RESUMO
Este estudo é um ensaio que visou analisar de forma crítica a abordagem punitivista do sistema de justiça criminal no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher e apontar caminhos alternativos, sem, contudo, descartar as contribuições de um referencial feminista. Busca uma congruência entre os pontos relativos à criminologia crítica do direito penal com o enrijecimento do sistema punitivista, a fim de averiguar se o modo de tratamento da Lei Maria da Penha é o mais adequado. O sistema de justiça percebe a mulher como objeto inserido em um esquema predeterminado de violência, e, a partir disso, nega-lhe voz. Proteger mulheres refere-se diretamente a fortalecer as mulheres e a conferir a elas papel de protagonista da própria vida. A justiça restaurativa pode ser usada como incrementadora da democracia brasileira, facilitando a chamada 'criação coletiva da justiça' e potencializando o efeito efetivamente justo das decisões e fortalecimento da cidadania, desde que bem estruturada.
PALAVRAS-CHAVE
Criminologia; Direito penal; Feminismo; Violência contra a mulher
ABSTRACT
This study is an essay that aims to analyze critically the punitivist approach of the criminal justice system in the context of domestic and family violence against women, as well as to point out alternative paths, without, however, discarding the contributions of a feminist referential. It seeks a congruence between the points relative to the critical criminology of criminal law with the stiffening of the punitivist system, in order to investigate whether the mode of treatment of the Maria da Penha Law is the most appropriate. The justice system perceives the woman as an object inserted in a predetermined scheme of violence, and from that it denies her voice. Protecting women is directly related to strengthening women, and giving them the role of protagonist in their own lives. Restorative justice can be used as leverage of Brazilian democracy, facilitating the so-called 'collective creation of justice' and maximizing the effectively fair effect of decisions and the strengthening of citizenship, provided that it be well structured.
KEYWORDS
: Criminology; Criminal law; Feminism; Violence against women
Introdução
Este estudo é um ensaio que visa analisar de forma crítica a abordagem punitivista do sistema de justiça criminal no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher; e apontar caminhos alternativos, sem, contudo, descartar as contribuições de um referencial feminista. Abre-se mão de uma investigação aprofundada da tipologia das epistemologias feministas, pela incompatibilidade com os objetivos propostos, concebendo o movimento feminista como aquele que impulsionou a promulgação da Lei Maria da Penha11 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006., e que tem como uma de suas bandeiras a garantia da segurança das mulheres no âmbito das relações domésticas. Isso não significa reduzi-lo à categoria de esquerda punitiva22 Karam ML. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim do IBCCRIM. 2006; 14(168):6-7., mas revelar paradigmas expostos pelo feminismo para estabelecer diálogo entre as vertentes do movimento, a criminologia crítica e o direito penal.
Ademais, não há um só feminismo. Eles são múltiplos coletivos, movimentos, grupos e linhas de pensamento que se identificam como feministas. Cada escritor feminista, homem ou mulher, apresenta uma abordagem influenciada pelo seu histórico de vida, sua formação, sua raça, sua ideologia e sua classe social.
Não se desconhece, portanto, a crítica à universalização do movimento feminista e de suas consequentes reivindicações. Ribeiro33 Ribeiro D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; 2017., ao alertar para as diversas condições existenciais das mulheres, afirma que as consequências vividas por cada uma delas, em razão da condição de ser mulher, não são coincidentes. Assim sendo, a autora aponta “a universalização da categoria mulher” como o grande dilema que o “feminismo hegemônico enfrenta”33 Ribeiro D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; 2017.(21).
A despeito do reconhecimento de que a opressão racial configura um vetor de violência, opta-se por não abordá-la, pois o enfoque é articular o Sistema Justiça Criminal (SJC) à violência doméstica contra a mulher, pretendendo, de forma universal, identificar, em linhas gerais e genéricas, as pautas feministas, isto é, comuns a todas as mulheres.
Nessa linha, Tiburi44 Tiburi M. Feminismo em comum, para todas, todes e todos. São Paulo: Rosa dos tempos; 2018.(11) trata de um “feminismo em comum”, consolidado como luta de todos, a partir do envolvimento em um processo realmente democrático, em busca da igualdade entre homens e mulheres. Busca-se, tão somente, a libertação de padrões patriarcais e a promoção dos direitos das mulheres já retirados há tanto no passar da história.
O feminismo pode ser definido como uma postura ético-política que nos ajuda a perguntar sobre a felicidade das pessoas que vivem em uma sociedade opressiva. Assim, o feminismo de cada uma
entra em jogo com os feminismos possíveis das outras mulheres, os feminismos preexistentes e que se recriam, redefinem tempos e espaços e, ao mesmo tempo, relacionam-se ao 'feminismo' em um sentido genérico44 Tiburi M. Feminismo em comum, para todas, todes e todos. São Paulo: Rosa dos tempos; 2018.(42).
É imprescindível destacar, ainda conforme a autora, que
feminismo no singular não reduz o movimento a uma unidade, que consiste, numa categoria patriarcal, mas traduz em verdade o 'comum' e a presença de singularidades44 Tiburi M. Feminismo em comum, para todas, todes e todos. São Paulo: Rosa dos tempos; 2018.(43).
No Brasil, a grande mudança no direito foi a partir do ano de 1988, com a promulgação da Constituição Federal55 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., que equiparou formalmente homens e mulheres. Todavia, a consolidação no campo cível só aconteceu com o Código Civil de 200266 Brasil. Código Civil. 53. ed. São Paulo: Saraiva; 2002.. No campo penal, nunca existiu diferença no tratamento dado ao homem e à mulher quando praticavam crimes, porém existia uma diferenciação entre as próprias mulheres quando essas fossem vítimas de crimes sexuais, a qual só foi superada, no plano legal, em 2005, com o advento da Lei nº 11.106/200577 Brasil. Lei nº 11.106/2005, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal e dá outras providências. Diário Oficial da União. 29 Mar 2005., que alterou certos dispositivos do Código Penal88 Brasil. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal [internet]. Diário Oficial da União. 31 Dez 1940. [acesso em 2018 abr 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
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, principalmente no que diz respeito aos chamados “crimes contra os costumes”, a fim de resguardar a posição e a proteção da mulher. Não há dúvidas de que, para que fosse possível realizar essa modificação legislativa em busca da igualdade formal entre o masculino e feminino, foi necessária uma verdadeira 'luta' dos grupos feministas.
Hoje, é praticamente unânime a ideia de que a violência não faz parte da natureza humana nem tem raízes biológicas. Trata-se de um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, mas seu espaço de criação e desenvolvimento é a vida em sociedade. Portanto, para entendê-la, há que se apelar para as especificidades históricas. Daí se conclui, também, que, na configuração da violência, cruzam-se problemas da política, da economia, da moral, do direito, da psicologia, das relações humanas e institucionais, e do plano individual88 Brasil. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal [internet]. Diário Oficial da União. 31 Dez 1940. [acesso em 2018 abr 4]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
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. Nesse cenário, dada a longa experiência da saúde pública na intervenção comunitária, trata-se de um âmbito no qual ela pode lograr êxito, caso se articule ao serviço social e de orientação familiar, como também aos profissionais de saúde mental, em sua atuação de prevenção em todos os níveis99 Minayo MCS. Violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde pública. 1994; 10(S1):7-18..
Verifica-se que a violência doméstica é um problema cuja prevenção tem que atuar, em primeiro lugar, na sensibilização e no avanço da consciência social. Os métodos e as técnicas para os profissionais de saúde, juntamente com outros setores e com as comunidades locais, têm-se revelado eficazes quando avaliados1010 Deslandes SF. Prevenir e proteger: análise de um serviço de atenção aos maus tratos na infância [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1993., sobretudo na quebra do ciclo repetitivo que contribui para alimentar a violência social em geral1111 Olds DL. Preventing child abuse and neglect: a randomized trial of nurse home visitation. Rockville Pike: Pediatries; 1986..
A compreensão das caracterizações da violência doméstica contra a mulher, a partir de uma perspectiva de violência de gênero, revelou-se necessária para que o sistema de justiça alcançasse efetivamente o objetivo de salvaguardar direitos. A violência de gênero é um conceito mais amplo que o de violência contra a mulher e abrange não apenas as mulheres, ela é produzida e reproduzida nas relações de poder em que se entrelaçam as categorias de gênero, classe, raça/etnia. Expressa uma forma particular da violência global mediatizada pela ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar e de controlar as mulheres, podendo, para isso, usar a violência1212 Saffioti HIB, Almeida SS. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter; 1995..
A cessação da violência que acontece em uma relação afetiva normalmente depende de intervenção externa, pois, até que a mulher consiga se desvincular do agressor sem tal intervenção, verifica-se a existência de um histórico de oscilações na estabilidade da relação. É possível ressaltar que as estratégias utilizadas tanto pelos agressores quanto pelas vítimas para contornar os episódios de violência podem se estender por décadas. Em razão dessa problemática, torna-se imprescindível que o fenômeno seja analisado. Entretanto, há quem considere as mulheres do referido tipo de relação “não sujeitos” e, por consequência, “passivas”1313 Saffioti HIB. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo Perspec. 1999; 13(4):82-91.(83). A autora afirma ainda que a violência doméstica apresenta características específicas. Uma das mais relevantes é sua rotinização, o que contribui tremendamente para a codependência e para o estabelecimento da relação fixada.
As violências física, sexual, emocional e moral costumam ocorrer em conjunto. Nesse sentido, pode-se afirmar que a violência emocional estará sempre presente, assim como a violência moral; sobretudo em se tratando de violência de gênero, e, mais especificamente, intrafamiliar e doméstica, pois são muito tênues os limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o destino de gênero traçado para as mulheres: sujeição aos homens; sejam eles pais ou maridos.
Muitos são os fatores que levam as mulheres a permanecerem no relacionamento abusivo. Entretanto, dois deles se destacam: o desequilíbrio de poder e a intermitência do abuso1414 Henderson AJZ. He loves me; he loves me not: attachment and separation resolution of abused women. Columbia Britânica: Simon Fraser University; 1992.. Em razão do desequilíbrio de poder, ao longo da relação, a mulher dominada se torna cada vez menos capaz de viver e de ser independente sem o amparo do dominador. Essa dominação pode ser física, financeira e psicológica. A intermitência do abuso, por sua vez, gera a expectativa na mulher de que o homem pode mudar seu comportamento abusivo. A alternância entre as fases calmas e amorosas e as de abuso, contaminadas por violência, criam o paradigma da teoria do reforço intermitente, que já se revelou ser um dos modelos mais eficazes de aprendizado, produzindo padrões de comportamento persistentes e extremamente difíceis de serem rompidos.
O ciclo da violência sugere um padrão de comportamento de alta complexidade e intensidade nas mulheres vítimas de violência doméstica. A dominação propicia o surgimento de condições para que o homem se sinta legitimado a fazer uso da violência e para compreender a inércia da mulher vítima da agressão, principalmente no que tange às reconciliações com o companheiro agressor, após reiterados episódios de violência.
Assim, nota-se que a luta feminista está diretamente relacionada com os fatores de violência, sendo certo que a compreensão da necessidade de busca de igualdade, de rompimento com a ideologia patriarcal e de fortalecimento das mulheres deve influenciar a atuação do SJC. Os conceitos de feminismo e violência de gênero são confluentes e, portanto, necessários à compreensão do SJC que pretende atender a demanda de violência doméstica.
Lei Maria da Penha à luz da criminologia crítica e da criminologia feminista
Andrade1515 Andrade VRP. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Rev. Sequência. 2005; 26(50):71-102. assevera que o SJC constitui o objeto criminológico central do nosso tempo, e veio a sê-lo, inclusive, sob o influxo do feminismo, no tratamento que imprime à mulher. Assim, para entender esse sistema à luz da Lei Maria da Penha e das criminologias crítica e feminista, é preciso compreender o seu nascimento.
Inicialmente, no período referente à Escola Clássica do Direito Penal (século XVIII), o pensamento criminológico apresentava certa unidade ideológica, já que possuía como problemática comum e central os limites e as justificativas do poder de punir ante a liberdade individual1616 Mendes SR. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva; 2017.. Buscava-se racionalizar o poder punitivo e garantir que as intervenções estatais não fossem arbitrárias, relacionando-se a problemática do crime com ideais filosóficos e o ethos político do humanismo racionalista1717 Lombroso C. O homem delinquente. São Paulo: Ícone; 2013.. Esse período, contudo, não se confunde com a linguagem dos direitos humanos do pós-guerra, apesar de ser a linguagem do indivíduo e das garantias individuais. O pensamento criminológico não alcançou ou sequer mencionou a condição de repressão e de perseguição às mulheres, de modo que o garantismo da escola clássica em nada refletiu para elas.
Superado esse período, denominado clássico, a criminologia moderna se relaciona ao estudo do delinquente. Lombroso1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999. fundou a chamada 'antropologia criminal', classificando os delinquentes e entendendo o crime como uma manifestação da periculosidade de um indivíduo, de modo que a pena não é definida como um castigo, mas como um meio de defesa social proporcional e ajustado à periculosidade do criminoso, e não à gravidade objetiva da infração cometida.
Os estudos sobre a criminalidade serviram-se do paradigma etiológico, próprio das ciências naturais; a criminalidade compreendida como uma qualidade ontológica de comportamentos e pessoas. As teorias próprias da criminologia positivista diferenciavam os indivíduos 'criminosos' dos 'normais' a partir de características biológicas e psicológicas. Essa compreensão fundada na psicologia e na filosofia do positivismo naturalista predominou entre o século passado e o princípio deste1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999.. Essa forma de estudar o criminoso, e não o delito em si, fez nascer uma disciplina científica autônoma, que voltava o olhar ao homem delinquente, considerando-o como alguém diferente e que merece, portanto, observação exclusiva1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999..
A criminologia, originariamente, teve por objeto estudar os fatores que determinam o comportamento do criminoso para combatê-los (paradigma etiológico), principalmente a partir de práticas que mudassem o próprio delinquente, tendo em vista as suas características biopsicológicas (correcionalismo)1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999.. Não há, neste momento, reflexões acerca da ordem estabelecida, ou questionamento de ordem política sobre o contexto da criminalidade, assumida a perspectiva do determinismo e da periculosidade do criminoso. Dessa forma, sob a égide da antropologia criminal, ergue-se o paradigma etiológico, no qual se buscam as causas da criminalidade, visando encontrar os remédios para combatê-las.
Nessa linha, foi gerada uma divisão entre o que viria a compor o “(sub)mundo da criminalidade”1616 Mendes SR. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva; 2017.(41) e o mundo. Assim,
no (sub)mundo a criminalidade está equiparada à marginalidade e composta por uma 'minoria' de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o 'mal'). Enquanto que no mundo, decente, da normalidade, está a maioria da sociedade, (o 'bem')1616 Mendes SR. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva; 2017.(41).
A partir dessa simplificação, a criminalidade resta afastada dos conceitos de violência institucional e estrutural. A potencial periculosidade social, identificada como anormalidade, é o centro do direito penal para essa perspectiva positivista.
A justificativa da pena assenta-se, portanto, enquanto meio de defesa social e seus fins socialmente úteis. Nesse contexto, a utilidade se dá pela prevenção especial positiva, assentada na ideia de recuperação dos criminosos a partir da execução penal. Assim, o direito penal não é problematizado, já que, basicamente, somos divididos entre cidadãos de bem e mal, e para os maus existe o direito penal1616 Mendes SR. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva; 2017.. As questões políticas e sociais que envolvem a criminalidade são negligenciadas. Pela análise de características biológicas e psicológicas, seria possível classificar a humanidade entre 'normais' e criminosos, entre 'bons' e 'maus'.
Esse conceito de crime natural muda drasticamente, a partir de um novo olhar que surge nas décadas de 1960 e 1970, quando o estudo da criminalidade adota novos paradigmas: o interacionismo simbólico e a etnometodologia. As análises culminaram na percepção de que o SJC a um só tempo reflete a realidade social e concorre para a sua reprodução: a injusta distribuição de poder e serve para manter a desigualdade de recursos1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999..
Nesse momento, o objeto da criminologia, antes o homem delinquente, depois o desvio, movimenta-se para a produção social do desvio e do delinquente1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999.. Passa-se a abordar a ação do sistema penal na construção do status delinquente, em uma produção de etiquetas e de identidades sociais. Com o labeling approach, opera-se a substituição de um modelo estático e monolítico de análise para um modelo dinâmico e contínuo, tendo como epicentro desse marco epistemológico o controle social e suas consequências1616 Mendes SR. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva; 2017..
A criminologia crítica surge a partir da sistematização das relações entre a questão criminal, as condições sociais e de mercado de trabalho e o sistema penal. O sistema penal passa a ser compreendido como necessário à manutenção do sistema capitalista, como forma de controle das camadas mais pobres e garantia dos meios de produção. A criminologia crítica supera a característica meramente descritiva e desprovida de força do labeling approach e alcança uma análise profunda do sistema, identificando o trabalho de seleção e estigmatização do sistema penal.
Para a criminologia crítica, o sistema penal nasce com uma contradição: de um lado, afirma a igualdade formal entre os sujeitos de direito, de outro, convive com a desigualdade substancial entre os indivíduos, que determina a maior ou menor chance de alguém ser etiquetado como criminoso1919 Batista N. "Só Carolina Não Viu": violência doméstica e políticas criminais no Brasil. In: Mello AR. Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Iuris; 2009.. Nesse particular, importa ressaltar que as análises promovidas pela criminologia crítica, referentes ao direito penal mínimo, balizam a despenalização com base em paradigmas de classe e etnia1818 Baratta A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1999..
Se as críticas oriundas da criminologia e do discurso penal crítico constantemente consideram em suas análises as relações de classe e de etnia sobre o exercício do controle formal (homem pobre e geralmente negro em relação ao homem branco e de posses), é praticamente inexistente a perspectiva a partir das relações de gênero. Entretanto, ao excluírem esse recorte, acabam reduzindo a complexidade da análise e sofrem o que se poderia denominar 'complexo de gênero' ou 'complexo de misoginia'2020 Campos CH, Carvalho S. Violência doméstica e juizados especiais criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Rev. Estud. Fem. 2006; 14(2):409-422..
Baratta2020 Campos CH, Carvalho S. Violência doméstica e juizados especiais criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Rev. Estud. Fem. 2006; 14(2):409-422. aponta, citando Smaus, que muito embora o paradigma da reação social, virada importante nos estudos em criminologia, de ordem bastante progressista, fosse contemporâneo ao feminismo, não houve um aproveitamento recíproco entre essas duas epistemologias. Nesse sentido, Campos e Carvalho2020 Campos CH, Carvalho S. Violência doméstica e juizados especiais criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Rev. Estud. Fem. 2006; 14(2):409-422.(411) entendem que:
A categoria 'gênero', ao maximizar a compreensão do funcionamento do sistema penal, social e político, desvela a aparência de neutralidade e de imparcialidade ('assepsia jurídica') e o tecnicismo dogmatizante com o qual se formulam os discursos jurídicos e cujo resultado é ofuscar e legitimar a visão predominantemente masculina. Nota-se, pois, no que tange à fenomenologia da violência tratada pela Lei nº 9.099/95, que não se trata de ofensas comuns, mas dessa forma específica de violência dirigida contra as mulheres.
Considerar os recortes de gênero como paradigmas nos estudos em criminologia crítica constitui, de acordo com Andrade1515 Andrade VRP. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Rev. Sequência. 2005; 26(50):71-102., o terceiro grande momento histórico e epistemológico necessários à compreensão da criminologia.
A criminologia, como a ciência da criminalidade do crime e do criminoso, transformou-se e está a se transformar, cada vez mais, em uma teoria crítica e sociológica do SJC, ocupando-se, fundamentalmente, da análise de sua complexa fenomenologia e funcionalidade nas sociedades capitalistas e patriarcais2121 Baratta A. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: Campos CH. Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina; 1999..
Paradoxalmente, o movimento feminista e a criminologia crítica lutam pela defesa dos direitos humanos e possuem natureza emancipatória, mas embora tenham essa raiz política em comum, não se aproximaram academicamente2222 Andrade VRP. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção de cidadania. Florianópolis: UFSC; 1997.. Assim, é importante trazer para dentro da criminologia o referencial de gênero para romper com a ideologia da repressão.
A partir desses novos paradigmas (ideologias capitalista e patriarcal), Andrade1515 Andrade VRP. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Rev. Sequência. 2005; 26(50):71-102. estudou como o SJC atua sobre as mulheres relativamente à violência sexual e concluiu que trata-se de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres, e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas. Ademais, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente se inicia na família, em vez de proteger, o SJC duplica a vitimação feminina, pois, além da violência representada por diversas condutas masculinas, a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando os estereótipos inerentes a essas duas formas de desigualdade.
Ao analisar a Lei Maria da Penha à luz da criminologia crítica, Montenegro2323 Montenegro M. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Renavan; 2015. aponta para: a ineficácia do sistema penal ante a violência contra a mulher, tendo em vista a impossibilidade de impedir a prática de novos crimes; o fato de não escutar os interesses das vítimas nem ajudar a compreender a própria violência, tampouco contribuir para uma melhor relação entre os gêneros, afastando o protagonismo da vítima; a violência institucionalizada da estrutura do sistema de justiça também patriarcal. A autora explica que, ao passar pelo SJC, as vítimas estariam experimentando novamente a discriminação e a humilhação da violência inicial.
A partir de novas categorias e de novos paradigmas, a criminologia crítica busca um novo referencial, afastado da concepção de uma ciência feita por homens sobre mulheres. Identificar o papel de objeto ocupado pela mulher historicamente permite perceber que o direito penal nunca na história foi aliado das lutas femininas2323 Montenegro M. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Renavan; 2015..
Outros caminhos: justiça restaurativa
Reconhecer formas alternativas de tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher diversas das perspectivas punitivistas pode ser o resultado da aproximação entre o movimento feminista e a criminologia crítica.
Buscar o diálogo entre os movimentos emancipatórios é condição precípua para encontrar uma resposta adequada à violência e aos processos subjetivos a ela inerentes, já que o encontro dessa resposta exige uma análise real de como a violência se desenvolve e atua verdadeiramente no SJC. Assim, é importante avaliar instrumentos de justiça restaurativa como novas modalidades de resolução do conflito, superando o modelo binário da justiça criminal de vítima e réu. A justiça restaurativa tem o escopo de focar no dano sofrido, dando maior protagonismo à vítima, e não necessariamente à punição do acusado, uma vez que o sistema punitivo, como se mostra nos tempos atuais, mostra-se insuficiente para suprir as demandas da sociedade.
A justiça restaurativa é uma espécie de sistema do qual emergem diversas modalidades, sendo uma delas a mediação, que coloca seus atores como protagonistas, não conferindo apenas ao juiz o poder de decidir o futuro daquelas pessoas que ali pretendem dar uma solução para o problema que se apresenta.
Tais modalidades servem para que os litígios a serem administrados pela justiça não se reduzam a mera condição de crime, de modo a possibilitar a resolução do conflito da forma mais adequada e menos onerosa possível para as partes envolvidas, e não apenas uma resposta estatal a um fato típico, ilícito e culpável, como se vê na lógica de justiça punitivista2424 Achutti D. Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça terapêutica, instantânea, restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2009.. Nesse sentido, conforme ensina Walgrave2525 Walgrave L. Restorative justice, self-interest and responsible citizenship. Cullompton (Reino Unido); Portland (EUA): Willan Publishing; 2008.(15):
Todas as tendências de movimentos, e uma multiplicidade de iniciativas intuitivas separadas, conduziram a um reino de práticas, movimentos sociais, formações teóricas, reflexão ética e pesquisa empírica, que hoje é referida como 'justiça restaurativa'.
A justiça restaurativa pode ser vista como um “movimento social global que apresenta enorme diversidade”, e que possui como maior meta a transformação da forma como as sociedades contemporâneas “percebem e respondem ao crime e a outras formas de comportamentos problemáticos”2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(5).
Dessa forma, o Estado deixaria de ser o único produtor da decisão, estando as partes mais responsáveis por encontrar uma solução para o caso, motivo pelo qual se torna necessária a atenção ao momento do surgimento da situação problemática. Ao dar essa atenção à origem do problema, o objetivo maior se torna a resolução de tais questões, a fim de “tornar as coisas melhores”, como aponta Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.. Na visão do autor, os princípios da justiça restaurativa devem se esforçar para encontrar certa harmonia, pois
a essência da Justiça Restaurativa não é a adoção de uma forma ao invés de outra; é a adoção de qualquer forma que reflita os valores restaurativos e que vise a atingir os processos, resultados e objetivos restaurativos2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(67).
É demasiadamente necessário enfatizar a importância de repensar continuamente as maneiras de dar resolução aos conflitos, uma vez que o processo penal não pode tratar toda infração como mera ofensa ao poder estatal, sendo necessário que a lógica punitiva ou restaurativa seja objeto de discussões e estudos, a fim de que se possa aprimorar cada vez mais seus mecanismos de atuação. Conforme afirmam estudos históricos a respeito do tema, o interesse pela justiça restaurativa, apesar de ter seu uso em momentos variados pelos sistemas de justiça ao redor do mundo,
no Ocidente surgiu a partir de um programa de reconciliação entre vítima e ofensor na cidade de Kitchener, Ontário (Canadá), no ano de 1974. Tratava-se de programas comunitários que buscavam mediar conflitos após a aplicação da decisão judicial2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(55).
Em sua origem, a partir do que é descrito por Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016., o que se pretendia era restabelecer as relações entre o autor do fato e a vítima. A partir de determinadas ressignificações, passou-se à utilização do termo 'mediação', que além de ser mais adequado, permitia que atores afetados pelo crime pudessem participar dos programas de justiça alternativa.
A priorização do estudo a respeito do tema esteve em vários momentos cunhada na evidente necessidade de 'descarcerização', no respeito ao direito dos presos e em um olhar mais aprofundado não só para o autor do fato, mas para a vítima, há muito negligenciada pelo próprio sistema, que, em tese, possuiria a prerrogativa de resguardar seus direitos.
Torna-se importante salientar que reconhecer a multiplicidade e complexidade das relações afetivas é imprescindível para que, a partir de novos paradigmas, os conflitos possam ser resolvidos e evitados. O valor simbólico da lei penal perde força diante da efetividade de uma ação articulada que se dispõe a tratar das questões conhecendo as suas raízes e atribuindo visibilidade ao processo de violência que resultou na agressão2727 Granjeiro IACL. A agressão conjugal mútua na perspectiva da justiça restaurativa: a Lei Maria da Penha sob questão [tese]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2012. 341 p..
Nesse diapasão, cumpre estabelecer, conforme ensina Sica2828 Sica L. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2007.(27), que “a justiça restaurativa foca as consequências do crime e as relações sociais afetadas pela conduta”. Seus mecanismos ocasionam a “alteração dos objetivos” e da “forma de proceder”, a fim de conduzir as partes a uma construção coletiva da decisão, salientada a peculiaridade de cada situação.
Visando à relevância dessas questões, em 2012, a Organização das Nações Unidas (ONU) editou a Resolução nº 2.0022929 Organização das Nações Unidas. Resolução nº 12, de 24 de julho de 2002. Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal. 37ª Sessão Plenária [internet]. Nova York: ONU; 2002 [acesso em 2018 abr 4]. Disponível em: http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf.
http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/...
, que teve o condão de estabelecer os princípios básicos de justiça restaurativa a partir do seu Conselho Social e Econômico, oportunidade na qual criou-se uma espécie de guia geral que poderá ou não ser adotado pelos países-membros. Composta por quatro seções, a Resolução mostra desde conceitos e valores básicos, passando por discussões a respeito da operacionalidade de tal sistema, e do incentivo à sua aplicação; por fim, apresenta diretrizes estruturais para as nações que buscam a implementação da tal alternativa.
As práticas restaurativas se dão conforme a necessidade local. Não sendo todos os casos adequados à sua aplicação, apresentando por si só uma similaridade com o direito civil, e que inclusive é um dos pontos apresentados por Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016. como obstáculos a uma reforma efetiva, uma vez que, conforme assevera o autor, a dicotomia entre o direito penal e o direito civil é colocada como pano de fundo da cultura jurídica brasileira.
Dentre as principais práticas, destacam-se: a mediação vítima-ofensor, buscando a reparação, compensação ou restituição do dano, podendo ocorrer de maneira direta ou indireta; a conferência restaurativa, apresentada como comunidades de apoio e os círculos de sentença e cura, em conjunto com comitês de paz, conselhos de cidadania e o serviço comunitário, que trabalham também com encontros e discussões que buscam a restauração do bem-estar e da paz social dos envolvidos e da sociedade. Tenta-se solucionar a complexidade apresentada, não utilizando o Estado como mero paliativo aos problemas, e, sim, como efetivo meio de promover a paz social, a partir de uma abordagem diversificada do agir criminoso. Esse último aspecto adentra o campo da criminologia, motivo pelo qual se deve ter em vista que a justiça restaurativa é um ramo dentro da corrente da criminologia crítica, na medida em que problematiza as origens da ação criminosa e aborda a violência estrutural.
Garapon2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016. define a justiça restaurativa como algo que não se funde nem exclusivamente no ato delitivo em si, tampouco na pessoa do criminoso vislumbrando sua 'ressocialização', mas no 'ato de unir pessoas' de modo a proporcionar 'novas perspectivas e novos olhares sobre a situação que as envolve':
Invariavelmente, a ideia central da justiça restaurativa está na pretensão de atribuir aos principais interessados – vítima, autor e grupo social diretamente afetado pelo delito – os recursos suficientes para reagir à infração. Já que não é mais possível 'pretender saber a priori melhor que os próprios interessados o que é bom para eles', melhor então 'despertar as suas competências particulares, adormecidas pelo paternalismo das instituições'2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(89).
Ela se consolida como sendo um movimento social ou uma corrente político-criminal oriunda do abolicionismo penal, que, por sua vez, possui suas raízes nos estudos relacionados com a criminologia crítica.
A fim de proporcionar reformas ao poder punitivo do Estado, sobretudo no caso da Lei dos Juizados Especiais3030 Brasil. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Diário Oficial da União. 27 Set 1995. e da Lei Maria da Penha11 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006., devem ser analisados todos os fatores que contribuem para a manutenção do sistema punitivo, apresentando-se como obstáculos ao pensamento crítico criminológico de mudança de paradigma. A falta de eficácia das estratégias mais brandas (muitas vezes por estarem mal estruturadas) somada à política de tolerância zero, usada como resposta exclusiva e enfática ao aumento da criminalidade, têm ocasionado a edição de inúmeras leis penais, aumento de penas e criação de novos tipos penais, reforçando o mito de que o sistema penal é a resposta concreta e correta para todas as demandas sociais nessa seara. Ao mesmo tempo, entre as opções percebidas a partir do processo penal, é possível destacar o chamado processo penal de emergência, assim definido:
Tal estratégia não passa de mero paliativo frente à criminalidade, uma vez que o processo penal não serve para combater o crime e o delinquente, mas tão somente para que ninguém seja penalizado sumariamente sem direito a defesa, contraditório, etc.2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(128).
Apesar de já ser possível perceber a adoção de determinadas práticas restaurativas dentro do sistema ora posto, para que seja possível a efetiva consolidação, é necessária uma mudança não só legislativa, mas de toda a cultura jurídica posta, no sentido de buscar a satisfação das partes.
A forte pressão midiática por reformas intolerantes e repressivas tem dificultado, em muito, qualquer tipo de tentativa de reforma que se proponha a ser, ao mesmo tempo, humanista e realista, no sentido de tentar resolver os problemas em suas raízes, sem sobrecarregar a justiça ou ampliar os poderes do magistrado. Nesse mesmo sentido, Pires3131 Pires A. Alguns obstáculos a uma mutação "humanista" do direito penal. Sociologias. 1999; 1(1):64-95. apresenta três fatores como principais obstáculos para a consolidação desse tipo de reforma: os princípios da racionalidade penal iluminista, o deficit democrático nacional e a formação de operadores desvinculados da realidade social.
O primeiro fator se relaciona intimamente com cinco searas de direitos: os direitos da pessoa, que, apesar de poderem ser vistos de uma maneira garantista ou de diminuição da repressão, acabam se tornando uma das justificativas para aumentá-la por meio do fortalecimento da ideia de que não há mediação ou conciliação que proteja a pessoa de delitos graves; o princípio da igualdade, que força os magistrados a prezarem pela uniformidade de suas decisões, menosprezando as peculiaridades caso a caso; a necessidade de punir, ou razão punitiva, nas concepções apontadas por Feuerbach, Kant e Beccaria3131 Pires A. Alguns obstáculos a uma mutação "humanista" do direito penal. Sociologias. 1999; 1(1):64-95.; as garantias jurídicas e a proteção da sociedade que, apresentando limites ao poder de punir, e ligados às teorias da pena do século XVIII a respeito da eficácia da lei penal e à promoção do bem-estar do povo, estabelecem, de maneira geral, que a questão não era “nem perdoar, nem resolver diferentemente os conflitos, deviam-se aplicar de maneira estrita os rigores da lei”3131 Pires A. Alguns obstáculos a uma mutação "humanista" do direito penal. Sociologias. 1999; 1(1):64-95.(87).
Sica2828 Sica L. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2007.(121) apresenta o que ele chama de 'noção moderna de justiça':
Esse hábito não é uma necessidade psicossocial, mas uma necessidade político-institucional, ligada, antes, ao processo de apropriação da justiça e, agora, à instrumentalização do direito penal para manter o distanciamento e o isolamento de determinadas pessoas e para rotular os 'inimigos' da sociedade (função diversiva do direito penal: esconder os problemas reais e mais graves, através da supervalorização e dramatização de alguns problemas selecionados).
No tocante ao segundo fator, é possível salientar que a abertura democrática da década de 1980 deve ser vista com cautela, já que temos o resultado facilmente observado de um sistema eleitoral e partidário 'desproporcional e frágil' que, em muito, contribuem para políticas repressivas e soluções práticas, além da evidente descrença do cidadão brasileiro com as instituições democráticas3232 Pastana DR. Justiça penal no Brasil contemporâneo: discurso democrático, prática autoritária. São Paulo: Unesp; 2009..
O terceiro obstáculo seria a formação de profissionais extremamente indiferentes e descomprometidos com as necessidades sociais que os cercam, fortalecendo uma cultura técnico-democrática contraposta ao pensamento crítico e a uma visão mais ampla do cenário social.
Finalmente, é adequada a conclusão de Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(145-146), quando assevera o seguinte:
A percepção das limitações do sistema oficial de justiça ultrapassou há um bom tempo as constatações empíricas dos operadores jurídicos e as conclusões no plano teórico da academia, e atingiu o legislador constituinte. Ao elaborar a Constituição de 1988, foi inserido um dispositivo que aponta para uma conclusão incontestável: é necessário instituir mecanismos diferenciados de resolução de conflitos no sistema judicial brasileiro, como forma de proporcionar uma maior satisfação aos demandantes, independentemente da natureza do conflito.
A aplicação da justiça restaurativa no âmbito da Lei Maria da Penha deve ser analisada com mais profundidade. Ao retirar os conflitos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher dos juizados especiais, devem ser analisados os prós e os contras da aplicação da referida lei, a fim de possibilitar maior compreensão e amplitude do tema.
Constata-se que uma forma de tornar o sistema mais eficaz seria a criação de estruturas de conciliação mais híbridas com profissionais não só jurídicos, em conjunto com a devida priorização de foco para que a vítima não seja apenas um instrumento processual, e assim não seja transmitida a ideia de que a violência é permitida desde que se pague o preço.
Com as providências devidamente apontadas acima, o que se espera é que a instauração da justiça restaurativa seja acompanhada de discussões e pesquisas a respeito dos prejuízos da cultura legalista e punitivista brasileira, democratizando o acesso à justiça “com redução drástica da distância entre o acesso formal ao Judiciário e o acesso material à justiça propriamente dita” 2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.(189).
Como refere Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016., o Brasil ainda não está preparado para um modelo consensual de justiça criminal, entretanto uma reforma que busque inserir uma lógica restaurativa no sistema penal não deve parecer uma surpresa. Além de alguns autores, como Campos3333 Campos CH. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In: Campos CH, organizadora. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2011., identificarem a Lei Maria da Penha como 'mista', por abarcar tanto aspectos punitivos quanto restaurativos, sabe-se que as experiências com a Lei Maria da Penha11 Brasil. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União. 7 Ago 2006. e a Lei nº 9.099/953030 Brasil. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Diário Oficial da União. 27 Set 1995. podem, em muito, contribuir para o aprimoramento do judiciário na garantia judicial de resguardar direitos.
Atualmente, alguns poucos tribunais do Brasil utilizam a técnica da justiça restaurativa, sendo certo que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ainda não adotou essa possibilidade como prática. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), contudo, incentiva a prática da justiça restaurativa por meio do Protocolo de Cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa e sua utilização em situações de violência doméstica, prevista na Resolução nº 225/2016. O recurso, contudo, não exclui o processo criminal, sendo a ele concomitante, podendo, inclusive, fazer parte da pena.
Os projetos de justiça restaurativa em parcerias com o Ministério da Justiça e o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), por meio do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, que se apresentaram mais visíveis foram os de: São Caetano do Sul, projeto educacional e jurisdicional implementado na Vara de Infância e Juventude, adotando o círculo restaurativo como modelo principal de responsabilidade dos assistentes sociais, tanto em sua realização e controle quanto no acompanhamento dos termos do acordo estabelecido, tendo sido reanalisado algumas vezes, como se espera de uma execução adequada; Porto Alegre, também na Vara Juvenil, sendo denominado Central de Práticas Restaurativas, que se originou do Projeto Justiça para o século XXI, cuja prática principal é também o círculo restaurativo, sendo considerado uma medida complementar e alternativa; Brasília, desenvolvido nos Juizados Especiais Criminais (Jecrim), tendo a mediação como procedimento principal, mas não engloba, entretanto, situações de violência doméstica, pela necessária separação que deve existir desde o advento da Lei Maria da Penha.
Em termos legislativos, há o Projeto de Lei nº 7.006/2006, que embora já tenha sido arquivado em duas oportunidades, encontra-se em trâmite na Câmara dos Deputados. Ele busca instituir e reconhecer a justiça restaurativa de maneira facultativa e complementar, sem especificar as práticas principais, e respeitados princípios constitucionais. Mesmo com as tentativas de implementação de medidas alternativas ao sistema punitivo, ainda não existe uma rede integradora que facilite a aplicação das medidas em conjunto, nem qualquer iniciativa de conscientização e organização mais enfática. A estrutura penal continua burocrática e distante da sociedade para quem atua.
Azevedo3434 Azevedo RG. A informalização da Justiça Penal no Brasil. Civitas: Revista de Ciências Sociais. 2001; 1(2):113-123.(119) apresenta outra necessidade dentro do tema:
é necessário criar novas instituições judiciais, renovar as antigas, tornando-as mais acessíveis, e investir no treinamento e remuneração não apenas de juízes e promotores, mas também de defensores públicos para as partes.
De acordo com Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016., um sistema de justiça restaurativa bem colocado tem por características primordiais: regulamentação legal do sistema; autonomia dos núcleos e serviços; visualização da peculiaridade caso a caso; participação ativa das partes envolvidas na lide; refutação de estereótipos que possam eventualmente ser atribuídos às partes; presença de profissionais metajurídicos; busca da satisfação das partes; e ligação com a justiça criminal tradicional, para que seja reduzido seu uso paulatinamente.
Conclui-se que a justiça restaurativa pode ser usada como incrementadora da democracia brasileira, facilitando a chamada 'criação coletiva da justiça' conforme apontamento de Achutti2626 Achutti D. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva; 2016.. Ela pode potencializar o efeito efetivamente justo das decisões e fortalecimento da cidadania, desde que bem estruturada.
Considerações finais
Indubitavelmente, repensar um sistema de justiça criminal não é uma tarefa fácil. Responder violência com punição é um lema (ou mito) que configura a essência dos seres humanos; e, dificilmente, em um momento de tantos retrocessos, alcança-se um progresso que exige avaliação refinada e honesta, não menos dolorosa, da realidade. Em momentos de retrocesso, a questão mais importante é reafirmar direitos, e não lapidar uma abordagem que apresenta falhas e contradições.
De toda sorte, em que pesem as novas lutas que se vislumbram para o movimento feminista diante do cenário político que se apresenta, reavaliar certas compreensões pode ser crucial para conquistas reais para as mulheres, e indispensáveis nesse momento.
A demanda por mais castigo, punição e segregação parece desconhecer as inúmeras dificuldades de uma confusa política criminal. A criminologia feminista revela a imperiosidade de enxergar que o sistema penal apresenta estratégia excludente, que recria desigualdades e preconceitos sociais. O direito penal sempre serviu à manutenção de um estado de coisas, e não à promoção de direitos humanos, sendo inegável a grande contradição que o alimenta. De um lado, afirma-se a igualdade formal entre os sujeitos de direito, mas, de outro, convive-se com a desigualdade substancial entre os indivíduos, que determina a maior ou menor chance de alguém ser etiquetado como criminoso.
Evidenciar a reprovabilidade de uma ação passa por caminhos mais tortuosos do que uma mera tipificação penal, o encarceramento ou qualquer ação judicial conservadora. Tornar socialmente inaceitável a agressão contra as mulheres exige 'lentes de gênero', e uma percepção refinada alcança a falibilidade de um sistema que perversamente é capaz de causar ainda mais dor. Os limites do sistema penal esbarram na exigência urgente de salvar as mulheres.
O sistema de justiça percebe a mulher como objeto inserido em um esquema predeterminado de violência, e, a partir disso, lhe nega voz. Proteger mulheres relaciona-se diretamente com fortalecer as mulheres, e conferir a elas papel de protagonista da própria vida.
Prosseguir ações penais a despeito do desejo das mulheres vítimas, baseando-se no argumento da vulnerabilidade absoluta, revela o quanto o direito feito por homens e interpretado por eles não tem por tradição reverenciar as mulheres. Reconhecer a vulnerabilidade para criação de medidas eficazes e urgentes é importante na promoção do direito das mulheres, mas isso não pode significar um sacrifício à dignidade delas, que concebidas como seres menores não podem dizer o que desejam da justiça.
O movimento feminista precisa saber que a tutela penal possui regras próprias e necessárias à salvaguarda do Estado Democrático de Direito, na medida em que, muito embora a violência doméstica contra a mulher seja recorrente, o sistema de provas no direito criminal não pode ser violado. Além dessa percepção, é preciso também lembrar a insuficiência do direito penal para lidar com as violências não tipificadas, os limites da tipicidade penal e a impossibilidade de as decisões evitarem tragédias. O questionamento, nos casos em que um agressor já denunciado, ou que já responda a um processo criminal, pratica novo fato, ou mesmo um feminicídio, não deveria ser o motivo pelo qual ele não estava preso. O questionamento deveria ser: por que ainda apostamos em um sistema punitivo? Desconstruir a forma com a qual tratamos as pessoas violentas, dentro de um poder autoritário e eminentemente conservador, exige uma reflexão intensa sobre como nos organizamos como sociedade. De toda forma, é preciso superar a ilusão de que um dia teremos uma lei penal ideal, policiais militares e civis capacitados e suficientes, prisões adequadas, juízes e funcionários da justiça em número satisfatório para atender às demandas de um sistema punitivo que nasceu e vive na expectativa de um dia funcionar de verdade.
Assim, as ponderações que exigem um autoexame dos juízes são: reconhecer a força de uma intervenção estatal punitiva e a vulnerabilidade das pessoas diante dessa intervenção; a potência de uma ação penal e a delicadeza das relações pessoais; compreender a violência contra as mulheres no âmbito doméstico demanda compreender a violência e as mulheres; melhorar a atuação judicial demanda investimento em medidas alternativas, menos autoritárias e mais consentâneas com a complexidade que envolve as formas de organização das relações interpessoais e o modo pelo qual a violência penetra nessas relações.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Dez 2019
Histórico
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Recebido
29 Jul 2019 -
Aceito
23 Out 2019