais para modificar essa designação. De qualquer maneira, cada um desses estatutos de gênero é tecnicamente produzido, uma vez que todos eles dependem de métodos de reconhecimento visual, produção performativa e controle morfológico comuns. e, por isso mesmo, acaba agindo como um importante dispositivo capaz de discutir lesbofobias, homofobias, transfobias e também práticas de resistências. Aqui, vale lembrar De Lauretis (1994De Lauretis, T. (1994). A tecnologia do gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (pp. 206-242). Rio de Janeiro: Rocco.), para quem o gênero, enquanto cruzamento de representações discursivas e visuais, emana de diferentes dispositivos institucionais que, é claro, incluem a família, a educação, a religião, encontrando-se também em fontes nem sempre tão evidentes assim, como a literatura, o cinema, as artes, de modo geral.

A história de Cíntia e Isthar inscreve-se como uma subversão político-cultural, capaz de abrir um importante caminho no qual se revele, em espaços múltiplos de discussão com crianças, jovens, educadora(e)s e profissionais de outros campos de atuação, que o sexo, bem como as sexualidades e o gênero, é uma tecnologia sociopolítica, uma ficção somatopolítica a serviço da dominação heterossocial, como demonstra Preciado (2014aPreciado, B. (2014a). Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições.). Assim, melhor definir a heterossexualidade como um regime político, e não uma mera prática sexual (Preciado, 2014bPreciado, B. (2014b). Testo yonqui: sexo, drogas y biopolítica. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós.) a fim de colocar às claras o modo como se dão as domesticações de corpos e subjetividades. Um regime político cujo fim é mostrar que identidades “outras” (homossexuais, bissexuais) não passam de acidentes que desajustam a maquinaria heteronormativa e, como tal, desarranjam a estabilidade das práticas que produzem as sexualidades como supostamente naturais. Discutir o regime político instaurado pela heteronormatividade e as violências resultantes disso a partir de uma obra literária e com o maior número de pessoas possível é importante, pois sabemos que, em nosso país, apesar das conquistas dos últimos anos, é possível observar como lésbicas, transexuais, travestis e gays são colocados às margens das discussões e das políticas públicas que deveriam, através do reconhecimento político e de um eficaz ordenamento jurídico, garantir seus direitos enquanto cidadã(o)s, protegendo-a(o)s. Ao contrário disso, o que se vê é que tais debates acabam sendo colocados num âmbito secundário, como algo que não é tão sério, e as políticas, por sua vez, funcionam de maneira fragmentada, a depender da boa vontade de gestora(e)s e administradora(e)s (Mello, Brito, & Maroja, 2012Mello, L., Freitas, F., Pedrosa, C., & Brito, W. (2012). Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Bagoas, 7, 99-122.; Mello, Freitas, Pedrosa, & Brito, 2012Mello, L., Brito, W. & Maroja, D. (2012). Políticas públicas pra a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu, 39, 403-429.).

O lançamento dessa obra aponta para a urgente necessidade de trazermos práticas, materiais e discursos que visem à descolonização epistêmica e à descolonização do ser nos diversos espaços de atuação nos quais adentramos enquanto psicóloga(o)s sociais, lembrando que nosso trabalho traz em si uma dimensão educativa que independe da instituição e do lugar onde o executemos. Se precisamos de uma descolonização é porque vivemos num sistema no qual a colonialidade é imperativa. A colonialidade insere-se numa geopolítica do conhecimento que gera a ideia de que certos povos, línguas, continentes e histórias são inferiores a outros (Quijano, 2014Quijano, A. (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder (pp. 285-330). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO.). Ela possui uma lógica, fundada no século XVI e que tem o eurocentrismo em sua base, operando em domínios significativos da experiência humana, como o social, por meio do controle do gênero e da sexualidade e também pelo domínio epistêmico e subjetivo, através do controle do conhecimento e da subjetividade (Mignolo, 2007Mignolo, W. D. (2007). La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Editorial Gedisa.). A descolonização, por sua vez, tem em vista superar os falsos universais trazidos por uma condição epistemológica eurocêntrica que estabelece um único ponto de vista sobre as perguntas que fazemos e as possíveis respostas que formulamos para elas, invisibilizando e silenciando conhecimentos “outros” (Grosfoguel, 2012Grosfoguel, R. (2012). Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial. Contemporânea, 2(2), 337-362.). Ela implica o reconhecimento de que o conhecimento não é neutro, muitas vezes expressando a perspectiva de determinados grupos que se encontram em arenas hegemônicas; daí a necessidade de nos indagarmos frequentemente por que contamos algumas histórias e não outras. Em outro trabalho (Oliveira & Rocha, 2016Oliveira, E. C. S. & Rocha, K. A. (2016). Sobre Cafundós, confins, fronteiras: contações de histórias sobre diversidade sexual. Psicologia & Sociedade ,28(1), 94-104. 10.1590/1807-03102015v28n1p094.
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), apontou-se para o fato de que as histórias contadas por adulta(o)s para as crianças nunca são inocentes. Elas são responsáveis por carregar e também por invibilizar as relações de poder que determinam quais personagens terão suas vidas exibidas e quais serão lançadas ao silêncio. Descolonizar, desse modo, tem a ver com permitir que todas as histórias venham à luz, que todas as vidas sejam dignas de serem relatadas.

O livro escrito por Leslão não provocou tanta repercussão por acaso. Ele mostra a urgente necessidade de que espaços que discutam temas como esse sejam inaugurados, revela o quanto as pessoas pedem por isso. Mas será que estamos atenta(o)s para esse tipo de demanda? No que concerne à psicologia social, tentando responder à questão: “o que faz uma psicologia social?”, Lopes e Nascimento (2016Lopes, L. P. & Nascimento, A. R. A. (2016). O que faz uma psicologia social? Intervenção na psicologia social brasileira. Psicologia & Sociedade, 28(1), 14-25.), ao analisarem os anais dos encontros nacionais da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) referentes aos anos de 2007, 2009 e 2011, colocam-nos alguns dados dignos de reflexão. Em relação ao público-alvo das pesquisas, intervenções e práticas contempladas pela psicologia social, é inexpressivo o número daquelas que tomam como preocupação as mulheres (8% dos trabalhos apresentados); número que se reduz no que diz respeito aos trabalhos que tomam a população LGBT como foco (apenas 3%). Ainda que a psicologia social tome a si a necessidade de trabalhar com o “cotidiano dos grupos concretos, tais como as instituições, as organizações, os movimentos sociais e políticos” (Lopes & Nascimento, 2016, p. 2), chama a atenção a ausência de trabalhos que discutam questões tão prementes. Em texto recente, Mayorga (2014Mayorga, C. (2014). Algumas contribuições do feminismo à psicologia social. Athenea Digital, 14(1), 221-236.) fala sobre a importância de a psicologia social voltar-se para a emergência da(o)s nova(o)s atrizes e atores presentes na sociedade brasileira contemporânea. No entanto, em nosso ver, isso ainda está longe de acontecer, se levarmos em conta a pesquisa acima realizada. Necessitamos, pois, de uma psicologia social que não apenas dê visibilidade às problemáticas em torno das populações marginalizadas (como mulheres, negras/os, lésbicas, travestis, transexuais, gays, indígenas, dentre outros), como também que formule teorias para melhor atendê-las e, por isso mesmo, devemos levar em conta, como bem ensina Grosfoguel (2012Grosfoguel, R. (2012). Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial. Contemporânea, 2(2), 337-362.), que nós produzimos conhecimento a partir de uma geopolítica responsável por determinar nosso lugar especial e corporal e, sendo assim, as experiências que vamos visibilizar em nossas intervenções dependem diretamente do lugar social que ocupamos no mundo. Tais espaços representam estratégias políticas, culturais e sociais de sujeitos subalternos que, a partir de posições de poder subordinadas, inserem epistemologias e cosmologias ao eurocentrismo como resistência às relações de poder existentes. Para tanto, necessitam de perspectivas interculturais que podem ser compreendidas como espaços de negociação e de tradução nos quais as desigualdades sociais, econômicas e políticas, bem como as relações de poder, não devem ser mantidas ocultas, mas sim explicitadas (Walsh, 2008Walsh, C. (2008). Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado, Tabula Rasa, 9, 131-152.).

A obra de Leslão (2015Leslão, J. (2015). A princesa e a costureira. Rio de Janeiro: Metanoia.) coloca-se, pois, no outro lado das relações de poder, como ponto de resistência e, como tal, sua disseminação pode auxiliar no estabelecimento de rupturas ao fazer frente aos poderes hegemônicos. Pois, lembrando Foucault (1988Foucault, M. (1988). A história da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.), ao falar das resistências presentes em toda relação de poder, pode-se afirmar que elas, às vezes, provocam rebeliões em grupos ou indivíduos, sendo capazes de inflamar regiões de seus corpos bem como instantes de suas vidas. Esperamos, com isso, que esse livro, enquanto ponto de resistência móvel e transitório, sirva para ser mais uma ferramenta que, somando-se àquelas que, arduamente, foram construídas até agora, consiga liberar as pessoas das históricas e, tantas vezes massacrantes, narrativas que se contam em seu lugar.

Referências

  • De Lauretis, T. (1994). A tecnologia do gênero. In H. B. Hollanda (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (pp. 206-242). Rio de Janeiro: Rocco.
  • Foucault, M. (1988). A história da sexualidade: a vontade de saber Rio de Janeiro: Edições Graal.
  • Grosfoguel, R. (2012). Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial. Contemporânea, 2(2), 337-362.
  • Mignolo, W. D. (2007). La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial Barcelona: Editorial Gedisa.
  • Preciado, B. (2014a). Manifesto contrassexual São Paulo: n-1 edições.
  • Preciado, B. (2014b). Testo yonqui: sexo, drogas y biopolítica Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós.
  • Leslão, J. (2015). A princesa e a costureira Rio de Janeiro: Metanoia.
  • Lopes, L. P. & Nascimento, A. R. A. (2016). O que faz uma psicologia social? Intervenção na psicologia social brasileira. Psicologia & Sociedade, 28(1), 14-25.
  • Oliveira, E. C. S. & Rocha, K. A. (2016). Sobre Cafundós, confins, fronteiras: contações de histórias sobre diversidade sexual. Psicologia & Sociedade ,28(1), 94-104. 10.1590/1807-03102015v28n1p094.
    » https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p094
  • Quijano, A. (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder (pp. 285-330). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO.
  • Mayorga, C. (2014). Algumas contribuições do feminismo à psicologia social. Athenea Digital, 14(1), 221-236.
  • Mello, L., Brito, W. & Maroja, D. (2012). Políticas públicas pra a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu, 39, 403-429.
  • Mello, L., Freitas, F., Pedrosa, C., & Brito, W. (2012). Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Bagoas, 7, 99-122.
  • Walsh, C. (2008). Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado, Tabula Rasa, 9, 131-152.
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    De acordo com Preciado (2014b), mulheres e homens “cis” conservam o gênero que lhes foi designado no momento do nascimento, ao passo que mulheres e homens “trans” e “tecno” apelam para tecnologias hormonais, cirúrgicas e/ou legais para modificar essa designação. De qualquer maneira, cada um desses estatutos de gênero é tecnicamente produzido, uma vez que todos eles dependem de métodos de reconhecimento visual, produção performativa e controle morfológico comuns.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2016
  • Aceito
    21 Abr 2017
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