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TENSÕES E CONTRADIÇÕES DO PORTUGUÊS EM CONTEXTOS DE DIÁSPORA: NARRATIVAS ETNOGRÁFICAS E CONFESSIONAIS NA ÁREA METROPOLITANA DE BOSTON

PORTUGUESE LANGUAGE TENSIONS AND CONTRADICTIONS IN DIASPORIC CONTEXTS: ETHNOGRAPHIC AND CONFESSIONAL NARRATIVES IN GREATER BOSTON

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar os emaranhados do “português” em contexto de diáspora e o seu reconhecimento como língua de herança. Através de uma pesquisa colaborativa na interseção disciplinar entre a antropologia, a sociolinguística e a educação, localizada em um pequeno território da área metropolitana de Boston, marcado por uma antiga imigração açoriana, a análise organiza-se em dois planos complementares: um local, socioespacial e comunitário, em narrativa etnográfica, e outro individual, ancorado na trajetória linguística pessoal, em narrativa autobiográfica. A discussão enfatiza o papel da dimensão ideológica, transversal aos vários pontos analisados, abrindo para uma reflexão crítica sobre português como língua de herança nos EUA.

Palavras-chave:
diáspora açoriana; narrativa autobiográfica; narrativa etnográfica; ideologias linguísticas; português como língua de herança

ABSTRACT

This article aims to analyze the entanglements of “Portuguese” in a diasporic context and its recognition as a heritage language. Through a collaborative research at the disciplinary intersection between anthropology, sociolinguistics and education, located in a small territory in Greater Boston and marked by an older Azorean immigration, the analysis is organized on two complementary levels: a local, socio-spatial and community, in an ethnographic narrative, and another one more individual, anchored in a personal-linguistic trajectory, in an autobiographical narrative. The discussion emphasizes the role of the ideological dimension, transversal to the various points analyzed, opening for a critical reflection on Portuguese as a heritage language in the United States.

Keywords:
Azorean diaspora; autobiographical narrative; ethnographic narrative; linguistic ideologies; Portuguese as a heritage language

INTRODUÇÃO

Em janeiro de 2005, Graça Cordeiro (coautora deste artigo) foi a Boston pela primeira vez para uma curta estadia de um mês no Departamento de Antropologia da Universidade do Massachusetts. Apesar da neve e do frio intenso, pôde conhecer um pouco a cidade, guiada por um colega deste departamento. Para além de visitar alguns dos lugares que deram origem a algumas das monografias clássicas no campo da etnografia urbana, como sejam os bairros “italianos” de North End (WHYTE, 1943WHYTE, W. F., (1943). Street Corner Society, The social structure of an Italian Slum, Chicago, IL: The University of Chicago Press.) ou West End (GANS, 1962GANS, H. J. (1962). The Urban Villagers. Group and Class in the Life of Italian-Americans. New York: The Free Press.) através do seu museu-memória, Graça foi surpreendida por dois lugares que a fascinaram: a comunidade cabo-verdiana de Dorchester e a presença portuguesa e brasileira em Cambridge e Somerville, duas pequenas cidades vizinhas de Boston. A descoberta destes territórios quase invisíveis em uma cidade tão “anglo-saxónica”, assim como o seu relativo esquecimento no mapa e na história “étnica” de Boston, despertaram a sua curiosidade. Passados quatro anos ela partia para a sua primeira visita de campo, por seis meses, na capital da Nova Inglaterra, ao que se seguiram mais duas estadias por igual período, em 2014 e 20191 1 Em 2009 e 2014, como visiting scholar no Departamento de Antropologia da UMass Boston, com financiamento da FLAD; em 2019 como Gulbenkian/Saab Visiting Professor of Portuguese Studies, em UMass Lowell, a cerca de uma hora de distância de Cambridge, cidade onde residiu temporariamente. . Durante a segunda “residência” em Boston, em 2014, conheceu Giuseppe Formato (coautor), inicialmente apenas no papel de interlocutor privilegiado que gentilmente a acompanhou em algumas das atividades coletivas da “comunidade portuguesa” de Cambridge/Somerville e aceitou ser entrevistado, posteriormente no papel de co pesquisador, partilhando ambos um interesse em aprofundar o conhecimento sobre o papel do “português”, nos seus vários usos e significados, neste espaço multilingue, multicultural, cosmopolita.

Na origem deste comum interesse está um facto aparentemente paradoxal: apesar da sua proverbial invisibilidade, o português continua a ser a língua mais falada em casa, a seguir ao inglês e ao espanhol, em alguns estados da Nova Inglaterra. Ta l facto deve-se à confluência de sucessivas vagas imigratórias de falantes de português que desde finais do século XIX até ao presente têm povoado o sudeste da Nova Inglaterra, com particular intensidade nos estados do Massachusetts, Rhodes Island e Connecticut2 2 O português é “the most common language spoken at home other than English or Spanish” nos estados do Massachusetts, Connecticut e Rhodes Island (2018 American Community Survey). . Até meados do século XX tais populações eram maioritariamente originárias da periferia atlântica de Portugal, como sejam os arquipélagos dos Açores e Cabo Verde (PAP, 1981PAP, L. (1981). The Portuguese-Americans. Boston: Twayne Publishers.). Só a partir das duas últimas décadas desse século os Portuguese Speakers passaram a chegar cada vez mais do Brasil (MARTES, 2000MARTES, A. C. B. (2000). Brasileiros nos Estados Unidos: um estudo sobre imigrantes em Massachusetts, São Paulo: Paz e Terra.). A “velha” imigração portuguesa deu lugar à “nova” imigração brasileira, o que explica a razão por que o número de falantes do português não tem diminuído nas estatísticas nem tem diminuído o interesse pelo ensino da língua que parece, até, ter aumentado ligeiramente nos últimos anos, de acordo com o número de inscritos em programas universitários de português (LOONEY; LUSIN, 2019, p. 33LOONEY, D.; LUSIN, N. (2019). Enrollments in Languages Other Than English in United States Institutions of Higher Education, Summer 2016 and Fall 2016: Final Report Web publication, Modern Language Association of America).

A aparente continuidade numérica dos que falam “português em casa” esconde, no entanto, uma alteração significativa dos seus sujeitos falantes. Se anteriormente estes falantes eram oriundos maioritariamente dos Açores, falando variantes periféricas do português de Portugal, já os falantes de hoje são oriundos maioritariamente de algumas regiões do Brasil, cujas variantes protagonizam a visibilidade pública do idioma português nesta região (RUBINSTEIN-AVILA, 2005RUBINSTEIN-AVILA, E. R. (2005). Brazilian Portuguese in Massachusetts’ linguistic landscape: a prevalent yet understudied phenomenon. Hispania, v. 88, n. 4, p. 873-880.).

Facto que aponta para uma alteração significativa do mapa sociolinguístico desta região, produzindo uma fratura interna entre duas variantes, a portuguesa e a brasileira, que correspondem a dois processos migratórios separados pelo tempo e pela geografia. Além disso, esta alteração é acompanhada por um progressivo apagamento de variantes mais antigas do português que, apesar de uma história secular de presença nesta região (LANG, 1892LANG, H. R. (1892). The Portuguese Element in New England. The Journal of American Folklore. Vol. 5 (16), p. 9-18., CARVALHO, 1925CARVALHO, E. (1925). A língua portuguesa nos Estados Unidos, Boston: Empresa de Propaganda Patriótica., PAP, 1949PAP, L. (1949). Portuguese-American Speech. An Outline of Speech Conditions Among Portuguese Immigrants in New England and Elsewhere in the United States. King’s Crown, Columbia University.) são cada vez menos praticadas em casa, seguindo o processo de erosão da língua-materna entre os imigrantes dos EUA ao longo de três gerações (PORTES; RUMBAUT, 2014, p. 336PORTES, A.; RUMBAUT, R. (2014). Immigrant America: A Portrait, 4th ed., Oakland, California: University of California Press.).

Este foi o nosso ponto de partida. Ir ao encontro de uma das variantes minoritárias do português, uma das mais estigmatizadas, não reconhecida como tal e que, paradoxalmente, corresponde a uma das identidades locais historicamente mais consolidada na Nova Inglaterra (HOLTON; KLIMT, 2009HOLTON, K; KLIMT, A. (eds.) (2009). Community, Culture and the Makings of Identity. Portuguese-Americans along the Eastern Seaboard, North Dartmouth, Massachusetts: University of Massachusetts Dartmouth.), com a qual Giuseppe estava particularmente familiarizado: a portuguesa-açoriana-americana. Mais do que a variante em si, interessavanos explorar alguns aspetos relacionados com ela, tais como: o seu enraizamento local; a incorporação de tais práticas linguísticas, classificadas como “açoriano” ou “portinglês”, em atividades e no ambiente em que se inserem; a relação de concorrência e tensão, com outras línguas e com outras variantes do português; e, sobretudo, as razões para a confrangedora ausência de um ensino de português como língua de herança capaz de ir ao encontro das necessidades e motivações dos muitos descendentes de imigrantes, potenciais “aprendentes de herança”. A dimensão ideológica da língua (WOOLARD, 1994WOOLARD, K. A. (1994). Language Ideology, Annual Review of Anthropology, 23, p.55-82.) impunha-se, ao nível de uma visão fortemente standardizada, tanto linguística como cultural (MCLELLAND, 2021, p. 111MCLELLAND, N. (2021). Language Standards, Standardisation and Standard Ideologies in Multilingual Contexts. Journal of Multilingual and Multicultural Development, v. 42, n. 2, p. 109-24.) do português europeu que afetava claramente o ensino de um português de herança em um contexto de patrimónios (heritage) multilingues. Perante a pluralidade dos seus usos, significados e identidades entrelaçadas, justapostas, sobrepostas, assim como perante a concorrência entre línguas e suas variantes, o português como língua de herança continua a ser uma questão em aberto (MELO-PFEIFER, 2018MELO-PFEIFER, S. (2018). Português como língua de herança: Que Português? Que língua? Que herança? Domínios de Lingu@gem, vol. 12, p. 1161-79.), um tema pouco falado, quase silenciado, que obriga a um olhar crítico sobre as muitas representações utópicas de um português global, internacional, entendido como sistema autónomo que pressupõe padrões de opressão.

1. METODOLOGIA

A nossa análise, exploratória, baseia-se em duas abordagens diferentes que correspondem a duas narrativas complementares, uma etnográfica e uma autobiográfica. A narrativa etnográfica, na voz de Graça (GIC) é elaborada a partir de uma pesquisa anterior sobre as metamorfoses do label Portuguese em um território historicamente impregnado por esta categoria polissémica que se entrelaça ambiguamente com outras categorias regionais, nacionais, pan-étnicas, como Azorian, Brazilian, Cape-Verdean, Latino, Portuguese Speaker. O recorte etnográfico desta pesquisa, que corresponde ao pequeno bairro “português” de Cambridge, não apenas desencadeou o diálogo que está na base desta reflexão conjunta sobre os emaranhados do português como contribuiu para enquadrar a reflexão autobiográfica de Giuseppe (GF) que neste bairro nasceu e cresceu. Foi neste local que ambos se conheceram, durante o trabalho de campo de Graça, e foi a partir deste local, familiar para ambos, embora em posições diferentes, que esta pesquisa se transformou numa etnografia colaborativa (LASSITER, 2005LASSITER, L.E. (2005). The Chicago Guide to Collaborative Ethnography. Chicago & London: The University of Chicago Press.).

Percorremos algumas das tensões e ambiguidades que envolvem as práticas e representações do “português” em dois planos intrinsecamente interconectados: um mais socioespacial e comunitário, através do relato etnográfico, outro mais individual e confessional, através da narrativa autobiográfica. Duas perspetivas cuja análise se cruza sobre um mesmo espaço através de uma trajetória biográfica reveladora de um repertório linguístico heteroglóssico enraizado em práticas sociais familiares e locais (BUSCH, 2012BUSCH, B. (2012). The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, v. 33, n. 5, p. 503-523.).

A opção metodológica em privilegiar a construção identitária de Giuseppe, um heritage learner, plurilingue, filho e neto de imigrantes italianos e de açorianos que chegaram aos Estados Unidos em uma das últimas grandes vagas imigratórias, ao longo da década de 1960 assumindo-a como fonte empírica com um valor único, simultaneamente, introspetiva, descritiva, analítica, reflexiva, e teórica, impôs-se como a melhor opção, atendendo ao contexto de relação entre ambas as pesquisas e posicionalidade de seus autores. Só através do relato em primeira mão, pessoal e subjetivo, de Giuseppe é possível compreender a “experiência vivida da língua” (sprachleben), através do seu repertório linguístico (BUSCH, 2016BUSCH, B. (2016) Biographical approaches to research in multilingual settings: Exploring linguistic repertoires. In: Martin-Jones, M. e Martin, D. Researching Multilingualism. Critical and Ethnographic Perspectives. London: Routledge. p. 46-59., 2015BUSCH, B. (2015). Linguistic repertoire and Spracherleben, the lived experience of language. Working Papers in Urban Language & Literacies, paper 148.). A sua posição relativamente à ascendência portuguesa é fundamental para a compreensão da experiência heteroglóssica do português. A sua situação singular permite compreender aquilo que não vemos quando nos referimos a um “falante médio”, ou seja, como a “liminaridade da fala é vivida e se torna vital no desenvolvimento de estratégias de compreensão translinguística” (BUSCH, 2016, p. 55BUSCH, B. (2016) Biographical approaches to research in multilingual settings: Exploring linguistic repertoires. In: Martin-Jones, M. e Martin, D. Researching Multilingualism. Critical and Ethnographic Perspectives. London: Routledge. p. 46-59.). Neste sentido, trata-se de um registo “confessional” (COLOMA, 2020COLOMA, R.S. (2020). Unresolved feelings: notes on pleasure and pain from an accidental educator. International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 33, n. 6, p. 649-662.) que contribui, neste processo de etnografia colaborativa, para uma postura crítica e autorreflexiva de Graça, na sua posição de intrusa e outsider, atenuando os riscos da “autoridade” de uma voz etnográfica (CLIFFORD; MARCUS, 1986CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (1986). Writing Culture. Berkley: University of California Press.), ou dos tantos bias da sua socialização de “portuguesa do continente”, nascida e criada em Lisboa, falante de português europeu, de perfil monoglóssico, uma “estrangeira” em solo americano.

No relato que se segue, ambos os insights, etnográficos e autobiográficos, devem ser lidos e interpretados como complementares. No entanto, a voz de Giuseppe é a voz protagonista, como voz do próprio lugar de onde emerge, confundindo-se com ele, como ponto de confluência sincrónico e diacrónico de um conjunto de redes e agenciamentos pessoais, situacionais, institucionais, em ambientes socioecónomicos, políticos, ideológicos específicos que, em conjunto, tecem a complexa meada do português nesta região. A sua interpretação é um processo aberto que estrutura tanto a esfera social como individual, sem oposição entre ambas (BUSCH, 2016, p. 47BUSCH, B. (2016) Biographical approaches to research in multilingual settings: Exploring linguistic repertoires. In: Martin-Jones, M. e Martin, D. Researching Multilingualism. Critical and Ethnographic Perspectives. London: Routledge. p. 46-59.). O carácter subjetivo da sua narrativa pessoal abre para a conexão entre trajetória individual e forças coletivas e institucionais, situadas, metodologicamente, em lugares privilegiados para a análise da “agência humana” com todas as subjetividades e intersubjetividades subjacentes (ABRAHÃO, 2012ABRAHÃO, M.H.M.B. (2012). Autobiographical research: Memory, time and narratives in the first person. European Journal for Research in the Education Learning of Adults, v. 3, n. 1, p. 29-41., MAYNES; PIERCE; LASLETT, 2008MAYNES, M. J.; PIERCE, J.L.; LASLETT, B. (2008). Telling Stories. The use of personal narratives in the Social Sciences and History, Ithaca and London: Cornell University Press.).

2. TERRITÓRIO MÚLTIPLO, ONDE O PORTUGUÊS UNE E SEPARA (GIC)

Apesar da presença portuguesa ser bastante antiga, a par da italiana, na pequena área a leste da cidade de Cambridge que se estende por Somerville, datando de finais do século XIX (ITO-ADLER, 1971ITO-ADLER, J. (1972). The Portuguese. Ethnic Minorities in Cambridge. Volume one (unabridged). Cambridge Planning and Development Department. Cambridge, MA: The City of Cambridge Printing Department., PAP, 1981PAP, L. (1981). The Portuguese-Americans. Boston: Twayne Publishers.), ela nunca mereceu muita atenção na pesquisa sobre portugueses na Nova Inglaterra. Os estudos mais relevantes (HOLTON; KLIMT, 2009HOLTON, K; KLIMT, A. (eds.) (2009). Community, Culture and the Makings of Identity. Portuguese-Americans along the Eastern Seaboard, North Dartmouth, Massachusetts: University of Massachusetts Dartmouth.) sempre privilegiaram a região do sudeste do estado do Massachusetts e do vizinho estado de Rhodes Island, em torno de cidades como New Bedford, Fall River e Providence, entre muitas outras, mais pequenas, para onde confluíram numerosos contingentes de imigrantes açorianos e cabo-verdianos atraídos pela indústria baleeira e, mais tarde, pelas grandes fábricas têxteis (PAP, 1981PAP, L. (1981). The Portuguese-Americans. Boston: Twayne Publishers.). Ao longo de mais de cem anos as suas variantes foramse enraizando, como línguas de identidade no seio das comunidades étnicas que se foram sedimentando nestas cidades industriais – incluindo Cambridge e Somerville, cidades na sombra destes estudos. A pobreza e baixa literacia destes imigrantes formam parte de toda uma história social ainda por aprofundar, de desprestígio e estigmatização linguística, étnica e racial do português.

O início do meu trabalho de campo, em 2009, centrou-se, pois, em Cambridge, tendo beneficiado do excelente acolhimento da MAPS (Massachusetts Alliance of Portuguese Speakers), onde fui voluntária. É uma “organizaçãochave” (BLOEMRADD, 1999, p. 115BLOEMRAAD, I. (1999). Portuguese Immigrants and Citizenship in North America. Lusotopie, 6, p. 103-120.) pelo papel único de apoio social às comunidades portuguesa, brasileira e caboverdiana, e que resultou de uma fusão entre duas associações de Portuguese Americans locais, há cerca de 30 anos atrás. Entidade de referência, pelas atividades que desenvolve, integra algumas dezenas de profissionais qualificados com elevados níveis de instrução, com ascendências variadas, embora maioritariamente portuguesa, cabo-verdiana e brasileira, distribuídos pelos seis “escritórios” na área metropolitana de Boston, situados em comunidades com forte presença de portugueses e brasileiros (nas cidades de Cambridge, Somerville e Lowell), de brasileiros (nos bairros de Brighton/Alston, em Boston, e na cidade de Framingham) e de cabo-verdianos (no bairro de Dorchester, em Boston). O inglês é a língua de comunicação dominante, misturado, ou alternado com várias variantes e sotaques do português e, no caso do “escritório” em Dorchester, com o kriolu (cabo-verdiano)3 3 Cabe aqui referir que a minha presença, falante do português, induzia o uso do português… .

Nesse momento, preparava-se o recenseamento geral da população de 2010, com várias campanhas para incentivar a resposta ao censo por parte de populações menos visíveis. A MAPS liderou uma comissão – Portuguese Speaking Complete Count Committee (PSCCC) – composta por cerca de 40 líderes comunitários e ativistas do estado que, em três línguas – português, inglês e kriolu – defendeu a criação de uma nova categoria populacional, Portuguese Speaker, em uma tentativa de visibilização de uma Portuguese Speaking Community. Tal processo parecia anunciar a génese de uma nova categoria étnica e linguística, Portuguese Speaker, semelhante à categoria hispanic/ latino, congregadora de várias etnicidades/nacionalidades sul americanas (CORDEIRO, 2012CORDEIRO, G. I. (2012). De minoria étnica a maioria linguística. Metamorfoses do sentido de português em Massachusetts (séc. XX-XXI) Antropolítica. Revista Contemporânea de Antropologia, v. 32, p. 19-40.). O elevado número de falantes de português no estado do Massachusetts era o motor para esta campanha, cuja “vitalidade etnolinguística” se devia à prevalência de variantes brasileiras, mais recentemente chegadas ao território americano.

O projeto antropológico e histórico nesta minha primeira incursão de campo foi-se definindo em torno deste processo, tendo como objetivo compreender qual o lugar que a categoria Portuguese Speaker ocupava no quadro de uma diversidade étnica-nacional e racial que desafiava a própria matriz classificatória populacional norte americana. Esta era uma das razões por que me interessava analisar este processo classificatório, por configurar um projeto panétnico-linguístico que, ao juntar em uma mesma categoria classificatória populações com origem em três continentes diferentes, América Latina, África, Europa, normalmente associados às categorias Hispanic/Latino, African-American e European, desafiava a classificação étnica e racial mainstream norte-americana.

Dez anos mais tarde, em 2019, não se voltou a repetir a ação em prol de uma contabilização inclusiva e abrangente de todos os Portuguese Speakers para o recenseamento de 2020. O esforço de negociação que dez anos antes a MAPS liderara para empoderar e dar visibilidade a um label linguístico agregador e unificador de grupos de imigrantes e seus descendentes de diferentes “etnicidades/nacionalidades”, tendo como base a partilha de uma língua comum, perdeu-se. A nova política restritiva de imigração do governo de Donald Trump cavou ainda mais o fosso entre “velhos” e “novos” imigrantes, os primeiros amplamente americanizados, mais “herdeiros” do português do que falantes ativos, os segundos, maioritariamente em situação migratória ilegal, maioritariamente falantes do português. Em 2019, a luta pela visibilidade pública do “português” foi protagonizada por uma organização Portuguese American, o que fortaleceu o vínculo unívoco entre língua e cidadania (portuguese citizenship), significando um reforço da nacionalidade portuguesa associada ao termo Portuguese.4 4 https://lusoamericano.com/palcus-launches-make-portuguese-count-campaign/ acessado em 3.10.2022

A partir dos meus primeiros contactos com o “escritório” (office) sede da MAPS, em Cambridge Street, fuime familiarizando com a área circundante da sua sede, entrando no quotidiano do bairro circundante, marcado por uma “memória ancestral portuguesa”, onde emergiam discretamente alguns pontos de visibilidade da igualmente antiga imigração cabo-verdiana e, de forma mais exuberante, da mais recente brasileira.

Neste pequeno reduto, o “português” evidenciava-se em formas textuais, escritas e orais, materiais e imateriais. Para além das montras e dísticos comerciais, placas toponímicas com nomes portugueses, cartazes a anunciar festas e outros eventos, avisos oficiais, compondo uma paisagem linguística peculiar, havia também toda uma paisagem sensorial feita de comidas, cheiros, sons, ao longo dos restaurantes portugueses e brasileiros, associações, clubes, padaria, lojas, que pontilhavam a parte leste de Cambridge Street. Este era o epicentro de um antigo hub português. A memória dos tempos em que era um pobre working class neighborhood ainda era visível, apesar dos já poucos residentes de origem portuguesa e italiana, entre outras “etnicidades”, que ainda resistiam à força avassaladora de uma renovação urbana e especulação imobiliária impiedosas, do cada vez mais próximo polo universitário e tecnológico associado ao vizinho MIT. Mas, apesar dos avanços deste processo de gentrification, e da diminuição destes residentes portugueses mais antigos, este hub sobrevivia, graças ao poder de atração de visitantes, ex-habitantes que se haviam mudado para casas mais desafogadas nos subúrbios mais afluentes de Boston, ou residentes em outras cidades vizinhas do Massachusetts e, até, de outros estados vizinhos, como participantes nas várias atividades que aqui acontecem. Neste sentido, a marca portuguesa deste território, resulta em grande medida da sociabilidade gerada em torno de lojas, padaria, clubs e, sazonalmente, de forma mais intensa, das festas polarizadas pela Igreja de Santo António.

Em maio/junho de 2013 e em 2019, enquanto residente em casa de uma família de origem açoriana a 200 metros desta rua, pude acompanhar mais de perto alguma desta vida social, desde a mais pública à mais doméstica, familiar, privada. Fazem parte desta paisagem alguns pontos emblemáticos, todos situados ao longo da mesma rua da sede da MAPS, com destaque para alguns clubs: os jantares, à sextas-feiras, no Faialense, transformado em um dos restaurantes portugueses mais procurados, ou as festas ligadas ao calendário cíclico anual português-açoriano, como as danças de Carnaval terceirenses, partilhadas com a Filarmónica de Santo António onde, por sua vez, também assisti a festas e jantares familiares, organizados por habitantes locais da comunidade cabo-verdiana, promovendo jovens músicos em ascensão. A padaria, com seus famosos papo-secos, ou a mistura de cheiros, entre o bacalhau e o queijo da loja do sr. D., não longe do bom café expresso no minúsculo cantinho com um desenho de “calçada portuguesa” no pavimento, os restaurantes como a Casa de Portugal, a Portugália, ou aquele especializado em Fish&Chips, ao lado da antiga peixaria de portugueses, sempre ocupado com alguma família cabo-verdiana, apreciadora da “boa comidinha portuguesa”, como me disseram várias vezes. Ou, ainda, a Biblioteca Pública local com o seu espólio de obras em língua portuguesa…E, claro, a Igreja de Santo António, referência maior desde que foi fundada em 1903, agora em um novo edifício preparado para receber festas e sociabilidades comunitárias – onde o “português” existe em uma relação incerta com outros rótulos que com ele emparelham, sobrepõem, entrelaçam, por vezes de forma ambígua, como sejam o “açoriano”, “continental”, “brasileiro”, “cabo-verdiano”, “latino”.

Mas esta aparente congregação de atividades em português revela uma clara divisão entre as várias comunidades que usam este espaço. A Igreja de Santo António é um dos pontos onde esta separação interna da “língua portuguesa” se exprime claramente em fronteiras étnicas ou nacionais, linguísticas, vivenciais, socioculturais, geracionais, reveladoras de origens e experiências imigratórias radicalmente diferentes, em períodos, também eles radicalmente diferentes. Foi aqui que acompanhei, por exemplo, as festas juninas de 2014 que ao longo de um fim de semana transformaram o espaço do pátio e do salão paroquial, inundando de sons e cheiro a “churrasquinhos” toda a área circundante, no frenesim das “quadrilhas”, das lotarias muito concorridas, ultrapassando a lotação máxima permitida nestes espaços…tudo diferente do que assistira na semana anterior, de celebração da festa portuguesa de Santo António, com sua procissão ao som de algumas bandas filarmónicas em redor do quarteirão, escoltada pela polícia, com as tão desejadas malassadas cuja preparação da massa e fritura eram feitas desde manhã cedo, as sardinhas e bifanas assadas no estacionamento das traseiras da igreja evitando que o fumo e o cheiro incomodassem a vizinhança, com as performances musicais e dançantes no interior do salão…a visibilidade pública das festas juninas parecia transbordar o espaço desta igreja, contrariamente às festas portuguesas.

Efetivamente, a partilha de um mesmo espaço, embora em tempos separados, marcava uma irredutível separação identitária, cuidadosamente negociada na gestão dos calendários festivos, sazonais e familiares. Não parecia haver lugar a qualquer mistura entre comunidades. De modo semelhante, havia três tipos de missa em horários diferentes: “missa em inglês”, “missa em português” e missa “para a comunidade brasileira”.

Foi aqui que conheci Giuseppe, em maio de 2014. Ambos participávamos na festa de Santo Cristo, eu como observadora participante, ele como colaborador do Boston Portuguese Festival… e membro do Rancho Folclórico Corações Lusíadas de Cambridge, Massachusetts. Eu levava alguns, poucos, anos de pesquisa e reflexão sobre os consensos e dissensos da língua portuguesa neste pequeno lugar, onde ele nascera e vivia. A riqueza da sua experiência individual foi transformando o meu objeto inicial, incorporando cada vez mais a língua como parte indissociável de todos os processos identitários que mereciam atenção. Ele ajudou-me a descobrir, em contexto, e a refletir, colaborativamente, sobre as ambiguidades do termo “português” por conta da inevitável sobreposição entre língua e nacionalidade, como um dos pontos de tensão nunca resolvidos neste lugar onde convergiam em várias temporalidades, a imigração açoriana, continental, cabo-verdiana, brasileira, que com seus descendentes já não-imigrantes, são atravessados por uma longa história colonial e pós-colonial.

3. NARRATIVA CONFESSIONAL DE UM ITALIANO-AÇORIANO DA NOVA INGLATERRA (GF)

Meu pai foi o primeiro da sua família a nascer nos Estados Unidos, no Massachusetts, em 1961. A sua primeira língua foi o italiano, ou melhor, o irpiniano (ou irpino) um dialeto da língua napolitana falada na província de Avellino, com influências beneventanas (outro dialeto napolitano). Ele é completamente fluente neste idioma. Era essa a língua da sua vida doméstica e a língua em que falava (e ainda fala) com seus pais. Não é uma língua escrita, e por isso ele nunca aprendeu a ler ou escrever nessa língua. Mais tarde, ele estudou um pouco de italiano-padrão, em aulas, mas nunca se tornou fluente, embora continue a ser um seu projeto. O italiano padrão é mutuamente inteligível com o irpino. Na realidade o irpino era a língua de sua casa, sua família, sua cultura, já que ele não cresceu em uma típica casa americana anglo-saxônica ou mainstream/estereotípica. Ele cresceu com hortas, fazendo vinho, molho de tomate, comendo apenas comidas do sul da Itália, etc. Porém, ele quis que eu crescesse falando italiano padrão, e não a sua língua materna, por ser uma língua de pouco prestígio, associada a pessoas do campo e da montanha. Mas, na maior parte das vezes, eu entendo esse dialeto e gosto dele; no entanto, não estou tão confortável como com o italiano padrão. Ele fez-me frequentar a escola italiana aos sábados, estudar italiano do ensino fundamental ao ensino médio, e mais tarde fiz minha graduação em Estudos Italianos na UMass Boston.

Desde muito jovem, de dois em dois anos, ia com o meu pai à Itália, principalmente para visitar a família, mas também para conhecer vários locais e pontos de interesse. Ele incutiu em mim um grande orgulho em ser italiano, dando-me esta cidadania. E eu me senti, desde muito jovem, mais italiano do que americano. O que tem, também, a ver com meu nome, que me diferenciava de todos os meus colegas de escola. Posso dizer que ele sempre empurrou a cultura italiana para mim, e eu sentia-me realmente maravilhado com os famosos italianos que contribuíram para a cultura mundial através das artes, por exemplo. À mesa com meu bisavô, avô, pai e tio, falávamos dos americanos, como o “outro”. Ele criou um mundo italiano para mim, aqui nos EUA. E sempre se orgulhava das minhas “conquistas” em italiano. Educou-me com a maior parte das tradições que conhecia e sempre dizia sobre mim: “Ele fala melhor do que nós”, por causa do meu melhor conhecimento do italiano padrão do que do dialeto de nossa família. Eu sempre notei essas diferenças, sempre me habituei a perceber como havia várias “línguas” em jogo apesar falarmos italiano. Sempre foi difícil explicar isto. Como meu pai me transmitiu sempre o orgulho em ser italiano, nunca discutimos estereótipos negativos que, na cultura americana são muitos. Embora inicialmente o meu pai me ajudasse o melhor que podia com o italiano, à medida em que eu crescia era ele quem me fazia perguntas sobre vocabulário e gramática. Na Itália, fora do Sul ou em ambientes mais formais, meu pai se sente constrangido pela forma como fala, embora ele entenda tudo. Desde muito pequeno que o meu pai me dizia que não falava inglês para me obrigar a falar italiano com ele para ser entendido. Por essa razão, as minhas primeiras línguas foram o italiano e o inglês. Aliás, até a minha mãe teve aulas de italiano e até aos meus 5 anos (quando eles se separaram) ela falava italiano comigo. Contou-me que gostou de aprender italiano pela proximidade com o português.

Quando eu era criança, aconselhavam o meu pai a falar apenas inglês comigo, para eu não ficar confuso. Ele não ligou e, na verdade, sabemos hoje que a exposição precoce à diversidade linguística é benéfica, como refiro na entrevista que Liliana Azevedo me fez (AZEVEDO, 2021AZEVEDO, L. (2021). A mesma língua, muitas histórias: entrevista com Giuseppe Formato. OEm Conversations With, 24, Observatório da Emigração, CIES, ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa.). A verdade é que me identifiquei fortemente com a língua e a cultura italianas, até hoje. Mais tarde, dei aulas particulares de italiano, em um centro cultural, no ensino médio, em escolas comunitárias e na universidade, em cursos de idiomas e filmes, e publiquei sobre pedagogia crítica da língua italiana. Até hoje sou mais fluente em italiano e tenho uma identificação forte, emocional, psicológica, com a Itália.

A minha mãe nasceu na ilha de Santa Maria nos Açores, na freguesia São Pedro, em Ribeira do Engenho, durante o Estado Novo, em 1958. Com dois anos, veio para os Estados Unidos. Viveu e cresceu com a sua família em Cambridge, Massachusetts. Em sua casa falava-se português, ou melhor, mariense, uma variante açoriana. Seus pais nunca foram fluentes em inglês, pois viviam e trabalhavam com outros portugueses em fábricas próximas, à semelhança dos meus avós paternos. O pai dela, meu avô materno, que infelizmente morreu antes de eu nascer, não deixava minha mãe e suas irmãs falarem inglês em casa. Minha mãe vivia uma vida muito resguardada, passava todo o seu tempo quase exclusivamente com outros portugueses e, como resultado, quando criança na escola pública teve que fazer o que hoje seria considerado inglês como segunda língua. Ela frequentava a igreja portuguesa, as festas e, de tempos em tempos, ia aos Açores, onde seus pais ainda tinham casa. O seu primeiro marido, açoriano, do Faial, falava muito pouco inglês. Ela cresceu com matanças do porco, sopas do divino espírito santo, cozinhando e comendo exclusivamente comidas portuguesas, participando em cantares ao desafio, danças do Carnaval, etc. O pai era extremamente rigoroso. Ela estudou um pouco de português no ensino médio, enquanto pôde estudar, antes de começar a ter filhos e ter que largar a fábrica. Mais tarde, quando se casou com meu pai, deixou de falar português em casa.

Nasci em 1988 e vivi a minha infância em Somerville. As minhas primeiras interações com o português foram com a minha avó, que mais tarde se tornou uma figura muito importante na minha vida. Minhas primeiras lembranças são do tempo com minha avó, dormindo em casa dela (uma das minhas coisas favoritas), ou de minha mãe falando português ao telefone. Eu sabia apenas algumas palavras em português, quando criança, mas não tinha autorização do meu pai para aprender esta língua. Então, por essa razão, era uma língua misteriosa. Só mais tarde, depois dos meus pais se divorciarem, comecei a falar português com a minha mãe. Por volta dos 10, 11 anos minha mãe trouxe-me pela primeira vez a Santa Maria para fazer uma surpresa à minha avó. Isso, como a viagem à Itália pela primeira vez no ano anterior com meu pai, mudou minha vida para sempre. Apaixonei-me pelas pessoas, pela língua, pela comida, pela paisagem. Passei a viver obcecado em ir para o sul da Itália ou para os Açores. Tive a sorte de ir a esses dois lugares, no verão, de dois em dois anos. Queria aprender tudo sobre os Açores, e queria aprender português. Minha mãe começou a falar cada vez mais português à medida que eu demonstrava mais interesse, e até me comprou livros simples. Ela já fazia muitas comidas açorianas, mas cada vez fazia mais à medida do meu interesse. Passávamos muito tempo ouvindo folclore açoriano (mariense) e também, confesso, música pimba. Eu ouvia, dançava e ajudava a minha mãe a limpar a casa com essas músicas, para além de outros trabalhos paralelos que minha mãe tinha para sobreviver. Mais tarde, aprendi um pouco de português na faculdade, mas foi sobretudo através da família, autoestudo e leitura, que fiquei mais familiarizado com o português.

Ao contrário do italiano com minha experiência na Sociedade Dante Alighieri (que fica na mesma rua da igreja portuguesa e do bairro português em que minha mãe morava), não tive a oportunidade de frequentar aulas em uma escola comunitária portuguesa, que na época eram dadas nessa mesma igreja. Para mim, o português só se tornou mais acessível na sua dimensão acadêmica, muito mais tarde na minha vida, quando consegui ganhar mais autonomia e capacidade de decisão. Isso aconteceu porque o meu pai, que teve grande influência na minha vida, queria que eu fosse italiano, e não português, nem açoriano. O que tem a ver com vários fatores, como o facto de, nas décadas de 1980 e 1990 os açorianos ainda possuírem um status socioeconómico inferior em comparação com as famílias do sul da Itália. Ninguém na família da minha mãe tinha frequentado o ensino secundário (high school), muitos estavam envolvidos em comportamentos ilícitos, relacionados com brigas e abuso de substâncias. Refletindo sobre isto, meu pai não queria, provavelmente, que eu fizesse parte daquele mundo, e via a cultura portuguesa e açoriana como uma porta de entrada para ele. Foi só na universidade, quando me matriculei em algumas aulas de português para iniciantes na UMass Boston, que comecei a ganhar mais fluência em português, dando sentido à minha experiência vivida, relacionando as palavras que conhecia com a língua escrita, formal. Antes disso eu falava um português muito básico. No entanto, as minhas viagens a Santa Maria (Açores) e o forte relacionamento com minha avó, que não era fluente em inglês, apesar de morar durante muitas décadas nos Estados Unidos, alimentava a minha curiosidade sobre o português. Eu sentia que, com cada palavra que aprendia, eu entrava numa nova palavra que me era familiar. Se eu tivesse de me rotular, sim, eu era um “aprendiz de herança” (heritage learner), e sinto que herdei a riqueza das culturas dos vales e rochas montanhosas do sul da Itália, das ilhas vulcânicas no meio do oceano Atlântico Norte. A maior parte do português que aprendi foi enquanto autodidata, nos livros que lia, colocando em prática o que eu sabia das minhas experiências vividas no dia a dia: comprar pão para a minha avó na padaria portuguesa, passar tempo com ela, ajudar a cuidar dela quando ela adoeceu na velhice e passar semanas com ela nos Açores nas minhas viagens para lá em cada dois anos. Então, aprendi parte do italiano e do português através da escola (aulas) e livros, mas também aprendi em um nível muito pessoal, através das experiências da minha família. Aprendi italiano e tive uma base com meu pai, que tanto se esforçou para que eu aprendesse. Quanto ao português, tornei-me fluente mais tarde na vida, jovem adulto, alimentado pela forte conexão para ser quem eu era, de onde minha família vinha e me poder comunicar com eles. Honrar essas duas identidades foi essencial, para ser quem eu sou. A combinação entre ser italiano do Sul, açoriano e New Englander é o que me torna quem eu sou. E isso só foi possível através do conhecimento dessas diferentes línguas.

Não surpreende admitir que essas variedades linguísticas, mariense e irpino, são muito significativas emocionalmente em minha vida. Eles não são ou são menos importantes do que outros idiomas, mas são os idiomas que minha família provavelmente fala há centenas de anos. Essas foram as línguas com que eu cresci ouvindo, e ouvi principalmente quando fui para os Açores e o sul da Itália quando criança, já que ficávamos principalmente com a família durante nossas visitas. Essas línguas eram muito pessoais para mim, mas também misteriosas, pois não se pode aprendê-las, elas não existem “por escrito”. Elas estão enraizadas nas tradições da terra e da agricultura. Após reflexão, eu realmente sinto que se eu não tivesse sido exposto a elas e às tradições que elas mantinham, então eu seria diferente. Tanto a minha mãe, como o meu pai, não sabiam responder a todas as minhas perguntas, pois nunca tinham aprendido formalmente. Minha mãe dizia-me sempre que o que sabia não era português real, e achava fascinante este paralelo com a minha situação italiana. Há portugueses diferentes! Claro que quando tive um contato mais próximo com a música brasileira e cabo-verdiana, fui conhecendo outras realidades, mas na época, essa era a minha realidade. Mais tarde obtive, também, a cidadania portuguesa, dei aulas de português, ensinei na universidade, incluindo cursos de cinema, recebi bolsas, e estou a fazer um pós-doutorado sobre estes assuntos.

Considero-me português. Mas a minha realidade é diferente da de Portugal continental, o que percebi à medida que fui conhecendo melhor outros portugueses. Quando era mais jovem, juntei-me voluntariamente ao grupo folclórico local e fiz parte do comitê do Boston Portuguese Festival, entre outras coisas. Conheci portugueses recém-chegados ou portugueses de status superior, e percebi que o que falávamos em casa ou o jeito da minha família falar não era como a maioria das pessoas falavam. Lembro-me de ter sido ridicularizado, em Portugal (Continental) quando pronunciei o nome da minha querida sopa de coive e não couve. Esta foi, em essência, uma discriminação que percebi desde cedo, e faz parte da minha simpatia e interesse em ser professor de português mais tarde, pois também me senti um estranho quando confrontado com variedades padronizadas de português. Levei muito tempo para descobrir que a riqueza da linguagem que eu conhecia e com a qual cresci era realmente especial e não menos “correta”, contendo em si a sua própria sabedoria. Era assim que se dizia na freguesia de São Pedro, em Santa Maria. Mais uma vez, este certo versus errado, esta multiplicidade, estas variantes fascinam-me e estão sempre a aparecer na minha vida. Surgiram até na minha docência, e tornaram-se tema de investigação no meu doutoramento e, agora, no pós-doutoramento, após ter feito um mestrado em linguística aplicada (UMass, Boston). Conheci alunos com raízes portuguesas insulares que descobriram diferenças de costumes e formas de falar a partir dos modelos rígidos (e dos manuais) das aulas de português que impunham a variedade homogénea “europeia” e brasileira. Acho fascinante a história dos Açores e dos Açores na Nova Inglaterra. Tenho orgulho de ser açoriano e, desde jovem, tenho vontade de aprender o máximo possível sobre a minha herança, desmistificando muitas ideias feitas e visões preconceituosas sobre nós. Tal como com o italiano, sinto uma forte afinidade emocional e psicológica com o idioma português.

Finalmente, gostaria de acrescentar algo sobre a minha experiência de ensino do português (PLA). Antes do meu doutoramento, fui professor de língua portuguesa em tempo parcial num liceu (high school) em Somerville. Como já foi referido atrás, Somerville, juntamente com a vizinha Cambridge é um dos mais antigos enclaves açorianos. Nesta escola secundária, entre os muitos alunos luso-americanos que tive, lembro-me de Sandra (pseudónimo), uma freshman de 15 anos, residente nessa cidade. Com o pai nascido na ilha da Terceira, Sandra falava apaixonadamente sobre ser portuguesa e sentia muito orgulho em se identificar com os Açores, embora nunca tivesse lá ido. Não podia deixar de notar as semelhanças entre ela, outros alunos e eu como heritage learners. Esta experiência partilhada é algo que sempre me marcou, pois pude reconhecer que ela e eu não éramos como os outros aprendizes de línguas, mas tínhamos uma forte ligação com certos aspetos das pessoas e lugares (neste caso, os Açores). Contudo, ela questionava os materiais e métodos usados na aula (ou seja, português padrão brasileiro ou português europeu). A ausência completa de referências ao terceirense, a variedade açoriana com a qual ela estava familiarizada e que usava em casa com sua família e comunidade, incomodava-a. Os exemplos sobre a vida no Brasil e a cultura brasileira abundavam, e não havia exemplos da diáspora. Na altura, eu era jovem professor e ainda não tinha criado os meus próprios materiais didáticos, e não havia apoio ao nível do distrito escolar urbano. O que me fazia sentir em conflito porque os materiais que usava não refletiam as realidades dos vários alunos de herança (heritage learners). Sandra costumava comentar: “Não é assim que meu pai diz”; “Meu pai não fala direito? Ele é de Portugal!” ou “posso dizer assim? É assim que sempre dizemos.” Um exemplo disso foi a preposição “de” pronunciada como /dy/. Eu não tinha boas respostas para essas perguntas tão legítimas. O que exatamente eu estava ensinando? O que era permitido e o que não deveria ser? Apesar de não ter tido a experiência terceirense, tive uma experiência próxima, açoriana, de estar exposto quase exclusivamente a uma variedade de português que não era padronizada, um dialeto enredado no tempo e espaço que foi a minha formação fora dos Açores. Admito que não sabia articular esses conceitos na época, e que pouco ajudava estes estudantes de herança.

Outro exemplo sobre o mesmo tema. Em 2017, entrevistei vários heritage learners de português como parte da minha pesquisa de doutorado sobre motivação, identidade e aquisição do português na UMass Boston. Manuel (pseudónimo), jovem de 21 anos que se matriculou num curso opcional de português para principiantes, tinha bisavós maternos dos Açores; seu pai, que morreu quando Manuel era criança, era madeirense. Manuel mostrava forte motivação intrínseca para aprender português e viajava desde sua casa, em Saugus, uma comunidade açoriana a mais de 10 milhas de Boston, para assistir às aulas. Manuel contou-me que já tinha estado nas festas açorianas não só em Saugus, mas também em Cambridge e Somerville, tal como Sandra. O seu professor de português, natural do norte de Portugal, era um “leitor Camões”, licenciado em literatura portuguesa, e tinha sido o responsável pela criação do curso e usava o manual Ponto de Encontro que, embora seja um dos únicos livros didáticos a mencionar comunidades portuguesas e brasileiras nos Estados Unidos, apenas as refere brevemente numa parte final, não as abordando adequadamente – sobretudo se nos lembrarmos que muitos destes cursos introdutórios não chegam sequer a este capítulo final… Apesar de não ser fluente na língua e nunca ter visitado Portugal, Manuel identificavase fortemente como português. A sua motivação para aprender surgiu do desejo de viajar para Portugal e ensinar a língua à sua família. Descreveu o português que conhecia como broken e “errado”, assumindo que as palavras que conhecia eram incorretas, mal pronunciadas e sem sentido. Sentia-se constrangido com sua variante de herança e tudo o que com ela se relacionava. No início do curso, Manuel participava, mas à medida que percebia de que os seus exemplos de palavras e pronúncia “não estavam certos”, foi-se desmotivando. Um exemplo disso era a forma como ele pronunciava a preposição de usada como som final da vogal com o migueliano [ü]. Ele contou-me que o professor se rira dizendo “não se pronuncia dessa maneira”. Manuel contou que que se sentiu envergonhado, pois se lembrava claramente de ouvir pessoas de sua família usando palavras com esse som. Depois de vários constrangimentos, sua participação diminuiu e ele parou de compartilhar suas próprias experiências. Ele contou ainda que começou a sentir vergonha de como sua família falava em casa e que estava decidido a aprender da maneira “certa”, que parecia ser a única maneira possível.

4. LUGAR, VARIAÇÕES, IDEOLOGIA, HERITAGE

Estas narrativas revelam a multiplicidade das práticas e sentidos do português em contexto de diáspora, enredado em ações e negociações coletivas e individuais, discursos e ideologias, tempos e espaços diferentes que lhe dão protagonismo ou o silenciam (BLOMMAERT, 2015BLOMMAERT, J. (2015). Chronotopes, Scales, and Complexity in the Study of Language in Society. Annual Review of Anthropology, 44, p.105-116.). Destacamos quatro vertentes interconectadas na análise deste emaranhamento.

Primeiro, com o lugar analisado, um bairro atravessado por práticas multilingues provocadas por vários “regimes” migratórios ao longo do tempo (KEATING, 2022, p. 49KEATING, C. (2022). Polycentric or Pluricentric? Epistemic Traps in Sociolinguistic Approaches to Multilingual Portuguese. In: Makoni, S.; Severo, C.G.; Abdelhay, A. and Kaiper-Marquez, A. (ed.) The Languaging of Higher Education in the Global South De-Colonizing the Language of Scholarship and Pedagogy. New York & London: Routledge, p. 42-60.) onde o português desempenha um papel fundamental, tanto na afirmação identitária, mais pública, como na mais “comunitária/paroquialista”, através de língua falada, representada, desejada. Dois movimentos contrários, ambos identitários, têm reforçado a “marca” Portuguese deste território: um baseado em ações políticas de negociação, congregadoras das várias variantes/culturas em língua portuguesa em torno do poderoso label Portuguese Speaker, protagonizadas por uma organização local que se foi adaptando às transformações dos movimentos migratórios “em português”; outro que vai (re)construindo sentidos de pertença em torno de comunidades “´étnicas”, tanto material como imaterialmente, em torno de festas, missas, comidas, sociabilidades, danças, afetos, emoções, redes de afinidade, de forma sempre inesperada, dependendo da situação e dos interlocutores envolvidos.

A língua faz-se fazendo o lugar que, por sua vez, faz a língua, num processo iterativo (PENNYCOOK, 2010PENNYCOOK A. (2010). Language as a local practice. Milton Park, Abingdon: Routledge.). O uso da língua, ou variantes linguísticas, resulta de uma interação multifacetada entre os seres humanos e o seu ambiente, o que acontece, por vezes, de forma confusa. Embora as variantes insulares do português europeu, aqui discutidas, sejam faladas em espaços familiares, religiosos, festivos, associativos, da Nova Inglaterra, menos frequentemente do que, por exemplo, as variantes brasileiras chegadas através de uma imigração mais recente, elas alimentam-se nos seus territórios étnicos de eleição, em uma mistura com o inglês, também com outras variantes do português, mostrando como tais falares são uma prova de quão fluido é este espaço sociolinguístico – e quão difícil é categorizá-lo. Para um português vindo de Portugal Continental, com pouca noção da história e dos contextos da imigração açoriana para esta região, a língua que aqui se fala, sobretudo entre gerações mais velhas, é confusa, estranha, incorreta, fora de uso, nem inglês nem português, inclassificável. Para um Português ou Açoriano-americano, ela é a língua de identidade que, mesmo quando não falada, ecoa nas suas memórias de infância na relação com avós ainda falantes, sendo uma língua acarinhada, desejada, sonhada e que pode motivar à sua aprendizagem.

Tanto a perspetiva de Graça sobre um lugar múltiplo como a experiência biográfica de Giuseppe mostram que pertencer a um lugar tem a ver com as diferentes manifestações linguísticas como formas locais de conhecer. Assim, fica claro que a forma não governa os falantes, mas os próprios falantes é que negoceiam as possibilidades linguísticas que querem usar e com que propósito. Neste sentido, uma língua portuguesa homogénea é perigosamente utópica. A norma na Nova Inglaterra é o hibridismo e a mistura de múltiplas fontes, como o inglês, dialetos regionais dos Açores, de Portugal Continental, do Brasil, de Cabo Verde. Os idiomas são um trabalho em andamento e não podem ser entendidos sem levar em consideração práticas linguísticas localizadas, e o português não é exceção.

E aqui entramos no segundo ponto de discussão em torno da relação tensa e contraditória não apenas com outras línguas, mas também com outras variantes e, ainda, com a sua própria língua, dominante, através da qual se afirma uma hierarquia de poder, e de prestígio, que pode provocar sentimentos de vergonha relativamente à variante em uso, de discriminação social e de desvalorização do seu valor identitário. O repertório linguístico heteroglóssico de Giuseppe, que dá uma ideia da sua “experiência vivida da língua” (BUSH, 2015) é particularmente ilustrativo desta dimensão, incorporando igualmente a experiência de ensino de dois estudantes, muito críticos em relação à sintaxe e pronúncia do português. As “suas” culturas açorianas falhavam: não havia referência ao Culto do Espírito Santo nem às suas festas, nem à gastronomia açoriana (-americana), nem aos biscoitos e papo-secos (pãezinhos). Para Sandra, a língua era o português dos Açores e o dialeto terceirense. Para Manuel, o miguelense. Pilares da experiência açoriano-americana, que, neste caso, aproxima professor e alunos, ambos heritage learners que exprimem a frustração geral e o desânimo gradual com a língua que inicialmente se empolgavam a estudar, por ser “deles” e que afinal descobrem ser “estrangeira”, experimentando “feelings of shame”, como tão bem refere Brigitta Busch: “A feeling often mentioned in biographies in connection with multilingualism is that of shame, arising because one has used a ‘wrong’ word, a ‘wrong’ tone, or is speaking with a ‘wrong’, out-of-place accent.” (2015, p. 11).

Esta parte da Nova Inglaterra que também fala português é uma zona de contacto linguístico e cultural, étnico, regional, de classe. A(s) língua(s) produzida(s) localmente interpretam esse lugar e as práticas linguísticas reforçam a sua leitura. Certas palavras em portinglês-açoriano definem momentos significativos no espaço próprio familiar onde os avós (ainda) transmitem saberes culinários (como a sopa de coive), do club, da igreja, durante uma missa ou uma festa, animados por uma determinada performance, com o sabor de uma comida ritual, como as malassadas, e só podem ser recuperadas através de tais práticas quotidianas concretas. O português não existe apenas na mente dos falantes, desligado do ambiente que o rodeia, o português, ou cada português específico é o território que o acolhe e que, institucionalmente reforça a sua identidade, ao nível da sinalética, toponímia, visibilidade pública das festas do Espírito Santo, missas, parades, procissões…

Particularmente significativa é a reflexão de Giuseppe sobre a representação do português como língua de baixo-prestígio, competindo com o italiano num mesmo espaço urbano, o que nos leva para o terceiro ponto, centrado na dimensão ideológica, transversal. Percebemos como a hierarquia de prestígio de uma língua é definida em função dos seus falantes que, neste caso, fez com que o baixo estatuto com que de toda uma geração de açorianos chegados na última grande vaga dos anos 1960-70 afetasse a relação de Giuseppe com uma das suas línguas de herança, a nível familiar e escolar. O seu percurso biográfico ilustra de forma plena os múltiplos impactos ideológicos da língua, tanto na concorrência entre o português, o italiano e o inglês, como também ao nível da discriminação da sua variante açoriana relativamente ao português ensinado na escola, monocultural e monolingue baseada numa norma europeia “global” que tem o efeito paradoxal de fragilizar o português local, rebaixando ainda mais a sua posição à escala local. O que coloca este “pobre” português local, duplamente segregado, em um patamar cada vez mais afastado de um ranking internacional de línguas prestigiadas, como sejam o francês, o italiano, o alemão, ou o espanhol.

Finalmente, como se articula este emaranhado com uma reflexão sobre o português como língua de herança, tal como é enunciada através dos percursos pelos vários espaços locais e transnacionais, comunitários, escolares, familiares, individuais?

Olhar a língua como uma prática quotidiana (SCHATZKI, 2002SCHATZKI, T. (2002). The Site of the Social: A Philosophical Account of the Constitution. f Social Life and Change. Penn State University Press.) é vê-la como atividade que navega pelo quotidiano, negociando significados. Tais espaços comunitários são os lugares de afirmação etnolinguística de tudo o que precisa ser preservado, enquanto transporta aspetos de menor prestígio, não-sofisticados. Sobretudo nos espaços privados da casa, o português regional açoriano misturado com o inglês e outras línguas, continua a ser uma língua antiga, ainda que apenas em referência a certas memórias e tradições. Aqui sobrevivem valores de “autenticidade” linguística e cultural, em espaços de contraste com o hegemónico, o estrangeiro e o maior prestígio do português europeu moderno tal como ele é ensinado nas escolas – e é aqui que ambos os mundos colidem e é isso que aqui discutimos.

Os Estados Unidos são o país com uma história mais antiga de emigração de expressão portuguesa, entre os países que não têm o português como língua oficial ou maioritária. No entanto, são muito poucas as pesquisas sobre o português como língua de herança, ainda menos sobre o português europeu, nomeadamente na Nova Inglaterra, a maior região recetora desta imigração (FERREIRA, 2005FERREIRA, F. (2005). That’s not how my grandmother says it: Portuguese heritage learners in south-eastern Massachusetts. Hispania, 88, p. 848-62., FERREIRA; GONTIJO, 2011FERREIRA, F.; GONTIJO, V. (2011). “Why, Who and Where? Portuguese Language Learners and Types of Motivation.” Portuguese Language Journal, v. 5, p. 1-30., SANTOS; SILVA, 2015SANTOS, D.; SILVA, G. (2015). Exploring Portuguese heritage and non-heritage learners’ perceptions of and performance in listening. Canadian Journal of Applied Linguistics, 18, p. 60-82., FORMATO, 2018FORMATO, G. (2018). How Language Variety and Motivation Impact Language Acquisition in Adult Heritage Learners of Portuguese. European Journal of Foreign Language Teaching, 3 (3): 52-67.). A questão que Sílvia Melo-Pfeifer (2018)MELO-PFEIFER, S. (2018). Português como língua de herança: Que Português? Que língua? Que herança? Domínios de Lingu@gem, vol. 12, p. 1161-79. apresenta no título do seu artigo, “português como língua de herança: Que português? Que língua? Que herança?” descreve habilmente a diversidade de heranças desta língua, que é simultaneamente nacional e internacional, classificando-se como uma das línguas mais faladas no mundo e sendo também uma língua minoritária por ser usada em muitos contextos de imigração. Como bem refere Clara Keating, referindo-se ao espaço geopolítico europeu, o português caracteriza-se pelo seu estatuto intermédio, sendo tanto a “língua de estrutura (nacional, oficial, institucional) como a língua de ação (das minorias migrantes…)” (2013, p. 221). No caso americano, falamos sobretudo de descendentes de imigrantes o que explica porque preferimos o termo mais inclusivo de heritage learner, em vez de heritage speaker, uma vez que parte dos que procuram estudar português podem ter apenas uma ligação cultural, afetiva e emocional, a essa língua, sem a falar.

Este é um dos emaranhados que, urgentemente, deveria ser questionado, analisado, discutido: o da relação entre o português em contexto de diáspora, heteroglóssico, multilingue, multicultural, e os programas do seu ensino moldados, ideologicamente, por uma ideia de língua descontextualizada dos ambientes em que se insere. Lamentavelmente, a política de divulgação da “língua e cultura portuguesa” no estrangeiro, exportada pelo governo português (PINTO; MELO-PFEIFER, 2018PINTO, P. F.; MELO-PFEIFER, S. (2018). Introdução. In: Pinto, P.F. e Melo-Pfeifer, S. (Coord.) Políticas linguísticas em português, Lisboa: Lidel, p. 11-17.) continua a deixar de fora a maioria dos “herdeiros” do português. Aqueles que alegadamente seriam os seus destinatários – os aprendentes de herança da “diáspora portuguesa” – não se reconhecem nem nas estratégias pedagógicas, nem nos manuais usados, sentindo-se estrangeiros na sua própria língua, familiar e identitária. As poucas referências ao “português como língua de herança” não iludem o esquecimento, o silêncio, a que estes heritage learners têm sido votados. Nunca será demais insistir na ideia de que é preciso conhecer a realidade para implementar programas ou políticas de ensino. “At the heart of heritage language education are the learners themselves: their needs, strengths, dispositions, etc.” (CARREIRA; KAGAN, 2018, p. 157CARREIRA, M.; KAGAN, O. (2018). Heritage Language Education: A Proposal for the Next 50 Years. Foreign Language Annals, v. 51, p. 152 –68.).

FINALIZANDO

O que esta análise evidencia é algo relativamente banal, mas que nunca é demais repetir: português é uma entidade plural, plástica e elástica, que tanto inclui como exclui, que tanto engloba como separa, que tanto se refere à língua como à nacionalidade que, neste caso, pode significar “açorianidade” (LEAL, 1997LEAL, J. (1997). Açorianidade: literatura, política, etnografia (1880-1940) Etnográfica, v. 1, n. 2, p. 191-211.). As suas variantes locais, adaptações, ramificações culturais, psicológicas e linguísticas, situam-se naquilo que podemos designar como uma “fronteira sociolinguística” (MCCARTY, 2014, p. 255MCCARTY, T. (2014). Negotiating Sociolinguistic Borderlands. Native Youth Language Practices in Space, Time, and Place. Journal of Language, Identity & Education, v. 13, n. 4, p. 254-267.) onde se insere a diáspora açoriana-americana aqui analisada para além de outras diásporas que habitam lugares cujas fronteiras etnolinguísticas não coincidem com fronteiras nacionais.

Contudo, tem faltado esta visão nos estudos sobre o português. Mesmo quando o tema é o “português de contacto”, como é o caso do texto de Ana M. Carvalho e Dante Lucchesi (2016)CARVALHO, A.M.; LUCCHESI, D. (2016). Portuguese in Contact. In: Wetzels, W. L. et al. The Handbook of Portuguese Linguistics, Chichester, West Sussex: John Wiley & Sons, Inc., p. 41-55., apenas se relacionam os fatores de contacto e mudança entre línguas com fronteiras políticas dos países de língua portuguesa, sem qualquer referência ao português em diáspora. A pouca atenção dada ao português em contexto de diáspora prende-se com as ideologias seculares que perpassam o português – colonialistas, classistas, discriminatórias – que, no caso das políticas nacionais portuguesas, são inseparáveis do modo como as “comunidades da diáspora” têm sido tratadas e representadas, reveladoras de atitudes discriminatórias relativamente à “emigração” (CORDEIRO, 2019CORDEIRO, G.I. (2019). An Immigrant in America Yes, But Not an Emigrant In: My Own Country! The Unbearable Weight of a Persistent Label. in Pereira, C., Azevedo, J. (eds) New and Old Routes of Portuguese Emigration. IMISCOE Research Series. Springer, Cham.). Por isso nos parece necessário acionar perspetivas experimentais, subjetivas, inclusivas, políticas, sobre o “entrelaçamento entre língua e materialidade” (BUZATO, 2019BUZATO, M.E.K. (2019). O pós-humano é agora: uma apresentação. Trabalhos em Linguística Aplicada, v.58, n. 2, p.478-495.).

Ao considerar as variantes do português em situação de diáspora precisamos de um amplo quadro de análise que englobe perspetivas etnográficas sobre o uso da língua. Uma ênfase no multipluralismo do português, e dos países onde é falado, reflete apenas um somatório de monolinguismos e não permite ver a riqueza de expressões locais do português na diáspora. Olhando para o futuro devemos ser capazes de imaginar novas subjetividades que operam cada vez mais de acordo com vários tipos de emaranhados (HARDT; NEGRI, 2017HARDT, M.; NEGRI, A. (2017). Assembly. Oxford: Oxford University Press.). Todas as designações de português no singular – pluricêntrico, policêntrico, de herança – implicam riscos epistémicos de ocultação dos “multiple regimes at play, forged in time and space, acting side by side in the same here and now” (KEATING, 2022, p. 49KEATING, C. (2022). Polycentric or Pluricentric? Epistemic Traps in Sociolinguistic Approaches to Multilingual Portuguese. In: Makoni, S.; Severo, C.G.; Abdelhay, A. and Kaiper-Marquez, A. (ed.) The Languaging of Higher Education in the Global South De-Colonizing the Language of Scholarship and Pedagogy. New York & London: Routledge, p. 42-60.).

Com esta visão crítica queremos contribuir para um melhor conhecimento do português no contexto multilingue de migração nos Estados Unidos. Neste contexto, cuidar a língua significa libertá-la de múltiplas e, por vezes, subtis amarras, amarras ideológicas, políticas, nacionalistas, imperialistas, classistas, que o fecham no colete de forças do monolinguismo, da padronização purificadora, atrofiando-o e impedindo uma emancipação tão necessária, não apenas para a sua sobrevivência como também para a sua afirmação enquanto património imaterial embebido nos seus lugares de pertença próprios. Uma das ideias mais perniciosas, do nosso ponto de vista, é a imposição de um português global/internacional, abstrato e amorfo, a-local, sem-lugar, que tem, de certa forma, asfixiado a vivacidade e desenvolvimento das falas diaspóricas do português. Não podíamos estar mais de acordo com Mary Louise Pratt (2013, p. 441)PRATT, M.L. (2013) [1987]. Utopias linguísticas. Trabalhos de Linguística Aplicada, v.52, n. 2, p. 437-459. quando afirma que “A distância entre langue e parole, competência e desempenho, é a distância entre a homogeneidade da comunidade imaginada e a realidade fraturada da experiência linguística nas sociedades estratificadas” contemporâneas. Uma distância que, no caso do português, ainda é demasiado longa.

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    Em 2009 e 2014, como visiting scholar no Departamento de Antropologia da UMass Boston, com financiamento da FLAD; em 2019 como Gulbenkian/Saab Visiting Professor of Portuguese Studies, em UMass Lowell, a cerca de uma hora de distância de Cambridge, cidade onde residiu temporariamente.
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    O português é “the most common language spoken at home other than English or Spanish” nos estados do Massachusetts, Connecticut e Rhodes Island (2018 American Community Survey).
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    Cabe aqui referir que a minha presença, falante do português, induzia o uso do português…
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  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

    Os registos de campo e transcrições de entrevistas que estão na base deste artigo são confidenciais, uma vez que este material contém informações que podem vir a comprometer a privacidade e a segurança dos interlocutores que colaboraram nesta investigação.

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Disponibilidade de dados

Os registos de campo e transcrições de entrevistas que estão na base deste artigo são confidenciais, uma vez que este material contém informações que podem vir a comprometer a privacidade e a segurança dos interlocutores que colaboraram nesta investigação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
  • Publicado
    10 Out 2022
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