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SAÍMOS DO CINEMA DE ALMA LAVADA: MULTILETRAMENTOS E TRABALHO INTERDISCIPLINAR NA PRODUÇÃO DE CURTAS DE ACESSIBILIDADE MIDIÁTICA

WE LEFT THE CINEMA WITH CLEANSED SOUL: MULTILITERACIES AND INTERDISCIPLINARY WORK ON PRODUCTION OF SHORT MOVIES WITH MEDIA ACCESSIBILITY

RESUMO

Poucas têm sido as oportunidades que o professor de educação básica tem tido para trabalhar em conjunto com seus pares de forma interdisciplinar, produzir conhecimento (e não apenas reproduzi-lo) e usar tecnologias de informação e comunicação. Esse tipo de trabalho só é possível em comunidades de prática. O objetivo deste trabalho é discutir como um projeto coletivo, com um fim específico, pode mobilizar professores que precisam trabalhar em pares, desenvolver seus multiletramentos e construir identidades. Apresentamos, para a análise de dados deste artigo, resultados obtidos com o Projeto Curta Capilé, desenvolvido no ano de 2014 pela Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo - RS, que envolveu 24 professores de diferentes áreas de onze escolas da rede municipal. Esse projeto visava qualificar professores para o uso de tecnologias e para o trabalho interdisciplinar, de modo que produzissem curtas-metragens , usando tecnologias que promovem a acessibilidade midiática. Os resultados apontam para várias reflexões sobre o caráter social da aprendizagem e sobre o modo como ela pode ser significativa tanto para professores quanto para alunos. Com o engajamento mútuo de todos os participantes, os curtas-metragens, quando desenvolvidos no espaço escolar para um fim pedagógico, tornam-se uma ferramenta didática importante para desenvolver habilidades e competências, tanto de alunos quanto de docentes. Por meio dos multiletramentos, foi possível a abordagem sobre inclusão: todos os telespectadores do cinema foram convidados a conhecer a audiodescrição, a legenda e a língua de sinais como recursos de acessibilidade midiática que incluem pessoas com deficiência auditiva e visual. O trabalho permitiu, ainda, a aproximação dos professores envolvidos na proposta, os quais tiveram de se organizar e trabalhar em grupos. Além disso, promoveu a melhora da autoestima dos alunos, que também tiveram de vencer as barreiras com a tecnologia, usar diferentes linguagens e ferramentas tecnológicas, o que levou à constituição de novas identidades.

Palavras-chave:
Acessibilidade Midiática; Multiletramentos; Tecnologias.

ABSTRACT

Teachers of early education have few opportunities to work together with their peers in an interdisciplinary way to create knowledge (not just reproducing it) and to use information and communication technologies. This type of work is only possible in communities of practice. The objective of this study is to discuss as a cooperative project with a specific purpose, can mobilize teachers who need to work in pairs, to develop their multiliteracies and build identities. To the data analyses of this study we showed the results gathered with the Project "Curta Capilé", developed in 2014 by the educational town office of São Leopoldo-RS Education, which involved 24 teachers from different areas of eleven public schools. This project aimed to train teachers in the use of technologies and interdisciplinary work, so that they could produce short movies that would use technologies that promote media accessibility. The results suggest a number of considerations on the social nature of learning and how this can be important for both teachers and students. With the commitment of all participants, short movies, when developed in the school as an assignment, become an important learning tool to develop skills and competencies of both students and teachers. Through multiliteracies, the method of inclusion was feasible: all movie spectators were invited to see how the audio description, subtitles and sign language as media accessibility resources include people with hearing and visual impairment. This work also allowed the close contact of the teachers involved in the proposal, who had to planned and work in groups. Furthermore, it promotes self-esteem improvement of students that also had to overcome technology barriers and use different types of languages, and technological tools leading to the formation of new identities.

Keywords:
Media Accessibility; Multiliteracies; Technologies.

INTRODUÇÃO

Desde 2010, vimos trabalhando com professores da rede municipal de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegrea1 1 Ver Guimarães; Kersch, 2012a, 2012b, 2014, 2015. . No contato que temos tido com professores - tanto em formação inicial quanto em continuada - temos percebido, de modo geral, pouco preparo para o uso de textos multimodais e novas tecnologias em suas aulas. Tampouco adotam uma abordagem interdisciplinar ou trabalham em pares. Pouca atenção também tem sido dada ao trabalho interdisciplinar (o trabalho com seus pares praticamente inexiste). A formação que recebem e o ensino que oferecem acabam sendo ainda bastante focados no domínio de conteúdos, no lugar do desenvolvimento de competências e habilidades necessárias para atuar em um mundo globalizado e cada vez mais complexo.

Nossa sociedade demanda, de modo crescente, que o cidadão seja capaz de articular conhecimentos. As mudanças globais exigem que as adquiram novos conhecimentos, o que significa desenvolver competências e habilidades para atuar nos mais variados contextos da vida social, tanto na escola quanto fora dela. Essas competências e habilidades são, pois, diferentes das que se exigiam quando a maioria dos professores em ação receberam sua formação. É provável que o professor não esteja preparado para atender a essa demanda de promover os letramentos dos alunos que recebe. Não basta, em nossa visão, que se dê um computador por aluno, ou que os professores recebam um tablet (como acontece em nosso Estado) e dê-se uma capacitação genérica de uso2 2 Temos conhecimento, por exemplo, de professores com pouquíssimo domínio de ferramentas digitais, dando capacitações para os demais professores da rede. . É preciso que o professor permita-se "aprender usando" tecnologias, por meio do desenvolvimento de projetos reais, com uma finalidade específica. É preciso também que, ao trabalhar com gêneros multimodais, leitura e escrita sejam consideradas práticas sociais. É um pouco disso que discutiremos aqui.

A redução dos custos no acesso às tecnologias digitais tornou-as populares. Seu uso aumentou e ampliou a presença da internet nas práticas cotidianas, inclusive entre as camadas mais pobres da população. Essa popularização aumenta a pressão para a inclusão das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nas práticas pedagógicas, de modo especial, nas de língua materna. Por outro lado, a sala de aula, que, em décadas anteriores, era mais homogênea, hoje se caracteriza cada vez mais pela diversidade social, cultural e linguística. Os alunos são inseridos nas turmas, mas nem sempre são, de fato, incluídos. Urge, pois, que se pense na formação do professor (e do pesquisador) preocupado com as demandas sociais e comunicativas do século XXI.

O objetivo deste trabalho é o de discutir como um projeto coletivo, com um fim específico, pode mobilizar professores que precisam trabalhar em pares e desenvolver seus multiletramentos, o que acaba por fomentar debates sobre a construção de identidades. Analisa-se o resultado de uma demanda da Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo-RS (em parceria com a Fundação Escola Técnica Liberato Salzano da Cunha, de Novo Hamburgo-RS), que desenvolveu o projeto "Curta Capilé" em 2014. O desafio foi lançado a todas as escolas da rede municipal de São Leopoldo-RS: produzir e veicular curtas acessíveis no festival de cinema organizado pela Secretaria Municipal de Educação, de modo a promover a inclusão social e a acessibilidade midiática. O projeto, que envolveu 24 professores de diferentes áreas, requereu esforço para o trabalho interdisciplinar, a inclusão social, o trabalho com o gênero e a ressignificação da linguagem ligada à prática social dos aprendizes. Os professores envolvidos tiveram de alternar papéis sociais - ora de 'alunos', porque tinham de aprender o que não sabiam, ora de professores, porque orientavam os alunos na produção dos curtas. Novas identidades foram construídas ao longo desse projeto.

Para este estudo, embasamo-nos nos estudos de letramento, mais precisamente nos multiletramentos e na construção de identidades numa comunidade de prática, de professores que se tornam aprendizes. Além disso, fazemos uma breve discussão sobre a interdisciplinaridade, presente nos documentos oficiais e cada vez mais demandada pelos professores, e sobre a inclusão de todos os alunos, agora garantida por lei.

Este artigo encontra-se dividido em cinco partes: além desta introdução, trazemos, na seção seguinte, o quadro teórico a partir do qual desenvolvemos esta investigação. Em seguida, descrevemos os procedimentos metodológicos para a geração dos dados aqui analisados. Na quarta parte, analisamos e discutimos os resultados. Por fim, fazemos alguns encaminhamentos e apresentamos as considerações finais.

1. SOBRE ESCOLA, MULTILETRAMENTOS E TRABALHO INTERDISCIPLINAR NUMA COMUNIDADE DE PRÁTICA

Os novos tempos que vivemos lançam desafios e ampliam os objetivos da educação, fazendo com que a escola tenha de repensar seu projeto pedagógico, o currículo dos diferentes anos escolares, os letramentos, as práticas pedagógicas, seus objetivos, o perfil do egresso, as relações professor-aluno, as metodologias em sala de aula, as multimídias e outros recursos pedagógicos, o processo de avaliação e notas, as limitações dos livros didáticos. Consequentemente, o professor é levado a refletir sobre seu próprio papel na escola contemporânea. Talvez ele ainda não tenha se dado conta do poder de transformação que tem em suas mãos. Mas ele precisa ser preparado para isso.

Os documentos oficiais vêm chamando a atenção para o trabalho interdisciplinar, devido a seu caráter integrador, facilitador e motivador no ensino (BRASIL, 1998BRASIL. (1998). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, 2000BRASIL. (2000). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
). Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio - PCNEM (BRASIL, 2000BRASIL. (2000). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
), por exemplo, enfatizam a necessidade de utilizar a informática como ferramenta para novas estratégias de aprendizagem, subsidiando, de forma significativa, o processo de construção de conhecimentos. Logo, deve-se "desenvolver competências de obtenção e utilização de informações, por meio do computador, e sensibilizar os alunos para a presença de novas tecnologias no cotidiano" (BRASIL, 2000BRASIL. (2000). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 61). Do mesmo modo, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM (BRASIL, 2006BRASIL. (2006). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio; volume 1 Brasília. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
) reforçam que, ao mesmo tempo em que se enfatizam políticas para a infância e a adolescência, se reforçam as propostas de transversalidade, bem como de inter e transdisciplinaridade, cujos intuitos são

promover a expansão da compreensão de mundo, pois pretendem ensinar os alunos a entender as relações entre as disciplinas pedagógicas - em vez de ensinar as matérias escolares de maneira isolada, ou seja, voltadas para si mesmas - e as disciplinas escolares, e delas com a sociedade e a vida dos alunos. (BRASIL, 2006BRASIL. (2006). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio; volume 1 Brasília. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 94)

Em relação ao ensino médio, de modo especial, essa perspectiva foi reforçada com a publicação das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio - DCEM (BRASIL, 2012BRASIL. (2012). Resolução nº 2, de 30 de janeiro 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Disponível em: < http://pactoensinomedio.mec.gov.br/images/pdf/resolucao_ceb_002_30012012.pdf >. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://pactoensinomedio.mec.gov.br/image...
) e com a matriz orientadora do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Há que se destacar que a homogeneidade que caracterizava as salas de aula há algumas décadas, quando o ensino gratuito não era obrigatório, deu lugar à heterogeneidade e à diversidade, alterando o papel do professor e dos alunos. Ao propor os temas transversais, os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, (BRASIL, 1998BRASIL. (1998). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 117), destacam, na apresentação do suplemento destinado à Pluralidade Cultural, que

O grande desafio da escola é reconhecer a diversidade como parte inseparável da identidade nacional e dar a conhecer a riqueza representada por essa diversidade etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investindo na superação de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória particular dos grupos que compõem a sociedade. (BRASIL, 1998BRASIL. (1998). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 117).

Além das diferenças étnicas, religiosas e de gênero, a diversidade na sala de aula também se caracteriza pela inclusão da pessoa com deficiência, agora garantida por lei. Em julho de 2015, foi promulgada a Lei nº 13.146, que institui a inclusão da pessoa com deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Seu principal objetivo é o de "assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania" (BRASIL, 2015BRASIL. (2015). Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 10 nov. 2015
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Entre as formas de aplicação da lei, preveem-se a acessibilidade e as tecnologias assistivas. Como a escola pode absorver mais essa lei, incluindo seus alunos adequadamente, e garantindo, consequentemente, sua permanência? Afinal, não basta garantir o acesso, é preciso se preocupar em como manter os alunos na escola. E isso passa pelo envolvimento dos professores, na forma de educação continuada permanente. É preciso que as Secretarias de Educação promovam o debate, não dizendo apenas aos professores o que fazer, mas ouvindo deles de que modo fazer.

A complexidade que caracteriza a sociedade contemporânea, da qual a diversidade é um dos componentes, faz-nos repensar a forma como vimos desenvolvendo nosso trabalho nas escolas - já que elas são parte constitutiva da sociedade. Ainda que a forma como fomos ensinados possa ter sido eficiente, as concepções de linguagem e de ensino daqueles nossos professores já não se sustentam para a escola de hoje. Compreender o mundo em que vivemos na sua complexidade requer, pois, uma concepção de linguagem (bem como de seu ensino e aprendizagem) que considere o social, a interação entre as pessoas. Partimos do princípio de que a construção de sentidos dá-se pela interação, que, por sua vez, dá-se por ações simbólicas não necessariamente linguísticas. Assim, em cada evento de letramento, aciona-se um conjunto de conhecimentos, tanto os relativos à própria língua como os referentes a outros sistemas semióticos envolvidos no texto. Os eventos de letramento (BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000BARTON, D.; HAMILTON M.; IVANIC, R. (2000). Situated Literacies: Reading and Writing in Context. 1ª. Ed. London: Routledge., p. 8) são os episódios observáveis em que leitura e escrita têm um papel central; eles são resultantes de práticas de letramento e moldados por elas. As práticas de letramento, por sua vez, segundo esses mesmos autores, não podem ser observadas, porque envolvem valores, atitudes e relações sociais; são formas gerais de cultura, "padrões comuns na utilização da leitura e escrita numa situação particular em que as pessoas contribuem com seu conhecimento cultural para uma atividade" (BARTON; LEE, 2015BARTON, D.; LEE, C. (2015). Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo: Parábola Editorial. , p. 25), são as vivências por meio das quais os indivíduos interagem durante suas vidas.

Nos eventos de letramento, portanto, são mobilizadas diferentes capacidades e conhecimentos, também aqueles resultantes do desenvolvimento das tecnologias, que mudaram (e continuam mudando) as relações nos grupos sociais, já que estamos diante de uma nova ordem de nos relacionarmos: novos textos, novas práticas de linguagem, nova ordem social. Além disso, ao acolher em sua sala de aula alunos de diferentes origens sociais, alguns com necessidades especiais de atendimento, o ensino oferecido nas escolas não pode se restringir à palavra escrita, devendo abrir espaço para a multimodalidade, que está na ordem do dia.

O professor precisa considerar que a maioria de seus alunos está exposta a complexas formas de letramento fora do ambiente escolar (ainda que suas práticas limitem-se a poucos comandos, como "curtir, compartilhar, comentar"). Mas, e quanto a produzir conhecimento? Bem, também o professor precisa ser desafiado a se inserir nesse universo, a ultrapassar seus próprios limites, de modo a poder levar seus alunos a fazer o mesmo.

Se a complexidade da contemporaneidade nos revela um mundo multimodal, em que não só a palavra escrita, mas o som, a imagem, o gesto, e as texturas variadas são usados para construir sentidos, precisamos de uma concepção de linguagem e de ensino que contemple toda essa gama de modos que constituem os textos da atualidade. Ou, como afirmam Bill Cope e Mary Kalantzis (2000COPE, B.; KALANTZIS, M. (2000). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of Social Futures.. London: Routledge , p. 148), na introdução à terceira parte do livro MULTILITERACIES: Literacy learning and the design of social futures,

as mudanças no ambiente de comunicação contemporânea nos levam a uma nova compreensão da linguagem em si mesma, em que temos de desvelar aspectos de sentido linguístico que são negligenciados. A linguagem, em si mesma, é invariavelmente multimodal; a escrita é visualmente desenhada e a oralidade tem qualidades de áudio fundamentalmente importantes (COPE; KALANTZIS, 2000COPE, B.; KALANTZIS, M. (2000). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of Social Futures.. London: Routledge , p. 148, tradução nossa3 3 (...) changes in the contemporary communications environment lead us to a new understanding of language itself, in which we might uncover neglected aspects of linguistic meaning. Language is itself invariably multimodal; writing is visually designed and spoken language has profoundly important audio qualities. ).

Nesse mundo de tantas mudanças, há que se pensar, portanto, como, de fato, estamos preparando nossos alunos, e isso passa pela perspectiva de uma pedagogia de multiletramentos. Precisamos, ao encontro de Cope e Kalantzis (2010COPE, B.; KALANTZIS, M. (2010). Multialfabetización: nuevas alfabetizaciones, nuevas formas de aprendizaje. Boletín de la Asociación Andaluza de Bibliotecarios, n.º 98-99, enero- junio 2010, 53-91. Disponível em http://www.aab.es/aab/images/stories/Boletin/98_99/3.pdf, acesso em 10/11/2015.
http://www.aab.es/aab/images/stories/Bol...
, p. 85), de uma escola que equipe os alunos para agir no mundo) com

O conhecimento e as competências necessárias para serem cidadãos e trabalhadores ativos e informados num mundo de mudanças - um mundo de diversidade em que nossos meios de comunicação e de acesso à informação sofrem mudanças rápidas. (Cope; Kalantzis, 2010COPE, B.; KALANTZIS, M. (2010). Multialfabetización: nuevas alfabetizaciones, nuevas formas de aprendizaje. Boletín de la Asociación Andaluza de Bibliotecarios, n.º 98-99, enero- junio 2010, 53-91. Disponível em http://www.aab.es/aab/images/stories/Boletin/98_99/3.pdf, acesso em 10/11/2015.
http://www.aab.es/aab/images/stories/Bol...
, p. 85, tradução nossa4 4 el conocimiento y las competencias necesarias para ser ciudadanos y trabajadores activos e informados en un mundo en cambio - un mundo de diversidade en el que nuestros medios de comunicación y de acceso a la información sufren cambios rápidos. )

A escola não pode mais ignorar as mudanças em curso. Por sua vez, as universidades, que formam os professores, e as secretarias de educação, que ditam as políticas, precisam estar atentas à formação inicial e continuada dos docentes professores, dado que serão eles os responsáveis pela promoção de mudanças na escola.

Não é possível separar a escola da sociedade na qual se encontra inserida, deixando o 'mundo real' do lado de fora. Não se podem ignorar as práticas de letramento de que os alunos se ocupam quando não estão na escola. Entendemos, como já dissemos, leitura e escrita como práticas sociais, sendo escola a principal agência encarregada de seu ensino. Além disso, formação de cidadãos capazes e críticos é também um dos objetivos da escola. O domínio da leitura e da escrita (de diferentes gêneros, de modos variados), distingue-nos de quem não tem esse domínio, dá-nos poder, (re)constitui-nos como sujeitos

Os gêneros que utilizamos nas diferentes práticas sociais, são, na sua maioria, multimodais. Essa característica dos textos que nos cercam na contemporaneidade nos leva a compreender que a

multimodalidade em si está se tornando mais significativa no ambiente de comunicações de hoje, em que, a partir de desktops multimídia até shopping centers, o texto escrito é representado em uma relação dinâmica ao som, aos efeitos visuais, aos espaços e aos gestos. Globalização e diversidade local também transferem progressivamente o equilíbrio do sentido distante da linguagem. Como consequência, ensino e aprendizagem do letramento precisa ser um esforço interdisciplinar cada vez maior, em que as fronteiras da letramento com a arte, teatro e música não sejam mais tão claramente definidas.5 (COPE; KALANTZIS, 2000COPE, B.; KALANTZIS, M. (2000). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of Social Futures.. London: Routledge , p. 232)

Portanto, trabalhar os multiletramentos passa, inicialmente, pela formação do professor, que precisa estar preparado para atuar com os diferentes letramentos e seus variados usos para construir sentidos e conhecimentos. Nesse sentido, faz-se necessário que, primeiramente, o professor passe pela experiência de produzir conhecimento usando a multimodalidade, em que diferentes linguagens mesclam-se.

A aprendizagem e a construção de conhecimentos dão-se na interação com os outros. Essa interação, que produz conhecimento e ajuda a construir identidades, estabelece também relações de poder, desenvolvendo-se no âmbito de comunidades de prática, cujos participantes têm um engajamento mútuo, um empreendimento comum e um repertório compartilhado (WENGER, 1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.). Em algumas comunidades, o indivíduo é um membro nuclear, em outras, posiciona-se mais à margem. A aprendizagem, na perspectiva de participação social, é, pois, focada nas práticas sociais, em que é oportunizado aos participantes a construção de identidades no seio das comunidades de que participam. Wenger (1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.) argumenta em prol de uma perspectiva social da aprendizagem, que é compreendida como inerente à natureza humana. A aprendizagem, nesse sentido, é a primeira e principal habilidade para negociar novos significados; sempre é social e experiencial; constitui identidades e constrói trajetórias de participação. Para Wenger,

Estar vivos, como seres humanos, significa que estamos continuamente engajados na busca de empreendimentos de todas as ordens, desde garantir nossa sobrevivência física até a busca de prazeres mais elevados. À medida que definimos esses empreendimentos e nos engajamos em sua consecução juntos, consequentemente nós interagimos com os outros e com o mundo, e nossas relações entram em sintonia com os outros e o mundo. Em outras palavras, nós aprendemos. Com o tempo, essa aprendizagem coletiva resulta em práticas que refletem a busca de nossos empreendimentos e a participação nas relações sociais. Essas práticas são, assim, a propriedade de um tipo de comunidade criada ao longo do tempo, pela busca mantida por um empreendimento compartilhado. Faz sentido, pois, chamar esse tipo de comunidade de comunidades de prática6. (WENGER, 1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press., p.45, tradução nossa)

A comunidade de prática que se formou e que se manteve por um período a partir da demanda da Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo -RS - SMED, como se verá com mais detalhe adiante, mobilizou professores de diferentes áreas em torno de um empreendimento comum. Esse empreendimento comum exigiu desses professores a construção de textos, de diferentes gêneros (roteiro, documentário, entre outros) e requereu o desenvolvimento e o compartilhamento de diferentes competências e habilidades, entre elas as multimodais. Nem todos os professores eram da área de linguagens, mas todos tiveram de se ocupar de agir no mundo, de produzir textos, como fazem no seu dia a dia, também fora da escola. Ou seja, tiveram de ler e de escrever para práticas sociais.

A nossa vida está permeada pela leitura e pela escrita e impregnada de textos construídos nos mais diferentes modos. Textos, segundo Barton e Lee (2015BARTON, D.; LEE, C. (2015). Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo: Parábola Editorial. , p.42), "são situados no tempo e no espaço. São criados e podem ser escritos de muitas maneiras. São grafitados em muros, ou publicados em jornais, ou escritos em diários. Os textos são então utilizados: são lidos, exercem influência, são respondidos". Ou, como no caso aqui em questão, são produzidos para serem vistos, discutidos, para serem usados na sala de aula como material de apoio. Barton e Lee (2015BARTON, D.; LEE, C. (2015). Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo: Parábola Editorial. , p. 40) afirmam que os estudos de letramento "têm sido importantes para documentar práticas de letramento em várias esferas da vida". Assim, se vamos discutir temas ligados às práticas cotidianas dos alunos e da comunidade em que se encontram inseridos, precisaremos de uma abordagem que dê conta das práticas contemporâneas de leitura e escrita que reúnem signos verbais e não-verbais. Por essa razão, adotamos uma perspectiva de multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000COPE, B.; KALANTZIS, M. (2000). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of Social Futures.. London: Routledge ), conceito que engloba duas mudanças importantes: o crescimento da diversidade linguística e cultural, característica do mundo globalizado, em que, diariamente, negociam-se diferenças; e a influência das novas tecnologias, provenientes de modos variados ou multimodais (signos verbais, imagens, áudio), que demandam um novo conceito de letramento, o multimodal. Essas duas mudanças são fundamentais para alterar a ideia do que é língua(gem) e a pedagogia na atualidade.

As práticas de linguagem, segundo o Interacionismo Sociodiscursivo - ISD, são os principais instrumentos do desenvolvimento humano, marcadas pelas capacidades de agir, pelas identidades das pessoas e pelo sociocultural (BRONCKART; MACHADO, 2009BRONCKART, J. P.; MACHADO, A. R. (2009) (Re-)configurações do trabalho do professor construídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do grupo ALTER-LAEL. In: Cristóvão, V. L. P. e Tardelli-Abeu, L. S. (org.), Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Campinas: Mercado de Letras, pp. 31-77. ). Dessa forma, a linguagem desempenha um papel fundamental tanto no funcionamento psíquico quanto no desenvolvimento das atividades e ações humanas. Bronckart (1999)BRONCKART, J. P. (1997). Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 1999. afirma que as condutas humanas são mediadas e organizadas pela linguagem. Ou seja, a linguagem é uma forma de ação que se realiza por meio do discurso socialmente situado e compartilhado. A língua não ocorre de forma isolada, mas emerge de uma prática social, realiza-se como ação conjunta e partilhada entre os sujeitos e entre o sujeito e o mundo. Sua manifestação dá-se no discurso, que se constrói em contexto social e histórico, por sujeitos reais, que usam a língua para promover ações de linguagem (convencer, contar caso, dar opinião, relatar etc.).

Nós agimos socialmente e comunicamo-nos por meio de gêneros. O gênero é, nessa perspectiva, o grande instrumento para percorrer o processo de aprendizagem da linguagem, "[...]ele permite a constituição e o reconhecimento da situação, assim como a produção e a compreensão do texto" (SCHNEUWLY; DOLZ , 2011SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (2011). Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Salles Cordeiro.. Campinas : Mercado de Letras , p.116). E é por meio de gêneros que as capacidades de linguagem são ativadas no sujeito, eles tornam-se megainstrumentos de aprendizagem para o ensino da linguagem em diversas situações. Assim, ler e produzir gêneros de textos mobiliza conhecimentos relacionados às capacidades de linguagem do sujeito. Essas capacidades estão ligadas diretamente aos níveis de dificuldade que as operações de linguagem oferecem ao sujeito na materialização de um gênero textual. Elas ampliam a compreensão dos mecanismos que o sujeito mobiliza para se apropriar de um gênero textual.

O domínio dessas capacidades potencializa o sujeito a ser um usuário competente de sua própria língua. De acordo com Schneuwly e Dolz (2011SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (2011). Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Salles Cordeiro.. Campinas : Mercado de Letras ), na produção do gênero mobilizam-se as capacidades de ação (características do contexto e do referente), discursivas (modelo discursivo do gênero) e linguístico-discursivas (operações linguísticas). Cristóvão (2013CRISTÓVÃO, V. L. C. (2013). Para uma expansão do conceito de capacidades de linguagem. In: Bueno, M. A.; Lopes, P. T.; Cristóvão, V. L. L. (org.). Gêneros textuais e formação inicial: uma homenagem à Malu Matencio., Campinas: Mercado de Letras pp. 357-383. ) amplia e propõe as capacidades de significação, que representam o processo de adaptação que o sujeito aciona entre o nível do contexto de cultura e de situação para produzir o seu texto. Dessa forma, reconhecer essa quarta capacidade de linguagem implica levar em consideração o processo de articulação, de compreensão e as relações de sentido, significados que o sujeito aciona com as demais capacidades de linguagem para a apropriação e a produção de um gênero.

As novas mídias já têm lugar de destaque em nossas vidas (e especialmente na dos alunos), moldam nossas ações e desempenham papel central nas práticas cotidianas e nos processos de construção de sentidos. Se, por um lado, premidos pela lei, pelos documentos oficiais e pelas mudanças na sociedade, temos de estar preparados, como professores, para trabalhar com a diversidade linguística, cultural, étnica e social, por outro lado, temos de estar preparados para trabalhar com outras linguagens, com os mais variados tipos de gêneros e textos.

Pensar, portanto, que cabe ao professor o preparo dos alunos para atuarem no mundo globalizado, na sociedade da informação e do conhecimento, remete ao trabalho interdisciplinar e à incorporação das tecnologias da informação de comunicação no dia a dia do trabalho escolar, o que, no nosso entender, passa pela formação de professores (ou pelo estímulo para se envolverem, junto com seus alunos, em projetos interdisciplinares, para atingir um fim específico, e, em nosso caso, participar do projeto municipal Curta Capilé 2014). Isso nos remete a pensar num professor que desenvolva a atitude investigativa (a sua própria e a dos alunos).

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Apresentamos, para a análise de dados deste artigo, resultados obtidos com o Projeto Curta Capilé, desenvolvido no ano de 2014 pela Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo -RS - SMED. Esse projeto teve como proposta pedagógica qualificar os professores para o uso de tecnologias e para o trabalho interdisciplinar, e fomentar a produção de curtas-metragens vinculados aos contextos sociais das práticas pedagógicas dos professores da rede municipal, de maneira que tais práticas promovessem a reflexão sobre o direito à inclusão e à acessibilidade midiática (audiodescrição e legenda) dentro e fora do contexto escolar, atingindo diversas esferas sociais, por meio do uso das tecnologias como ferramentas pedagógicas.

O projeto centrou-se em introduzir na rede municipal de ensino a discussão sobre educação inclusiva7 7 Em 6 de julho de 2015., foi promulgada a Lei 13.146,que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). A referida Lei prevê, entre outras coisas, a acessibilidade e o uso de tecnologias assistivas a todos os alunos com alguma deficiência. , voltando-se, especificamente, para as questões tecnológicas no espaço escolar. O objetivo da SMED foi produzir curtas acessíveis, que contemplassem, no mínimo, dois recursos de acessibilidade midiática - audiodescrição, legenda e/ou libras - nas produções, e abordassem temas de relevância social, de forma que fossem ao encontro da realidade da comunidade escolar. O tempo estimado para cada curta foi de 5 minutos. Esses vídeos serviriam de material didático para ser usado posteriormente em aula.

Para o desenvolvimento do projeto, foi necessário mapear o público-alvo (professores atuantes em sala de aula ou em outros espaços de aprendizagem da escola que, em suas práticas pedagógicas, fizessem uso das tecnologias em suas disciplinas). Das 37 escolas de ensino fundamental da rede municipal, 11 apresentaram perfil e manifestaram interesse pelo projeto, totalizando 24 professores participantes de diferentes áreas (Artes, Português, História, Ciências, Pedagogia, Geografia, Matemática), os quais tinham conhecimentos relacionados ao uso de tecnologias para o ensino. Outra solicitação da Secretaria foi que cada escola tivesse dois professores participantes que pudessem desenvolver o projeto juntos (ou seja, era necessário trabalhar em equipe).

Após mapeados os profissionais e apresentada a proposta do Projeto Curta Capilé 2014, iniciou-se a segunda etapa do projeto: a formação continuada. Todos os professores fizeram um curso de audiodescrição, com duração de 30 horas (24 horas presenciais e 6 à distância). O grupo de professores participantes, após a formação continuada, também teve reuniões quinzenais para tirar dúvidas, trocar experiências e receber orientações sobre o andamento do projeto.

Ao final do curso, foram produzidos 18 curtas-metragens. Todos os integrantes apresentaram seu curta para os colegas e para os ministrantes da formação. Essa apresentação gerou um momento de debate, aprendizagem e reflexões sobre os trabalhos realizados. Todos tiveram que refazer a audiodescrição avaliada pelos ministrantes deficientes visuais do curso. O grupo Tagarellas8 8 Trata-se de um grupo especializado em audiodescrição que, na época, prestava assessoria e coordenava a produção de recursos de acessibilidade para produtos audiovisuais, editoriais e eventos. prestou assessoria técnica para todos os professores e orientou na reelaboração da audiodescrição. A Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, parceira do projeto, disponibilizou o estúdio da TV UNISINOS para a gravação da audiodescrição dos curtas dos professores. Todas as audiodescrições dos curtas foram realizadas com êxito, muitas através da utilização de recursos disponíveis nas escolas (microfone e o programa audacity9 9 Audacity é um programa de computador por meio do qual é possível editar, gravar, importar e exportar diferentes formatos de arquivos de áudio. ), além de recursos particulares. Para a edição dos curtas, a maioria dos professores usou o programa Movie Maker, o que evidencia a dificuldade técnica na escola pública para explorar recursos do programa Linux, seja por falta de conhecimento do programa, seja pela falta de atualização e funcionamento dos laboratórios de informática nas escolas municipais.

Foi respeitada a metodologia de trabalho que cada professor elegeu para desenvolver o curta acessível em sua escola, devido a vários fatores: diferentes áreas de ensino, ano escolar dos alunos, olhar pedagógico e experiência do docente em relação às tecnologias, conhecimento sobre a produção de roteiro e curtas-metragens, recursos disponibilizados pela escola, entre outros.

Durante a formação dos participantes de todas as instituições de ensino, cada professor foi responsável pela divulgação do projeto em sua escola. Todas as turmas de cada escola assistiram a três curtas-metragens com audiodescrição10 10 Os curtas-metragens eram trabalhos escolares dos professores participantes, nos quais foi inserida a audiodescrição. . Os professores contaram com o apoio da SMED, que disponibilizou um ônibus especial (cinema móvel)11 11 Parceria entre Secretaria Municipal de Educação, Fundação Escola Liberato Salzano da Cunha e Universidade FEEVALE. com o objetivo de apresentar o projeto, mostrar o exemplo do protagonismo de professores e alunos da rede, e esclarecer, para a comunidade escolar, o significado de acessibilidade midiática..

O trabalho aconteceu de julho a novembro de 2014. Os professores tiveram um trimestre para desenvolver o seu projeto e apresentar o resultado da formação em sessão pública no cinema da cidade. Dessa forma, o Projeto Curta Capilé contou com a participação de 23 professores (apenas uma professora desistiu), com a produção de 18 curtas acessíveis, com 11 escolas participantes, e 250 alunos protagonistas. A finalização do projeto ocorreu no cinema Cinesystem de São Leopoldo, com o evento Mostra Curta Capilé, que durou quatro dias e contou com a presença de 1.000 alunos que assistiram aos curtas acessíveis produzidos pela rede municipal. O projeto obteve uma repercussão positiva na cidade (e, pode-se dizer, no estado, visto que a RBS-TV12 12 Site da G1.com http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/jornal-do-almoco/videos/v/estudantes-utilizam-cinema-para-discutir-problemas-sociais/3760052/ , afiliada da TV Globo, compareceu ao evento e noticiou o fato no Jornal do Almoço). O que se conseguiu com a união em torno de um projeto coletivo, o Curta Capilé 2014, foi significativo para todas as escolas, alunos e professores participantes. Apresentamos e discutimos esse ponto na sequência.

3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS

O Projeto descrito aponta caminhos para diferentes reflexões sobre o processo de ensino e aprendizagem, incluindo aquele mediado pelas tecnologias. Mostra também como os professores tiveram de se mobilizar em torno de um empreendimento compartilhado, e ir alternando papéis, ora de alunos, quando faziam as capacitações na formação continuada e refaziam seus textos, ora de professores, quando orientavam os alunos nas mais variadas tarefas em que tinham de se engajar para atingir os objetivos do empreendimento comum. Destacam-se, pois, a importância da formação continuada voltada para o uso das tecnologias vinculadas ao contexto social (multiletramentos), o gênero como megainstrumento de aprendizagem, e a abordagem de temas transversais que medeiam a interdisciplinaridade.

Numa perspectiva social da aprendizagem, em que se aprende interagindo com os outros e negociando sentidos, constroem-se também novas identidades. A adoção dessa perspectiva social de aprendizagem leva-nos a repensar o papel da formação continuada de modo que ela vá ao encontro das necessidades dos professores do ensino básico, e, assim, provoque mudanças na prática docente. Nesse sentido, a formação proposta pela SMED, ao reunir um grupo de professores de diferentes áreas, mas com experiência pedagógica afim (professores com conhecimento prévio na produção de vídeos), levou à formação de um grupo com nova identidade, uma vez que, de acordo com Wenger (1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.), havia um engajamento mútuo, um empreendimento comum e um repertório compartilhado, ou seja, uma comunidade de prática, que persistiu enquanto o projeto Curta Capilé 2014 estava em desenvolvimento. O projeto culminou com a apresentação dos curtas produzidos no cinema da cidade.

O projeto, como dissemos na seção destinada à metodologia, ultrapassou os limites da escola, chegou à tela do cinema, ganhou o "mundo", uma vez que contou com a cobertura do jornal local13 13 Disponível em http://www.jornalvs.com.br/_conteudo/2014/10/noticias/regiao/98923-alunos-engajados-no-projeto-curta-capile-em-sao-leopoldo.html, acesso em 13.11.2015 , bem como da RBS-TV, afiliada da Rede Globo14 14 Disponível em http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/jornal-do-almoco/videos/t/porto-alegre/v/estudantes-utilizam-cinema-para-discutir-problemas-sociais/3760052/, acesso em 13.11.2015 . Isso é ler e escrever como prática social, ler e escrever para agir no mundo. Isso é multiletramento(s): (aprender a) utilizar diferentes tecnologias e mobilizar diferentes aspectos da cultura dos grupos que estão engajados naquela prática. Isso fica claro na manifestação de uma professora no Facebook, no final do dia em que o curta que ajudara a produzir foi apresentado no cinema:

O dia tá acabando e eu não posso deixar de falar sobre o momento único que vivemos hoje. Sinto que mais uma vez estamos fazendo história. Participar de um projeto tão importante e gratificante me enche de alegria. Ver meus amadinhos (...) na tela do cinema não tem preço. Penso que nunca esqueceremos desta manhã. Muito obrigada à todos que acreditaram na ideia e fizeram esse dia ser possível. (...) Saímos do Cinesystem SL hoje de alma lavada. Com sensação de dever cumprido e de gratidão pelo trabalho realizado depois de tantos meses. Valeu muito a pena cada minuto de pensar roteiros, filmar, editar, reeditar, editar de novo... rsrsr Quando se ama o que se faz, o tempo não importa. O que importa é fazer. Nos sentimos realizados. #‎sóquemfazentende‬‬‬‬‬‬‬‬‬

Vamos chamar a professora de Denise. Denise assume-se como protagonista no seu registro na rede social, oscilando entre a primeira pessoa do singular, por meio da qual ela, Denise, manifesta-se sobre o dia que vivera, e a primeira pessoa do plural, que se refere, por sua vez, não apenas a si, mas também aseus alunos, os primeiros a quem agradece e dos quais afirma sentir orgulho, conjuntamente a outros professores e apoiadores envolvidos na construção do roteiro e do documentário. Sua manifestação deixa claro o engajamento no empreendimento: muitos meses de envolvimento, muito tempo investido, primeiramente, na escrita e reescrita, momento em que precisou mobilizar suas capacidades relacionadas à produção verbal. A produção do documentário, entretanto, não parou aí, ela precisou também mobilizar capacidades relacionadas à multimodalidade: filmar, editar, reeditar, editar de novo15 15 Os professores produziram de fato os vídeos, não se limitando a apenas inserir legendas ou audiodescrição. . A reescrita se fez necessária, por exemplo, porque uma atriz cega, do grupo Tagarelas, avaliava as audiodescrições, que tinham de ser refeitas ou ajustadas, caso não atingissem sua finalidade.

A fala de Denise vai oscilando entre singular (sinto) e plural (saímos), porque sua voz se junta à voz coletiva, da comunidade de prática de que participou nesse período; foi muito engajamento mútuo no empreendimento compartilhado que tinham, e agora estavam encerrando a atividade, podiam compartilhar um repertório que produziram conjuntamente - professores, alunos, secretaria de educação e todas as demais pessoas envolvidas que fizeram com que o documentário Madalena, que conta um caso de violência doméstica, em que a protagonista é obrigada a abandonar a escola em função de gravidez, mas consegue retomar sua vida mais adiante.

Figura 1

No cartaz acima, percebem-se as capacidades multissemióticas que a professora teve de mobilizar junto com seus alunos para que ele traduzisse a temática abordada, isto é, a multimodalidade de que lançou mão para produzir sentido: o uso do preto e branco e a a expressão de tristeza na personagem, que denotam o ambiente sombrio em que Manuela, a personagem, vivia. Do mesmo modo, o título, em vermelho, demonstra a dor dos espancamentos constantes dos quais era vítima. A imagem contrasta com a linguagem verbal. É a isso, provavelmente, que a professora refere-se em sua página no Facebook: para chegar ao produto final, foram necessários meses de trabalho conjunto para pensar, produzir, editar, reeditar etc. o texto multimodal que produziram. Ela não escreveu no "vácuo", seu texto interagia com os outros, recebia críticas, acréscimos, cortes. Tendo em vista que o filme16 16 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u687XNMCDSY, acesso em 13.11.2015 tinha de ser inclusivo, não se parou na edição, foi necessário incluir a audiodescrição e as legendas. Tudo tinha de ser aprendido para depois ser ensinado.

Ao longo de seis semanas de curso, coordenado pela Secretaria de Educação do Município, os docentes estudaram questões técnicas sobre os recursos de audiodescrição, produziram seus roteiros, debateram a importância da acessibilidade midiática, refletiram sobre temas que fossem ao encontro do contexto social da sua comunidade escolar, compartilharam experiências e trabalhos anteriores realizados em sua escola para testar a audiodescrição. Num primeiro momento, os curtas foram apresentados para os colegas na escola e para os ministrantes do curso. Numa posição de atitude responsiva ativa (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. (1979). Estética da criação verbal4ª Ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ), questionaram e foram questionados de modo que o sentido fosse construído conjuntamente. E, nesse processo social de aprendizagem, eles se engajaram no projeto, sentindo segurança e respaldo, para, então, orgulharem-se do que viram na telona. E construíram uma identidade de grupo, sentiram-se, de fato, numa comunidade de prática, cujos membros vão ocupando um lugar. Ao fortalecer esse profissional, que acredita na produção de curtas como uma ferramenta pedagógica, sua visão crítica é ampliada. Por meio do projeto Curta Capilé 2014, os professores tornaram-se multiplicadores da proposta em suas comunidades escolares. Debateram o que era acessibilidade midiática, audiodescrição, inclusão social, roteiro e produção de curta-metragem, além de terem se envolvido na discussão de temas sociaiscomuns à comunidade da qualprovêm seus alunos. Trabalharam de forma interdisciplinar e em grupo. Da formação, passaram a formadores nas escolas. O projeto proporcionou um espaço de protagonismo para professores e alunos, promovendo mudanças significativas no processo de ensino e aprendizagem entre docentes de diferentes áreas e alunos das séries iniciais à Educação de Jovens Adultos. Todos os participantes (alunos, professores, gestores das 11 escolas) engajaram-se no projeto, vivenciando obstáculos (e buscando alternativas para superá-los) e novas aprendizagens, fortalecendo a identidade de grupo.

Em outro momento, na avaliação escrita que fez do projeto como um todo, Denise diz:

Percebi que podemos fazer algo diferente que possa impactar de verdade a vida das pessoas. Foi como ajudar as pessoas a "abrirem os olhos novamente". Como se tivéssemos alfabetizando alguém. Foi uma experiência inesquecível. (...) Da mesma forma, a escola e os alunos puderam experimentar algo completamente novo. E poder ver o filme na telona também foi algo de muita importância.

Denise, mais uma vez, opta por se posicionar de forma coletiva: a mudança vem da atuação em grupo (podemos). Ela também deixa marcado o processo pelo qual passou (e conduziu alunos e comunidade escolar a passarem por ele): para dar conta do empreendimento comum, foi necessária outra forma de alfabetizar (letrar, diríamos nós), foi necessário aprender (e ensinar a usar) múltiplas linguagens, a multimodalidade.

A interdisciplinaridade, no projeto do Curta, foi trabalhada em duplas/trios nas escolas participantes, e audiodescrição, legendas e libras foram os recursos de acessibilidade desenvolvidos. A reflexão sobre temas sociais, inevitavelmente, trouxe para a produção dos curtas-metragens os temas transversais (orientação sexual, saúde, ética, meio ambiente, trabalho). Essa variedade de temas, com o respectivo recurso de acessibilidade usado, pode ser observada no quadro abaixo. O desenvolvimento do vídeo em cada escola que aderiu à proposta da SMED resultou no protagonismo desses professores e alunos, seja na produção do curta, seja na performance necessária para estrelar o filme.

Quadro 1:
Lista de curtas e os respectivos recursos de acessibilidade desenvolvidos

Conforme a regulamentação da SMED, todos tinham de usar dois recursos de acessibilidade, predominando a audiodescrição e a legenda. Os deficientes visuais e auditivos foram contemplados em todos os curtas. Os resultados só foram possíveis em função do engajamento mútuo dos integrantes da comunidade de prática, que levou à aprendizagem significativa dos que se envolveram. Uma das alunas, que protagoniza o filme Madalena, ao ser entrevistada pela equipe da RBS TV, afirma:

A gente decidiu fazer isso porque é uma forma de chamar a atenção. E para mostrar, no lugar onde a gente mora, que isso tá errado, que a gente não pode abandonar os nossos estudos e os nossos sonhos". (Thaís Chaves, nono ano, participante do curta Madalena, em entrevista à RBS TV).

A fala na entrevista à TV mostra o engajamento também dos alunos no projeto17 17 Ainda que nosso objetivo aqui seja nos focar no desenvolvimento dos professores, não se pode negar o impacto causado nos alunos. Eles não só ajudaram a produzir os curtas, auxiliaram na adaptação para acessibilidade, como atuaram neles e depois puderam se ver na tela. O foco no desenvolvimento dos alunos, entretanto, é assunto para outro trabalho. . É um sujeito coletivo que se manifesta (a gente, nossos). Todos foram protagonistas, todos que participaram ativamente se moveram em direção a uma posição periférica legitimada (WENGER, 1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.) nessa comunidade de prática. Ela, como aluna e protagonista do curta, é convidada a falar sobre o que fora feito e se torna uma praticante plena. Ela tem voz e tem vez. A cultura e os temas emergentes do bairro em que vive, por negociação do grupo, tornaram-se assunto para debate no filme. Todos aprenderam e ensinaram.

Depois de produzir os vídeos, professores e alunos tiveram de adaptá-los com dois recursos de acessibilidade, para que o conteúdo tornasse-se inclusivo: os professores tiveram de ser capacitados para transmitir esse conhecimento aos alunos posteriormente. Muitos desafios tiveram de ser transpostos. Uma professora afirma em entrevista à TV Unisinos:

Eu não tinha ouvido falar ainda em audiodescrição. E aí quando começamos o curso, já começamos né, claro, quando tu vai na primeira aula, tu já começa a pensar com teus colegas "nossa! Tem coisas que a gente tá vivenciando e não tá percebendo", aí tu começa a partir dessa percepção a fundamentar a tua pesquisa também. (Professora Deise, em entrevista à TV Unisinos18 18 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_fPrG0xU97Q, acesso em 15.03.2016. ).

Foi, sem dúvida, tempo de aprendizado, de compartilhamento. Tempo de olhar sua realidade de fora e de perceber o que não havia sido percebido. Não é só a sua realidade, mas a de seus colegas professores. Como diz Denise, falando em relação ao que fora mais significativo nos meses de trabalho em que se haviam envolvido:

Aprendizado, colaboração do grupo, integração, qualidade dos trabalhos, sorrisos dos alunos, parceria com a Liberato e o Cinema. (Denise, avaliando o trabalho realizado)

Evidentemente, não se chegou aos resultados brevemente discutidos aqui sem dificuldades. Os problemas comuns da escola pública, muitas vezes usados como argumentos por alguns professores para optar por um ensino de reprodução, no caso de Denise e seu grupo podem ter sido responsáveis pela qualidade técnica do curta, como ela diz

As maiores dificuldades foram na área técnica. Não temos equipamentos adequados e isso dificultou o produto final ter uma qualidade melhor.

Ou seja, quando professores e alunos organizam-se em uma comunidade de prática, em torno de um empreendimento compartilhado, problemas são transpostos com criatividade e o sorriso dos alunos recompensa qualquer dificuldade, afinal, aprendeu-se com eles.

Os multiletramentos e o gênero como um megainstrumento de ensino vinculado à prática social e às tecnologias são os diferenciais que redundaram nos resultados do projeto. O estudo dos gêneros (roteiro de curta, roteiro de audiodescrição, curta) e todo o trabalho em torno deles (produção, edição do curta, reedição...) proporcionaram o desenvolvimento das capacidades de linguagem e de significação (SCHNEUWLY; DOLZ, 2011SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (2011). Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Salles Cordeiro.. Campinas : Mercado de Letras ; CRISTÓVÃO, 2013CRISTÓVÃO, V. L. C. (2013). Para uma expansão do conceito de capacidades de linguagem. In: Bueno, M. A.; Lopes, P. T.; Cristóvão, V. L. L. (org.). Gêneros textuais e formação inicial: uma homenagem à Malu Matencio., Campinas: Mercado de Letras pp. 357-383. ) dos docentes. O gênero foi o fio condutor para a produção dos curtas, possibilitando reflexão sobre diferentes temas pertinentes à realidade da comunidade em que a escola está inserida. Isso enriqueceu a escrita, a oralidade, a expressão corporal, a criatividade, enfim, o agir no mundo voltado para uma aprendizagem significativa e vivenciada tanto por alunos quanto por professores. Embora, por uma questão de espaço, tenhamos nos atido a apenas um professor, o folder nos mostra que inúmeras outras análises poderiam ser feitas. O gênero curta-metragem acessível exigiu o uso de diversas tecnologias para um fim, proporcionando o desenvolvimento de capacidades multissemióticas dos docentes em um projeto de alcance social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção de curtas, da forma como foi feita no projeto Curta Capilé 2014, conduz à reflexão sobre a importância da acessibilidade midiática e à discussão sobre temas pertinentes à realidade das escolas (bulliyng, violência doméstica, crianças especiais, gravidez na adolescência, mercado de trabalho para jovens com baixa visão, abuso sexual, doação de medula óssea, racismo, anorexia, alunos especiais, entre outros), bem como à necessidade de capacitação do professor para o trabalho interdisciplinar e com a multimodalidade.

Os resultados apontam para várias reflexões sobre o caráter social da aprendizagem (WENGER, 1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press.) e sobre como ela pode ser significativa para professor e alunos. Os curtas-metragens, quando desenvolvidos no espaço escolar para um fim pedagógico, tornam-se uma ferramenta didática importante para desenvolver habilidades e competências em toda a comunidade escolar. A abordagem sobre inclusão foi importante no projeto: todos os telespectadores do cinema foram convidados a conhecer a audiodescrição, a legenda e a língua de sinais como recursos de acessibilidade midiática que incluem pessoas com deficiência auditiva e visual. O trabalho permitiu, ainda, a aproximação dos professores envolvidos na proposta, que tiveram de se organizar e trabalhar em grupos, e promoveu a melhora da autoestima dos alunos, que também tiveram de vencer as barreiras com a tecnologia, usar diferentes linguagens e ferramentas tecnológicas. Todos compartilharam e construíram conhecimentos conjuntamente, demandas tão frequentes e urgentes da sociedade contemporânea.

A avaliação de outra professora dá-nos a dimensão do que é promover uma formação continuada, que transforma professores em alunos e ambos, professores e alunos, em protagonistas de um empreendimento compartilhado:

O projeto Curta Capilé foi uma ótima oportunidade para envolver na escola um bom número de alunos e professores na produção de vídeos escolares. O processo de criação e de construção de conceitos novos, como a audiodescrição, foram momentos ricos de protagonismo por parte tanto de alunos quanto de professores, e esse movimento representou um novo patamar para a produção audiovisual em nossa escola. Além disso, o projeto se tornou referência para um grupo de professores que realmente gosta de produzir filmes e que tem muito interesse em compartilhar seus conhecimentos com colegas e alunos. Ao conversar com os alunos e perceber a importância que o projeto representou para cada um deles, posso dizer que o sentimento de realização e de felicidade é compartilhado. Fazer um filme muda o mundo, nem que seja um pouquinho, nem que seja o nosso mundo.

De fato, fazer um filme pode mudar o mundo de quem o produziu, atuou nele, e depois se viu nele. Aprendizagem, como diz Wenger (1998WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press., p. 5), muda quem nós somos e cria histórias pessoais no contexto de nossas comunidades. Após o Curta Capilé 2014, certamente ninguém que participou continuou sendo o que/quem era. Os resultados do coletivo, todavia, estão também relacionados à atuação da SMED, como responsável pelos direcionamentos e pelas políticas públicas. Ou seja, para que, em educação, consiga-se resultados significativos, é necessário que os professores sintam-se parte dessa outra comunidade. É preciso que percebam qual é o repertório que vão compartilhar, de qual empreendimento comum vão participar, de modo a engajarem-se mutuamente. Sem direcionamento e sem apoio, não é possível esperar respostas da educação.

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  • WENGER, E. (1998). Communities of practice: learning, meaning, and identity Cambridge: Cambridge University Press.
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    Ver Guimarães; Kersch, 2012a, 2012b, 2014, 2015.
  • 2
    Temos conhecimento, por exemplo, de professores com pouquíssimo domínio de ferramentas digitais, dando capacitações para os demais professores da rede.
  • 3
    (...) changes in the contemporary communications environment lead us to a new understanding of language itself, in which we might uncover neglected aspects of linguistic meaning. Language is itself invariably multimodal; writing is visually designed and spoken language has profoundly important audio qualities.
  • 4
    el conocimiento y las competencias necesarias para ser ciudadanos y trabajadores activos e informados en un mundo en cambio - un mundo de diversidade en el que nuestros medios de comunicación y de acceso a la información sufren cambios rápidos.
  • 5
    (And) multimodality itself is becoming more significant in today's communications environment where, from multimedia desktops to shopping malls, written text is represented in a dynamic relation to sound, visuals, spaces and gesture. Globalization and local diversity also progressively transfer the balance of meaning away from language. As a consequence, literacy teaching and learning need to be an increasingly interdisciplinary endeavor, in which the boundaries of literacy with art, drama and music are no longer so clearly defined.
  • 6
    Being alive as human beings means that we are constantly engaged in the pursuit of enterprises of all kinds, from ensuring our physical survival to seeking the most lofty pleasures. As we define these enterprises and engage in their pursuit together, we interact with each other and with the world and we tune our relations with each other and with the world accordingly. In other words, we learn. Over time, this collective learning results in practices that reflect both the pursuit of our enterprises and the attendant social relations. These practices are thus the property of a kind of community created over time by the sustained pursuit of a shared enterprise. It makes sense, therefore to call these kinds of communities communities of practice.
  • 7
    Em 6 de julho de 2015., foi promulgada a Lei 13.146,que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). A referida Lei prevê, entre outras coisas, a acessibilidade e o uso de tecnologias assistivas a todos os alunos com alguma deficiência.
  • 8
    Trata-se de um grupo especializado em audiodescrição que, na época, prestava assessoria e coordenava a produção de recursos de acessibilidade para produtos audiovisuais, editoriais e eventos.
  • 9
    Audacity é um programa de computador por meio do qual é possível editar, gravar, importar e exportar diferentes formatos de arquivos de áudio.
  • 10
    Os curtas-metragens eram trabalhos escolares dos professores participantes, nos quais foi inserida a audiodescrição.
  • 11
    Parceria entre Secretaria Municipal de Educação, Fundação Escola Liberato Salzano da Cunha e Universidade FEEVALE.
  • 12
    Site da G1.com http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/jornal-do-almoco/videos/v/estudantes-utilizam-cinema-para-discutir-problemas-sociais/3760052/
  • 13
    Disponível em http://www.jornalvs.com.br/_conteudo/2014/10/noticias/regiao/98923-alunos-engajados-no-projeto-curta-capile-em-sao-leopoldo.html, acesso em 13.11.2015
  • 14
    Disponível em http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/jornal-do-almoco/videos/t/porto-alegre/v/estudantes-utilizam-cinema-para-discutir-problemas-sociais/3760052/, acesso em 13.11.2015
  • 15
    Os professores produziram de fato os vídeos, não se limitando a apenas inserir legendas ou audiodescrição.
  • 16
    Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u687XNMCDSY, acesso em 13.11.2015
  • 17
    Ainda que nosso objetivo aqui seja nos focar no desenvolvimento dos professores, não se pode negar o impacto causado nos alunos. Eles não só ajudaram a produzir os curtas, auxiliaram na adaptação para acessibilidade, como atuaram neles e depois puderam se ver na tela. O foco no desenvolvimento dos alunos, entretanto, é assunto para outro trabalho.
  • 18
    Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_fPrG0xU97Q, acesso em 15.03.2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2015
  • Aceito
    21 Mar 2016
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