Resumo
Este estudo objetiva caracterizar e analisar a resiliência familiar em famílias de crianças com síndrome de Down. Participaram cinco famílias compostas por pai, mãe e filhos, tendo um deles a síndrome. Os instrumentos utilizados foram o Questionário de Caracterização do Sistema Familiar, o qual foi respondido pela mãe; o Inventário de Estratégias de Coping, o qual ambos os genitores responderam separadamente; e entrevistas com genitores e filhos com desenvolvimento típico. As famílias foram visitadas em três momentos. Os resultados indicam que diante de eventos ruins, principalmente, dos problemas de saúde relacionados à síndrome de Down, as famílias apresentam capacidade de extrair sentido da adversidade, bem como de se organizar de forma cooperativa, com diálogo e estreitamento dos vínculos. Em todas as famílias foram identificados indicativos de resiliência familiar. A estratégia de coping mais utilizada é a reavaliação positiva, enquanto a menos utilizada é fuga-esquiva.
Palavras-chave:
Coping; Família; Resiliência familiar; Síndrome de Down.
Abstract
This study aims to characterize and analyze family resilience in families of children with Down syndrome. Five families consisting of father, mother, and children, one child with Down syndrome, participated in this research. The instruments used were: the Characterization of Family System Questionnaire, which was answered by the mother; the Coping Strategies Inventory, which was responded by both parents separately; and interviews conducted with parents and typically developing children. The families were visited three times. Results indicate that in the face of bad events, mainly health problems related to Down syndrome, the families showed ability to make meaning or sense of adversity, and to organize themselves in a cooperative way with dialogue and closer ties. Family resilience was observed in all families investigated. The most frequently used coping strategy was positive reappraisal, while the less frequently used was escape-avoidance.
Keywords:
Coping; Family; Family resilience; Down syndrome.
Segundo Black e Lobo (2008Black, K., & Lobo, M. (2008). A conceptual review of family resilience factors. Journal of Family Nursing14(1), 33-55.), a resiliência familiar representa o sucesso no enfrentamento de situações adversas pelos membros familiares. Esse construto está baseado em evidências de que todas as famílias têm pontos fortes e potenciais para o crescimento. Walsh (1996Walsh, F. (1996). The concept of family resilience: Crisis and challenge. Family Process35(3), 261-281.) afirma que os membros são capazes de lidar de forma mais eficaz com períodos de crises ou tensões persistentes, englobando tanto o ambiente familiar quanto contextos fora dele. Ainda de acordo com Walsh (2005)WalshF. (2005). Fortalecendo a resiliência familiarSão PauloRoca, a resiliência familiar apresenta três processos-chave, os quais são: sistemas de crenças, padrões de organização e processos de comunicação.
O sistema de crenças é definido como os valores, convicções e suposições que se misturam para desencadear um conjunto de reações emocionais, decisões e ações. Por conseguinte, algumas crenças podem intensificar as opções para a resolução de problemas e adaptação positiva, enquanto outras podem perpetuar os problemas. Os padrões de organização referem-se ao modo das famílias mobilizarem recursos, de resistirem ao estresse e de se reorganizarem para se adequar às condições modificadas. Os processos de comunicação caracterizam-se por serem diretos, nos quais os membros familiares são capazes de demonstrar e tolerar um amplo repertório de sentimentos, bem como resover problemas de forma cooperativa.
A resiliência familiar pode ser investigada associando-se também outros fatores, tais como as estratégias de coping (Grant, Ramcharan, & Flynn, 2007Grant, G., Ramcharan, P., & Flynn, M. (2007). Resilience in families with children and adult members with intellectual disabilities: Tracing elements of a psychosocial model., Journal of Applied Research in Intellectual Disabilities 20(6), 563-575.; Lazarus & Folkman, 1984Lazarus, R. S., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal and coping New York: Springer.; Van Riper, 2007Van Riper, M. (2007). Families of children with Down syndrome: Responding to "a change in plans" with resilience. Journal of Pediatric Nursing, 22(2), 116-128.). Essas estratégias referem-se a um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais exercidos pelos indivíduos com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas e externas, que surgem em situações de estresse e são avaliadas como sobrecarregando ou excedendo seus recursos pessoais (Lazarus & Folkman, 1984Lazarus, R. S., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal and coping New York: Springer.).
Sob essa perspectiva, apesar de algumas famílias de crianças com síndrome de Down relatarem o uso de estratégias de coping inadequadas (Cunningham, 1996Cunningham, C. (1996). Families of children with Down syndrome. Down Syndrome Research and Practice4(3), 87-95.), essas estratégias não têm sido correlacionadas a resultados eficazes no que se refere ao modo como o grupo familiar lida com os desafios na criação de uma criança com síndrome de Down. Assim, para Pesce, Assis, Santos e Oliveira (2004Pesce, R. P., Assis, S. G., Santos, N., & Oliveira, R. V. C. (2004). Risco e proteção: em busca de um equilíbrio promotor de resiliência. Psicologia: Teoria e Pesquisa20(2), 135-143.) as estratégias de coping mais voltadas para o enfrentamento direto dos problemas ou para a elaboração das dificuldades são mais encontradas em indivíduos em processo de resiliência, podendo moderar o efeito das adversidades. Em relação à síndrome de Down, Grant e Whitell (2000Grant, G., & Whittell, B. (2000). Differentiated coping strategies in families of children or adults with intellectual disabilities: The relevance of gender, family composition, and the life span. Journal of Applied Research in Intellectual Disabilities, 13(4), 256-275.) apontam que as famílias de crianças com deficiência intelectual desenvolvem processos de resiliência a partir da diversidade e têm alta frequência de adequadas estratégias de coping.
Nesse contexto, Silva (2007Silva, A. N. (2007). Famílias especiais: resiliência e deficiência mental (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.) procurou investigar a resiliência em famílias cujos filhos tinham o diagnóstico de deficiência intelectual. Para isso, foram feitos estudos de caso com três famílias a partir de entrevistas semiestruturadas, construídas com base nos processos-chave de Walsh (2005WalshF. (2005). Fortalecendo a resiliência familiarSão PauloRoca). Os resultados indicaram que as famílias conseguem lidar com a deficiência intelectual de maneira satisfatória, realizando até mesmo projeções para o futuro. As mesmas relataram que através do sofrimento têm se tornado mais fortes e unidas. Trata-se da capacidade de abstrair sentido positivo da adversidade e do estabelecimento de um novo significado para essa condição.
Van Riper (2007Van Riper, M. (2007). Families of children with Down syndrome: Responding to "a change in plans" with resilience. Journal of Pediatric Nursing, 22(2), 116-128.) realizou uma pesquisa com os objetivos de descrever a percepção materna acerca da adaptação parental e da família ao criar um filho com síndrome de Down e de examinar as relações entre as demandas e os recursos familiares, resoluções de problemas e coping, além da adaptação familiar. Foram utilizados diferentes instrumentos padronizados, como escalas, inventários e questionários, além de entrevistas. Participaram do estudo 76 mães de filhos com síndrome de Down com idade média de sete anos e seis meses.
De forma geral, as famílias tiveram níveis moderados de demandas familiares em relação ao filho com síndrome de Down. Nesse sentido, 70% das mães classificaram o funcionamento geral de sua família como a de qualquer outra e frequentemente relataram a falta de tempo para suas atividades sociais e recreativas. Quando as mães foram solicitadas a descrever como sua família estava, a maioria relatou que a mesma estava indo bem ou muito bem. Três variáveis (as demandas familiares, recursos da família e comunicação para resolução de problemas familiares) foram significativamente associadas com a adaptação saudável da família.
Nesse contexto, apesar de existirem pesquisas as quais já têm investigado a dinâmica e o funcionamento de famílias com filhos com deficiência intelectual ou com síndrome de Down a partir de uma perspectiva mais positiva (Silva, 2007Silva, A. N. (2007). Famílias especiais: resiliência e deficiência mental (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.; Van Riper, 2007Van Riper, M. (2007). Families of children with Down syndrome: Responding to "a change in plans" with resilience. Journal of Pediatric Nursing, 22(2), 116-128.), ainda existem lacunas sobre o assunto, especialmente considerando famílias com filho com síndrome de Down. Não se pode negar a relevância acadêmica e social desse tipo de investigação apesar da escassez de literatura envolvendo dados empíricos sobre resiliência em famílias com crianças portadoras da síndrome. Assim, o presente estudo tem o objetivo de caracterizar e analisar a resiliência familiar, descrevendo as estratégias de coping utilizadas pelos genitores.
Método
Participantes
Participaram cinco famílias, tendo sido respondentes os pais (n = 5), as mães (n = 5) e os(as) filhos(as) com desenvolvimento típico (n = 3), os quais moravam juntos em uma cidade do interior de Minas Gerais. Em relação às famílias, a média de idade das mães foi de 41,4 anos e dos pais, 48. Quanto à escolaridade, as mães possuíam ensino fundamental completo (n = 1), ensino fundamental incompleto (n = 1), graduação completa (n = 1) e pós-graduação (n = 2). Duas delas não trabalhavam fora de casa, outras duas eram costureiras e uma era fonoaudióloga. No que se refere aos pais, estes possuíam ensino fundamental incompleto (n = 1), ensino médio completo (n = 1), graduação (n = 2) e pós-graduação (n = 1). Dois deles eram empresários, um era técnico em eletrônica, outro era cabeleireiro e um era educador físico. A Tabela 1 apresenta os dados de forma mais detalhada.
Caracterização das famílias, por idade dos genitores, escolaridade e profissão. Minas Gerais (MG), Brasil
Para melhor descrição dos resultados, as famílias foram identificadas com a letra F, os pais com a letra P, as mães com M, os(as) irmãos(ãs) com I e as crianças com síndrome de Down com C, seguidos por um número, assim P1 é o pai na família F1, M2 é a mãe na família F2 e assim por diante.
Três famílias (F1, F2 e F3) tinham dois filhos biológicos, um com síndrome de Down e outro com desenvolvimento típico, nas demais (F4 e F5) havia somente um filho com a síndrome. Três crianças com síndrome de Down eram do sexo feminino (C1, C2 e C4) e duas do masculino (C3 e C5). No que se refere aos filhos com desenvolvimento típico, dois eram do sexo feminino (I1 e I2) e um do masculino (I3). A média de idade das crianças com a síndrome foi de cinco anos e dos(as) irmãos(ãs) com desenvolvimento típico de 11,6. A renda familiar variou de 2,18 a 27,6 salários mínimos, com média de 11,7, à época da coleta de dados, a qual ocorreu entre setembro de 2012 a janeiro de 2013. De acordo com a renda, duas famílias foram classificadas no nível socioeconômico A2 (F3 e F5), duas no nível B2 (F1 e F4) e uma no nível C2 (F2), de acordo com o Critério Brasil de Classificação Econômica (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2012).
Instrumentos
Foram utilizados os seguintes instrumentos: Questionário de Caracterização do Sistema Familiar (Dessen, 2009Dessen, M. A., & Cerqueira-Silva, S. (2009). Desenvolvendo sistemas de categorias com dados de entrevistas. In L. Weber & M. A. Dessen (Eds.), Pesquisando a família: instrumentos para coleta e análise de dados (pp.43-56).. Curitiba: Juruá ), Inventário de Estratégias de Coping e entrevistas. O Questionário investigou dados demográficos, sociais e a rotina das famílias, caracterizando o sistema familiar.
O Inventário de Estratégias de Coping, adaptado por Savoia, Santana e Mejias (1996Savoia, M. G., Santana, P., & Mejias, N. P. (1996). Adaptação do inventário de estratégias de coping de Folkman e Lazarus para o português. Revista Psicologia USP7(1-2), 183-201.) do original de Folkman e Lazarus (1985Folkman, S., & Lazarus, R. S. (1985). If it changes it must be a process: Study of emotion and coping during three stages of a college examination. Journal of Personality and Social Psychology48(1), 150-170.), objetivou identificar as estratégias de coping utilizadas pelos genitores participantes do estudo. Trata-se de um inventário composto por 66 itens os quais descrevem pensamentos e ações que as pessoas podem utilizar para lidar com demandas internas ou externas de um determinado evento estressante.
Esse instrumento focaliza oito fatores: confronto (descreve os esforços agressivos de alteração da situação e sugere um certo grau de hostilidade e de risco), afastamento (retrata os esforços cognitivos de desprendimento e minimização da situação), autocontrole (especifica os esforços de regulação dos próprios sentimentos e ações), suporte social (abarca os esforços de procura de suporte informativo, tangível e emocional), aceitação de responsabilidade (reconhecimento do próprio papel no problema e concomitante tentativa de recompor as coisas), fuga-esquiva (descreve os esforços cognitivos e comportamentais desejados para escapar ou evitar o problema), resolução de problemas (retrata os esforços focados sobre o problema deliberados para alterar a situação, associados a uma abordagem analítica de solução do problema) e reavaliação positiva (especifica os esforços de criação de significados positivos, focalizando o crescimento pessoal, além de uma dimensão religiosa).
Tanto o pai quanto a mãe responderam a esse instrumento separadamente. Além disso, entrevistas foram realizadas com os genitores e filhos com desenvolvimento típico com o objetivo de investigar a ocorrência de resiliência familiar. O roteiro da entrevista foi previamente elaborado pelas próprias pesquisadoras e embasado na literatura sobre resiliência familiar.
Procedimentos
Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o parecer de nº 425.803, a Secretaria de Educação do Município foi contatada para que disponibilizasse uma lista de escolas com alunos(as) com síndrome de Down matriculados(as) para o recrutamento dos mesmos(as) e de suas famílias. A pesquisadora entrou em contato com as instituições e convidou 15 famílias para participar da pesquisa, mas somente cinco apresentaram disponibilidade para colaborar.
A coleta de dados ocorreu na residência dos participantes e consistiu em três visitas domiciliares. Na primeira, informações acerca da pesquisa foram esclarecidas aos genitores, obtiveram-se os Consentimentos Livres e Esclarecidos do pai e da mãe e os Termos de Assentimento dos irmãos com desenvolvimento típico, e a mãe respondeu ao Questionário de Caracterização do Sistema Familiar. Na segunda, os genitores responderam, separadamente, ao Inventário de Estratégias de Coping e foram gravadas as entrevistas. Na terceira, as entrevistas foram realizadas com os irmãos com desenvolvimento típico.
A análise dos resultados seguiu as especificidades de cada instrumento utilizado. Os dados coletados por meio de questionário e inventário foram tabulados, permitindo a elaboração de análises por meio de estatística descritiva. As entrevistas foram gravadas em áudio com duração média de 20 minutos cada e transcritas na íntegra. A análise das mesmas foi realizada com base na proposta de Dessen e Cerqueira-Silva (2009Dessen, M. A., & Cerqueira-Silva, S. (2009). Desenvolvendo sistemas de categorias com dados de entrevistas. In L. Weber & M. A. Dessen (Eds.), Pesquisando a família: instrumentos para coleta e análise de dados (pp.43-56).. Curitiba: Juruá ), que prevê a construção do Sistema Integrado de Categorias complementar à Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. (Originalmente publicado em 1977)./2011).
Assim, esse modelo pressupõe os passos destacados por Bardin: (a) seleção e exploração do material, denominada pré-análise; (b) codificação; (c) agrupamento dos temas; (d) formação das categorias síntese; (e) classificação dos temas; e (f) definição das categorias. Complementamente, Dessen e Cerqueira-Silva (2009Dessen, M. A., & Cerqueira-Silva, S. (2009). Desenvolvendo sistemas de categorias com dados de entrevistas. In L. Weber & M. A. Dessen (Eds.), Pesquisando a família: instrumentos para coleta e análise de dados (pp.43-56).. Curitiba: Juruá ) propõem: (g) revisão do sistema preliminar e elaboração do sistema integrado (definitivo) de categorias e (h) validação do sistema integrado de categorias, a partir da análise de juízes. As categorias foram definidas operacionalmente (Rooke, 2014Rooke, M. I. (2014). Famílias com filho com síndrome de Down: investigando a resiliência familiar (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.), tendo sido construído um dicionário de definição e realizada a análise por um pesquisador com experiência em análise de conteúdo e conhecimentos na área de deficiência intelectual e família.
Resultados
Inicialmente, são apresentados os resultados da entrevista com os genitores e irmãos, especificamente a respeito dos três processos-chave da resiliência familiar: sistemas de crenças, padrões de organização e processos de comunicação (Walsh, 2005WalshF. (2005). Fortalecendo a resiliência familiarSão PauloRoca). Em seguida, as estratégias de coping dos genitores são descritas.
Indicativos da resiliência familiar
Sistemas de crenças
A maioria dos participantes (n = 11) relatou ter ocorrido algum evento ou acontecimento ruim na família, sendo que apenas dois genitores disseram nunca terem vivenciado tal situação. A maioria dos eventos/acontecimentos ruins (n = 12) foram relacionados ao(à) filho(a) com síndrome de Down, como alguma doença do(a) filho(a) (n = 9), o nascimento (n = 2) e o diagnóstico da síndrome (n = 1), tendo sido menos frequentes a morte de algum parente (n = 4) e a crise financeira (n = 1), como se verifica pelos relatos abaixo:
... . O único período mais difícil que eu passei com ela foi mesmo quando ela ficou internada, né, no hospital ... (M2).Ah... . O nascimento dele... foi uma fase muito ruim que ele passou e a gente também, né. Nós todos juntos passamos apertado com ele por uns tempos (P3).Foi quando a minha avó morreu (I2).
As famílias reagiram aos eventos ruins tanto com a expressão de suas emoções, incerteza (n = 3), abalo emocional (n = 1) e sofrimento (n = 1), quanto por meio da procura por recursos médicos para o(a) filho(a) com síndrome de Down (n = 4) e da construção de um planejamento financeiro (n = 1), conforme exemplificam os relatos a seguir:
Eu chorei muito, eu chorei, minha reação foi de choro, foi de medo. Medo de não saber criar, medo de não conseguir educar, uma sensação de mundo cair mesmo, de você não saber por onde começar, o que que eu vou fazer agora? (M4).Foi assim, todo mundo ficou bem triste, né. Foi assim (I2).A reação foi tentar ajudar, né. Fazer o que tinha que ser feito pra recuperar ele, né (P3).Ah, a gente economizou um pouco e passou... não teve dificuldade nisso também não (I3).
Para enfrentar as dificuldades, as famílias estreitam os vínculos/laços familiares (n = 7), adotam uma perspectiva positiva (n = 3), apegam-se à fé religiosa (n = 1) e se envolvem mais com os cuidados do(a) filho(a) com síndrome de Down, como identificado nos relatos que se seguem:
A gente se uniu, né, uniu mais, né, as visitas, as pessoas... a família foi visitar, procurou dar apoio, né (M2).Ah, enfrentamos com bastante otimismo, né, porque se não, não... bastante triste por ver ele assim, né. Mas com bastante otimismo e esperança de recuperar e, graças a Deus, deu tudo certo, né (P3).... Rezando muito, confiantes muito em Deus que ela saísse de lá, entendeu? (M1).Ah, enfrentou assumindo a responsabilidade de ter que ir, de ter que levar, porque o médico... você chega lá, o médico conversa com você e fala que as chances são de 50% pra cada lado, né. 50% de chance de dar certo, 50% de chance de não dar certo (M3).
Padrões de organização
Diante de situações ruins ou problemas as famílias se organizam por meio do diálogo (n = 10), incluindo todos os membros (n = 7) ou apenas o casal (n = 3), mas também estreitando os vínculos/ laços familiares (n = 3), compartilhando papéis/ funções (n = 1) e em função da dinâmica conjugal (n = 1), conforme indicam os relatos abaixo:
Ah, a gente senta pra conversar e resolve. Vê como que a gente pode passar por esse problema e tenta resolver (I3).Ah, dependendo do problema que for, fica todo mundo unido. Ninguém perde a esperança, igual eu te falei aquela hora (I1).Ah, a gente tenta resolver o problema da melhor forma possível que dê pra todo mundo ajudar, né ... (M3).
A maioria dos genitores relatou a existência de cooperação entre os membros familiares em qualquer situação (n = 10). Entretanto, três participantes apontaram que há cooperação somente em situações com problemas.
... Mas a gente sempre... a gente sempre... de uma forma ou de outra, a gente sempre se apóia em todas as situações (M4).Ah, igual eu tô te falando mesmo... numa situação financeira, né, num problema que um tá vivendo, o outro tenta ajudar, né (M2).
A importância da rede de apoio é evidente para essas famílias, tendo sido identificadas diferentes formas de contribuição do suporte recebido, sendo mais frequentes: orientação (n = 8), promoção do desenvolvimento dos filhos(as) (n = 3) e auxílio no cuidado com os(as) mesmos(as) (n = 3). Além dessas formas de contribuição da rede de apoio, ainda foram relatados a possibilidade de construção de mais contatos profissionais (n = 1) e o incentivo/estímulo a dar prosseguimento (n = 1). Um participante não relatou nenhuma forma de contribuição.
Ah, a importância dele [o médico] é de tá orientando a gente o que a gente tem que fazer com a criança, entendeu? É isso aí que ele passa para gente ... (M1).Ah, eu acho muito importante, porque, muitas vezes, a gente cansa. E aí com o estímulo deles [pessoas que apoiam a família], com mais informações também dos profissionais, a gente tem força pra continuar(I3).
Processos de comunicação
Em relação à comunicação entre os membros familiares, esta ocorre de forma fluida (n = 12), ou seja, envolvendo diálogo frequente e sobre qualquer assunto; e distorcida (n = 1), quando a comunicação acontece de maneira confusa entre os membros. Abaixo encontram-se alguns exemplos de relatos:
Ah, é diária, verbal. Muito telefone que eu viajo às vezes, então tem bastante ligação. Mas é muito pessoal, intensa, a gente coversa bastante (P5).
O problema todo é que a gente... eu penso uma coisa, ela pensa outra coisa, eu faço uma coisa, ela faz outra coisa. Então, às vezes, falta. Não é que falta, a gente acha que já falou com o outro aquilo, aí quando a gente vai fazer. Ih, não falei? Não, não falei. Aí já tem um atritozinho... (P4).
Estratégias de coping: a perspectiva dos genitores
A estratégia de coping mais utilizada pelas mães e pelos pais, de acordo com o cálculo da média dessas dimensões, é a reavaliação positiva (Χ = 2,25 - mães; Χ = 1,91 - pais), enquanto a menos utilizada é a fuga-esquiva ( Χ = 0,5 - mães; Χ = 0,45 - pais). A Tabela 2 mostra as médias dos tipos de estratégias utilizados pelos pais e mães das crianças com síndrome de Down.
Médias das estratégias de coping utilizadas pelos genitores, segundo cada família. Minas Gerais (MG), Brasil
Na análise por família, verifica-se que a mãe na família 1 utiliza a estratégia confronto em maior quantidade, enquanto o pai utiliza mais a de reavaliação positiva. As estratégias menos usadas por essa mãe são aceitação da responsabilidade e autocontrole e, no caso do pai, as de fuga-esquiva e afastamento. Na família 2, ambos os genitores utilizam mais a estratégia suporte social; já as menos usadas por ambos são afastamento e fuga-esquiva. A mãe na família 3 emprega mais a resolução de problemas e o pai o autocontrole. Ambos os genitores dessa família utilizam fuga-esquiva em menor quantidade. No que diz respeito à família 4, a mãe e o pai fazem uso, em maior quantidade, de reavaliação positiva. Nessa família, os dois genitores utilizam menos do afastamento, sendo que o pai também usa pouco a fuga-esquiva. A mãe na família 5 utiliza mais a estratégia suporte social, enquanto o pai a reavaliação positiva. A estratégia menos usada por ambos é fuga-esquiva.
Discussão
No que tange à ocorrência de momentos ruins, a maioria das famílias os associa aos eventos relacionados à pessoa com síndrome de Down. Segundo os relatos de grande parte dos membros familiares, a notícia do diagnóstico da síndrome parece não ter se constituído como uma adversidade em si, mas sim os problemas de saúde daí decorrentes, tais como, os cardíacos e os respiratórios. Aliado a esse fato, ressalta-se que as famílias reagiram de forma positiva ao diagnóstico, uma vez que, ao terem conhecimento deste, as reações indicaram reorganização familiar e reavaliação da vida. Esse resultado é coerente com outros que apontam uma perspectiva mais positiva e saudável da dinâmica e funcionamento familiar frente à síndrome de Down ou deficiência intelectual (Silva, 2007Silva, A. N. (2007). Famílias especiais: resiliência e deficiência mental (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.; Van Riper, 2007Van Riper, M. (2007). Families of children with Down syndrome: Responding to "a change in plans" with resilience. Journal of Pediatric Nursing, 22(2), 116-128.).
Portanto, é possível afirmar que a deficiência intelectual ou a síndrome de Down não devem ser consideradas como sinônimos de sofrimento, tristeza, depressão, estresse e isolamento social, conforme apontava veementemente a literatura de décadas passadas. Por outro lado, vale ressaltar que apesar dos relatos indicarem a síndrome de Down como sendo um evento ruim a reação das famílias ao diagnóstico teve mais impactos positivos do que negativos. No entanto, esses dados foram coletados exclusivamente por meio de relatos orais. Assim, sugere-se a utilização de outros instrumentos que possam propiciar a complementaridade das informações especialmente no que se refere à resiliência familiar (Clark, Huddleston-Casas, Churchill, Green, & Garrett, 2008Clark, V. L. P., Huddleston-Casas, C. A., Churchill, S. L., Green, D. O. N., & Garrett, A. L. (2008). Mixed methods approaches in family science research. Journal of Family Issues, 29(11), 1543-1566.; Dessen, 2010Dessen, M. A. (2010). Estudando a família em desenvolvimento: desafios conceituais e teóricos. Psicologia: Ciência e Profissão30(Núm. Esp.), 202-219.; Rooke & Pereira-Silva, 2012Rooke, M. I., & Pereira-Silva, N. L. (2012). Resiliência familiar e desenvolvimento humano: análise da produção científica. Psicologia em Pesquisa6(2), 179-186.).
Em relação aos indicativos de resiliência familiar, os resultados apontam para o fato dessas famílias, diante de problemas, se organizarem de maneira em que há a união, diálogos frequentes com todos os membros e cooperação, havendo, portanto, estreitamento dos vínculos/laços entre os membros e a adoção de uma perspectiva positiva. Essas características indicam que os indivíduos aqui analisados conseguem extrair sentido da adversidade, sendo este um dos fatores analisados como pertinente àquelas famílias que se encontram em processo de resiliência (Walsh, 2005WalshF. (2005). Fortalecendo a resiliência familiarSão PauloRoca; Yunes & Szymanski, 2006Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2006). O estudo de uma família que supera as adversidades da pobreza: um caso de resiliência em família. Psicodebate: Psicologia, Cultura y Sociedad7, 119-139.). No estudo de Silva (2007Silva, A. N. (2007). Famílias especiais: resiliência e deficiência mental (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.) foram encontradas características similares (diálogo, expressões emocionais abertas e cooperação) às do presente estudo em famílias com filhos com deficiência intelectual.
No que concerne às estratégias de coping, ressalta-se que em poucas famílias pais e mães utilizaram estratégias similares, o que, de acordo com Pelchat, Lefebvre e Levert (2007Pelchat, D., Lefebvre, H., & Levert, M. J. (2007). Gender differences and similarities in the experience of parenting a child with a health problem: Current state´ of knowledge. Journal of Child Health Care11(2), 112-131.), retrata o caráter individual das mesmas. Para esses autores, as mães tendem a usar mais expressões de sentimentos e emoções, enquanto os pais as cognitivas e de resolução de problemas. Além disso, embora mães e pais sejam mais parecidos na procura de informações, os pais usam mais evitação, o que é coerente com o padrão social de valorizar independência e autocontrole dos homens. Na presente pesquisa, por exemplo, P1 utiliza mais a estratégia de reavaliação positiva, enquanto M1 utiliza menos o autocontrole. Em F5, a mãe utiliza mais a estratégia suporte social, enquanto o pai a reavaliação positiva.
Ainda em relação às estratégias de coping, apesar de alguns estudos mostrarem o uso de técnicas inadequadas utilizadas por genitores em famílias de crianças com síndrome de Down ou deficiência intelectual (Cunningham, 1996Cunningham, C. (1996). Families of children with Down syndrome. Down Syndrome Research and Practice4(3), 87-95.; Spangenberg & Theron, 2001Spangenberg, J. J., & Theron, J. C. (2001). Stress and coping in parents of children with Down syndrome. Studia Psychologica, 43(1), 41-48.), os genitores do presente estudo usam em maior quantidade a estratégia reavaliação positiva, sendo fuga-esquiva a que menos aparece. Esse resultado sugere que pais e mães utilizam estratégias de coping positivas ou eficazes, o que pode potencializar o processo de resiliência familiar, conforme indica a literatura (Grant et al., 2007Grant, G., Ramcharan, P., & Flynn, M. (2007). Resilience in families with children and adult members with intellectual disabilities: Tracing elements of a psychosocial model., Journal of Applied Research in Intellectual Disabilities 20(6), 563-575.; Lazarus & Folkman, 1984Lazarus, R. S., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal and coping New York: Springer.; Van Riper, 2007Van Riper, M. (2007). Families of children with Down syndrome: Responding to "a change in plans" with resilience. Journal of Pediatric Nursing, 22(2), 116-128.).
No estudo longitudinal de Cunningham o uso de estratégias de coping ineficazes foi negativamente associado ao bem-estar individual e familiar, enquanto estratégias de coping de fuga-esquiva foram significativamente correlacionadas com a depressão e ansiedade em genitores de crianças com síndrome de Down (Spangenberg & Theron, 2001Spangenberg, J. J., & Theron, J. C. (2001). Stress and coping in parents of children with Down syndrome. Studia Psychologica, 43(1), 41-48.). É importante verificar fatores associados à saúde mental dos genitores e o uso de estratégias de coping nessas famílias, mesmo nas situações em que se encontrem dados indicativos de resiliência familiar, uma vez que a literatura é extensa e conclusiva acerca do estresse, principalmente, em genitores com filho com síndrome de Down ou deficiência intelectual (Da Silva, 2007Silva, A. N. (2007). Famílias especiais: resiliência e deficiência mental (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul., 2011). Há necessidade, portanto, da implementação de mais estudos sobre esse assunto, uma vez que o mesmo tem implicações nas relações familiares e, consequentemente, no desenvolvimento da pessoa com síndrome de Down.
Considerações Finais
De acordo com a perspectiva sistêmica, a família deve ser pesquisada considerando-a como um grupo, com um funcionamento próprio. O presente estudo incluiu como participantes a mãe, o pai e o(a) irmão(ã) com desenvolvimento típico na tentativa de melhor compreender o grupo, o que está em acordo com teorias e modelos mais complexos de análise do desenvolvimento humano e familiar.
No entanto, a não inclusão das crianças com síndrome de Down como respondentes pode ser considerada uma limitação. Isso aconteceu devido ao fato de duas delas serem bastante pequenas e ainda não terem habilidades linguísticas que as possibilitasse responder a uma entrevista. Além disso, destaca-se que houve uma tentativa de realizar uma entrevista com a criança de 11 anos que, no entanto, apresentou dificuldade de compreensão das perguntas. Assim, optou-se por não entrevistar as pessoas com síndrome de Down. Entretanto, não há dúvidas quanto à importância da participação dessas pessoas nos estudos, porém, é necessário que os pesquisadores encontrem formas mais adequadas para a realização da coleta de dados.
No que concerne aos instrumentos, destaca-se a sua escassez para as investigações no contexto familiar, fato que já tem sido descrito por outros autores da área. Em relação ao Inventário de Estratégias de Coping, apesar de ser um instrumento já adaptado, houve, por parte dos genitores, dificuldades de compreensão em alguns itens, mesmo naqueles com nível de escolaridade mais elevado, o que sugere uma variabilidade cultural. Vale ressaltar que o inventário foi construído com o objetivo de descrever as estratégias de coping utilizadas de forma geral pelas pessoas e não especificamente de genitores com filho com síndrome de Down ou deficiência intelectual.
No que tange à utilização de instrumentos qualitativos e quantitativos nesta pesquisa, destaca-se a importância do pluralismo metodológico, em especial para as investigações acerca de "novos construtos", como a resiliência familiar. Os conhecimentos advindos da utilização de diferentes instrumentos são adequados e proporcionam maior compreensão sobre o tema investigado. A literatura aponta que os estudos de fenômenos complexos que envolvem a família tornam-se restritos quando um único tipo de análise é usado. Apesar da utilização de uma abordagem multimetodológica ser indicada por diversos autores como desejável para a compreensão dos processos sistêmicos e multideterminados que ocorrem no grupo familiar, observa-se que estudos empíricos nacionais têm feito uso de um único instrumento, principalmente, a entrevista. Acredita-se que a construção de instrumentos adequados aos fenômenos investigados seja um desafio aos pesquisadores, mas não deve ser concebido como um empecilho à implementação da pesquisa e ao rigor metodológico que deve se buscado em uma investigação científica.
Para alguns pesquisadores o uso de instrumentos de medidas nas investigações acerca da resiliência pode resultar em estudos que evidenciam a presença ou não da mesma, em maior ou menor escala, evidenciando interpretações equivocadas, as quais consideram a resiliência como um estado e não como um processo construído ao longo do tempo. Todavia, defende-se que a utilização de escalas ou inventários não se constitui o equívoco dessas investigações, mas sim a forma como os dados são interpretados. Acredita-se que a construção rigorosa de instrumentos que considerem a natureza sistêmica e processual da resiliência e, principalmente, adaptados à realidade brasileira ofereceria grande suporte metodológico às investigações futuras.
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Artigo elaborado a partir da dissertação de M.I. ROOKE, intitulada: "Famílias com filhos com síndrome de Down: investigando a resiliência familiar". Universidade Federal de Juiz de Fora, 2014.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2016
Histórico
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Recebido
04 Ago 2014 -
Revisado
08 Dez 2014 -
Aceito
23 Mar 2015