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Peregrinações de um sociólogo caipira Entrevista com Sedi Hirano1 1 . Agradecemos a Tatina Lotierzo a ótima revisão deste trabalho, tornando-o mais legível e fluido. Como é de praxe, as eventuais inconsistências são de nossa responsabilidade.

Professor emérito do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (usp), Sedi Hirano faz parte de uma geração de cientistas sociais uspianos cuja formação intelectual entrelaçou fortemente método, teoria e empiria - o que constitui um traço característico e um ethos dos sociólogos dessa geração. Marcado pela influência de seus grandes mestres, com destaque para Florestan Fernandes e Octavio Ianni (e também Fernando Henrique Cardoso, Luiz Pereira e Aziz Simão, entre outros intelectuais), o sociólogo tem uma vasta carreira acadêmica que já ultrapassa meio século, envolvendo a dedicação à docência, à pesquisa e às atividades administrativas, incluindo um período como coordenador da Pós-Graduação em Sociologia, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (fflch) e Pró-Reitor de Cultura e Extensão da usp. Suas contribuições intelectuais e institucionais para a história da fflch e, em especial, para o Departamento de Sociologia da usp são indeléveis.

Em dezembro de 2018, Sedi Hirano recebeu-nos para uma conversa de aproximadamente seis horas de duração, realizada em dois encontros, em sua sala na fflch-usp - espaço que ele chegou a dividir, por um breve período, com Octavio Ianni, antes de esse professor, que havia sido cassado em 1969, passar a compor o corpo docente da Unicamp. A entrevista suscitou em nós uma série de impressões: Sedi mostrou-se um intelectual atencioso e acessível, orgulhoso de sua origem humilde - um “caipira”, como ele se define -, contador de histórias e anedotas, temperado com um especial senso de humor, entre outras qualidades. Referimo-nos ao entrevistado como “senhor”, “professor” e também “você”, simplesmente. Como era de se esperar, assuntos não faltaram: o entrevistado contou-nos sua história de vida e familiar e falou sobre a trajetória acadêmica; a formação intelectual; seus mestres na Sociologia da usp; as transformações da Sociologia ao longo das últimas décadas; suas linhas de pesquisa, transitando entre a Sociologia do Desenvolvimento e a Sociologia das Imigrações; sua produção intelectual - especialmente, os trabalhos seminais Castas, estamentos e classes sociais (1973) e Formação do Brasil colonial (1988); sua carreira administrativa e sua experiência profissional internacional.

Por tudo isso, a entrevista apresenta uma contribuição para a História das Ciências Sociais e para Sociologia dos Intelectuais do Brasil. Revisitar a trajetória de Sedi é também mergulhar nas (des)aventuras da Sociologia brasileira, especialmente a da usp, cuja importância é mais do que conhecida e reconhecida. A entrevista que apresentamos é uma versão condensada dessa longa prosa. Fizemos cortes, ora bruscos, ora pontuais, principalmente em algumas histórias que ainda merecem um esforço de aprofundamento futuro. De todo modo, o processo de enxugar o trabalho não representou prejuízos ao leitor, que desfrutará dos momentos essenciais da trajetória intelectual de Sedi Hirano, um “sociólogo caipira” que se tornou um dos intelectuais mais importantes de sua geração.

Nossa primeira pergunta é sobre a história de sua família e sua infância. Professor, vocês moravam no bairro de Itaquera (São Paulo), no final dos anos 1940. Como era a obtenção da renda da sua família?

Sedi Hirano (SH): Antes de Itaquera, morei por um curto período de tempo, de quase um ano, no Jardim Europa, bairro nobre da capital. Minha mãe tinha arrendado um pedaço de terra em São Miguel Arcanjo, no interior de São Paulo, e a gente morava em um bairro caipira. Ela plantava tomate e, naquele ano, uma geada prejudicou todos os sítios, menos o sítio dela. Havia um intermediário japonês que comprava os produtos que minha mãe produzia e despachava para São Paulo. E como o preço do tomate subiu bastante e minha mãe teve uma safra produtiva, ela ganhou um dinheiro. Esse intermediário convidou minha família para ir aos Jardins, onde ele morava - o atravessador sempre mora bem, não é…? [risos] Ele propôs ao meu pai montar uma fábrica de bonecas, porque o meu pai era muito habilidoso, tinha grande habilidade artesanal. Então, meu pai fez os moldes da boneca e montou uma fábrica. O que mais me impressionou é que eu vim de um bairro caipira e, de repente, estava nos Jardins e numa escola privada, onde estudavam jovens de classe média alta, bem postadas. E nessa escola havia danças no intervalo. Eu tinha que dançar com aquelas mocinhas, muito limpas, muito bonitas, muito bem vestidas. Para elas deve ter sido um sacrifício - dançar com um caipira que veio do interior, descendente de japoneses - quando o japonês não era muito bem visto, porque isso foi logo depois da Segunda Guerra.

Foi no final dos anos 1940?

SH: Sim. O dono da casa, que era sócio do meu pai, disse que a fábrica não estava dando certo e falou para a gente sair de lá. Fomos para o bairro de Itaquera, e o meu pai, para sobreviver, começou a trabalhar como servente de pedreiro. Minha mãe não só ajudava em casa, como também fazia coxinhas, que entregava em alguns bares para os donos venderem, e assim por diante. Então, como meu pai tinha muita habilidade, começou a carreira como servente de pedreiro e quase imediatamente virou pedreiro. Depois, tornou-se empreiteiro de obras e passou a construir e reformar casas nos Jardins. Ele percebeu que lá havia muitas casas bem construídas, mas que precisavam de pintura, de reforma, e assim foi. Eu tenho a impressão de que, como meu pai aprendeu a ser pedreiro e empreiteiro e nessas casas tinha muita sucata e entulhos que sobravam após a demolição, ele e minha mãe compraram um terreno e usaram esses entulhos para construir sua casa em Itaquera.

Quantos irmãos vocês eram?

SH: Seis. Eu sou o segundo. Tinha um irmão mais velho. Éramos quatro irmãos e duas irmãs. A gente tentava sobreviver, mas esse tipo de vida e esse tipo de carreira marcaram minha formação. Ainda estudante, quando me formei no curso primário, eu e meu irmão precisávamos passar para o ginásio. Lembro-me de que a minha mãe contratou uma professora de português de Itaquera para nos ensinar não só o português, mas tudo o que eu tinha que dominar para passar no exame de admissão.

Seus pais não falavam português?

SH: Meu pai e minha mãe falavam bem o português. Ele era uma pessoa muito bem dada, as pessoas o adoravam - mesmo quando morava no interior, em São Miguel Arcanjo. Meu pai jogava futebol, era goleiro no time, se não me engano; e quando havia quermesse na cidade do interior, minha mãe fazia pipoca, doces, guloseimas. E meu pai vendia junto com a minha mãe na quermesse. Era uma forma de você também amealhar alguns trocados e socializar. Mesmo na vida no campo é interessante. Você mora em um terreno, planta milho e dá milho, planta um pouquinho de feijão e dá feijão… Mandioca, sempre tem. Eu me lembro de que nessa época comia içá, aquela formiga grande. Você corta a cabeça, frita, põe sal e come. A população indígena fazia isso. Tinha aquelas plantas que nascem nos terrenos baldios, a serralha. Uma espécie de rúcula rústica. Enfim, a gente sempre tinha uma forma de sobreviver.

Mas eu estava falando do ginásio. Cursei-o no Ginásio Estadual de Poá, na periferia de São Paulo, perto de Guaianases, Ferraz de Vasconcelos. Quando estava no segundo ano do curso primário, sofri uma queimadura de terceiro grau no corpo. Fiquei um mês e pouco no Hospital das Clínicas fazendo tratamento. Do segundo para o terceiro ano, fui aprovado porque eu estava com um problema de saúde. Assim, tive um certo déficit de formação, e no Ginásio Estadual de Poá o primeiro ano foi muito difícil. Refiz o primeiro ano e então entrei rápido no quadro de honra, porque cheguei à conclusão de que, para ter um bom desempenho, eu precisava me dedicar, estudar e ler bastante. Tenho impressão de que foi a partir dessa época que desenvolvi minha preferência por muitas leituras.

Seu pai faleceu precocemente, quando o senhor tinha treze anos. Como o senhor e sua família lidaram com isso?

SH: Meu pai faleceu quando eu estava no ginásio. Ele tinha comprado um caminhão e fazia transportes de madeira do Paraná para São Paulo. O sonho dele era montar uma casa de material de construção. Foi um acidente no norte do Paraná. Antigamente, a estrada não era asfaltada naquela região, era estrada de terra. Quando um caminhão passava, formava aquela poeira gigantesca, e o motorista não enxergava um palmo diante do nariz. Deve ter acontecido isso com o meu pai. Foi na cidade de Cornélio Procópio, perto de Londrina.

Eu tinha um tio que era até muito bem de vida, ele tinha um armazém e depois começou uma cooperativa - a Cooperativa Agrícola de Mauá, da qual ele foi presidente. Quando o meu pai faleceu, meu tio e minha tia falaram: “Olha, como vocês não têm formação, não tem cultura, não tem especialização, é melhor voltar para o interior e puxar enxada”. Eu falei: “Não. Nós vamos ficar aqui e começar a trabalhar. E nós vamos tentar sobreviver do nosso trabalho”. Sempre fui meio rebelde…

Meu primeiro emprego foi como office boy na Micro Propaganda Ltda. Toda vez que passo na Avenida Liberdade, número 21, eu lembro: a empresa ficava no décimo terceiro andar. Nessa época, eu também costumava visitar o escritório do programa Melodias Nipônicas, da Rádio Pan-Americana (hoje, Jovem Pan), um programa dedicado à colônia japonesa. Um dia, perguntei: “Vocês não estão precisando de office boy? Quanto é que vocês pagam?”; e eles pagavam melhor do que a Micro Propaganda, então deixei a agência de publicidade e passei para o Melodias Nipônicas. Eu fazia cobrança pelos anúncios. Assim, cheguei a conhecer figuras importantes - inclusive o João Sussumu Hirata (1914-1974), que foi deputado federal pela União Democrática Nacional (udn). Então, saí do Ginásio Estadual de Poá e fui para a Escola Normal e Ginásio Estadual Domingos Faustino Sarmiento, no bairro do Belenzinho, que era um ginásio politizado. Vários professores que tive estavam estudando na usp naquele momento, ou eram formados por essa universidade. Foi lá que eu me tornei de esquerda.

Eu tinha um professor chamado Rubens Guedes. Ele era gerente da Livraria Vitória, que vendia publicações do Partido Comunista do Brasil (pcb)2 2 . O pcb foi fundado em 1922, com o nome Partido Comunista do Brasil, Seção Brasileira da Internacional Comunista. Em 1961, o partido manteve a sigla, mas mudou seu o nome para Partido Comunista Brasileiro. Vale lembrar que, no ano seguinte, uma das dissidências desse partido funda o pc do b, utilizando o nome original de Partido Comunista do Brasil. . Frequentar essa livraria fez com que eu tomasse gosto pela leitura. O pessoal do Partido Comunista lia muito Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, John Steinbeck, Machado de Assis, Lima Barreto e Aluísio Azevedo, entre outros escritores. Acho que isso teve uma influência grande sobre mim. Na verdade, quando ingressei no Faustino Sarmiento, tive certa dificuldade de desempenho; entretanto, como eu lia bastante, fui melhorando no decorrer dos anos e me formei com uma média acima de 7. Graças a isso, ingressei no Colégio Estadual Presidente Roosevelt - um colégio tradicional de São Paulo, localizado no bairro da Liberdade, que escolhia os alunos das escolas públicas por média de nota. Fui selecionado para o curso científico. Ali dentro, encontrei novos comunistas. Lembro-me de que as primeiras atividades de esquerda que eu fiz foram ir à Praça da Sé e pichar “americanos go home” em alguns muros [risos].

Quando começou essa aproximação com o pensamento de esquerda, ainda no Ginásio Domingos Faustino Sarmiento, isso repercutiu na sua família? O senhor lembra se houve algum estranhamento?

SH: A minha mãe sempre dizia: “Bem, o que o meu filho faz é o que o meu filho escolhe. Ele escolheu e se ele está escolhendo é porque deve ser uma boa escolha”. Ela nunca interferiu nisso. Na época do governo militar, eu assinava moções da Alemanha comunista e recebia correspondência. Meu irmão fazia alguns comentários: “É… tem que tomar cuidado, não sei o que é esse tal de comunismo”. Eu tinha livros de esquerda e cheguei a enterrá-los no sítio de um amigo. Então, algum tipo de estranhamento havia, mas o que eu ressaltava quanto ao perfil de alguns membros do pcb é que Mário Schenberg era um grande físico, Oscar Niemeyer era um grande arquiteto e Jorge Amado era um grande escritor.

Escrevi recentemente um artigo intitulado “Marxismo heroico e a questão da consciência de classe nas obras de juventude de Jorge Amado” (Hirano, 2013Hirano, Sedi. (2013), “Marxismo heroico e a questão da consciência de classe nas obras de juventude de Jorge Amado”. In: Hernández, Ascensión Rivas (org.). Jorge Amado: relectura en su centenario. Salamanca, Gráfica Lope, pp. 205-213.), que saiu em uma coletânea na Universidade de Salamanca. É sobre a presença de certos elementos que constam do Manifesto do Partido Comunista nas obras escritas por Jorge Amado na juventude. O que estou dizendo é que essas leituras foram muito boas para minha formação intelectual. É claro que elas têm um certo viés ideológico, mas toda leitura tem algum viés ideológico. Ninguém está completamente isento de viés ideológico. Lembro que o professor Rubens Guedes era aluno de Ciências Sociais. Ele não só me sugeriu a leitura desses romances, como também me indicou História econômica do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior (1907-1990) - um membro do partidão, que tinha uma posição bastante crítica.

A questão da formação do Brasil colonial pré-capitalista e capitalista apareceu em minhas pesquisas porque Caio Prado já dizia que o Brasil começou capitalista. Desde o curso ginasial, essa questão começou a povoar minha mente, minha reflexão. Depois, quando entrei para o Colégio Roosevelt, eu tinha um professor de História chamado Hélio Leite. Ele disse: “Olha, o Celso Furtado publicou Formação econômica do Brasil, agora nós vamos ler o Celso Furtado”. Depois, Gilberto Freyre (1900-1987) publicou outro livro, chamado Ordem e progresso. Ele pediu para cada aluno ler um capítulo e fazer uma exposição em seminário. Esse tipo de coisa é importante para a formação. Tinha também o professor de Filosofia, João Villalobos, que foi professor titular na Faculdade de Educação da usp. Ele trabalhava como editor no jornal O Estado de S. Paulo. Também comecei a ler História da Filosofia moderna, de Wilhelm Wildelband, que era um neokantiano, e Émile Bréhier, autor de obras sobre filosofia antiga; e comecei a me interessar por outros filósofos, como Platão e Aristóteles. Uma escola que tem professores com uma linhagem política e uma posição crítica, como o Colégio Estadual Presidente Roosevelt, promove uma formação crítica.

Fiz o curso científico e todo mundo pensava que eu ia prestar Engenharia, Medicina, Direito ou outro curso renomado. Aí o pessoal me perguntou: “O que você vai fazer?”; “Vou fazer Ciências Sociais”, eu disse. “Ciências Sociais? Mas o que é isso?”; “Ciências Sociais? Isso dá dinheiro?”. Claro, os descendentes de japoneses são, em parte, meio pragmáticos. Respondi: “Não sei se dá dinheiro, mas é uma coisa de que eu gosto”. Fui conversar com o professor de História e disse que estava pensando em fazer Ciências Sociais. “Olha, para fazer Ciências Sociais você tem que conhecer muito bem História”, ele falou. Naquela época, eu já estava começando a ler a Revista Brasiliense; tenho praticamente toda a coleção, e estava lendo também a revista Anhembi. Lia também o jornal Emancipação, de linha nacionalista, feito por generais nacionalistas que defendiam o petróleo. Portanto, o ginásio e o colegial constituíram meu cabedal de formação histórica.

O senhor já tinha todo esse acúmulo de leituras antes de entrar no curso de Ciências Sociais?

SH: Sim, antes de ingressar no curso de Ciências Sociais na usp. Quando fiz o primeiro vestibular, fui reprovado por um corte de classe. Em outras palavras, fui reprovado em línguas, pois eu não sabia bem francês e inglês. Era de família pobre. Em História do Brasil, eu sorteei um ponto sobre fatores humanos da industrialização. Em seguida, a banca me pediu para discorrer sobre os fatores humanos da industrialização e comecei a expor. A Célia Galvão Quirino, que estava na banca, perguntou: “O senhor leu onde esse conhecimento que está relatando aqui na banca?”. Respondi: “Eu li na Revista Brasiliense, tinha um artigo sobre os fatores humanos na industrialização em São Paulo, de um tal de Octavio Ianni”3 3 . Trata-se do artigo “Fatores humanos da industrialização no Brasil”, de Octavio Ianni, publicado no trigésimo número da Revista Brasiliense, em 1960. . Aí ela perguntou: “Mas quem é esse tal de Octavio Ianni?”. “Não sei…” - respondi - “Deve ser historiador ou alguma coisa parecida”. Aí a Célia falou: “Eu apresento-lhe o tal de Octavio Ianni”. Era o presidente da banca… [risos].

Na prova de português, sorteei um ponto e caiu Graciliano Ramos. O presidente da banca - eu nem sabia quem era - perguntou: “O que você leu sobre Graciliano Ramos?”. Respondi: “Professor, li toda a obra publicada do Graciliano Ramos que está disponível”. “Pois bem, quero que você fale sobre Memórias do cárcere”. Comecei a falar sobre Memórias do cárcere e, no primeiro volume dessa obra de Graciliano Ramos, tinha uma introdução do Antonio Candido. Só depois, descobri que quem estava presidindo a banca era o próprio Antonio Candido [risos]. São coincidências da vida.

Mas é importante notar que o pcb e seu ideário de formação, de conhecimento, da Terceira Internacional, do Stalin, eram muito sectários. Basta dizer que, do primeiro para o segundo ano da universidade, eu saí da organização, pensando: “Quero ter uma vida de pensamento mais libertário e mais autônoma, não quero que minha reflexão esteja filtrada pela Terceira Internacional”. Isso para ter um caminho próprio e construir uma trajetória própria. Foi o que eu fiz.

Então, penso que essa questão de ter estudado no ginásio de Poá, na periferia de São Paulo, depois no Belenzinho, no Ginásio Estadual Domingos Faustino Sarmiento e depois no Colégio Estadual Presidente Roosevelt também reflete uma trajetória de deslocamento geográfico, espacial, porque a população mais pobre mora realmente em bairro caipira, na periferia e, conforme vai ascendendo na área educacional, de uma forma pouco perceptível, também vai mudando de bairro.

Sedi, você quando ingressou na universidade também trabalhava?

SH: Quando entrei na universidade, eu tinha um colega chamado Ubirajara. A irmã desse aluno trabalhava nas Listas Telefônicas Brasileiras e, entre meu primeiro e segundo ano de faculdade, ela ficou sabendo que o departamento de pesquisa das Listas Telefônicas precisava de alguém para trabalhar. Aí o Ubirajara falou pra mim: “Sedi, vai até as Listas Telefônicas, fala com a minha irmã”. Na entrevista, perguntaram: “Você estuda o quê?”. Eu falei: “Estudo Ciências Sociais”. “Ciências Sociais? Ah, então você é de família rica, não é? De classe média alta?”. Eu disse: “Não, não sou de família rica, pelo contrário, sou de família pobre”. Fui aprovado para trabalhar nas Listas Telefônicas Brasileiras como calculador de dados secundários. Meu trabalho era juntar todos os dados e ficar calculando. Soma, multiplicação, divisão… Isso possibilitou que nós fizéssemos uma pesquisa sobre leitores que consultavam a lista telefônica. Aplicamos questionários, realizamos entrevistas, tabulação da pesquisa e também análise.

Então houve uma crise. O diretor das Listas Telefônicas Brasileiras, Arthur César, foi embora para o Inese, que era uma grande empresa de pesquisa. O Arthur falou: “Sedi, se você quiser trabalhar comigo, você vai trabalhar no Inese, mas já indiquei você para ser Assistente de Pesquisa da Alcântara Machado Publicidade, eles estão precisando de um Assistente”. Depois, descobri que a chefe de pesquisa era a Araci Martins Rodrigues, esposa de Leôncio Martins Rodrigues, então assistente do professor Florestan Fernandes. Assim, acabei sendo Assistente de Pesquisa da Alcântara Machado Publicidade e, posteriormente, fui promovido a Coordenador de Pesquisa. Depois, quando Pierre Garfunkel se tornou diretor comercial, fui encarregado de trabalhar na área de mídia da Alcântara Machado Publicidade.

Acho que o Florestan, vendo-me trabalhar os dados estatísticos e sabendo desse meu passado, interessou-se pela minha trajetória. Digo isso porque, na memória da entrevista publicada na Trans/Form/Ação (1975), ele falou que tinha três objetivos principais como professor: formar pesquisadores de alto nível, formar professores docentes e formar técnicos. E disse também que nessa área de formação de técnicos ele fracassou, que não deu certo (cf. Fernandes, 1975Fernandes, Florestan. (1975), “Entrevista sobre o trabalho teórico”. Trans/Form/Ação, Marília, 2. Entrevista concedida a A. T. Menezes Arruda, C. Navarro Toledo, J. F. T. Lima e U. T. Guariba Neto.). Essa era uma ideia que tinha muito a ver com o Karl Mannheim, para quem um técnico formado em Ciências Sociais poderia participar dos processos de transformação, na qualidade de ator qualificado, via planejamento. Essa reflexão consta de seu livro famoso sobre planejamento, Liberdade, poder e planificação democrática (Mannheim, 1972).

O que estou querendo dizer é que essa necessidade de trabalhar e ganhar dinheiro articula-se à formação teórica recebida na universidade. Considero essa articulação entre teoria e prática muito importante. E o Florestan valorizava muito isso. Enquanto aluno, eu era muito impertinente, fazia perguntas impertinentes na aula do Florestan, do Fernando Henrique Cardoso, do Octavio Ianni, discordando de certas colocações. Eu também discutia muito com os meus colegas de esquerda, como Emir Sader, Eder Sader, Francisco Weffort e vários outros que eram militantes da Libelu - Liberdade e Luta - e da Polop - Política Operária. Eu dizia: “Esse operário de que vocês estão falando eu não conheço. O operário que eu conheço da periferia da cidade de São Paulo é o que, quando chega o final de semana, vai ao bar da esquina tomar uns goles de pinga e ficar falando de futebol” [risos]. Eram operários que trabalhavam arduamente na construção civil e, no final de semana, queriam espairecer após essa dura jornada.

O senhor entrou na usp em 1961, isto é, em um momento em que o grupo da primeira geração do seminário d’O Capital estava em seu auge.

SH: Isso. É por isso que eu fui muito influenciado pela leitura, não pelo grupo, mas pela leitura de O Capital feita por alguns membros do grupo. Isso porque eu fui aluno do Fernando Henrique Cardoso e do Octavio Ianni. Então, com José de Souza Martins, Neide Patarra, Newton Quelho e Antônio Carlos de Godoi - que foi articulista econômico de O Estado de S. Paulo -, foi montado um grupo para realizar a leitura de O Capital e convidamos o Ianni para ser o orientador desse grupo. A leitura das obras de Marx começou em meu segundo ano de Ciências Sociais. Depois, quando me formei, Florestan indicou-me para ser assistente do professor Juarez Brandão Lopes, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (atual Unesp), fundada em 1958, e Juarez conhecia muito bem a obra de Max Weber. Então, ele me disse para ler Weber e dar um curso sobre burocracia para os alunos. É por isso que alguns autores, como Jacob Gorender e Michael Löwy, chamam-me de “marxista-weberiano”.

Como o senhor lida com essa classificação?

SH: No início, me incomodava, porque eu achava que era um marxista e não um marxista weberiano. Hoje em dia não, eu de fato me considero um “marxista-weberiano”.

Michael Löwy caracteriza sua obra de uma maneira bastante positiva. Em A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (Löwy, 2014), ele o inclui no texto introdutório sobre o “marxismo weberiano” no Brasil, ao lado de uma constelação de autores sui generis do pensamento social, tais como Fernando Henrique, Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg. Aliás, o senhor conheceu Tragtenberg?

SH: Conheci. Tragtenberg foi professor da Faculdade de Educação da Unicamp, mas ele prestou concurso para entrar aqui. Era uma figura impressionante. Escrevia de uma forma desesperada. Apresentou uma prova escrita de vinte e cinco páginas - ninguém apresenta uma prova escrita de vinte e cinco páginas. E mais do que escrever de uma forma desesperada, ele quis botar tudo o que sabe no papel - ninguém bota tudo o que sabe no papel. Tem que ter uma linha; então, o problema dele foi exatamente esse, ele quis colocar tudo, tudo no papel, e não dá. É preciso escolher uma estratégia, uma hipótese, um tema que articule o conhecimento, senão fica o caos. Mas eu me dava bem com o Tragtenberg. Ele era uma pessoa de excelente formação, o Ianni gostava muito do Tragtenberg também. Eu cheguei até a ir à casa dele, ele morava aqui atrás da usp, era uma pessoa de qualidade inquestionável. Eu acho que ele deveria ter entrado, foi uma pena ele não ter entrado.

Qual é a diferença entre o perfil da cadeira de Sociologia i e da de Sociologia ii? 4 4 . Nessa época, o Curso de Ciências Sociais era dividido em cadeiras: Cadeira de Sociologia, i, Cadeira de Sociologia ii, Cadeira de Antropologia, Cadeira de Ciência Política, Cadeira de Filosofia, Cadeira de Estatística etc.

SH: Olha, na época em que entrei, o curso básico sobre organização social, quem ministrava era o pessoal da cadeira de Sociologia ii. E o curso de fundamentos da Sociologia, quem dava era o pessoal da cadeira de Sociologia i. “Sociologia Sistemática” era o nome da disciplina do 1º ano e quem a ministrava era o Fernando Henrique Cardoso. E o curso teórico, extremamente sofisticado e refinado, chamava-se “Modelo de Explicação Sociológica” e quem o ministrava era o Florestan Fernandes. Portanto, a área de teoria do curso de Ciências Sociais tinha a marca da cadeira de Sociologia i. Além disso, essa cadeira também começou a ser marcada pelos Estudos de Relações Raciais, devido ao Projeto Unesco. Em razão do grande prestígio de Gilberto Freyre na Europa e nos Estados Unidos, o Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da Unesco queria fazer uma pesquisa sobre países onde existiria uma convivência racial extremamente democrática, harmônica e solidária. Essa visão quem levou para lá foi o Gilberto Freyre, e o pessoal da Unesco comprou a ideia de fazer uma pesquisa no Brasil, em alguns estados. O Estado com maior população negra no Brasil era a Bahia e, originalmente, somente esse estado seria pesquisado. Mas o estudo foi ampliado, com pesquisas em São Paulo e em outros estados. A conclusão a que o Roger Bastide, junto com o Florestan Fernandes, chegou é que, na verdade, no Brasil, não existia democracia racial. Isso deixou o pessoal da Unesco um pouco decepcionado.

Como foi o convite para ser professor do Departamento de Sociologia na usp, no lugar do professor Fernando Henrique Cardoso, em 1965? 5 5 . Em 1965, Florestan Fernandes era catedrático da Cadeira de Sociologia i e o Professor Sedi foi contratado, pelo prazo de 730 dias, como instrutor extranumerário, como era chamado (figura jurídica) um recém-formado que ingressava no corpo docente da Faculdade. Já um estudante podia ocupar a função de “assistente extranumerário”.

SH: Formei-me em 1964 e colei grau de bacharel e licenciado em 23 de março de 1965. Quando me formei, o Florestan Fernandes falou: “Olha, eu já estou indicando você para ser professor”. E para mim, foi uma surpresa. Antes, ele já tinha me indicado para ser bolsista de iniciação científica e de aperfeiçoamento científico, pela Fapesp. Não sei por que, mas ele gostava de mim. Ele tinha um projeto chamado “Economia e sociedade no Brasil: análise sociológica do subdesenvolvimento”, com um plano de estudos sobre o empresariado e a formação da força de trabalho e sobre o Estado e o planejamento. Esse projeto tinha sido formulado no momento de construção do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), em 1962, e foi em parte financiada pelo [Fernando] Gasparian, um grande empresário industrial. Acho que ele [Florestan Fernandes] ficou encantado com minha trajetória porque eu sempre trabalhei para sobreviver.

Eu me lembro do dia em que Ianni chegou à sala onde eu estava trabalhando e disse algo como: “Sedi, o professor Florestan quer falar com você”. Então, quando fui à sala do Florestan, o Ianni falou: “Senta, porque você pode cair de costas”. O Florestan disse pra mim: “Eu quero convidar você para ficar no lugar do Fernando Henrique Cardoso”. Respondi, dizendo que tinha muita gente de classe média alta, com cultura erudita, que falava muito bem o português, escrevia muito bem e que poderia ser cotado. Aí ele falou para mim: “Não, mas esse pessoal não tem nádegas de paquiderme, e você tem”. Por “nádegas de paquiderme”, ele queria dizer que eu tinha disciplina de sentar e ficar horas e horas sentado, estudando. Quando fui convidado para ser professor na cadeira de Sociologia i, lembro de escutar um comentário do tipo: “Depois que o Fernando Henrique Cardoso foi embora para o Chile, a cadeira de Sociologia i está se proletarizando”. Essa proletarização vinha acontecendo de fato, com a entrada de José de Souza Martins, que era de família muito pobre, eu, também muito pobre, e José César Aprilanti Gnaccarini, que era quase um caipira, no corpo docente.

Então, se você pegar os primeiros assistentes de Florestan, verá que eles eram de classe média alta ou da aristocracia decadente. Já a segunda geração, que é a minha, do Martins e do Gnaccarini, é uma geração mais proletária, formada quando o Florestan começa a adquirir mais força e mais vigor acadêmico. Então, tem essa diferença sim, com certeza.

Como foi o seu contato com Florestan no período de produção e lançamento de A revolução burguesa no Brasil?

SH: Eu não participei dos debates iniciais desse livro (realizados até 1966), porque ele colocou o texto para ser debatido entre os intelectuais que já tinham trabalhos concluídos naquele momento e que ele cita na bibliografia extensa - aliás, uma bibliografia extensíssima, não é? Foi só quando o livro já estava em fase de finalização, que eu publiquei Castas, estamentos e classes sociais (Hirano, [1973] 2006) - uma obra que recebeu uma introdução de Florestan. Posteriormente, publiquei também Formação do Brasil colonial (cf. Hirano, [1988] 2008). Quando defendi o doutorado, o Florestan mandou-me um bilhete, parabenizando-me pela “brilhante” tese. A revolução burguesa no Brasil está dividida em três partes6 6 .A revolução burguesa no Brasil foi redigido em dois momentos distintos: as duas partes iniciais (“As origens da revolução burguesa” e “A formação da ordem social competitiva”) foram finalizadas em 1966, enquanto a terceira parte (“Revolução burguesa e capitalismo dependente”) ficou pronta em 1974 - ano de lançamento do livro. , há uma parte em que o Florestan demonstra acreditar que a burguesia, de fato, poderia fazer uma revolução, no sentido de transformação e incorporação das massas excluídas - o que, na realidade, não aconteceu. A grande decepção do Florestan Fernandes foi o golpe militar de 1964. E a maior decepção que ele teve foi ter sido expulso da academia. Se você prestar atenção, a segunda parte de A revolução burguesa no Brasil já torna visível um Florestan que não acredita tanto na revolução burguesa.

De fato, na terceira parte, a descrença é total…

SH: Maior ainda, porque, cada vez mais, ele vai ficando descrente de que essa burguesia, como classe, seria capaz de fazer a revolução burguesa. E, na verdade, a ideia motora do Florestan é a questão do arcaico e do moderno: a de que existe, estruturalmente, uma continuidade entre o arcaico e o moderno, com o primeiro fertilizando, de uma forma robusta, o segundo, e este - o moderno - deixando-se fertilizar pelo arcaico. Isso aparece em vários escritos de Florestan. Então, na verdade, não houve revolução. Só que na década de 1960, tanto o Partido Comunista quanto outros grupos de esquerda acreditavam que uma etapa da revolução socialista deveria ser a revolução burguesa. Então, na primeira parte isso está mais ou menos delineado e, na segunda parte, essa questão não toma tanta relevância.

Tenho um trabalho que escrevi sobre a “utopia do desenvolvimento” (cf. Hirano, 2002). O que está presente no Florestan das décadas de 1950 e 1960 é a da “utopia do desenvolvimento autônomo”. Naquela época, ele não estava numa linha contrária à ideia de desenvolvimento e democracia, propondo o caminho histórico de desenvolvimento autônomo como liberdade. Depois da Segunda Guerra Mundial, a ideia de desenvolvimento autônomo e de burguesia nacional também estava na cabeça de muita gente daquela geração. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, ao falar sobre o capitalismo associado, uma alternativa de desenvolvimento em Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964), reflete uma ideia de que a burguesia brasileira não tinha essa unidade de consciência política para formular um projeto para o Brasil, pois tinha caráter rentista.

A segunda parte de A revolução burguesa no Brasil é sobre um capitalismo totalmente desencantado, selvagem, agressivo - um capitalismo de rapina mesmo. Não existe uma acumulação de capital propriamente capitalista, mas é uma acumulação de capital que se faz a partir de uma forma originária de capital primitivo - e digo primitivo no sentido de a violência estar sempre presente. Até me recordo de um seminário no Conselho Universitário, há cinco ou sete anos, em que apareceram Olavo Setúbal e Antônio Ermírio de Moraes. Também estava lá Ozires [Silva], que foi fundador da Embraer. Era um debate sobre o desenvolvimento no Brasil. Eu lembro que Antônio Ermírio olhou para o lado e ali estava Olavo - eles eram amigos, estudaram na Politécnica. Antônio Ermírio falou assim: “Olha, Olavinho, de tanto você ganhar dinheiro com seus bancos, eu resolvi abrir um banquinho, esse banco em pouco tempo me deu muito mais dinheiro do que todas as minhas indústrias juntas”. É esse tipo de capital financeiro extremamente predatório que cresceu de forma exponencial. E isso, inclusive durante a presidência de Fernando Henrique e, de uma forma mais exponencial, a de Lula. Se você vir os balanços desses bancos, são balanços de lucros estonteantes, absurdos…

Mesmos nos momentos de crise…

SH: Mesmo nos momentos de crise. Eles nunca tiveram crise, a crise para eles é muito boa… Então, o Ozires, que estava lá, falou: “O capitalismo brasileiro é predatório, e sabe por quê? No Brasil, nada tem continuidade, o empresário brasileiro não pode investir a longo prazo, porque nem a curto prazo dá para prever nada”. Então, ele tende a ser esse capitalismo predatório, rentista, que visa a lucros a curtíssimo prazo e a lucros estonteantes. Não investe em tecnologia, não investe em desenvolvimento, não investe em ciência, ele tem exatamente essa marca primitiva de produzir riqueza de forma fabulosa, de uma hora para outra. Não tem aquele capitalismo do lucro moderado, obtido através do trabalho metódico, sistemático e organizado, que o Weber descreve em A ética protestante e o espírito do capitalismo, em que se cria uma obra para chegar à graça divina, ter uma certa redenção não somente pessoal, mas também familiar. Esse - o weberiano - é um capitalismo utópico, o capitalismo real é realmente aquele de que muita gente fala, inclusive o Florestan: o “capitalismo selvagem”, em que o que se puder roubar rouba-se mesmo, assalta-se mesmo…

E patrimonialista, não é?

SH: Tremendamente patrimonialista. Você pega a estrutura política do Brasil: quem é que foi a força política que deu respaldo ao Fernando Henrique Cardoso? Renan Calheiros e todas as oligarquias do Norte e Nordeste. Quem é que deu respaldo para o Lula? As mesmas oligarquias, as mesmas oligarquias. E quem vai dar respaldo para o Bolsonaro? Essa oligarquia ainda mais autoritária, que elogia os Estados Unidos, elogia Trump, mas não tem um projeto para o país. Mas tem um projeto de militarização. Tem cinco ou seis generais escolhidos. Quer dizer, a mentalidade do estamento militar vai ter uma força muito grande. Eu tenho impressão de que essa visão, de uma forma ou de outra, vai ser retomada como sopa requentada, está caminhando nessa linha. Então, a tendência é voltar para a década de 1960, 1970 e 1980, voltar para o passado. Os olhos não estão voltados para o presente. Eu acho que as perspectivas são péssimas. Se eu fosse um pouco mais jovem e com mais energia, iria embora daqui.

Como o senhor observa, retrospectivamente, os lugares que ocuparam no cenário acadêmico dois dos seus importantes mestres, ff e fhc? Tem uma carta em que o Florestan, claramente, fala sobre a dificuldade de dar aulas em inglês, quando estava em Toronto, que isso o esgotava; ou seja, havia entre eles também diferenças culturais marcantes.

SH: Dar aula para um público acadêmico e ter que falar em inglês, puxa… Eu teria dificuldade. O Nicolau Sevcenko falou-me uma vez: “Sedi, se você conhecesse bem inglês, você daria aula em Harvard”. Então, para dar aula lá, tinha para Florestan uma questão de domínio da língua que o incomodava. Não era o Florestan que expunha em português aqui no Brasil e tinha um público e um conceito: impecável grande teórico no campo das ciências sociais. Era um público vendo o Florestan falando aquele inglês com limitação. Quem não domina muito bem o inglês falado limitaria na exposição o “charme” e o “carisma”. No entanto, o professor Florestan, com 31 anos, dominava muito bem o inglês e o francês escritos que ele cita exaustivamente na bibliografia do livro de doutoradoA função social da guerra na sociedade tupinambá. Menciona ainda no livro citado obras e artigos escritos em alemão e italiano. Florestan Fernandes demonstrava ter no campo das ciências sociais um conhecimento enciclopédico em várias línguas escritas. E ele tinha um conceito inquestionável de professor que dominava com precisão a teoria, a metodologia e as técnicas de investigação no campo das ciências sociais. Era portador de uma garra e uma vontade incomum, inimaginável (estudava e realizava trabalho intelectual diariamente durante dezesseis ou dezoito horas).

Então, deve ser uma coisa massacrante. Eu percebo isso quando vou ao Japão e tenho que falar inglês, é uma dificuldade colossal. Mesmo levando um texto traduzido por uma pessoa que sabe muito bem inglês, que escreve muito bem, a leitura que faço é uma leitura de um caipira. Eu acho que isso tem a ver. Por que o Fernando Henrique teve essa inserção? Fernando Henrique é de uma família de generais, de vários generais. O pai do Fernando Henrique Cardoso era o general Leônidas Cardoso, nacionalista; toda a família Assunção Cardoso é da família do Fernando Henrique Cardoso. Ele domina bem o francês, domina bem o inglês e o espanhol, que são as três línguas mais difundidas no mundo. Então, a obra do Fernando Henrique faz com que ele seja o autor latino-americano mais citado no mundo. Já o Florestan é pouco citado. Minha aluna Maria de Fátima Souza da Silveira, aluna de doutorado do Departamento de Sociologia da usp, escreveu uma brilhante dissertação de mestrado sobre Florestan Fernandes - “Da invisibilidade ao protagonismo de Florestan Fernandes no pensamento social latino-americano” (Silveira, 2018) -, na qual ela fala de como Florestan Fernandes foi invisibilizado em razão da língua, apesar de ter antecipado reflexões teóricas de Aníbal Quijano e de vários outros intelectuais latino-americanos que escreveram em espanhol, porque o espanhol tem uma penetração mundial maior. Eu lembro que o Edelberto Torres-Rivas, quando veio dar aulas aqui na usp, no Instituto de Estudos Avançados (iea) e no Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (Prolam), falou o seguinte, após ler o meu livro: “Sedi, é um belo livro, é uma pena que você escreveu em português, porque se você tivesse escrito em espanhol, o livro já teria uma amplitude maior, se você tivesse escrito em inglês, o livro estaria nos padrões de obras intelectuais que circulam bem”. Então existe essa barreira da língua.

Ainda existem alguns detratores do Florestan, que dizem que ele é autoritário. Mas o Florestan nunca me disse que tipo de tese eu deveria escrever, nunca. Ele dava liberdade e autonomia a seus assistentes. Aliás, o mote dele era liberdade e autonomia com relação ao professor, não ver a realidade científica pela via dogmática. Ele combatia os bloqueios paroquiais e idiossincráticos. O Florestan sempre defendeu que o cientista tem que ter autonomia e liberdade. Eu acho que essa foi a grande lição que o Florestan Fernandes transmitiu para mim.

No exílio ele já vai se revoltando. É um baque muito forte…

SH: Ele vai se revoltando. Ele ficou muito frustrado porque nunca havia estado fora da universidade e, nesse momento [de exílio], ele se sentiu como asa de xícara, como ele mesmo dizia. Ele ficou fora da estrutura em que vivia e da qual era parte, a estrutura que ele construiu.

Ele estava com cinquenta anos, em 1970, sem uma perspectiva de emprego. Para um sociólogo do porte dele, que já tinha construído tudo aquilo…

SH: Foi uma tragédia. E a Heloísa Fernandes viveu essa época, porque ela entrou na universidade, se formou socióloga e virou professora aqui.

E para ela deve ter sido muito mais difícil do que para os outros irmãos, porque, como ela virou socióloga, escolheu a profissão do pai, a relação que ela constituiu com ele foi muito forte…

SH: Muito forte. Diga-se de passagem, Heloísa Fernandes procura realçar a dimensão da atuação política de Florestan Fernandes. No meu entendimento, de 1950 a 1970, Florestan procura consolidar-se em suas análises como cientista social, militante da ciência, das Ciências Sociais aplicadas como instrumento de mudança social. Concordando com Antonio Candido, Florestan Fernandes foi “o maior cientista social que o Brasil já produziu” (Candido, 2001Candido, Antonio. (2001), Florestan Fernandes. São Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo., p. 64).

E o Octavio Ianni?

SH: O Ianni era de família pobre, a família vendia miúdos de gado e de frango nas ruas de Itu. O Ianni era tido como o “italianinho”, como proletário, em Itu. Quando ele estava cursando Ciências Sociais, devido às necessidades econômicas, ele parou o curso e foi trabalhar numa gráfica. Isso eu sei sabe por quê? Porque eu também tive dificuldades e houve uma época em que eu queria parar de fazer o curso de Ciências Sociais e trabalhar para ganhar um pouco de dinheiro, para dar um conforto à família. Aí o Ianni falou para mim: “Sedi, não faça isso, eu fiz isso e me arrependi; leva como puder levar, faça e termine o curso de Ciências Sociais”. Ele acertou, porque se eu tivesse terminado o curso de Ciências Sociais dois anos depois, eu não estaria aqui. É que a oportunidade não volta duas vezes, e a oportunidade surgiu quando o Fernando Henrique Cardoso teve que se afastar da cadeira de Sociologia i, devido ao golpe militar de 1964.

Octavio Ianni é um autor que está sempre muito associado ao Florestan. Mas ele é um autor com uma produção consistente e pouco estudado, tanto do ponto de vista de sua trajetória, quanto de sua obra. A trajetória de Ianni confunde-se com a história das Ciências Sociais na América Latina, ou seja, é um personagem fantástico, rico, cheio de nuances e complexidade, mas ainda não é muito estudado.

SH: Há [quem diga] que ele era um autor menor. Eu não acho que o Ianni fosse um autor menor, nem o pessoal da Unicamp (onde ele também lecionou) acha que ele tenha sido um autor menor. O livro Estado e planejamento econômico no Brasil, publicado por ele em 1971, é um dos trabalhos pioneiros sobre essa problemática do papel do Estado e do planejamento na construção de uma política de inclusão social. E toda a preocupação do Ianni é em relação a essa questão. Ele tem livros sobre o populismo publicados em várias edições e em vários países. São estudos do populismo que seguem uma linha de reflexão um pouco diferente do [Francisco] Weffort, uma linha de reflexão que observa a incorporação rápida do proletariado rural à zona urbana e a questão da classe e da consciência de classe. Em comparação com Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, o mais marxista dos três era o Ianni; também o Luiz Pereira era bastante marxista, ainda que fosse mais afeito ao marxismo estruturalista do Althusser, do Poulantzas e do Balibar. O Ianni era mais da leitura de O Capital, do Manifesto do Partido Comunista e de outras obras de Marx. Eu acho que, na Sociologia brasileira, ele tem um espaço, vocês têm razão, ele merece um trabalho fecundo, robusto.

O senhor e o Ianni tiveram uma relação bem próxima a vida inteira, não é mesmo?

SH: Sim, a vida inteira. Uma semana antes de sua morte, eu estive no hospital. Ele estava entubado. Lembro que ele tirou o tubo e falou: “Sedi, até o final de semana, eu saio daqui e a gente vai tomar um café, está bom?”. Eu respondi: “Está bom, professor”. Aí não lembro bem se chegou o final de semana e ele morreu.

E o Octavio Ianni rompeu com o Fernando Henrique?

SH: Rompeu, rompeu. Mesmo os editores querendo publicar os trabalhos conjuntos dele com o Fernando Henrique, ele não quis publicar absolutamente nada, nem republicar.

O senhor acompanhou a trajetória da Sociologia na academia brasileira durante algumas décadas. Como o senhor observa transformações da Sociologia, principalmente com relação às abordagens teóricas e metodológicas?

SH: Eu acho que, na época do Florestan Fernandes e mesmo do Octavio Ianni, as Ciências Sociais se “desdogmatizaram”, ou seja, os intelectuais dessa época fizeram com que o dogmatismo não fosse o filtro para o conhecimento em termos de reflexão teórica e crítica. Em Florestan e Ianni, há por exemplo um esforço de ler estruturalmente a contribuição de Weber, sem discussões anacrônicas que não pertenciam à época desse autor, mas que pertenciam ao século xx e, agora, ao xxi. Da mesma forma com Marx. Eu acho que esse tipo de anacronismo muitos cientistas cometem. Então, há algo que eu percebo quando leio Florestan: em nenhum momento, ele desqualificou Durkheim; ele não desqualifica Weber em nenhum momento. Toda essa questão do mercado, da racionalidade, da estrutura de poder e da dominação, entre outras, Florestan emprega com uma erudição e o senso crítico de quem realmente conhece Max Weber. Fundamentos empíricos da explicação sociológica é a leitura que ele faz de Weber, é a leitura que ele faz de Marx e a leitura que ele faz de Durkheim. Houve certo momento político do Brasil em que se achava que Durkheim seria o sociólogo da ordem, ou seja, um sociólogo com forte marca conservadora. Ora, Durkheim estava trabalhando com a questão da continuidade da estrutura social, ele não estava trabalhando com a ideia de mudança; então a abordagem durkheimiana era outra, era a de construir um certo tipo de solidariedade orgânica e mecânica e como isso se faz. Comecei a entender melhor Durkheim depois de lecionar no Japão, onde certos valores são quase que valores permanentes. E esses valores permanentes, muitas vezes, organizam e até democratizam a sociedade, porque as regras são para todos. Quando voltei do Japão, em uma sala cheia, eu falei: “Encontrei um país que cabe como uma luva para Durkheim: o Japão”. É impressionante a questão da solidariedade, o ator individual…

A coerção…

SH: Sim, a coerção. A regra existe para ser aplicada e acompanhada. Então, mesmo no metrô, a forma de andar na rua, a forma de andar na escada rolante, a forma de você ficar na plataforma, a forma de você entrar no elevador, a preferência pela pessoa de mais idade e assim por diante. [A sociedade japonesa] É uma sociedade extremamente organizada. Nada está fora do lugar.

O que eu estou querendo dizer é que o Florestan, o Ianni e mesmo o Fernando Henrique Cardoso davam os conceitos. O Ianni dava métodos e técnicas de pesquisa, então ele discutia várias obras de pesquisas feitas pelos autores daquela época e discutia a estrutura metodológica e a técnica empregada; e você tinha que aprender a metodologia, a teoria e a técnica. Portanto, não havia essa presença muito forte de um certo tipo de dogmatismo, porque o Florestan era contra isso. Mesmo o Ianni tendo profunda simpatia pela esquerda e talvez até pelo Partido Comunista, assim como o Fernando Henrique, essa marca não aparecia com força na sala de aula, pode ser que aparecesse de uma outra forma. Eu lembro que aprendi Marx através da leitura da obra original de Marx; Durkheim, através da leitura de Durkheim; Weber, através da leitura de Weber.

Então, veja: eu acho que um clássico tem que ser a matriz. Porque se você pega o Pierre Bourdieu - e agora é só Pierre Bourdieu -, a matriz teórica do Pierre Bourdieu é o sincretismo entre Durkheim, Weber e Marx. Se você ler muito bem Weber, Durkheim e Marx, você vê e lê de uma forma crítica o Pierre Bourdieu. Eu digo isso tranquilamente, porque talvez eu seja um dos primeiros professores do Departamento de Sociologia da usp a citar o Pierre Bourdieu, quando comento o tema da condição de classe, da situação de classe, no livro Castas, estamentos e classes sociais. Penso que essa ênfase nos clássicos é muito importante. Atualmente, o pessoal tem falado muito no estudo institucional; eu acho que o estudo institucional tem seu valor e sua importância, mas você não pode imprimir uma única linha a um departamento. Eu acho que tem que ter cabeças tão diferentes como as do Ruy Braga, do Ricardo Musse, do Sérgio Miceli e do Luiz Carlos Jackson, porque a universidade é exatamente o lugar dessa diversidade teórica e tem que ser assim.

Teve uma época em que todo mundo só lia Foucault. Teve uma época em que todo mundo só lia Marx. Quer dizer, existe um certo tipo de modismo, mas eu acho que o curso tem que ser independente do modismo de uma dada época; eu acho Pierre Bourdieu um autor importante, mas não é só Pierre Bourdieu, não é só Foucault.

Como o senhor descobriu a América Latina em termos políticos e intelectuais? A Revolução Cubana, a literatura latino-americana, as Ciências Sociais, enfim, como foi essa aproximação?

SH: A Revolução Cubana foi 1959, eu entrei na usp em 1961. Cuba estava lá, Fidel Castro estava lá, Raúl Castro estava lá. A Aliança para o Progresso, aliança para combater a esquerda, também estava lá. A Guerra Fria se fazia presente. E o mais interessante é que o Ianni, Florestan e Fernando Henrique Cardoso indicavam a leitura de autores argentinos, chilenos e outros autores da América Latina. Muita gente diz que o brasileiro descobriu a América Latina após o golpe militar, inclusive com alguns intelectuais que foram para o Chile, ali, descobriram que existia a Cepal, que existia o pensamento da Cepal, o Prebisch e vários outros.

Vocês compravam muitos livros em espanhol?

SH: Sim, sabe por quê? Quem tinha uma importância grande era [o sociólogo] José Medina Echavarría e a editora Fondo de Cultura Económica, cujos livros circulavam em toda a América Latina. Penso que o Fondo de Cultura Económica foi uma espécie de universidade de estudos latino-americanos; através dessa editora, várias reflexões sobre a América Latina circularam em todo o continente.

Um dos empreendimentos foi traduzir Economia e sociedade, de Weber.

SH: Claro, antes de muitos países da Europa e até antes dos Estados Unidos, e isso foi obra do José Medina Echavarría7 7 . Publicada em 1944, a tradução de Economia e sociedade feita por Echavarría e outros colegas foi a primeira tradução completa em língua estrangeira desse livro. , um sociólogo espanhol que deixou a Espanha e se exilou no México, onde atuou como diretor do Fondo de Cultura Económica. Essa questão de perseguição intelectual cria nichos e centros de reflexão, e o pessoal começa a pensar além das fronteiras nacionais.

Outra curiosidade: o senhor passou um tempo no Japão. Como foi?

SH: Eu era professor da Universidade de Tenri. Na verdade, quem foi convidada para lecionar no Japão foi a [professora da Universidade de Paris viii] Helena Hirata. Mas na época, ela estava ocupada, tinha outros compromissos e me indicou. Acabei indo para lá e, para mim, foi uma aprendizagem, porque eu não sabia bem o tipo de comportamento dos alunos japoneses.

A função da educação no Japão é elevar o pessoal que está abaixo da média, trazendo-o para a média e, com o tempo, aumentando a média. O foco é diferente. Percebi que eu tinha que trabalhar para que esse aluno que estava lá embaixo atingisse a média, eu tinha que produzir essa média. Era diferente de quando eu mesmo estava no curso primário, quando a professora ou professor só davam atenção para alunos bons.

No curso ginasial, no Brasil, era a mesma coisa: o foco de atenção era o aluno que brilhava, o aluno que ia bem, então a educação era feita por uma elite que reproduzia a elite. Não havia um esforço para fazer com que aquele que estava lá embaixo, em termos de conhecimento, chegasse a uma média. Eu acho que trabalhar essa questão da média é muito importante.

O senhor conheceu o Museu Memorial da Paz, em Hiroshima?

SH: Eu fui, é um negócio triste. Aliás, tem a história de que, quando os norte-americanos resolveram soltar a bomba atômica, alguém falou de Kyoto. Então, um general que conhecia a cidade falou: “Não, Kyoto não, aquilo é patrimônio da humanidade”. Estive num museu também em Okinawa, das mulheres okinawanas que se suicidaram para não serem violadas por soldados americanos. E são milhares. E se suicidaram cantando o hino nacional japonês. Muita gente morria cantando o hino.

Tem o livro Hiroshima, que ficou muito famoso, do John Hersey, um jornalista americano que descreveu a tragédia de Hiroshima. Um livro muito bom, que foi muito vendido, porque esse foi o primeiro americano a denunciar a insanidade dos Estados Unidos em relação a Hiroshima, que não era uma cidade industrial, não era um quartel general, nem nada disso. Hiroshima tinha muitas crianças e muitos homens aposentados, e eles soltaram a bomba lá, foi um assassinato de civis.

Outro ponto é sobre sua carreira administrativa na fflch. Lendo seu Memorial ( Hirano, 1999 Hirano, Sedi. Memorial. (1999), Concurso para Professor Titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo. ), observamos que o senhor é um dos fundadores do Prolam, criado em 1989. Gostaríamos que o senhor contasse sua participação na construção desse programa acadêmico, pois ele também abriu portas para redes de contatos com cientistas sociais da América Latina.

SH: Sim, conheci muitos intelectuais latino-americanos, como Leopoldo Zea, Norberto Lechner, Enzo Faletto etc. Mas voltando à origem do Prolam, ele nasce quando o José Goldemberg era reitor da Universidade de São Paulo (1986-1990) e o André Franco Montoro, que era o governador à época, disse-lhe numa visita: “Olha, uma Universidade como a usp não ter nada institucional sobre a América Latina, acho que está na hora do pessoal acordar e pensar em um projeto sobre a América Latina”. Aí o Goldemberg criou o primeiro grupo de professores para elaborar o projeto. Eu não estava no primeiro grupo, que durou um ano. Estavam a [cientista política] Maria Hermínia [Tavares] e outros. Entrei apenas no segundo grupo, que de fato implantou o Prolam. Eu estava ali representando o Departamento de Sociologia. Mas também tinha a Irlemar Chiampi, do Departamento de Letras, tinha o pessoal da História, tinha pessoas ligadas à Escola de Comunicações e Artes (eca), ao Departamento de Economia, à Faculdade de Arquitetura, à Faculdade de Educação e à Faculdade de Direito. Por que essa diversidade? Porque eles pensaram também num curso interdisciplinar, para discutir a educação na América Latina, discutir a política da América Latina, então tinha que ter o pessoal da Política, da Sociologia, da Antropologia, da Comunicação e assim por diante. A primeira presidente foi a Irlemar Chiampi, da Letras, porque ela já estava numa outra comissão, aí ela ficou um ou dois anos. Depois, entrei no lugar dela e fiquei cinco anos. Então, pode-se dizer que a Faculdade de Filosofia é cofundadora, certo?

Atualmente o Prolam tem centenas de teses defendidas, entre mestrado e doutorado, e criou uma linha interdisciplinar de estudos sobre a América Latina. Todo aluno ingressante tem que comparar pelo menos dois países latino-americanos, seja no campo da Literatura, seja no campo das Artes, seja no campo do Cinema, da Sociologia, da Antropologia, da Ciência Política, da Educação, do Direito etc. Então eu acho que é um curso diferenciado, porque abre uma série de interfaces.

O Prolam foi também um centro de formação de sujeitos acadêmicos para as universidades públicas brasileiras e latino-americanas. Na verdade, foi uma etapa, porque o Brasil sempre pensa que está separado da América Latina, e o Brasil nunca fez interface. Florestan fez, Fernando Henrique fez, Octavio Ianni fez, mas essa interface dos acadêmicos brasileiros com a América Latina não era muito forte. Dizem até que o golpe militar de 1964 praticamente criou uma comunidade de intelectuais sobre a América Latina, porque o Fernando Henrique Cardoso, o Plínio de Arruda Sampaio, o Paulo Freire e tantos outros foram para o Chile.

Na sua trajetória intelectual e acadêmica, até meados da década 1980, o senhor tinha mais um perfil de atuação na docência e na pesquisa. Em seguida, na década de 1990, o senhor direciona sua trajetória para problemas internos da universidade. Assume funções administrativas, como diretor da fflch e na assessoria a reitores da usp - o que requer jogo de cintura política na construção de alianças etc. O senhor poderia contar essa história de como essa frente de atuação se incorporou à sua carreira acadêmica?

SH: Penso que existem dois momentos em minha vida. O primeiro foi quando o Florestan me escolheu. Muitas pessoas ligadas ao Florestan ficaram estupefatas, porque era muito presente a imagem de que o descendente de japonês deve ficar na área científica e tecnológica, porque o japonês teria uma mentalidade muito pragmática. Quando o Florestan me escolheu, muitas pessoas sonhavam que se tornariam assistentes dele. Isso causou uma celeuma muito grande, mas estou aqui porque existiu o Florestan Fernandes, porque o sonho de ser acadêmico, professor, é sonho de uma aristocracia de classe média que ascendeu via educação ou cuja família já havia ascendido e ocupava uma posição definida.

Eu conto que o Florestan me escolheu porque ele achava que eu tinha aquilo que Antonio Candido chamava de “nádegas de paquiderme”, ou seja, eu sentava e trabalhava. O Florestan, aliás, fazia isso: estudava dezessete, dezoito horas para competir com os filhinhos de papai que estavam aqui e que sabiam francês, inglês e outras línguas e que escreviam maravilhosamente bem. Então, na verdade, eu tive que construir uma carreira teórica devido ao meio onde estava, porque tinha gente que queria que eu fizesse mestrado sobre pesquisa de mercado, opinião e propaganda. Eu pensei: “Se eu fizer isso, vou assumir o estereótipo e quero vencer aqui dentro com o perfil de alguém que pleiteou escrever uma obra teórica e desenvolveu essa obra teórica”. Então, eu sofri por conta dessa imagem que se reproduzia sempre: “O que esse descendente de japonês está fazendo aqui?”, perguntavam. Aqui no Departamento de Sociologia, o único descendente de japoneses, desde 1934, sou eu.

João Batista Borges Pereira, que foi diretor aqui, já me disse que o preconceito existe e é muito forte, muitas vezes vindo do próprio Departamento de Sociologia. Quando eu quis ir para o Japão fazer o curso de Desenvolvimento Compreensivo, ministrado pelas Nações Unidas e pelo Ministério dos Negócios exteriores do Japão, em janeiro de 1970, com o apoio do governo japonês, algumas pessoas foram contra, dizendo que nós estávamos vivendo uma ditadura militar e que eu devia ficar aqui e fazer parte do grupo que estava tentando resistir academicamente contra a direita militar. Como eu recebi bolsa, passagem e essas coisas todas, eu achei que fazer o curso me qualificava, já que eu não era visto como uma pessoa muito qualificada. Fiz esse curso e ele foi muito importante, tanto para o contato com acadêmicos japoneses, quanto porque compreendi muito bem as relações entre a questão do desenvolvimento, da educação e da linhagem teórica de um capitalismo autônomo que se vê nos escritos da própria Ruth Benedict, do Amartya Sen e outros intelectuais. Aliás, essa ideia de investir em ciência e tecnologia já estava na cabeça do Florestan. Se você ler os livros que ele escreveu do final da década de 1950 para a de 1960, verá que já está ali a questão da educação, da ciência, das Ciências Sociais e da Sociologia como instrumentos de transformação.

Quem me colocou na coordenação da pós pela primeira vez foi o Reginaldo Prandi. Logo depois que defendi o meu doutorado, já era suplente de coordenador da pós do Reginaldo Prandi, isso em 1988 ou 1989, não tenho certeza. Aí quando o Prandi terminou o mandato, ele indicou meu nome e, mal tinha feito o doutorado, eu já era coordenador do programa de pós. Ao contrário do que muita gente esperava, eu firmei uma imagem de um bom coordenador. Naquela época, a faculdade que formava os mestres e doutores era a fflch, essa era a Meca científica e intelectual e todo mundo que queria fazer carreira científica tinha que fazer aqui. Com isso, minha imagem começou a circular.

Foi nesse momento que eu me tornei secretário executivo da Sociedade Brasileira de Sociologia (sbs) e consegui colocar a sbs dentro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (sbpc). Antes, eu também tinha sido presidente da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, que andava endividada, e fiz um congresso da Associação com verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Intelectual parece que tem vergonha de pedir dinheiro [risos]. Parece que dinheiro é uma coisa que mancha a honra científica, mas tem que pedir. Se tem área que não tem dinheiro, é a área de Humanas, não é isso?

A imagem de que eu era um bom gestor começou a ganhar corpo e, quando voltei do Japão em 1997, o Chico [de Oliveira] me indicou, primeiro para vice-coordenador da Pós-Graduação do Departamento de Sociologia - eu fui eleito por aclamação -, e depois, para chefe de Departamento - e fui eleito com todos os votos, menos o meu [risos]. Após o término do mandato, fui reeleito por aclamação. Até então, nunca um chefe de departamento tinha sido reeleito. Quando finalizei o segundo mandato, o Chico falou: “Sedi, agora você vai ser o nosso diretor”. O Chico de Oliveira teve uma importância muito grande; ele não é um produto do Departamento, veio do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); quando ele entrou no Departamento, já era um intelectual de renome nacional e internacional, já tinha passado pela Sudene, foi assessor do Celso Furtado.

Então, aos poucos, fui firmando a imagem de que era um bom administrador. Quando fui eleito diretor, alguns achavam que o Leonel Itaussu me trucidaria nos debates, mas não foi nada disso, porque também fiquei lendo tudo, tudo sobre a universidade, que tipo de universidade a gente teria que ter como projeto, isso significava pensar uma universidade pública que tem a obrigação de prestar serviços à comunidade - porque é a comunidade que financia - e uma universidade que formasse pesquisadores autônomos com suas pesquisas, alimentando a reflexão na sala de aula e assim por diante. Então eu tinha um projeto. No final, ganhei entre os professores e os funcionários. E os alunos militantes - que são os que votam - estavam do lado do Leonel, mas eu consegui equilibrar.

E esse processo contou com uma participação ativa do [Oswaldo] Coggiola também?

SH: Sim, porque ele é realmente muito ativo. Ele falava para o pessoal que eu ia levar de lavada e, para surpresa dele, eu ganhei. Ganhei com apoio sabe de quem? Antonio Candido, Marilena Chaui, Sérgio Cardoso, Pablo Mariconda, de noventa por cento dos professores daqui da Ciência Política, de professores da Antropologia e assim por diante. Por quê? Porque tem professores militantes, mas tem professores de esquerda que não são militantes; e tem professores autônomos, independentes, que não estão perfilados numa doutrina político-partidária.

Qual foi o período de sua administração?

SH: Entre 2002 e 2005. A primeira providência que tomei foi mudar alguns assistentes. Mudei o Assistente Acadêmico e o Assistente Administrativo. Uma coisa que eu fazia e impressionava era que eu sempre aparecia de manhã cedo na Faculdade. Eu acordava cedo, fazia o café da manhã, deixava meus filhos na escola e vinha para a fflch. Nenhum diretor chegava à Faculdade às sete, sete e meia, oito horas. E isso foi uma novidade. Eu disputei a eleição para ser diretor, então não ia para a Faculdade só para despachar com o assistente, o assistente é que tinha de estar lá para despachar com o diretor.

Tem que ter muita habilidade com a questão financeira…

SH: Tem a questão financeira e também a de não entrar muito em conflito, porque se você entra em conflito, forma um grupo radical; então, nessa parte eu fui muito bem. E outra coisa: eu orientei cada Departamento a ter um projeto acadêmico. Além disso, por um conjunto de circunstâncias, fui eleito para a comissão de atividades acadêmicas, que dá os cargos também. Fui vice-presidente dessa comissão. Então, ao mesmo tempo em que estava na direção, ocupava um cargo que permite ter poder. Você somente tem poder enquanto está no cargo e, com isso, consegue negociar diversas coisas - recursos para melhorar a Faculdade, a Universidade. Minha imagem de ser um bom diretor deu-me certa fama e prestígio, o que me jogou para a Pró-reitoria de Cultura e Extensão. Eu, na verdade, gostaria de ter assumido a Reitoria de Pós-graduação ou de Pesquisa, mas eles nunca dão essa Pró-reitoria para a área de Humanas.

Na sua gestão teve greve?

SH: Teve.

E como é que foi essa relação com os alunos?

SH: Veja bem. Os alunos querem ocupar a diretoria da Faculdade, querem fechar a Faculdade. Acho que foi em 2002 que teve aquela famosa greve de professores reivindicando mais professores, e eu negociei8 8 . A greve começa no final de abril de 2002, com decisão tomada por estudantes do curso de Letras. O movimento toma corpo no começo de maio, com a adesão de outros segmentos da Faculdade, ainda sob a gestão do diretor Francis Aubert. O professor Sedi Hirano é eleito no dia 20 de maio e tem a posse confirmada pelo reitor no dia 24 de maio. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2606200212.htm, consultado em 18/06/2019. . Então alguns estudantes me falaram o seguinte: “Professor, o senhor não aparece publicamente, aparecem outras pessoas”. Eu disse: “Nem sempre quem aparece publicamente é aquele que faz muito, muitas vezes faz pouco ou não faz nada”. Há certas coisas e certas instituições, numa certa estrutura de poder, que têm que ser trabalhadas nos bastidores, é nos bastidores que se decide. Eu trabalhei na comissão de claros da Reitoria e fiz uma série de reuniões. Aí descobri que o pró-reitor tinha uma imagem negativa da Faculdade de Filosofia. Eu falei: “Não, essa imagem é falsa”. É uma Faculdade de Filosofia conceituada. Você vai para a Universidade de Harvard, e a Faculdade de Filosofia tem um conceito de primeira linha por lá. Você vai para a Universidade de Princeton, e a faculdade de Filosofia tem essa boa imagem. Você vai para a Universidade de Columbia, e tem essa imagem. A imagem nas universidades francesas de ponta, da Faculdade de Filosofia, é uma imagem muito forte. Mas há setores da sociedade que formam uma imagem estereotipada da Faculdade, dizem “Ah, lá só dá bagunça, só dá bagunceiro, só dá grevista, maconheiro, amor livre”, essas coisas todas [risos].

Então, eu negociei. Você sabe quantos cargos negociei na primeira rodada? Noventa e dois cargos de professores. O reitor falou assim: “Sedi, mas a faculdade tem infraestrutura para contratar todo esse número de professores?”. Disse a ele que a fflch tem onze departamentos, seriam 92 professores divididos em onze departamentos; isso dá cerca de oito professores por departamento com estrutura e infraestrutura próprias. Adicionalmente, negociei vários cargos que, ao todo, somaram cerca de cento e oitenta cargos de professores, em duas ou três etapas. Então, todas as deficiências de professores da História, da Geografia, das Letras, aqui das Ciências Sociais, de uma forma ou de outra, foram contempladas.

A burocracia tem uma lógica bastante particular, e nesses relatos que o senhor nos apresenta aparecem conflitos que, inclusive, são objetos de estudos da Sociologia, entre burocracia e política. Olhando retrospectivamente, dá para levar posições teóricas para dentro da burocracia, ou existe um espaço determinado que limita a sua posição teórica e política na atuação dos cargos burocráticos?

SH: A burocracia sempre teve sensibilidade para o poder e para quem ocupa cargos de poder. Eles sabem muito bem quem tem poder e quem não tem poder nos espaços, não é isso? Na burocracia, não é possível ficar contemporizando, empurrando o problema e não sei o quê. A burocracia é ineficiente quando o diretor é ineficiente também [risos]. A lentidão da burocracia, a burocracia como problema é o chefe, é o executor, é o Reitor, é o coordenador como problema. Tem gente que bota quinhentos processos em cima da mesa para dizer que está muito ocupado. A burocracia tem suas práticas, você tem que quebrar essas práticas, a questão está exatamente nisso.

Nesse contexto, começa a surgir um debate mais forte sobre as políticas de ações afirmativas, que têm início no último governo do Fernando Henrique. Paulatinamente, as universidades públicas implementam essas políticas. Por que a usp demorou tanto para adotar políticas de ações afirmativas?

SH: É que a usp, como algumas outras universidades, assumiu o princípio de que o acesso deveria ser por mérito e implementou as diretrizes correspondentes. Claro, quando se diz “acesso por mérito”, é o desempenho que está sendo pensado. Mas isso não vai às raízes do problema de por que o desempenho é diferenciado. Porque para ter um bom desempenho, é preciso ter qualificação para o bom desempenho, e essa qualificação não necessariamente está disponível para populações afrodescendentes, nem para a população indígena; porque a escola não chega até lá e, se chega, é uma escola de condições muito precárias, na periferia, com uma infraestrutura péssima e com professores que também necessitam de qualificação. Por um conjunto de circunstâncias, nem sempre esse grupo tem um desempenho esperado e, portanto, não preenche o requisito do mérito.

Eu sempre achei que o fundamental não era esse mérito calculado conforme um certo patamar mínimo desejável, pois esse desempenho meritório é uma construção. Essa ideia de que o mérito é uma construção ficou muito forte quando estive no Japão, porque a escola japonesa não trabalha o aluno brilhante. Aqui, geralmente, o professor só dá atenção para alunos brilhantes e para alguns alunos que levam presentinhos, não é? Quando estive no Japão, descobri que lá não se trabalha prioritariamente com os melhores alunos; os melhores alunos são melhores alunos porque o pai tem formação, tem instrução, a família tem aquilo que o Bourdieu chama de capital cultural. Os outros alunos não têm capital nenhum, esses nós precisamos trabalhar para formar o capital cultural, o capital social, não é isso? Então, a função da escola japonesa é pegar aquele que está lá embaixo e elevar à média, criando uma média excelente. Então, as ações afirmativas são relevantes porque de fato há certa defasagem, uma defasagem de formação, de informação. Mas isso não quer dizer que haja uma limitação de inteligência. Com pouco tempo de trabalho, uma pessoa que está um pouco abaixo da média, se for bem orientada, consegue atingir a média e até superá-la. E há estudos que mostram que os alunos que entram por cotas têm um desempenho um pouco melhor. Sabe por quê? Porque eles enfrentam o estigma da humilhação: “Você entrou por cota”. Então, aquele que entra por cotas precisa mostrar que tinha condições de entrar, não por causa das cotas, mas por sua capacidade de desempenho, que estaria de certa maneira amortecida.

A inteligência não depende de cor, a inteligência não depende de alocações regionais, também não vem da pobreza ou da riqueza. Eu mesmo morei em bairro caipira, morei na periferia de São Paulo, entrei meio burrinho [risos], mas, devido à atenção de colegas, alunos e alunas, e professores, aprendi inúmeras coisas. Ianni dava muita atenção pra mim, o próprio Fernando Henrique, o próprio Florestan. Isso estimula um estudante, não estimula? Tem professor que chama você de burro, de ignorante. Tem professor que desqualifica o aluno. Não pode! Eu acho que a função do professor é estimular. O Florestan, quando entrou, era filho de cortiço, mas teve algum professor que se interessou por ele, porque ele vivia na biblioteca estudando. Toda vez que eu vejo alguém que vive na biblioteca estudando, eu digo: “Você tem futuro”. E ainda digo, novamente: “Você tem futuro”. Para enfiar na cabeça dele que ele tem futuro. Quando eu defendi o Programa de Cota no Conselho Universitário da Unicamp, como representante da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), citei o Florestan Fernandes, e a proposta foi aprovada pelo Conselho Universitário da Unicamp. Defendi não só o ingresso através das cotas, mas também uma política ou um programa de manutenção [permanência], porque não basta entrar, a pessoa também tem que ter condições de se manter; e isso foi aprovado. O professor Sidney Chalhoub, da Unicamp e da Universidade de Harvard, também apoiava as demandas dos alunos.

Mas o senhor acha que essa demora da usp tem a ver com um certo perfil conservador da universidade?

SH: Bom, perfil conservador a usp tem. Ela tem esse perfil por um conjunto de circunstâncias, conscientes ou inconscientes. Eu me lembro de que, quando eu era membro do Conselho Universitário, sempre fui favorável à política de incentivo à inclusão de populações excluídas. Antes já existia esse programa, voltado a alunos de escolas públicas, e a usp achava que resolveria a questão ao implementar a política para alunos de escolas públicas, pois entre esses alunos não havia apenas brancos, mas também negros e indígenas. Teoricamente sim, mas na prática nem sempre é assim.

Em seu memorial, o senhor menciona uma conferência que proferiu em 1965, cujo título é “O papel dos sociólogos nos países subdesenvolvidos”. Em sua percepção, qual o papel do sociólogo nos países subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, naquela época? E atualmente?

SH: O próprio termo “subdesenvolvido” e a ideia de “papel” são típicos da época. A conferência tinha a ver com a imagem presente na sociedade e mesmo na própria universidade, de que a Sociologia não servia para nada, ou seja, não cumpria um papel relevante. A palestra retratava cursos que o Florestan, o Fernando Henrique e o Octavio Ianni davam. Florestan achava que o sociólogo, entre as décadas de 1950 e 1960, que as Ciências Sociais e a Sociologia tinham um papel na medida em que constituíam uma espécie de consciência social para a transformação, ou davam essa consciência de autonomia e liberdade às pessoas. Ele também achava que o sociólogo tinha que ter uma função muito importante na questão do desenvolvimento, porque toda essa questão se relacionava com um certo tipo de capitalismo que é um capitalismo dependente e subdesenvolvido. Então a pergunta era como superar o “sub” para ter desenvolvimento? Através da consciência e do conhecimento. Para transformar essa estrutura subdesenvolvida em uma estrutura desenvolvida, a ciência deveria exercer um papel. Então havia o primado da ciência, o primado do conhecimento, de que a superação do “sub”, produzindo o desenvolvimento, seria possível através do conhecimento. Isso está muito presente em Mannheim, e o Florestan teve uma influência muito forte do Mannheim. Celso Furtado também teve uma forte influência mannheimiana, assim como a própria Cepal. Gino Germani, que escreve sobre a Sociologia da modernização, também tinha uma forte influência mannheimiana. Essa ideia de modernização tem que ser entendida no contexto da Guerra Fria. Havia a ideia de que o subdesenvolvimento trazia ou produziria ideologias libertárias de esquerda. Assim, esse contexto explicaria também o surgimento de grupos conservadores, como a Aliança para o Progresso, e de livros como o de W. W. Rostow, Etapas do desenvolvimento econômico (um Manifesto não comunista), que faziam propostas sobre como alcançar o salto desenvolvimentista.

Então, vigorava a ideia de que o conhecimento entra para as forças produtivas. Nos escritos do Florestan Fernandes, a ciência tem um peso muito forte. Mesmo no movimento de educação popular, entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960, a educação, entendida como uma prática transformadora que produz conhecimento e consciência e forma cidadãos, estava muito presente. Tem gente que lê o Florestan através dos escritos políticos das décadas de 1980 e 1990. Eu considero essas leituras anacrônicas, pois não se pode dizer que a militância política do Florestan já estivesse presente nos anos 1950 e 1960, pois era a militância científica que estava presente ali. Basta dizer que, nos escritos políticos do Florestan, ele inclui uma nota de rodapé em que explica que constituem um panfleto. O Florestan sabe muito bem o significado da palavra panfleto. É um panfleto no sentido de uma arma, de um instrumento político, assim como o Manifesto foi, para Marx, um panfleto político - e que panfleto! -, que fez história.

Para terminar, gostaria de dizer que fico feliz pelo interesse de vocês pela minha história, porque minha filha sempre me diz: “Pai, você tem que escrever um livro de memórias”. E eu respondo: “Mas já dei tantas entrevistas por aí…”.

Referências Bibliográficas

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  • Fernandes, Florestan. (1975), A revolução burguesa no Brasil. São Paulo, Global.
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  • “Greve contra a crise na fflch começou em abril” (26 jun. 2002), Folha de S.Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2606200212.htm, consultado em 18/06/2019.
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  • Hirano, Sedi. ([1973] 2006), Castas, estamentos e classes sociais. Introdução ao pensamento de Marx e Weber. Campinas, Ed. Unicamp.
  • Hirano, Sedi. Memorial. (1999), Concurso para Professor Titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Hirano, Sedi. (2012), “Florestan Fernandes: a utopia do desenvolvimento autônomo a serviço da transformação social”. In: Martins, Paulo Emílio Matos & Munteal, Oswaldo (orgs.). O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Editora puc Rio/fgv, pp. 377-388.
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  • Hirano, Sedi. (2013), “Marxismo heroico e a questão da consciência de classe nas obras de juventude de Jorge Amado”. In: Hernández, Ascensión Rivas (org.). Jorge Amado: relectura en su centenario. Salamanca, Gráfica Lope, pp. 205-213.
  • Löwy, Michael. (2014), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo.
  • Mannheim, Karl. ([1951] 1972), Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo, Editora Mestre Jou.
  • Silveira, Maria de Fátima Souza da. (2018), Da invisibilidade ao protagonismo: Florestan Fernandes no pensamento social latino-americano. São Paulo, dissertação de mestrado em Integração da América Latina, Integração da América Latina, Universidade de São Paulo.
  • 1
    . Agradecemos a Tatina Lotierzo a ótima revisão deste trabalho, tornando-o mais legível e fluido. Como é de praxe, as eventuais inconsistências são de nossa responsabilidade.
  • 2
    . O pcb foi fundado em 1922, com o nome Partido Comunista do Brasil, Seção Brasileira da Internacional Comunista. Em 1961, o partido manteve a sigla, mas mudou seu o nome para Partido Comunista Brasileiro. Vale lembrar que, no ano seguinte, uma das dissidências desse partido funda o pc do b, utilizando o nome original de Partido Comunista do Brasil.
  • 3
    . Trata-se do artigo “Fatores humanos da industrialização no Brasil”, de Octavio Ianni, publicado no trigésimo número da Revista Brasiliense, em 1960.
  • 4
    . Nessa época, o Curso de Ciências Sociais era dividido em cadeiras: Cadeira de Sociologia, i, Cadeira de Sociologia ii, Cadeira de Antropologia, Cadeira de Ciência Política, Cadeira de Filosofia, Cadeira de Estatística etc.
  • 5
    . Em 1965, Florestan Fernandes era catedrático da Cadeira de Sociologia i e o Professor Sedi foi contratado, pelo prazo de 730 dias, como instrutor extranumerário, como era chamado (figura jurídica) um recém-formado que ingressava no corpo docente da Faculdade. Já um estudante podia ocupar a função de “assistente extranumerário”.
  • 6
    .A revolução burguesa no Brasil foi redigido em dois momentos distintos: as duas partes iniciais (“As origens da revolução burguesa” e “A formação da ordem social competitiva”) foram finalizadas em 1966, enquanto a terceira parte (“Revolução burguesa e capitalismo dependente”) ficou pronta em 1974 - ano de lançamento do livro.
  • 7
    . Publicada em 1944, a tradução de Economia e sociedade feita por Echavarría e outros colegas foi a primeira tradução completa em língua estrangeira desse livro.
  • 8
    . A greve começa no final de abril de 2002, com decisão tomada por estudantes do curso de Letras. O movimento toma corpo no começo de maio, com a adesão de outros segmentos da Faculdade, ainda sob a gestão do diretor Francis Aubert. O professor Sedi Hirano é eleito no dia 20 de maio e tem a posse confirmada pelo reitor no dia 24 de maio. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2606200212.htm, consultado em 18/06/2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2020
  • Aceito
    21 Set 2020
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