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"Agora sou uma estrela"

As várias homenagens prestadas a memória de Elisabeth Souza-Lobo e Maria da Penha Nascimento Silva estiveram guiadas por essa mensagem. Suas estrelas apresentam, provavelmente, um brilho intenso e especial, próprio de quem pautou sua vida e atividades em torno de um ideal.

Na abertura deste fórum sobre "A mulher: trajetórias, conscientização e perspectivas", gostaria de registrar otrabalho desenvolvido por Elisabeth Souza-Lobo junto ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da FFLCHUSP. Tive oportunidade de compartilhar com ela pas so a pas so a elaboração da minha tes e de doutoramento, defendida em maio de 1991 nesta Universidade. Outras duas teses de doutorado contaram com sua orientação. A primeira delas trata de um estudo sobre os trabalhadores nas minas de carvão, na região de Criciúma (Santa Catarina) e a segunda reconstitui a história da cidade de Contagem (Minas Gerais), tendo as mulheres como personagens centrais.

O mesmo rigor e dedicação, com que exercia as demais atividades acadêmicas, transparecou neste trabalho. Sempre disposta a ouvir e sugerir, desde que as idéias estivessem sistematizadas por escrito. Por esse motivo, todos os textos elaborados, durante o período em que trabalhamos juntas, foram objeto de leitura cuidadosa e crítica detalhada. Beth, amante das letras e leitora instigante, colocava e recolocava a cada momento questões e temáticas que, por sua vez, ampliavam as referências bibliográficas e o próprio campo previamente definido para análise, transformando a pesquisa e a elaboração da tese em um debate enriquccedor e dinamico.

Se me fosse possível caracterizar, em poucas palavras, seu estilo de trabalho diria que sabia conciliar, como poucos(as), uma grande inquietação intelectual, extrema sensibilidade para outras leituras e propostas de análise com a militancia junto aos movimentos feminista e sindical.

Beth Lobo nunca furtou-se ao desasfio de romper fronteiras ou de questionar no,ões e representações consolidadas a respeito das classes trabalhadoras no Brasil.

A abordagem de temáticas como a divisão sexual do trabalho, as relações de gênero e, mais recentemente, a problemática da igualdade e diferença - que pretendia desenvolver em su a tese de livre-docência obrigou-a a expandir os horizontes de s ua reflexão teórica, interpelando estudos produzidos pela História Social e Antropologia. A cultura do trabalho elaborada e reelaborada no trabalho, conforme sua expressão em "Masculino e feminino na linha de montagem - divisão sexual do trabalho e controle social", apontou-lhe a questão da heterogeneidade das formas de dominação e a multiplicidade de práticas de resistência desenvolvidas por trabalhadores e trabalhadoras na sociedade brasileira. O mesmo pode-se afirmar em relação à temática da subjetividade, isto é, como homens e mulheres vivem, sentem e percebem as suas condições sociais de existência.

Beth Lobo interessava-se, portanto, menos em saber o "por quê" do que o "como" Por esse caminho, questiona as determinações estruturais, ficando cada vez mais atenta para o conteúdo simbólico das relações sociais. Interrogava-se, por exemplo, de que modo experiências individualizadas se socializam; como homens e mulheres transpõem os muros fechados de seus locais de trabalho e como as mulheres saem da esfera doméstica da casa, irrompendo no espaço público; de que maneira trabalhadores(as) constróem suas experiências de classe.

Dessa perspectiva, insistia em mostrar que as linguagens do poder, do trabalho e da classe são sexuadas. No entanto, se nos mantivermos atados(as) a "conceitos fundados em relações estruturais onde as representações simbólicas, as linguagens são neutras: as linguagens de classe como as linguagens do trabalho", especialmente na Sociologia do Trabalho brasileira, advertia em "O trabalho como linguagem: o gênero no trabalho", dificilmente poderemos apreender essa face embutida nas relações de trabalho e lutas sociais.

A emergência das mulheres, enquanto atrizes sociais na cena histórica, centralizou sua pesquisa teórica e prática política. A categoria trabalho integrou, contudo, o conjunto de suas preocupações, ampliando as investigações não só sobre as mulheres e suas trajetórias, mas principalmente a respeito do trabalho e suas metamorfoses. Na apresentação do curso programado para o primeiro semestre de 1991, deixaria mais uma vez explícita a sua perspectiva de análise. Enfatizara, nessa ocasião, que não bastava argumentar a respeito da singularidade das experiencias de luta de trabalhadores(as) no final dos anos 70 no Brasil, era necessário "refazer o percurso das problemáticas que balizaram a análise das práticas e representações, das continuidades e rupturas do período, dos discursos e personagens através das quais se construiu o objeto movimento operário". Ou seja, não bastava reconhecer a particularidade ou a "novidade" dessas experiências de classe, tornava-se urgente promover uma releitura da bibliografia.

Uma releitura orientada no sentido de verificar, em primeiro lugar, em que medida as lutas sociais desse período fazem emergir temas e questões, até então considerados pouco relevantes pela literatura brasileira referente ao movimento operário e sindical; e em segundo, como é possível dar conta do diverso e singular, das rupturas e continuidades, mantendo-se fiel aos modelos universalizantes de interpretação, muitas vezes, baseada em esquemas classificatórios das lutas sociais, nas formas masculinas de participacão e representação política, ou mesmo, na dinamica das manifestações coletivas protagonizadas somente pelos(as) assalariados(as) fabris.

As tipologias, que classificam os movimentos grevistas em econômicos e políticos ou em selvagens, espontaneos e organizados, aparecem de modo recorrente em alguns estudos referentes ao tema. Em "Trabalhadoras e trabalhadores: o diaa-dia das representações", Beth Lobo aborda essa questão, assinalando apropriadamente que, "se a demanda salarial é a reivindicação principal, restringir a significação dagreve às tipologias de greve econômicas ou políticas elude a questão principal que se coloca a partir de 78" na sociedade brasileira. São, pois, essas reivindicações que põem os trabalhadores em movimento nesse momento - e quiçá em vários outros - permitindo articular revoltas e insatisfações individuais em experiências coletivas de confronto com o patronato e o Estado brasileiro. Desse processo resultaria a (auto)construção do próprio movimento.

A noção de experiência proposta por Thompson constituiu o fio condutor dos estudos desenvolvidos por Beth Lobo, na medida em que, segundo escreve em "Experiências de mulheres. Destinos de gênero", essa noção "permite articular trajetorias e representações das operárias, quebrando a dicotomia objetividade e subjetividade, que me parece levar sempre a um impasse, tanto nas pesquisas que trabalham com histórias de vida, quanto naquelas que se pretendem; ‘objetivas" e, porconsegüinte, capazes de separar a experiência real do imaginário vivido, a objetividade dos acontecimentos da subjetividade em que são vividos".

Retomou esse debate em outra oportunidade, quando incitou os(as) pesquisadores(as) a pensar os movimentos sociais enquanto configurações de experiências. Desse ponto de vista, as lutas sociais podem transformar-se em um campo aberto para elaboração de vivências cotidianas do qual fazem parte o modo de vida, as práticas de trabalho, as tradições culturais e de luta de um determinado grupo social, assim como a sua cultura política construída no cotidiano. Entendendo-se cultura política no sentido amplo, ou seja, como um conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamentos próprios desse grupo, mas não necessariamente restrito a eles. As greves metalúrgicas de 1978 e 1979 em São Bernardo do Campo detêm esse papel político, na medida em que se tornam referências coletivas para o desencadear de outros movimentos.

As várias dimensões da experiência, desde a heterogeneidade da vivência trabalhadora, as trajetórias individuais e coletivas, a divisão sexual do trabalho e a condição feminina de trabalho, as relações de trabalho, as práticas de recusa, até a dinamica institucional do movimento operário e sindical podem ser problematizadas a partir daí. O objetivo seria evitar uma análise das lutas sociais, afirmava em "Trabalhadoras e trabalhadores: o dia-a-dia das representações", enquanto "respostas mecanicas às condições de vida e de trabalho". Para tanto, os(as) pesquisadores(as) deveriam es forçar-se no sentido de desvendar o processo de construção da vontade coletiva, que impulsiona e catalisa os movimentos.

O caminhar dessas reflexões esboçado nos vários textos, agora reunidos na publicação A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência, influenciou decididamente nos rumos do estudo que realizei sobre a greve nacional de 1985 dos bancários de São Paulo. Suas reflexões mesclam-se, nesse caso, às minhas próprias descobertas e preocupações em três pontos principais.

O primeiro deles diz respeito à tentativa de apreender o movimento grevistanas suas múltiplas faces - econômica, política, ideológica, cultural, policial - quando procurei conhecer as práticas de trabalho, mas também como os trabalhadores(as) em bancos no Brasil pensam e sentem as suas condições cotidianas de trabalho e de vida. Os dados quantitativos coletados permitiam-me traçar o perfil sócio-econômico desses trabalhadores(as), mas as representações sociais relativas ao trabalho nos bancos levaramme a identificar as suas “marcas de distinção”, seguindo as sugestões de Bourdieu, no conjunto das classes trabalhadoras na sociedade brasileira. O segundo refere-se à preocupação em analisar as principais características do projeto político implantado no Sindicato dos Bancários de S.Paulo a partir de final dos anos 70, conhecido como “novo” sindicalismo. Nessa experiência, fica claro o entrelaçamento das atividades culturais e sindicais, que reatualiza tradicões organizativas e de mobilização presentes ao longo da história social brasileira. E finalmente, buscando compreender a singularidade dessa experiência grevista, mas fugindo do binômio econômico-político que marca os estudos sociológicos sobre a temática acabaria por explorar o conteúdo simbólico, o imaginário nela envolvido, as representações coletivamente produzidas e reproduzidas por seus participantes. As falas construídas a partir do movimento grevista e sobre ele constituiram o seu ponto de partida. Neste caso, a grande maioria dos grevistas, lideranças e participantes em geral, recorre à matriz discursiva da festa para definir os acontecimentos vividos no desenrolar da greve nacional de 1985 em São Paulo. O que estariam eles expressando com essa representação? Qual o sentido que lhe atribuem?

Em torno dessa problemática girou minha tese de doutoramento, onde as mulheres aparecem como personagens coadjuvantes. Recuperar a sua presença, no entanto, mostrous-se fundamental na análise do movimento grevista em sua total idade, da singularidade em que se pauta a participação política das mulheres e do descompasso entre a sua presença e combatividade nas lutas sociais e a restrita representatividade feminina nas instituições sindicais e partidárias.

Beth, amiga, orientadora e principal incentivadora deste estudo ... Com muito carinho,

SAUDADES!

São Paulo, dezembro de 1991

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Dec 1991
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