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CRIANÇAS COM MÚLTIPLAS MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS: QUAIS SÃO OS LIMITES ENTRE OBSTINAÇÃO TERAPÊUTICA E TRATAMENTO DE BENEFÍCIO DUVIDOSO?

RESUMO

Objetivo:

A abordagem terapêutica de crianças com múltiplas malformações inclui muitos dilemas, tornando difícil diferenciar um tratamento de benefício duvidoso da obstinação terapêutica. O objetivo deste artigo foi destacar as possíveis fontes de incerteza no processo de tomada de decisão para esse grupo de crianças.

Descrição do caso:

Lactente de 11 meses de idade, que nasceu com múltiplas malformações congênitas e foi abandonado por seus pais, nunca recebeu alta hospitalar. Ele tem cardiopatia congênita cianótica, estenose do brônquio fonte esquerdo e imperfuração anal. Passou por muitos procedimentos cirúrgicos e permanece sob suporte tecnológico. A correção total do defeito cardíaco parece improvável, e todas as tentativas de desmame do ventilador falharam.

Comentários:

As duas principais fontes de incerteza no processo de tomada de decisão para crianças com múltiplos defeitos congênitos estão relacionadas ao prognóstico incerto. Dados empíricos escassos são por conta das múltiplas possibilidades de envolvimento (anatômico ou funcional) de órgãos, com poucos casos semelhantes descritos na literatura. O prognóstico é também imprevisível para a evolução da capacidade cognitiva e para o desenvolvimento de outros órgãos. Outra fonte de incertezas é como qualificar uma vida como valendo a pena ser vivida, ponderando custos e benefícios. A quarta fonte de incerteza é quem tem a decisão: os médicos ou os pais? Finalmente, se um tratamento é definido como fútil, então, como limitar o suporte? Na ausência de um método universal para essa tomada de decisão, ficamos com a responsabilidade dos médicos em desenvolver suas habilidades de percepção das necessidades dos pacientes e dos valores familiares.

Palavras-chave:
pediatria; ética; malformações congênitas

ABSTRACT

Objective:

Therapeutic approach of children with multiple malformations poses many dilemmas, making it difficult to build a line between the treatment of uncertain benefit and therapeutic obstinacy. The aim of this paper was to highlight possible sources of uncertainty in the decision-making process, for this group of children.

Case description:

An 11-month-old boy, born with multiple birth defects and abandoned by his parents, has never been discharged home. He has complex congenital heart disease, main left bronchus stenosis and imperforate anus. He is under technological support and has gone through many surgical procedures. The complete correction of the cardiac defect seems unlikely, and every attempt to wean the ventilator has failed.

Comments:

The first two main sources of uncertainty in the management of children with multiple birth defects are related to an uncertain prognosis. There is a lack of empirical data, due to the multiple possibilities of anatomic or functional organ involvement, with few similar cases described. Prognosis is also unpredictable for neuro-developmental evolution, as well as the capacity for the development and regeneration of other organs. Another source of uncertainty is how to qualify the present and future life as worth living, by weighing the costs and benefits. The fourth source of uncertainty is who has the decision: physicians or parents? Finally, if a treatment is defined futile then, how to limit support? No single framework exists to help these delicate decision-making processes. We propose, then, that physicians should be committed to develop their own perception skills in order to understand patient’s manifestations of needs and family values.

Keywords:
pediatrics, ethics; congenital abnormalities

INTRODUÇÃO

Malformações e doenças congênitas são a principal causa de mortalidade neonatal nos Estados Unidos11. Centers for Disease Control and Prevention [homepage on the Internet]. Update on overall prevalence of major birth defects - Atlanta, Georgia, 1978-2005. MMWR Weekly. 2008 Jan;57:1-5 [cited 2016 Jan 16]. Available from: https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/mm5701a2.htm
https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtm...
e já representam a segunda causa de mortalidade no primeiro ano de vida no Brasil.22. Brazil. Ministério da Saúde. DATASUS [homepage on the Internet]. Indicadores e dados básicos: Brasil, 2010. Brasília; 2010 [cited 2016 jan 16]. Available from: http://www.datasus.gov.br/idb2010
http://www.datasus.gov.br/idb2010...
Apesar da frequência global, em virtude de uma combinação específica de malformações e doenças congênitas, cada caso tende a ser único e tem, como consequência, um prognóstico desconhecido. Não existe um guia de decisões sobre o tratamento e suporte a essas crianças.

Nosso principal objetivo em relatar este caso foi destacar os conflitos e incertezas que surgem no tratamento de crianças com malformações múltiplas. Estamos especialmente preocupados com os limites entre as abordagens terapêuticas de benefício duvidoso e aquelas que podem ser caracterizadas como obstinação terapêutica.

DESCRIÇÃO DO CASO

O paciente é um menino de 11 meses de idade que nasceu com malformações congênitas múltiplas e nunca recebeu alta hospitalar. Ele passou seus primeiros três meses de vida na unidade de terapia intensiva neonatal, onde foi submetido a algumas intervenções, como a cirurgia de Blalock-Taussig para doença cardíaca cianótica complexa, traqueostomia para estenose traqueal congênita, e gastrostomia para diminuir o risco de broncoaspiração. Desde seu nascimento, necessitou de suporte ventilatório e, apesar de muitas tentativas, não foi possível realizar o desmame. O paciente foi submetido a tomografia de tórax e broncoscopia, pelas quais se diagnosticou também a estenose do brônquio principal esquerdo. Além do coração e dupla lesão das vias aéreas, o paciente tem outras malformações como refluxo vesicoureteral unilateral de grau V e imperfuração anal. O paciente está recebendo profilaxia antimicrobiana e foi submetido a uma colostomia.

Procedimentos diários tais como aspirações da traqueostomia causam muito sofrimento, que se manifestam por uma intensa sudorese, cianose grave, e às vezes pela necessidade de substituição urgente da cânula. Várias punções arteriais foram realizadas para análise do sangue, e punções venosas para acessos venosos periféricos ou centrais. Além disso, ele precisou ser tratado duas vezes por hiper-reatividade brônquica com beta-2-agonista intravenoso e ventilação, sob paralisia muscular. Outro evento ameaçador de vida foi um choque hipovolêmico, em consequência de hemorragia grave, após um procedimento de dilatação das vias aéreas. Houve mais dois episódios de dilatação por broncoscopia e um cateterismo cardíaco, totalizando seis procedimentos anestésicos.

Enquanto isso, sua capacidade de interagir socialmente deixa a equipe de saúde fascinada. Apesar de um atraso esperado no desenvolvimento em razão da hospitalização prolongada, o paciente está atingindo marcos como bater palmas e enviar beijos.

Desconhecemos o quanto foi discutido em relação aos limites de tratamento antes da realização de cada procedimento, como a traqueostomia e a primeira cirurgia cardíaca. Atualmente, a questão problemática é a escolha entre submetê-lo a procedimento cardíaco definitivo ou iniciar cuidados paliativos. A cirurgia cardíaca envolve dificuldades técnicas para correção total e, provavelmente, não vai facilitar o desmame ventilatório. Por outro lado, os cuidados paliativos oferecem muitas opções que nunca foram discutidas. A retirada do suporte vital nunca esteve em questão.

As decisões tornaram-se mais difíceis neste caso porque dependem totalmente da equipe médica. A família tem um vínculo emocional muito fraco com a criança. Apesar da possibilidade de ajuda fornecida pelo serviço social local para, por exemplo, os custos de transporte, os pais raramente visitam o paciente ou fazem contato telefônico para receber notícias sobre a criança.

COMENTÁRIOS

Definições e incertezas

Uma possível definição de obstinação terapêutica ou futilidade médica é o tratamento que não pode curar o paciente, mas apenas prolongar sua vida em condições adversas. A American Society of Critical Care Medicine classifica como tratamento fútil aquele que não serve a um propósito e não tem efeito fisiológico benéfico. Outras categorias incluem tratamentos que são considerados inapropriados e são, portanto, desaconselháveis mas não fúteis. São elas:

  1. tratamentos com baixa probabilidade de serem benéficos;

  2. tratamentos benéficos mas extremamente caros;

  3. tratamentos de benefício incerto.33. Consensus statement of the Society of Critical Care Medicine's Ethics Committee regarding futile and other possibly inadvisable treatments. Crit Care Med. 1997;25:887-91.

No caso específico de crianças com anomalias congênitas múltiplas, existem três grandes fontes de incerteza em relação ao limite entre tratamento de benefício duvidoso e obstinação terapêutica. Em primeiro lugar, existe o prognóstico mal definido, que é determinado pela ocorrência rara de defeitos anatômicos e fisiológicos. Prognósticos não são bem descritos nem para as doenças mais comuns. A segunda fonte de incerteza está relacionada com a imprevisibilidade do impacto da doença sobre o crescimento e desenvolvimento do organismo infantil. Finalmente, existem incertezas derivadas da tentativa de qualificar cada vida como uma vida que vale a pena ser vivida pesando sofrimento e alegria.

Incertezas sobre o prognóstico

O termo “prognóstico”, com significado de previsão, tem implícita a característica da incerteza. O resultado é geralmente difícil de prever em razão da variabilidade individual, das diferenças no progresso e nas fases das doenças, e a possibilidade de comorbidades. Cada paciente é sempre único.

Entretanto, quando uma doença é frequente o suficiente, os dados de probabilidades são derivados de séries e amostras. É possível até mesmo produzir diretrizes que suportam a tomada de decisão. Um exemplo é a prematuridade e a questão problemática na sala de parto: ressuscitar ou não a criança? Muitas crianças evoluem para cronicidade, para dependência de tecnologia e para alto risco de sequelas. Esse tema é muito explorado na literatura,44. Janvier A, Barrington KJ, Aziz K, Lantos J. Ethics ain't easy: do we need simple rules for complicated ethical decisions? Acta Paediatr. 2008;97:402-6. e há muitos dados disponíveis para estabelecer o “limite de viabilidade”, ou seja, a idade gestacional em que existe uma chance razoável de sobrevivência a longo prazo, determinando a intervenção.

Recém-nascidos com malformações congênitas, nascidos prematuramente ou não, representam um dilema ainda maior. Existem inúmeras possibilidades de malformações únicas, associações ou síndromes - quase todos raras quanto à ocorrência. Esse cenário de incerteza no prognóstico é determinado principalmente pela falta de dados empíricos.

A outra fonte de incerteza sobre prognóstico não está relacionada com o progresso de uma doença específica. O que é desconhecida é a capacidade da criança de desenvolver e regenerar órgãos. Um exemplo clássico é a plasticidade anatômica e funcional do imaturo, e ainda não totalmente desenvolvido, cérebro de uma criança pequena. Capacidade cognitiva é difícil de prever em casos de lesão ou malformação.55. Shevell MI, Majnemer A, Miller SP. Neonatal neurologic prognostication: the asphyxiated term newborn. Pediatr Neurol. 1999;21:776-84. A função respiratória é um outro exemplo: é sabido que melhora com a idade em crianças que estão com suporte ventilatório prolongado por doenças pulmonares, cardíacas ou musculares.66. Wilfond BS. Tracheostomies and assisted ventilation in children with profound disabilities: navigating family and professional values. Pediatrics. 2014;133(Suppl 1):S44-9.

Finalmente, mesmo quando é possível determinar as taxas de sobrevivência e as probabilidades de morbidades a longo prazo, essas chances não representam o mesmo que definir o que é bom ou aceitável.77. Dupont-Thibodeau A, Barrington KJ, Farlow B, Janvier A. End-of-life decisions for extremely low-gestational-age infants: why simple rules for complicated decisions should be avoided. Semin Perinatol. 2014;38:31-7.

Incertezas na caracterização de uma vida que vale a pena ser vivida

Uma abordagem geral às incertezas sobre tratar ou não as crianças com múltiplas malformações congênitas é medir a qualidade de vida presente e futura, ponderando custos e benefícios.88. Tibballs J. Legal basis for ethical withholding and withdrawing life-sustaining medical treatment from infants and children. J Paediatr Child Health. 2007;43:230-6. No entanto, não parece haver regras universais a serem aplicadas nesse processo de avaliação das vidas que valem a pena ser vividas. Assim, muitas dúvidas são levantadas para cada situação.

Catlin, por exemplo, sugere algumas questões a serem abordadas para crianças com trissomia do cromossomo 18.99. Catlin A. Trisomy 18 and choices. Adv Neonatal Care. 2010;10:32. Devemos realmente apoiar uma abordagem de intervenções tecnológicas e várias correções cirúrgicas - coração, palato, membros, esôfago - órgão por órgão? Quantas cirurgias serão? A criança sofrerá nas intervenções, especialmente se existem procedimentos múltiplos e sequenciais? Deveria o tratamento escalonar a disfunção de cada órgão? Devemos manter a abordagem de intervenção integral mesmo frente à evidência de comprometimento da capacidade cognitiva? É desejável que uma criança com necessidades especiais sobreviva à morte dos pais e de seus cuidadores no futuro? As decisões podem ser revistas?99. Catlin A. Trisomy 18 and choices. Adv Neonatal Care. 2010;10:32.

Outra lista de questões a serem consideradas quando se avalia a qualidade de vida foram definidas pelo Nuffield Council on Bioethics. O conselho aborda os benefícios para a vida futura: a probabilidade de experiências agradáveis e o estabelecimento de relações emocionais. Outra preocupação é a capacidade da criança de viver sem suporte tecnológico e fora do hospital.1010. Nuffield Council on Bioethics [homepage on the Internet]. Critical care decisions in fetal and neonatal medicine: ethical issues. 2006 [cited 2014 Jun 4]. Available from: http://nuffieldbioethics.org/wp-content/uploads/2014/07/CCD-web-version-22-June-07-updated.pdf
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É preciso pensar em todas essas questões para chegar a um juízo ético, mas muitas incertezas ainda permanecerão. Existem incertezas até mesmo relacionadas às questões elaboradas. O que é aceitável quanto a deficiências cognitivas e físicas? Como valorizar experiências agradáveis? O que é exatamente o melhor interesse da criança?

Outra abordagem para medir a qualidade de vida é o uso dos sistemas de pontuação. É quase uma forma matemática para determinar se as alegrias e interação com membros da família superam a dor física e o sofrimento psicológico.1111. Payot A, Barrington KJ. The quality of life of young children and infants with chronic medical problems: review of literature. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care. 2011;41:91-101. De fato, essa metodologia transforma a análise qualitativa em quantitativa, criando um limite entre prazeres e sofrimentos. Acima desse limite, o da neutralidade, há uma vida que vale a pena viver.1212. Wilkinson DJ. A life worth giving? The threshold for a permissible withdrawal of life support from disabled newborn infants. Am J Bioeth. 2011;11:20-32.

Determinar os limites de uma vida que vale a pena viver parece, no entanto, reducionista. Uma crítica é que o escrutínio biomédico de fatores objetivos, como a soma de deficiências, danos e as probabilidades de sobrevivência, são prioritários às experiências subjetivas.1111. Payot A, Barrington KJ. The quality of life of young children and infants with chronic medical problems: review of literature. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care. 2011;41:91-101. De fato, os tomadores de decisão não devem esperar que regras de ação gerais e rigorosas sejam adequadas a cada situação particular. Em vez disso, eles precisam tentar entender as perspectivas e as experiências dos pacientes. Para julgar a qualidade de vida de uma criança cronicamente ventilada, é necessário, por exemplo, determinar quanto desconforto as aspirações causam.1313. Siegel LB. When staff and parents disagree: decision making for a baby with trisomy 13. Mt Sinai J Med. 2006;73:590-1. Pediatras também precisam melhorar suas habilidades para reconhecer os esforços que algumas crianças manifestam em uma luta pela sobrevivência.1010. Nuffield Council on Bioethics [homepage on the Internet]. Critical care decisions in fetal and neonatal medicine: ethical issues. 2006 [cited 2014 Jun 4]. Available from: http://nuffieldbioethics.org/wp-content/uploads/2014/07/CCD-web-version-22-June-07-updated.pdf
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Quarta fonte de incerteza: os tomadores de decisões

Alguns autores consideram que os pais e os membros da família devem ter autonomia ou autoridade, por procuração, sobre as decisões visando ao melhor interesse da criança. Essas decisões ocorrem em contextos socioculturais e de valores familiares.1414. Sade RM. The locus of decision making for severely impaired newborn infants. Am J Bioeth. 2011;11:39-40.,1515. Iltis AS. Toward a coherent account of pediatric decision making. J Med Philos. 2010;35:526-52. Médicos devem reconhecer a realidade de cada família e evitar o estrito racionalismo nas decisões técnicas.1616. Erickon SA. The wrong of rights: the moral authority of the family. J Med Philos. 2010;35:600-16. Por outro lado, os médicos europeus e latino-americanos geralmente pensam em si mesmos como responsáveis pela maior carga na tomada de decisão.1717. Devictor DJ, Tissieres P, Gillis J, Troug R, WFPICCS Task Force on Ethics. Intercontinental differences in the end-of-life attitudes in the pediatric intensive care unit: results of a worldwilde survey. Pediatr Crit Care Med. 2008;9:560-6. Eles também acham que os pais podem ter o juízo prejudicado em situações de estresse e deveriam ser protegidos contra a culpa em decisões irreversíveis.1818. Lago PM, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr (Rio J.). 2007;83:109-16.

Atualmente, as decisões compartilhadas são o consenso apoiado pela American Academy of Pediatrics.1919. Kon AA. The shared decision-making continuum. JAMA. 2010;304:903-4.,2020. Mercurio MR, Adam MB, Forman EN, Ladd RE, Ross LF, Silber TJ, et al. American Academy of Pediatrics policy statements on bioethics: summaries and commentaries: part 1. Pediatr Rev. 2008;29:e1-8. No entanto, a decisão compartilhada não é facilmente praticada e ocorre dentro de um continuum de possibilidades, variando de decisões que dependem principalmente dos médicos a decisões majoritariamente dos pais. A decisão deve finalmente objetivar coerência com os desejos, crenças e valores dos pacientes e dos pais.

Para entender as perspectivas e valores do paciente, os médicos precisam reconhecer deficiências relacionais, desenvolver habilidades de percepção e a capacidade de escuta, os quais representariam uma mudança cultural. As qualidades que devem possuir incluem a compaixão, a humildade e a coragem, assim como a capacidade de viver com suas próprias dúvidas.1313. Siegel LB. When staff and parents disagree: decision making for a baby with trisomy 13. Mt Sinai J Med. 2006;73:590-1.

Futilidade terapêutica e limitação do suporte vital

Conforme apresentado, incertezas cercam o tratamento de crianças com múltiplas malformações congênitas. No entanto, se o tratamento já está definido como fútil, a decisão deve ser contra a manutenção da vida a qualquer custo. A obstinação pode refletir apenas a incapacidade de aceitar os limites do tratamento e morte, com base nas crenças de reverência pela vida ou nos poderes curativos da medicina.

Na década de 1990, Dunn já considerava justificável limitar o suporte vital para três grupos de crianças: as extremamente prematuras que apresentam problemas graves, como a hemorragia periventricular; aquelas com malformações graves e aquelas com lesão neurológica grave.2121. Dunn PM. Life saving intervention in the neonatal period: dilemmas and decisions. Arch Dis Child. 1990;65:557-8.

Uma vez tomada a decisão pela limitação de suporte de vida, surgem novas incertezas relativas a questões jurídicas e biomédicas. O aspecto legal pode ser exemplificado pela existência ou não de uma legislação específica sobre fim de vida a ser seguida ou de uma Comissão de Bioética local a ser consultada. A questão biomédica mais importante a ser abordada é o método de limitação do suporte vital: a não oferta ou a retirada de terapias e procedimentos. Atualmente, a maioria das mortes em unidades de terapia intensiva por limitação do suporte vital se dá por meio da não oferta de tratamento, como um comando de “não reanimar”.2222. Fontana MS, Farrell C, Gauvin F, Lacroix J, Janvier A. Modes of death in pediatrics: differences in the ethical approach in neonatal and pediatric patients. J Pediatr. 2013:162:1107-11.,2323. Lago PM, Piva J, Garcia PC, Troster E, Bousso A, Sarno MO, et al. End-of-life practices in seven Brazilian pediatric intensive care units. Pediatr Crit Care Med. 2008;9:26-31. Bebês extremamente prematuros são a maior população. A Sociedade Francesa de Neonatologia também considera justificável a retirada do tratamento de suporte de vida se a intenção é evitar uma oposição improcedente ao curso natural de uma doença.2424. Dageville C, Bétrémieux P, Gold F, Simeoni U, Working Group on Ethical Issues in Perinatology. The French Society of Neonatology's proposals for neonatal end-of-life decision-making. Neonatology. 2011;100:206-14.

Quando as crianças passam por muitas complicações durante hospitalizações prolongadas, o suporte terapêutico raramente prolonga a vida, mas sim o processo da morte.2525. Janvier A, Leuthner SR. Chronic patients, burdensome interventions and the Vietnan analogy. Acta Paediatr. 2013;102:669-70.

CONCLUSÕES

Considerando todas as fontes de incerteza discutidas, assumimos que não existem regras ou modelos simples para decidir sobre o investimento em tratamento e suporte vital para crianças com múltiplas malformações congênitas. A fronteira entre obstinação terapêutica e tratamento de benefício duvidoso permanece obscura.

Não há critérios para a elaboração de um prognóstico preciso e tampouco métricas para qualificar uma vida que vale a pena viver que possam fornecer uma única resposta - a certa. Na verdade, os valores são o que importa. No passado, consideravam-se somente os valores da família. No entanto, não só neste caso particular de abandono como também na perspectiva da tomada de decisão compartilhada, os valores dos médicos também contam. O lugar que um médico ocupa no continuum do processo de tomada de decisão é, certamente, uma decisão em si; é, também, uma responsabilidade.

Portanto, nós também gostaríamos de enfatizar a responsabilidade profissional na melhoria da habilidade de julgamento clínico a fim de fazer boas escolhas, envolvendo aspectos técnicos e éticos. Médicos e profissionais de saúde devem ser capazes de perceber expressões ilimitadas dos pacientes quanto às suas necessidades e demandas.

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  • Financiamento Este estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2017
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2016
  • Aceito
    07 Jul 2016
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