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TRADUÇÃO, AFETOS E POLÍTICAS DO CORPO: POR UMA TRANSFORMAÇÃO DE PENSAMENTOS E AÇÕES

TRANSLATION, AFFECTS, AND BODY POLITICS: TOWARDS TRANSFORMATIVE THINKING AND ACTION

A tradução há muito tem proporcionado reflexões que vão além da definição do verbo traduzir, em geral entendido como passar um texto de uma língua para outra. Esse sentido (ainda corrente) foi estabelecido nos séculos XVI e XVII, segundo o Dicionário dos Intraduzíveis (CASSIN [2004]CASSIN, Barbara (coord). (2004). Dicionário dos Intraduzíveis. Um vocabulário das filosofias. Organização: Fernando Santoro e Luisa Buarque. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018. 2018). Nessa obra, o verbete “tradução” traz a complexidade de definir a operação de tradução por meio de uma retomada diacrônica da significação de diversos verbos que tangenciam essa operação, tais como verter, expressar, interpretar, transformar. Nessa trama de sentidos, o papel do tradutor foi sendo ressignificado e, além do conhecimento linguístico e da competência tradutória, outros aspectos passaram a ser colocados na equação, entre eles os afetos. Similarmente ao que aconteceu com a definição de tradução, a ideia de que os afetos determinam nossas ações surge no século XVII (SPINOZA [1677]SPINOZA, Benedictus. (1677). Ética e Compêndio de Gramática da língua hebraica. Obra Completa IV. Tradução e notas J. Guinsburg e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2014. 2014) e apenas nas últimas décadas vem sendo efetivamente considerada nas humanidades com o que ficou conhecido como virada afetiva (CLOUGH, 2007CLOUGH, Patricia T. (2007). The Affective Turn. Durham and London: Duke University Press.). Assim como ilustrado no caso do verbete “tradução”, “afeto” faz parte de uma rede de palavras muitas vezes usadas de forma intercambiável, como emoção, sentimento, sensação, afeição, entre outras que designam experiências subjetivas da pessoa que traduz, incluindo a palavra transformação. Nas palavras de Didi-Huberman:

As emoções, uma vez que são moções, movimentos, comoções, são também transformações daqueles e daquelas que se emocionam (...). Inclusive, é por meio das emoções que podemos, eventualmente, transformar nosso mundo, desde que, é claro, elas mesmas se transformem em pensamentos e ações. (DIDI-HUBERMAN, 2021DIDI-HUBERMAN, Georges. (2021). Que emoção! Que emoção? Tradução de Cecília Ciscato. 2ª. ed. São Paulo: Editora 34., p.38).

Neste dossiê, esses termos aparecem ligados a diferentes abordagens teóricas e práticas de tradução em diálogo com o terceiro aspecto do título: políticas do corpo, uma vez que é no corpo que muitas dessas manifestações são sentidas e transformadas em “pensamentos e ações”. Na conhecida e já amplamente debatida imbricação das relações de poder, os processos tradutórios são, portanto, também marcados por políticas do corpo, não só no nível teórico, mas também empírico. É no corpo que a tradução é sentida e vivida - o corpo que é sensível aos afetos e às políticas que determinam e são determinadas por agentes de tradução. Assim, a afetividade da tradutora ou do tradutor passa pelo amor que tem pelas línguas e culturas com as quais trabalha (MILNER, 2012MILNER, Jean-Claude. (2012) O amor da língua. (2012). Tradução de Paulo César de Souza Jr. Campinas: Editora da Unicamp.), pelas paixões e alegrias do corpo a corpo com o texto (do) outro, até que encontre a tradução relevante (DERRIDA, 2000DERRIDA, Jacques. (2000). O que é uma tradução “relevante”? Tradução de Olívia Niemeyer Santos. Alfa, 44 (n. esp.), p. 13-44.).

A proposta do dossiê difere de recentes estudos que enfocam aspectos cognitivos (LEHR, 2021LEHR, Caroline. (2021). Translation, emotion and cognition. In: ALVES, Fabio; JAKOBSEN, Arnt L (eds.). The Routledge Handbook of Translation and Cognition. New York and London: Taylor & Francis Group, p. 294 - 309.) ou questões mais neurofisiológicas (tais como análises de reações medidas por frequência cardíaca) (ROJO e FEREZ, 2021ROJO, Ana M.; FEREZ, Paula C. (2021). Experimenting with emoticons: Insights into empirical emotion research in cognitive translation studies. Onomázein. Special Issue VIII. Emotions in Translation and Interpreting, p. 1-15.) e competências emocionais avaliadas por testes psicológicos (HUBSCHER-DAVIDSON, 2018HUBSCHER-DAVIDSON, Séverine. (2018). Translation and Emotion-A Psychological Perspective. London: Routledge.), uma vez que os trabalhos enfatizam as relações que o tradutor estabelece com o outro a partir do entendimento que tem da interferência das emoções envolvidas nessas relações.

Em “A virada dos afetos sobre a razão: um caso de intervenção tradutória ressignificado”, após fazerem uma discussão sobre a virada afetiva nos estudos tradução, Érica Lima e Lenita Pisetta se valem da proposta de socionarrativa de Mona Baker para trazer o relato de uma experiência vivenciada por uma das autoras em uma situação de tradução. Vendo-se frente a um texto explicitamente racista, a tradutora decidiu, após um acordo com os editores, suavizar alguns termos de um conto que estava traduzindo. A princípio julgando que sua intervenção era da ordem ética e racional, a tradutora acabou mais tarde ressignificando toda a situação e percebendo nela a incidência dos afetos. Também são trazidas para a discussão as manifestações dos leitores que reagiram, em sua maioria de forma negativa, nas redes sociais. Com o acréscimo da apresentação de outras situações, principalmente as que envolvem questões sensíveis, as autoras enxergam nessa abordagem uma maneira de incentivar novas maneiras de ver a tradução e a importância do tradutor, explorando o que o afeta e lembrando que o emocional é político.

O texto de Lauro Maia Amorim, “A White Brazilian man translating poetry by African American women: translation of affection, (dis)connections, interbeing, and the affection of translation” traz, em um estilo mais ensaístico, a sua experiência de homem branco que traduz poemas de autoras negras, defendendo uma relação de interexistência proposta pelo monge budista Thich Nhat Hanh, que parte do conceito de shunyata, na esteira da ideia de que mutuamente afetamos e somos afetados, caracterizando uma conexão existencial. O autor mobiliza, então, a trama de sentidos entre afeto e amor, discutindo a sua própria tradução de um slam de Dominique Christina (Star Gazer/Mirante de Estrelas) que traz um testemunho autobiográfico de traumas que provocam, no tradutorautor, dor e compaixão, em um processo que chama de translataffection.

A relação de homem afro-indígena com sua própria ancestralidade é o pano de fundo para o texto “Tradução comentada da canção “Zumbi”, de Jorge Ben Jor, para a libras: um manifesto afetivo-tradutório para o dia da consciência negra”, de Vinicius Nascimento. A partir de frames que apresentam excertos da tradução comentada da música para libras, o autor traz referências externas (fotos, filmes, obras de arte), que permitem uma representação de sua identidade étnico-racial no próprio corpo. Dessa forma, a tradução visa apresentar para a comunidade surda uma interpretação repleta de significados históricos, vendo a surdez como “traço de potência e de presença e não de deficiência e falta”. Nesse sentido, o uso de indumentárias alusivas à cultura afro-brasileira ajuda a mostrar a importância da dimensão estética, axiológica e política para a tradução e o tradutor de libras.

Carolina Mesquita, em “On affectively translating Virginia Woolf’s diary”, narra sua experiência de traduzir o diário de Virginia Woolf, tema de sua tese de doutoramento. Num primeiro momento, a autora realizou a tradução a partir de um volume impresso e devidamente editado, partindo do pressuposto de que a sua imparcialidade como tradutora deveria prevalecer. Mesmo assim, ela notou uma diferença entre o texto do diário, editado por Anne Olivier Bell, e os outros textos de Woolf que ela conhecia. Isso a fez buscar o diário manuscrito, que está no acervo da New York Public Library, nos EUA. Apesar de já ter traduzido parte do diário, ela se viu motivada a retraduzir o texto, com o objetivo de trazer para o diário traduzido nuances da escrita modernista de Woolf. Toda essa narrativa é problematizada pela discussão de textos teóricos que tratam da já mencionada “virada afetiva” nos estudos da tradução, bem como escritos de filósofos como Jacques Derrida, Friedrich Nietzsche e Baruch Spinoza.

Em “Forte como um tufão: afeto, tradução e pedagogia de gênero no Mulan de Walt Disney”, Gleiton Matheus Bonfante usa uma perspectiva queer para analisar a tradução da música “I’ll make a man out of you” em português, francês e alemão. O autor demonstra que o filme da Disney chamado Mulan (1998) é uma releitura do contexto histórico da China sob a influência de Confúcio que apresenta dois tipos de transformações muito significativas. A primeira consiste na romantização do militarismo necessário aos interesses das políticas intervencionistas e belicosas estadunidenses. A segunda é o apagamento de afetos e perspectivas queer que estão presentes na balada que a animação intertextualiza. As traduções de Mulan correspondem a uma intervenção anti-queer, pois normalizam o texto e naturalizam sexo e gênero, através por exemplo do policiamento do gênero masculino. Ao fazer isso, não promovem outras lógicas de estar no mundo coletivamente.

Partindo da premissa de que o gênero documentário é relativamente negligenciado nos estudos da tradução, principalmente em se tratando dos documentários produzidos no sul global e traduzidos para línguas hegemônicas, o artigo “Translating documentaries from a transnational feminist perspective: a case study of subtitled Brazilian documentaries on waste picking” se propõe a abordar a tradução de documentários, com especial atenção às legendas de uma perspectiva transnational, explorando a interligação entre tradução e estudos feministas. As autoras Fernanda Boito e Luise von Flotow apresentam quatro documentários produzidos no Brasil sobre catadoras e catadores de lixo e suas respectivas versões com legendas para o inglês. Adotando uma abordagem multimodal, elas enfatizam a importância da escuta atenta do tradutor como fator crítico na tradução de documentários produzidos a partir de narrativas pessoais. O objeto de análise compreende trechos de legendas, áudio e frames que narram a vida e as experiências de trabalho de catadoras e catadores de materiais recicláveis em contextos de extrema pobreza.

O texto de Marcella Wiffler Stefanini e Anna Matamala, “Audio describing the horror genre: ‘creating fear in the viewer’” é um estudo sobre audiodescrição que busca conhecer as experiências de profissionais falantes do espanhol e do inglês. O objetivo principal deste trabalho é descobrir se o gênero “terror” tem influência no método de trabalho seguido pelos audiodescritores. Em qualquer produção audiovisual, são múltiplos os elementos que contribuem para o sentido do conteúdo audiovisual (a imagem, a trilha sonora, a linguagem cinematográfica), mas nos filmes de terror todos os elementos são particularmente calculados para criar emoções e reações por parte do público. As autoras concluem que há um consenso, entre as pessoas entrevistadas, de que levar em consideração o gênero do produto audiovisual é fundamental na audiodescrição.

Por fim, na resenha “A interseção entre teoria queer e tradução: por uma epistemologia queer aplicada aos estudos de tradução”, referente ao livro Queer Theory and Translation Studies: language, politics, desire, de Brian Baer (2021), Thayná Pinheiro Ferreira aponta a importância do livro para um entendimento da articulação entre os estudos da tradução e teoria queer, que ultrapassa a análise de textos queer ou traduzidos por pessoas queer e propõe pensar na tradução como uma “unease art”, ou arte incômoda, que possibilite uma leitura incômoda dos textos sem que esse incômodo seja ignorado nem resolvido. Uma das propostas dessa pedagogia queer contrahegemônica diz respeito a dar visibilidade aos incômodos da pessoa que traduz, por exemplo por meio de notas e empréstimos linguísticos.

São múltiplos os tipos de afetos e abordagens discutidos no conjunto de artigos que compõem este dossiê temático, e em todos é perceptível o potencial transformador dos pensamentos e ações. Esperamos que os trabalhos proporcionem discussões sobre como viabilizar tais transformações por meio da tradução.

REFERÊNCIAS

  • CASSIN, Barbara (coord). (2004). Dicionário dos Intraduzíveis Um vocabulário das filosofias. Organização: Fernando Santoro e Luisa Buarque. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018.
  • CLOUGH, Patricia T. (2007). The Affective Turn. Durham and London: Duke University Press.
  • DERRIDA, Jacques. (2000). O que é uma tradução “relevante”? Tradução de Olívia Niemeyer Santos. Alfa, 44 (n. esp.), p. 13-44.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. (2021). Que emoção! Que emoção? Tradução de Cecília Ciscato. 2ª. ed. São Paulo: Editora 34.
  • HUBSCHER-DAVIDSON, Séverine. (2018). Translation and Emotion-A Psychological Perspective London: Routledge.
  • LEHR, Caroline. (2021). Translation, emotion and cognition. In: ALVES, Fabio; JAKOBSEN, Arnt L (eds.). The Routledge Handbook of Translation and Cognition New York and London: Taylor & Francis Group, p. 294 - 309.
  • MILNER, Jean-Claude. (2012) O amor da língua. (2012). Tradução de Paulo César de Souza Jr. Campinas: Editora da Unicamp.
  • ROJO, Ana M.; FEREZ, Paula C. (2021). Experimenting with emoticons: Insights into empirical emotion research in cognitive translation studies. Onomázein Special Issue VIII. Emotions in Translation and Interpreting, p. 1-15.
  • SPINOZA, Benedictus. (1677). Ética e Compêndio de Gramática da língua hebraica Obra Completa IV. Tradução e notas J. Guinsburg e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
  • Publicado
    05 Set 2023
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