Acessibilidade / Reportar erro

O debate cosmopolitismo x comunitarismo sobre direitos humanos e a esquizofrenia das relações internacionais

The cosmopolitanism x comunitarianism debate on human rights and the esquizofreny of the international relations

Resumos

A consideração do Estado Nacional como o ator privilegiado nas Relações Internacionais a partir da criação do Sistema de Westphalia apresenta uma esquizofrenia congênita. Os princípios clássicos das Relações Internacionais - autodeterminação dos povos e não-intervenção - sugerem, por um lado, um direito de cada Estado se autodeterminar soberanamente e, por outro, um direito dos Estados de não sofrerem intervenção dos outros Estados. O primeiro direito possui uma natureza mais excludente; o segundo, mais includente. Só o próprio Estado garante a sua autodeterminação e, assim, exclui os outros; ao passo que a não-intervenção depende de todos os Estados a respeitarem - isso inclui os outros. O debate acerca dos direitos humanos nas Relações Internacionais segue a mesma lógica. Cosmopolitas defendem uma inclusão; comunitaristas, uma exclusão. São direitos que se excluem e fazem das Relações Internacionais algo esquizofrênico. Rawls tenta resolver este dilema com o seu "Direito dos Povos", mas fracassa. A proposta talvez então seja pensar Relações Internacionais por outro viés, a partir do pós-modernismo, pelo qual pensamos a satisfação de demandas globais humanas que ultrapassam as fronteiras criadas em Westphalia por outra conformação política que não o Estado Nacional.

Direitos Humanos; Cosmopolitismo; Comunitarismo; Estado Nacional


Considering the Nation State as the privilegied actor in International Relations since Westphalian System points a congenital esquizofreny. The International Relations classical principles - self-determination and non-intervention - sugests, by one side, a right of each State self-determinate itself sovereingtly and, by other side, a right of not being object of intervention. The first right excludes, the second, includes. Just the State guarrantees its self-determination and doing so, excludes the others; meanwhile the non-intervention depends on the other States respect. The debate about human rights in International Relations follows the same logic. Cosmopolitans defends inclusion; comunitarians, exclusion. These are rights that exlcude each other and make the International Relations something esquizofrenic. Rawls tries to work out this dilemma, but he fails. The proposal may be thinking International Relations from another point of view, from post-modernism, by which we think the satisfaction of human global demands that overcome the national boundaries made in Westphalia by a political configuration other than the Nation State.

Human Rights; Cosmopolitanism; Comunitarianism; Nation State


ARTIGOS

O debate cosmopolitismo x comunitarismo sobre direitos humanos e a esquizofrenia das relações internacionais

The cosmopolitanism x comunitarianism debate on human rights and the esquizofreny of the international relations

Leonardo Carvalho Braga

Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), coordenador e professor da Graduação em Relações Internacionais dos Institutos Superiores de Ensino La Salle (UniLaSalle). E-mail: leonardo_braga @hotmail.com

RESUMO

A consideração do Estado Nacional como o ator privilegiado nas Relações Internacionais a partir da criação do Sistema de Westphalia apresenta uma esquizofrenia congênita. Os princípios clássicos das Relações Internacionais – autodeterminação dos povos e não-intervenção – sugerem, por um lado, um direito de cada Estado se autodeterminar soberanamente e, por outro, um direito dos Estados de não sofrerem intervenção dos outros Estados. O primeiro direito possui uma natureza mais excludente; o segundo, mais includente. Só o próprio Estado garante a sua autodeterminação e, assim, exclui os outros; ao passo que a não-intervenção depende de todos os Estados a respeitarem – isso inclui os outros. O debate acerca dos direitos humanos nas Relações Internacionais segue a mesma lógica. Cosmopolitas defendem uma inclusão; comunitaristas, uma exclusão. São direitos que se excluem e fazem das Relações Internacionais algo esquizofrênico. Rawls tenta resolver este dilema com o seu "Direito dos Povos", mas fracassa. A proposta talvez então seja pensar Relações Internacionais por outro viés, a partir do pós-modernismo, pelo qual pensamos a satisfação de demandas globais humanas que ultrapassam as fronteiras criadas em Westphalia por outra conformação política que não o Estado Nacional.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Cosmopolitismo – Comunitarismo – Estado Nacional

ABSTRACT

Considering the Nation State as the privilegied actor in International Relations since Westphalian System points a congenital esquizofreny. The International Relations classical principles – self-determination and non-intervention – sugests, by one side, a right of each State self-determinate itself sovereingtly and, by other side, a right of not being object of intervention. The first right excludes, the second, includes. Just the State guarrantees its self-determination and doing so, excludes the others; meanwhile the non-intervention depends on the other States respect. The debate about human rights in International Relations follows the same logic. Cosmopolitans defends inclusion; comunitarians, exclusion. These are rights that exlcude each other and make the International Relations something esquizofrenic. Rawls tries to work out this dilemma, but he fails. The proposal may be thinking International Relations from another point of view, from post-modernism, by which we think the satisfaction of human global demands that overcome the national boundaries made in Westphalia by a political configuration other than the Nation State.

Keywords: Human Rights – Cosmopolitanism – Comunitarianism – Nation State

Considerações Iniciais

Propomos aqui um exercício de se pensar o que são as Relações Internacionais e propomos fazê-lo do ponto de vista do direito internacional, em especial dos direitos humanos como objeto da filosofia política. Nossa observação é a de que as Relações Internacionais são caracterizadas por uma gênese esquizofrênica, quando, pelo sistema westphaliano de Estados, a exclusão e a inclusão são práticas artificiais e problemáticas.

A questão pontual de que trata este trabalho diz respeito aos direitos humanos como uma derivação de direitos inerentes à própria humanidade e direitos humanos elaborados em contextos sociais espaço-temporalmente definidos. O debate sobre o universal e o particular concernente aos direitos humanos é, assim, o centro de nossa atenção, e nele a discussão destas categorias como constructos do real e do ideal.

Compreendemos haver um problema ainda não resolvido sobre o referido tema, mas não pretendemos resolvê-lo, se não problematizá-lo, especialmente porque nos parece que o cerne do problema não está na compreensão dos direitos humanos, mas na compreensão do que são as Relações Internacionais.

Primeira Problematização: O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo nas Relações Internacionais

A discussão dos direitos humanos nas Relações Internacionais e, de modo especial, a discussão da sua universalização encontram no debate cosmopolitismo x comunitarismo sua expressão maior de problematização e de tentativa de respostas. Este debate, porém, eventualmente, conduz a discussão dos direitos humanos mais a uma situação inconclusiva, em função do grau de auto-exclusão que as duas correntes de pensamento se impõem, do que a uma perspectiva de proposta, pelo menos teórica, que favoreça uma compreensão conciliadora dos direitos humanos.

A Teoria Normativa de Relações Internacionais propõe-se exatamente a fornecer possibilidades teóricas sobre o respectivo debate, mesmo que sem alcançar uma resposta definitiva para esta problemática.

O debate nas Relações Internacionais entre cosmopolitas e comunitaristas encontra no pensamento do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002), ou mais propriamente no uso que alguns estudiosos fazem de suas idéias, a defesa da postura cosmopolita. O próprio Rawls entra no debate posteriormente, oferecendo uma resposta. Vejamos como isto ocorre e estejamos atentos desde já aos sinais de esquizofrenia das Relações Internacionais.

Ao longo dos últimos quarenta anos, desde o lançamento de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), passando por O liberalismo político (RAWLS, 1993-2001) e até por O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001), Rawls tem sido uma das principais referências na discussão sobre justiça dentro do debate entre cosmopolitas e comunitaristas nas Relações Internacionais. Em torno dele, o debate ganha proporções tais que extrapolam e, por vezes, provocam o uso por adaptação de suas idéias.

O referido debate apresenta os direitos humanos como (1) resultado de um conjunto de particularidades e de práticas exclusivas pela circunscrição espaço-temporal das tradições, da cultura e da moral de um determinado povo em contraposição a uma (2) prática inclusiva que considera não particularismos excludentes, mas sim a própria perspectiva humanista e universalista dos direitos humanos como objeto de reflexão e de representação da humanidade como um todo. De qualquer modo, o que alimenta especialmente o debate é a compreensão do que seja a referência moral nas Relações Internacionais – ou os povos, para não dizer Estados, ou os indivíduos. A quem se deve o dever moral? Que referência exige de nós este dever?

Neste sentido, o trabalho de John Rawls vem contribuir para o debate pela tentativa de oferecer uma posição ponderada e conciliadora sobre a possibilidade da universalização dos direitos humanos. A proposta rawlsiana compõe-se da compreensão de que é preciso resguardar os povos em suas peculiaridades, mas que, ao mesmo tempo, é possível e preciso garantir os direitos humanos pelo seu próprio significado moral e prático à medida que estes mesmos povos se sintam técnica, jurídica e, claro, moralmente capazes de subscrever um conjunto de direitos humanos respeitados e garantidos por eles após um exercício de reflexão sobre tais direitos. A resposta rawlsiana nos dá – à primeira vista – um alento e uma possibilidade de pensar a concretização de direitos humanos universais de modo viável e seguro na consideração de que compomos – nós, povos – um conjunto de coletividades humanas que se relacionam, construindo, vivenciando e partilhando as próprias Relações Internacionais. No entanto, como veremos, é exatamente por isso que Rawls não consegue superar o desenho esquizofrênico das Relações Internacionais na compreensão de que existem direitos do Estado e direitos dos Estados.

Apresentarei brevemente o debate e, então, compreenderemos Rawls nele.

Para os liberais (MORRICE, 2000), o indivíduo possui uma essência ou valor anterior à sociedade. Há uma precedência ontológica do indivíduo em relação ao meio social. Para isto, compreende-se o indivíduo como uma abstração, algo desgarrado do contexto histórico-social, dotado de uma significação própria, independentemente da sociedade em que vive. Assim, os liberais tendem a valorizar o individualismo contra o coletivismo. A idéia é preservar o indivíduo como ser livre para fazer escolhas em um ambiente político liberal e não considerá-lo como produto do meio, sem expressão individual própria para a condução de sua vida. Os princípios de justificação que seguem assumem, assim, uma base neutra, dita universal. Neutra, universal e, portanto, imparcial e objetiva, que garanta, a partir da compreensão do homem como ser anterior à sociedade e universal, a elaboração e a defesa de princípios universalmente válidos. Se somos todos iguais onde quer que estejamos, é preciso garantir princípios e ordenamento social universais. Daí advêm direitos universais como resposta mesmo à natureza humana. O jusnaturalismo dos pensadores modernos está recuperado para fazer do indivíduo um ser dotado de uma natureza universal.

Ao contrário, os comunitaristas (MORRICE, 2000) apontam a precedência ontológica da sociedade em relação ao indivíduo. Não é possível, agora, compreender o homem como esse ser abstrato, essencial, inexistente. Para os comunitaristas, o homem é um ser social, dotado de características sociais como história, cultura, valores e princípios comuns, constituído em uma determinada relação espaço-temporal. O homem existe concretamente como fruto de contradições e existências históricas. A essência do homem não pode ser aceita como fonte de legitimação de valores, princípios e direitos, porque não há essência humana, mas existência concreta, cultural, histórica, geográfica, ideológica, valorativa. Nenhuma realidade social pode sustentar-se enquanto representação coletiva senão por uma existência assim. Advém disso o relativismo cultural, a compreensão de diferenças e a exclusão de interferências outras que não as da respectiva sociedade.

Os Princípios de Justiça em Rawls e a Formulação de Direitos

Em Uma teoria da justiça, Rawls (1971-2000) define a sociedade como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas. Além disso, para Rawls, estas regras refletem um sistema de cooperação entre as pessoas, caracterizando a sociedade como "um empreendimento cooperativo que visa vantagens mútuas" (RAWLS, 1971-2000, p. 4). Assim, a sociedade rawlsiana é, por natureza, cooperativa. As pessoas compreendem que a cooperação social possibilita que elas tenham uma vida melhor individualmente do que teriam caso não houvesse tal cooperação e se dependessem de seus próprios esforços e recursos para atingir os seus objetivos.

A sociedade enquanto esse empreendimento cooperativo, no entanto, não está isenta de conflitos. As pessoas concordam que é melhor para elas individualmente fazerem parte de um meio cooperativo, mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de benefícios produzidos pela cooperação social, de modo que, acredita Rawls, cada uma preferirá obter para si uma parcela maior, a uma menor, destes benefícios. A discussão sobre a justiça em John Rawls nasce, portanto, da necessidade de se estabelecer um parâmetro distributivo dos benefícios obtidos por meio da cooperação social com o qual as pessoas concordem.

Pensar a elaboração e efetivação de direitos na sociedade implica pensar a natureza da sociedade e dos direitos e a distribuição destes entre os homens. Partindo da consideração do homem como um ser econômico, temos que as relações sociais podem estar sujeitas a uma ordem eventualmente conflitiva em função da disputa de bens que os homens desejam desfrutar.

Para resolver o conflito sobre a distribuição dos bens, Rawls (1971-2000) cria a sua alegoria do contrato social com o objetivo de formular os princípios de justiça que regularão a vida em sociedade e que servirão como parâmetro distributivo dos benefícios sociais. Na alegoria do contrato social rawlsiano, os homens encontram-se na chamada posição original, que corresponde ao estado de natureza das teorias contratualistas tradicionais. De acordo com a posição original, que é meramente hipotética, os homens não sabem, entre outras coisas, que lugar ocupam na sociedade, se são ricos ou pobres, qual a sua classe e seu status social. Além disso, não têm informação alguma a respeito de seus dotes e habilidades naturais, nem sobre suas capacidades físicas e mentais, tais como força ou deficiência física, inteligência ou ausência desta.

Essa posição original é assim caracterizada pelo que Rawls denomina de véu de ignorância, ou seja, pela falta de informação que os homens possuem a respeito de si mesmos e dos outros. É sob o véu de ignorância que os homens escolhem os princípios de justiça e é ele que garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido quando da escolha destes, em função da sorte natural, que dispõe dotes e habilidades às pessoas, ou da sorte social, que identifica as pessoas nesta ou naquela posição mais beneficiada socialmente.

É importante tratar aqui da definição de bens sociais primários, porque é precisamente em relação a eles que serão aplicados os princípios de justiça. Rawls define esses bens de maneira mais ampla, como coisas que se supõe que um homem racional deseje, não importando mais o que ele deseje.

Rawls considera que as pessoas desejam ter uma quantidade maior a uma menor destes bens, independentemente dos seus planos de vida. Por isso mesmo, eles são chamados de bens sociais primários. É a partir da posse destes bens que as pessoas acreditam poder realizar seus planos de vida com maior sucesso. Rawls caracteriza estes bens amplamente, como direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza. Além disso, Rawls (1993-2001, p. 181-182) procura defini-los, mais especificamente, em cinco grupos:

a. direitos e liberdades básicos;

b. liberdade de circulação e livre escolha da ocupação face a um quadro de oportunidades plurais;

c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica;

d. rendimento e riqueza; e, por fim,

e. as bases sociais do respeito próprio ou auto-respeito.

Os princípios de justiça são escolhidos para regular a distribuição destes bens sobre as expectativas comuns das pessoas, sobre o que elas individualmente consideram relevante dispor enquanto bem social, que as permitam perseguir e realizar os seus planos de vida.

A partir destas observações, Rawls considera que as pessoas escolhem dois princípios de justiça. O primeiro garante um sistema de liberdades básicas para todos, igualdade eqüitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza. O segundo é decorrente do primeiro. Considerando que algumas pessoas, que não se sabe quem são, são menos favorecidas que outras pela sorte natural ou social, é compreensível que, no momento de elaboração do contrato, seja escolhido um princípio que as proteja dessas contingências naturais e sociais. Assim, as pessoas se dão conta de que, quando caírem os véus de ignorância que as cobrem, algumas delas se encontrarão em uma posição de desvantagem em relação às outras. Deste modo, as pessoas concordam, então, em admitir que tais desigualdades serão aceitas se, e somente se, forem vantajosas para os menos favorecidos da sociedade.

Os dois princípios de justiça são apresentados por Rawls (1993-2001, p. 277):

a. Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente adequado de iguais liberdades básicas que seja compatível com um esquema idêntico de liberdades para todos.

b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: por um lado, têm de estar associadas a cargos e posições abertos a todos segundo as circunstâncias da igualdade eqüitativa de oportunidades; por outro, têm de operar no sentido do maior benefício possível dos membros menos favorecidos da sociedade.

A justiça rawlsiana consiste nessa premissa de compensação, em função mesmo da defesa do liberalismo. As compensações têm o papel de manter plenamente ativas as liberdades das pessoas menos favorecidas, porque preservam as pessoas em uma condição de igualdade política e social enquanto agentes plenamente capazes de buscar realizar os seus planos de vida dentro das possibilidades existentes, com as liberdades, as oportunidades e o sentimento de auto-respeito.

A crítica dos comunitaristas é de que a elaboração ideal do contrato social rawlsiano e a escolha dos princípios de justiça não correspondem à realidade social. Não há um momento em que os homens se reúnem e decidem que princípios escolher. Os homens nascem. Não conseguimos identificar o momento em que os homens criaram os valores que antecedem a existência da sociedade. Pensar os homens como dispostos em uma posição inicial e cobertos pelo véu de ignorância é uma abstração tamanha que se desgarra muito daquilo que existencialmente somos.

Além disso, a crítica comunitarista não se dá somente ao construtivismo rawlsiano, mas à própria natureza dos princípios que são escolhidos. O contrato social rawlsiano escolhe princípios liberais como se os homens em qualquer momento da história e em qualquer lugar, uma vez dispostos na posição original, fossem escolher princípios de tal natureza – liberal. Isto significa simplesmente desconsiderar que há outras visões de mundo, outras histórias, outras ideologias, que de fato se realizam em contextos históricos definidos.

A Aplicação do Pensamento de Rawls nas Relações Internacionais

Charles Beitz é o principal autor das Relações Internacionais a utilizar o arcabouço teórico de Rawls para tratar da justiça internacional e da possibilidade de se pensar direitos humanos universais. Oito anos após o lançamento de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), Beitz lança o seu Political theory and International Relations (BEITZ, 1979), valendo-se dos pressupostos de Rawls e criando o cosmopolitismo ralwsiano, ainda que o próprio Rawls somente se tenha debruçado sobre o tema de modo definitivo vinte anos depois, com o lançamento de O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001).

A defesa de princípios cosmopolitas feita por Beitz verifica-se a partir da discussão de alguns pontos como cooperação social e justiça, interdependência, recursos naturais e talentos que relacionam as sociedades nacionais e a sociedade internacional.

Em uma primeira assertiva, Beitz considera que, tal qual ocorre para os homens, para Rawls, eles nascem em posições sociais diversas e isto pode afetar as condições para a realização de seus planos de vida, e assim também ocorre com os Estados. Os Estados Nacionais não escolheram nascer mais, ou menos, ricos. Isto é resultado de uma loteria natural. Para Beitz, essa é uma distribuição moralmente arbitrária e deve então ser revista porque a distribuição aleatória de recursos naturais influencia a possibilidade de determinado Estado satisfazer as demandas e necessidades de sua população (BEITZ, 1979). A proposta é aplicar as idéias de posição original e de véu de ignorância para as Relações Internacionais e criar, então, um sistema distributivo global de riqueza.

Beitz entende que os recursos naturais de que os Estados dispõem não são adquiridos por herança genética, mas por acaso, e que estes recursos não estão presos aos Estados. Essa situação deve levar à compreensão de que o padrão de justiça exige uma distribuição dos recursos naturais entre os Estados para que nenhum deles fique sujeito à má sorte. Para Beitz (1979, p. 138, tradução nossa),

Recursos naturais são arbitrários no sentido de que não são merecidos. [...] Os recursos estão "lá fora", disponíveis ao primeiro que os pegar. [...] Em um mundo de escassez, a apropriação de recursos naturais pode deixar alguns comparativamente em desvantagem em relação aos outros. Aqueles privados sem justificativa dos recursos escassos também desejam realizar seus planos de vida e disso advém a distribuição equitativa destes recursos entre os Estados.

A partir de então, Beitz defende, como faz Rawls, a aplicação de princípios de justiça entre os Estados que possam corrigir essa arbitrariedade moral na oferta aleatória de recursos naturais. Idéia que favorece isto é a da interdependência entre os Estados. Mesmo que os Estados sejam formalmente independentes, suas relações apontam um grau de dependência mútua bem acentuado, o que levaria os Estados a cooperarem entre si:

Se a evidência de interdependência global econômica e política mostra a existência de uma estrutura global de cooperação social, nós não devemos ver fronteiras nacionais como dotadas de uma significação moral. Desde que as fronteiras não delimitem a cooperação internacional, elas não podem marcar os limites das obrigações sociais. [...] Se as sociedades do mundo são agora abertas, sistemas interdependentes completos, o mundo como um todo se encaixa na compreensão de cooperação social e o argumento para os dois princípios (de Rawls) se aplica agora em âmbito global (BEITZ, 1979, p. 151, tradução nossa).

Assim, as fronteiras nacionais já não têm o papel de delimitação da movimentação de processos como comércio internacional, difusão tecnológica, comunicação etc. A rede de relacionamentos internacionais compreende a cooperação entre os Estados para o seu próprio êxito. Para tanto, acabar ou diminuir o peso das arbitrariedades naturais na distribuição de recursos entre os Estados favorece o progresso das Relações Internacionais e a implementação de uma idéia de justiça distributiva e não arbitrária.

Nem Cosmopolita, nem Comunitarista: A Proposta de Rawls em O Direito dos Povos

Após quase trinta anos, Rawls lança o seu O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001). Nesta obra, Rawls trata da justiça nas Relações Internacionais, aplicando a escolha de princípios de justiça agora no âmbito internacional. Boa parte de seu trabalho vem como resposta ou adequação a posições cosmopolitas que outros teóricos de Relações Internacionais assumiram a partir da compreensão de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), especialmente Charles Beitz (1979).

No início de O direito dos povos, Rawls (1999-2001) afirma que seu conteúdo é desenvolvido a partir de uma idéia liberal de justiça que é similar, porém mais geral, àquela elaborada em suas duas obras anteriores (Uma teoria da justiça e O liberalismo político). Rawls pensa agora o contrato social no plano internacional, valendo-se das idéias e conceitos fundamentais desenvolvidos em torno da justiça como eqüidade e do liberalismo político para elaborar uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa.

A escolha por povos em vez de Estados possui especial significado na teoria rawlsiana. Para Rawls, os Estados ainda são considerados atores racionais preocupados com o poder e movidos sempre por seus interesses básicos. Desta forma, o ambiente internacional é caracterizado por uma anarquia em que os Estados lutam entre si por poder, glória e honra, tentando garantir cada qual uma posição melhor que a do outro.

Naturalmente, a concepção dos Estados enquanto atores racionais preocupados com o poder e com a persecução de seus interesses básicos não é adequada aos atores que Rawls pensa para a sua Sociedade dos Povos, em que povos satisfeitos convivem em um ambiente de paz democrática, sem maiores ambições que ponham em risco a estabilidade da sociedade por eles formada. Segundo Rawls, os povos não se limitam a serem racionais como os Estados, mas são, além de racionais, razoáveis. A razoabilidade dos povos faz com que eles não sejam movidos unicamente pela racionalidade egoísta dos Estados, como tradicionalmente concebido.

Diferente dos autores liberais que aplicam nas Relações Internacionais a sua teoria da justiça tal como ela é pensada para a sociedade fechada, acredita que pode haver uma Sociedade dos Povos, composta por povos bem-ordenados que são os povos liberais razoáveis (democracias constitucionais liberais) e povos decentes. Esta diferença é muito importante porque relativiza o liberalismo rawlsiano ao possibilitar a coexistência de povos com visões de mundo diferentes.

Os povos liberais são identificados por Rawls (1999-2001) a partir de três características. A primeira delas trata da representação de um governo constitucional razoavelmente justo cujo povo detém de modo eficaz o seu controle político e eleitoral, tem os seus interesses fundamentais defendidos e está amparado por uma Constituição escrita ou não escrita. A segunda característica dos povos liberais trata de afinidades comuns às quais estão ligados os seus cidadãos. Tais afinidades comuns configuram a própria nacionalidade do povo quando expressa a partilha entre seus cidadãos, por exemplo, da língua, da religião, dos limites geográficos, da história nacional e da identidade de raças. A terceira trata do seu caráter moral, que permite que os povos liberais sejam razoáveis e racionais, similarmente às pessoas, no caso interno (RAWLS, 1993-2001, p. 46).

Rawls caracteriza também os povos decentes, atribuindo a eles dois critérios que devem ser observados para que os mesmos façam parte da Sociedade dos Povos. O primeiro critério estabelece que os povos decentes não têm objetivos agressivos e reconhecem que para alcançar os seus interesses legítimos perante os outros povos devem valer-se da diplomacia, do comércio e de outros meios pacíficos. Além disso, mesmo considerando que os povos decentes reconheçam para si como relevante o papel de uma doutrina abrangente qualquer sobre a sua estrutura de governo, eles permitem e respeitam com algum grau de liberdade a existência de doutrinas diversas entre seus cidadãos e também preservam a independência e a ordem política e social dos outros povos.

O segundo critério, de acordo com Rawls, afirma que os povos decentes, a partir da idéia que possuem de justiça voltada para o bem comum, garantem aos seus cidadãos a manutenção e preservação dos direitos humanos, uma vez que esta é condição essencial para aqueles povos que estabelecem entre si um sistema de cooperação política e social. Além disso, deve haver uma crença sincera e razoável por parte dos juízes e do sistema jurídico como um todo de que as leis efetivamente sejam um reflexo da idéia de justiça do bem comum, no sentido de que não são elaboradas sem a aprovação de seus cidadãos, mas que representam sim o entendimento destes e de seus representantes acerca dos princípios de justiça como instrumentos para a realização do bem comum.

O modelo de representação do contrato social para a Sociedade dos Povos obedece à mesma orientação apresentada no caso interno em quase todos os seus aspectos. Os povos (liberais e decentes) são considerados racionais e razoáveis e, portanto, capazes de determinar os seus interesses próprios e de cooperar entre si, estabelecendo conjuntamente os princípios de justiça para a sociedade por eles formada. Além disso, os povos estão também cobertos pelo véu de ignorância. Assim, eles não conhecem o tamanho de seu território, a população ou a força relativa uns dos outros, como também desconhecem a condição de seus recursos naturais e o grau de desenvolvimento econômico que possuem. Desta maneira, os povos vêem a si mesmos como livres e iguais por gozarem de uma posição eqüitativa no momento de escolha dos princípios que nortearão a Sociedade dos Povos. Rawls entende que, de acordo com esta situação, os povos estão simetricamente dispostos em relação uns aos outros, o que garante a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça entre eles.

No entanto, há uma diferença importante a ser destacada que diz respeito à questão das doutrinas abrangentes. Na sociedade fechada, as pessoas, em função da capacidade para uma concepção de bem que possuem, desenvolvem e se identificam com doutrinas abrangentes religiosas, morais ou filosóficas com as quais relacionam os seus objetivos de vida e a sua maneira de ver o mundo. Os povos, ao contrário, representam os seus cidadãos, as pessoas que deles fazem parte e, como agentes coletivos, não possuem para si uma doutrina abrangente a ser defendida propriamente. A existência do pluralismo razoável dentro dos povos, que permite a coexistência de doutrinas tão diversas, faz, destas, instituições sem uma doutrina específica a ser seguida como fonte de identidade com os seus objetivos enquanto povos.

Este pluralismo razoável, que possibilita o convívio de diversas doutrinas abrangentes defendidas por seus cidadãos, somente é possível a partir da validade de uma concepção política de justiça pela qual os princípios de justiça escolhidos podem ser aceitos por todos os cidadãos independentemente de suas crenças pessoais, religiosas, morais ou filosóficas. Se assim é no caso interno, Rawls supõe que entre os povos a existência de doutrinas abrangentes diferentes é ainda maior em função da cultura e das tradições de cada povo. Desta forma, é essencial à teoria rawlsiana de justiça entre os povos, como também o é para a sociedade fechada, a concepção de tolerância.

Rawls presume que, se há diversidade de doutrinas abrangentes dentro dos povos, haverá também uma diversidade, talvez até maior, entre os povos. Assim, é possível imaginar que povos diferentes defendam concepções de bem – reflexo dos seus cidadãos – também diferentes. Rawls entende que o papel da Sociedade dos Povos consiste em assegurar que os ideais e princípios da política exterior de um povo liberal sejam também razoáveis a partir de um decente ponto de vista não liberal e vice-versa. A necessidade desta garantia é característica inerente à concepção liberal. O Direito dos Povos deve garantir o exercício do pluralismo razoável e da tolerância entre os povos liberais e decentes. Por isso, a Sociedade dos Povos não é composta somente por sociedades liberais, porque está em sua gênese liberal o conceito e a necessidade de tolerância entre as partes como marca própria do liberalismo político. Os povos liberais então toleram os povos decentes a partir da certeza e da constatação de que os últimos cumprirão, assim como os primeiros, as condições específicas de direito e de justiça a serem escolhidas e seguidas por eles mesmos como os parâmetros reguladores da Sociedade dos Povos razoavelmente justa. Assim, os povos (liberais e decentes) estão prontos a oferecer uns aos outros e a aceitar termos justos de cooperação que sejam aprovados por todos na certeza de que todos os honrarão. A idéia é elaborar princípios de justiça que sejam razoáveis para povos liberais e para povos decentes. O critério de reciprocidade está marcadamente presente na Sociedade dos Povos como está na sociedade fechada.

Para Rawls (1999-2001, p. 80-81), "os povos liberais devem tentar encorajar os povos decentes e não frustrar a sua vitalidade insistindo coercitivamente em que todas as sociedades sejam liberais". Rawls valoriza o liberalismo político por meio do exercício do pluralismo razoável, que permite o convívio entre povos liberais e povos decentes, mesmo que esse mundo social formado por eles não seja plenamente justo.

O mais importante é não insistir em princípios liberais para todos os povos, pois esta atitude fere a própria concepção liberal de tolerância. Assim, para Rawls, mais valioso que defender ferozmente princípios democráticos liberais para todos os povos é preservar a pluralidade de manifestações culturais, políticas e sociais dentro dos limites do razoável que os povos liberais e os povos decentes se propõem a cumprir. O respeito ao outro, calcado na tolerância daquilo que nos é diferente, fornece a base de justificação da existência da Sociedade dos Povos como pensada por Rawls – plural e razoável.

De qualquer modo, mesmo considerando a defesa acalorada de Rawls em prol do pluralismo razoável entre os povos, é de sua consideração que povos liberais e não liberais partilham de princípios de justiça iguais. Assim, para Rawls (1999-2001, p. 47-48), os povos concordariam com os seguintes princípios:

1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos;

2. Os povos devem observar tratados e compromissos;

3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam;

4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção;

5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa;

6. Os povos devem honrar os direitos humanos;

7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra; e

8. Os povos têm o dever de assistir outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente.

Em relação à lista de princípios de justiça dos povos, há uma observação muito interessante. Segundo Rawls, o objetivo a longo prazo dos povos bem-ordenados é trazer para a Sociedade dos Povos esses povos onerados que carecem de tradições culturais e políticas, além de capital humano e material para se tornarem sociedades bem-ordenadas. Nesse sentido, Rawls entende que os povos onerados devem ser assistidos até que disponham de condições suficientes para se tornarem membros da Sociedade dos Povos. O dever de assistência identificado no oitavo princípio de justiça é mais bem especificado por Rawls como dispositivos para assistência mútua entre os povos em tempos de fome e seca e, na medida do possível, dispositivos para assegurar que, em todas as sociedades liberais (e decentes) razoáveis, as necessidades básicas dos povos sejam cumpridas (RAWLS, 1999-2001).

Ao defender o dever de assistência dos povos liberais em direção aos povos não liberais, Rawls claramente dá subsídios para ações universalistas, comprometendo-se com uma postura mais cosmopolita que comunitarista. Vejamos suas implicações e por que sua proposta não é satisfatória.

Segunda Problematização: A Gênese Esquizofrênica do Sistema de Estados

Nas Relações Internacionais, o debate é desdobrado na perspectiva daquilo que está ligado ao Estado Nacional. Ora o Estado é concebido como a comunidade política por excelência da sociedade internacional e, portanto, uma esfera comunitária e hermética como exercício próprio da exclusão do outro pela compreensão que se tem de si mesmo; ora o Estado é compreendido como o promotor e catalisador de uma realidade que extrapola suas ações restritas à sua fronteira nacional para transbordar pela sociedade internacional – talvez, mundial; aliás, cosmopolita – o significado e ação concreta a partir de temas universais.

Toda a discussão, em Relações Internacionais, tem por base esse confronto de compreensão do mundo como representação de particularismos que convivem, mas se excluem, e de universalismos que se engajam como processos e representações de fato globais. Aliás, isto está na própria origem do sistema westphaliano de Estados. A criação do sistema de Estados em 1648, ao final da Guerra dos Trinta Anos, produz uma esquizofrenia nas Relações Internacionais, pois ao efetivar os seus princípios clássicos – de autodeterminação dos povos e não-intervenção – promove o surgimento de espaços contraditórios de ação e de interação social. Por um lado, a autodeterminação dos povos propõe garantir a independência de um Estado em relação ao outro no que concerne às suas escolhas individuais – é um direito de Estado, cada Estado tem esse direito. É um direito que exclui o outro. Por outro lado, o princípio de não-intervenção garante que nenhum Estado interfira em assuntos internos de outro. Claramente, há uma conexão entre os princípios, mas também fica muito presente a perspectiva relacional deste em detrimento daquele. Este é um direto de todos os Estados em conjunto. Só pode existir, assim, universal – válido para as relações entre eles. É um direito que inclui o outro.

Em decorrência disto, as Relações Internacionais testemunham essa esquizofrenia: exclusão/inclusão; particular/universal. Há um direito do Estado e há um direito dos Estados. Aqui, começamos a compreender a coexistência de espaços paralelos ou, mais que espaços paralelos, espaços superpostos em uma percepção de relações internacionais multidimensionais contraditórias, quando não antagônicas.

Aliás, parece ser a contradição a característica mais marcante em consideração às sociedades politicamente organizadas. A própria constituição do Estado como comunidade política implica uma contradição referenciada pela lógica contratualista – uma parte detentora do poder legítimo coercitivo, outra sujeita a ele. No funcionamento do sistema capitalista mundial não é diferente: a contradição é representada por aqueles Estados que detêm os meios de produção e aqueles que submetem a sua força de trabalho a eles.

Esse processo de exclusão e inclusão e de formação de um direito do Estado e de um direito dos Estados, portanto, da sociedade internacional, permanece ao longo do tempo. Encontramos na Organização das Nações Unidas (ONU) exemplo disto. A ONU tenta prover um direito internacional, quiçá universal, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, exatamente trezentos anos após a criação do Sistema Moderno de Estados em 1648. Todo esse tempo passou e a contradição permanece. Incrível darmo-nos conta dela!

A complexidade contemporânea exponencia mais ainda essa contradição. Não precisamos ir muito longe. A autodeterminação dos povos é defendida especialmente na década de 1960 quando do processo de descolonização afro-asiático. As coletividades humanas demandavam a sua própria comunidade política, que com todas as suas peculiaridades se encaixava na fórmula representativa de Estado Nacional. Trinta anos depois, as Relações Internacionais testemunharam o fim da Guerra Fria, o desmantelamento da União Soviética e a desagregação da Iugoslávia. Novamente, a demanda social por uma organização política das coletividades humanas era voltada para a criação de Estados Nacionais. Mesmo a divisão do mundo na Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética tem por base a formação de dimensões imperiais e, assim, tem uma base, uma origem estatal – ou império soviético ou império norte-americano. O processo expansionista é estatal. O peso do nacional, do particular, da necessidade de diferenciação em relação ao outro é muito presente nas Relações Internacionais.

Por outro lado, se recortarmos o mesmo período, podemos verificar movimentos e relações não somente internacionais, mas transnacionais e globais. As crises do petróleo de 1973 e 1979 são prova de que não há limites entre os Estados Nacionais na determinação dos efeitos de acontecimentos locais no mundo. A globalização na década de 1990, como derivação da interdependência da década de 1970, desenha relações internacionais globais com a defesa de valores e ordenamentos em torno do binômio liberal capitalismo-democracia. Conferências são realizadas para o debate de temas universais.1 1 . Algumas das conferências realizadas no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU): Cúpula Mundial sobre a Criança (1990), Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (1992), Conferência Internacional sobre Direitos Humanos (1993), Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994), IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), Cúpula para o Desenvolvimento Social (1995) e Cúpula do Milênio (2000).

Há uma concepção de mundo interligado, comum e que vive e enfrenta situações comuns que exigem, por sua vez, soluções comuns pensadas em conjunto. A lógica estatal não consegue prover uma ação desse tipo. A esquizofrenia evidencia-se. A recusa norte-americana em assinar o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou o Protocolo de Kyoto, por exemplo, é representativa dela. A atmosfera não reconhece fronteiras nacionais. Devo eu, Estado Nacional, subordinar-me a meu presidente, a um Tribunal Penal Internacional? Que legitimidade possui um Tribunal assim? Deve a emissão de gases na atmosfera ser freada, ao menos, em boa parte, diminuída? Quem responde por isso? Sim, proteção ambiental sugere preservação de direitos humanos – o ar que respiramos, a água que bebemos, o solo em que plantamos.

Temos, ao que parece, um problema gerado pelo Estado, mas que o próprio Estado não consegue resolver do ponto de vista da ação estatal, porque a ação estatal é desde Westphalia uma ação de direito do Estado de agir em função da sua autodeterminação. Mas, ora, temos um problema universal. O Estado gera problemas que não consegue resolver. Significação estatal e universal coexistem, interesses excluem-se, mas, ao mesmo tempo, demandam, ao contrário, inclusão, universalismo – disto, temos os direitos humanos como refém.

Não nos parece muito diferente o caso dos refugiados. O refugiado é aquele que, em geral, teve que sair de seu Estado de origem por uma situação de guerra e que é acolhido por outro Estado. Quem lhe dá direitos? Respostas (ou perguntas): o Estado de origem, envolvido em um caos político-social de guerra ou o Estado de destino, que não confere a ele o mesmo rol de direitos que a seus cidadãos? É o refugiado um apátrida errante condenado a nunca mais gozar de uma nacionalidade e de uma cidadania plena? O Estado cria este problema, ou esta condição, mas não consegue resolvê-lo. Só uma perspectiva universalista pode prover soluções para problemas deste tipo, que transbordam as fronteiras do Estado. Contudo, apesar de haver uma clareza de que existem problemas materiais à nossa volta, o debate sobre a universalização de direitos humanos ainda parece indefinido.

A interdependência explicita a porosidade dos Estados nacionais e impossibilita-os de resolverem, cada um independentemente do outro, crises e problemas que extrapolam a capacidade de uma solução estatal, ou mesmo interestatal. A globalização tem favorecido um processo de cosmopolitanização (BECK, 2002), ou seja, um processo de globalização interna às sociedades nacionais, que transforma a natureza do social e do político além da consciência e da identidade dentro destas sociedades a partir de um processo dialógico. Alguns problemas somente podem ser resolvidos por uma ação coletiva dotada de uma organicidade só mais complexa do que aquela das Relações Internacionais (entre nações/Estados). Isto porque os efeitos das crises e dos problemas são globais e a sua solução também o deve ser. A participação de atores outros que não o Estado passa a ser fundamental nesse sentido, e compreender o conjunto de direitos que demandamos como direitos universais justifica e legitima uma ação universal.

Não é à toa que a vertente de Teoria Normativa de Relações Internacionais é revitalizada no início dos anos 1990. E é neste momento que o debate entre cosmopolitas e comunitaristas ganha fôlego nas Relações Internacionais, exigindo que os intelectuais repensem a natureza destas relações. No entanto, parece ela mesma não ser suficiente como resposta aos problemas e dilemas contemporâneos.

Parece-nos que, apesar de ser mais razoável que as completas inclusão ou exclusão propostas pelo cosmopolitismo e pelo comunitarismo, respectivamente, a proposta rawlsiana não consegue escapar da esquizofrenia das Relações Internacionais. O modelo de Sociedade dos Povos talvez favoreça, inclusive – a partir do dever de assistência – um pouco mais o processo de inclusão de cunho cosmopolita (ou intervencionista! – pelo dever de assistência).

Continuamos com a errante configuração das Relações Internacionais dividida entre direitos do Estado e direitos dos Estados. Se cada Estado é, no pluralismo razoável rawlsiano, dotado de uma capacidade de admitir para si crenças quaisquer sem influência de outros Estados em nome da garantia do próprio liberalismo pela possibilidade de escolha livre, temos aí a própria compreensão do princípio clássico westphaliano de autodeterminação dos povos como um direito do Estado – de cada Estado. Por outro lado, a defesa do dever de assistência apresenta-se como o traço universalista, como direito dos Estados – de todos os Estados. O que queremos dizer é que os Estados têm para si um direito exclusivo de autodeterminação, mas estão todos igualmente sujeitos ao dever de assistência. Livres, por um lado; sujeitados, por outro. Particularizados, por um lado; universalizados, por outro. Curiosamente, o princípio de não-intervenção é transformado em princípio de intervenção pelo dever de assistência, mas isto não o faz perder o seu aspecto de universalidade, ao contrário, reforça-o.

Compreendemos a proposta de O Direito dos povos, de Rawls (1999-2001) como uma alternativa a dois extremos auto-excludentes. Neste sentido, a contribuição rawlsiana é bastante significativa. Porém, ainda nos parece insuficiente, porque perpetua uma esquizofrenia de mais de 350 anos, pois mantém viva uma lógica de exclusão, quando formamos a Sociedade dos Povos e excluímos dela outros povos que não estejam prontos para fazer parte dela. Ainda estamos em uma lógica westphaliana, de justificação da ação política circunscrita em um espaço, quando os problemas se dimensionam em espaços múltiplos, superpostos e interligados. Resta-nos a pergunta: continuam o Estado e o sistema de Estados sendo as referências válidas de comunidade política nacional e internacional ou devemos pensar alternativas para eles?

Repensando as Relações Internacionais pelo Pós-modernismo – Uma Aproximação

A dificuldade de estabelecer um parâmetro de ação que consiga compatibilizar as vertentes comunitarista e cosmopolita sugere pensar as Relações Internacionais por outro viés. A construção teórica pós-moderna ganha força, nesse sentido, ao compreender que aquilo que é moderno – o Estado Nacional – não responde satisfatoriamente às demandas globais mais urgentes, porque estas fazem escapar das mãos dos Estados a possibilidade de as satisfazer. Cabe-nos repensar as Relações Internacionais.

Vejamos algumas observações que podemos fazer a título de aproximação com a teoria pós-moderna. Fiquemos tão somente com a perspectiva da cidadania e dos vínculos sociais (estatais/não-estatais). Percebemos que, enquanto estivermos presos a uma lógica estatal, que impõe delimitações na solução de problemas globais, não conseguiremos agir de outro modo para solucionar estes problemas.

O sistema de Westphalia serviu apenas para "assegurar a persistência, a saliência e a centralidade do problema da diferença na sociedade internacional" (BLANEY; INAYATULLAH, 2000, p. 5), o que reforça a identidade da borda para dentro do Estado e exponencia a diferença de quem está fora dele, criando uma lógica de exclusão e de conflito. Para Blaney e Inayatullah (2000), nós somos ainda reféns do Estado e da sua lógica westphaliana. Nossa compreensão se dá pela perpetuação da diferença, que impossibilita visualizar oportunidades de engajamento mais global no combate a questões que extrapolam a realidade estatal.

Não vivemos mais em um ambiente estatal ou interestatal. É preciso repensar, por exemplo, o conceito de cidadania, algo estatal, produzido artificialmente pelo Estado (ele mesmo também produzido na história), relacionado à manutenção simbólica do Estado pelo gerenciamento de narrativas históricas e de espaço territorial, mas que hoje não corresponde mais à noção de mundo que temos.

O crescente movimento de pessoas, uma crescente diáspora global – refugiados, exilados, estrangeiros ilegais, trabalhadores migrantes e intelectuais – têm incentivado formas pós-nacionais e não territoriais de filiação e solidariedade. De modo crescente, populações filiam-se translocalmente – em outros tempos e espaço. [...] Uma vez que reconhecemos as complexidades da locação da cidadania no tempo, uma vez que suplementamos imaginações espaciais com temporalidade, um rico conjunto de articulações, gêneros e meios podem desafiar o tempo do Estado (SHAPIRO, 2000, p. 5-6, tradução nossa).

É preciso repensar o próprio significado da comunidade política, algo também artificial, que impõe uma noção de "particularidades em comum" (SHAPIRO, 2000). A partir de então, podemos pensar a aderência individual/social à comunidade política por uma concepção dinâmica de "associação e desassociação", que possibilite o reconhecimento de modos de presença incomensuráveis (SHAPIRO, 2000). Não há mais o estatal. Há representações diversas, atreladas por condições comuns de exposição ao internacional, ou melhor, ao global. E é essa condição que faz com que repensemos as relações humanas que tenham por base não a lógica do estatismo, mas que alimente compreensões diferentes sobre o agir internacional, motivado por situações reais e demandas sociais não-estatais.

Considerações Finais

Buscamos neste artigo apresentar a questão dos direitos humanos do ponto de vista do debate cosmopolitismo x comunitarismo como uma raiz para uma discussão ainda maior que esta – a da própria compreensão das Relações Internacionais pela sua representação política tradicional –: o Estado Nacional Moderno.

Acompanhamos brevemente tentativas de solucionar o problema dos direitos humanos nas Relações Internacionais pelo pensamento de Charles Beitz e de John Rawls, favorecendo, respectivamente, um viés cosmopolita e um viés conciliador das duas vertentes. Vimos, no entanto, que as propostas não satisfazem as demandas atuais de um mundo que não mais é estatal ou interestatal e que a esquizofrenia das Relações Internacionais se mantém entre o que é estatal e o que é não-estatal.

Isso nos fez repensar as Relações Internacionais, aproximando-nos do viés pós-moderno. De modo ainda introdutório, tentamos apontar minimamente como a teoria pós-moderna pode favorecer esse exercício de repensar as Relações Internacionais e enfrentar sua condição esquizofrênica, tarefa esta à qual nos dedicamos.

Nota

Artigo recebido e aprovado para publicação em setembro de 2007.

  • BECK, Ulrich. The cosmopolitan societies and its enemies. Theory, Culture & Society, v. 19, p. 1-2, 2002.
  • BEITZ, Charles. Political theory and International Relations Princeton: Princeton University Press, 1979.
  • BLANEY, David; INAYATULLAH, Naeem. The westphalian deferral. International Studies Review, v. 2, n. 2, 2000.
  • MORRICE, David. The liberal-communitarian debate in contemporary political philosophy and its significance for International Relations. Review of International Studies, v. 26, 2000.
  • RAWLS, John. Uma teoria da justiça Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1971-2000.
  • ____. O liberalismo político Tradução: João Sedas Nunes. Lisboa: Editorial Presença, 1993-2001.
  • ____. O direito dos povos Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1999-2001.
  • SHAPIRO, Michael. National times and other times: re-thinking citizenship. Cultural Studies, n. 14, v.1, 2000
  • 1
    . Algumas das conferências realizadas no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU): Cúpula Mundial sobre a Criança (1990), Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (1992), Conferência Internacional sobre Direitos Humanos (1993), Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994), IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), Cúpula para o Desenvolvimento Social (1995) e Cúpula do Milênio (2000).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Recebido
      Set 2007
    • Aceito
      Set 2007
    Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais Rua Marques de São Vicente, 225 - Casa 20 , 22453-900 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3527-2284, Fax: (55 21) 3527-1560 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: cintjournal@puc-rio.br