Acessibilidade / Reportar erro

Documento e patrimônio entre usos e reflexões

Document and heritage between uses and reflections

Resumo

O artigo problematiza os processos de atribuição de valor de patrimônio cultural aos documentos históricos. Para isso, adota duas perspectivas complementares: a noção alargada de fonte de pesquisa e seu exercício constante de provocar reflexões, assim como destaca práticas mobilizadas em prol do reconhecimento dos acervos documentais como bens suscetíveis à patrimonialização. Com base em instrumentos acionados pelo campo do patrimônio cultural - tombamento, declaração de interesse público e social e registro do Memória do Mundo - destaca-se que os documentos podem ser apropriados por olhares interdisciplinares. Transformar a documentação histórica em patrimônio é, portanto, um processo de leitura crítica do próprio acervo documental.

Palavras-chave:
Documento; Patrimônio; Interdisciplinaridade.

Abstract

The article problematizes the processes of attribution of value of cultural heritage to historical documents. For this, it adopts two complementary perspectives: the broad notion of research source and its constant exercise of provoking reflections, as well as highlighting practices mobilized in favor of the recognition of documentary collections as assets susceptible to patrimonialization. Based on instruments activated by the field of cultural heritage - heritage, declaration of public and social interest and registration of the Memory of the World - it is emphasized that documents can be approached from interdisciplinary perspectives. Transforming historical documentation into heritage is, therefore, a process of critical reading of the documentary collection itself.

Keywords:
Document; Patrimony; Interdisciplinarity.

Dentre as várias formas de abordar a temática patrimonial, a noção de documento mostra-se como possibilidade para pensarmos formas de representação daquilo que se denomina patrimônio cultural. Afinal, é possível relacionar os diferentes tipos de documentos com os bens patrimoniais? Que tipo de processo pode ser articulado por agentes, grupos sociais e instituições em prol de valorizar um determinado conjunto de documentos? As possíveis respostas para tais indagações podem ser concebidas partindo-se de dois tipos de olhares: o primeiro centra-se na própria ideia de documento como fonte de pesquisa, pautada pela necessidade de alargar as concepções restritas de representatividade documental, enquanto o segundo foco se dirige para as práticas voltadas para o reconhecimento formal dos acervos documentais como entes e coisas passíveis de patrimonialização. Ambos os olhares convergem para a importância de se destacar o documento como dimensão potente e inventiva de qualificar o que nomeamos de patrimônio.

Muitos historiadores já se dedicaram a problematizar o status simbólico do documento como simples fonte de verdade dos fatos sociais. Tal perspectiva veio contrapor-se à recorrente tradição historiográfica do século xix de buscar nas fontes uma espécie de revelação fidedigna do passado. A virada epistemológica, provocada por diferentes concepções nutridas na França, Inglaterra e em outros países, rompeu com a lógica positivista: ao invés de serem formas de revelar aquilo que supostamente aconteceu, os documentos passaram a ser concebidos como meios de representar uma determinada perspectiva do que ocorrera. Concepção esta carregada de parcialidade, escolhas deliberadas, lutas por hegemonia, violência simbólica, silenciamentos e demais aspectos que compõem a vida coletiva1 1 As teses de Walter Benjamin sobre história podem ser instigantes para problematizar a representatividade documental nas sociedades humanas. Em passagens trabalhadas por comentaristas da obra benjaminiana, destacam-se trechos extraídos como: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro”. Löwy, 2005, p. 70. .

Jacques Le Goff, historiador francês com destacada produção durante o século xx, escreveu o célebre “Documento/Monumento” (Le Goff, 2013Le Goff, Jacques. (2013), “Documento/Monumento”. In: Le Goff, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora da Unicamp.), muito revisitado nas discussões acerca do estatuto epistemológico do documento no campo das humanidades. A proposta principal do texto de Le Goff consiste em desnaturalizar a roupagem de aparente neutralidade da documentação. Nessa medida, importa ao pesquisador adotar uma postura que não seja ingênua, nutrida por um senso crítico de perceber que a dimensão documental está permeada de relações de poder e disputas, as quais se conectam aos conflitos e acordos gestados em cada realidade social. A aproximação do documento com a categoria de monumento mostra-se marcante na reflexão proposta pelo historiador francês, evidenciando que o fragmento documental é uma representação intencional e/ou involuntária para acessar determinado contexto histórico (Le Goff, 2013Le Goff, Jacques. (2013), “Documento/Monumento”. In: Le Goff, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora da Unicamp., pp. 496-467). Nesses termos, interessa valorizar a dimensão potencialmente (re)criadora do documento: além de permitir análises acuradas sobre as relações sociais do passado, perpassando inclusive pelos não-ditos que a materialidade carrega, a ideia de que o item documental acolhe infindáveis leituras futuras o qualifica como item passível de múltiplas abordagens.

Afeito às reflexões sobre as modalidades de pesquisa, o historiador inglês Peter Burke afirma que o documento é um artefato a partir do qual se pode traçar uma série de olhares para o contexto sociocultural a ser investigado nas diferentes temporalidades. Nesses termos, lançar perguntas assume protagonismo no âmbito do saber fazer dos pesquisadores; para Burke, “... quando os historiadores começaram a fazer novos tipos de perguntas para o passado, para escolher novos objetos de pesquisa, tiveram de buscar novos tipos de fontes, para suplementar os documentos oficiais” (Burke, 1992Burke, Peter. (1992), “Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro”. In: Burke, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista., p. 25). Por exemplo, além dos tratados entre países, das correspondências de Estados, das atas de reuniões de ocupantes de cargos públicos, dos discursos de políticos em cerimônias, há uma miríade de possibilidades de construir uma versão da história da diplomacia cultural que não fique circunscrita aos registros chancelados por autoridades. O primeiro passo consiste em lançar tipos de perguntas que fujam de um interrogatório previsível - seria o conselho de Peter Burke de ler o documento nas entrelinhas. Após o exercício crítico de dissecar as fontes de pesquisa de forma pormenorizada, um outro caminho interessante reside na constante busca de ampliar o repertório daquilo que pode ser considerado documento.

O exercício de perguntar, problematizar e questionar os mais diversos tipos de textos, imagens e registros audiovisuais produzidos mostra-se como postura imprescindível para ampliar o leque de documentos que podem ser mobilizados pelos pesquisadores. Em uma sequência de máximas que também se assemelham a espécie de mantras de boas práticas na lida cotidiana com os arquivos, Marlon Salomon é categórico: “Os textos e documentos do passado, ‘por si mesmos’, nada dizem. Para que eles nos digam algo, é preciso interrogá-los. Para obter respostas, é preciso questioná-los. O que quer dizer, em outros termos, que não nos aproximamos deles sem teoria” (Salomon, 2011Salomão, Marlon. (2011), Saber dos Arquivos. São Paulo, Edições Ricochete., p. 14). A depender da área de formação do pesquisador, haverá um tipo de abordagem que permitirá o lançamento de perguntas propositivas às fontes documentais. Apesar dos historiadores serem apontados como um dos mais familiarizados com o exercício crítico na lida com os documentos, atualmente é possível ampliar consideravelmente o rol de profissionais que se debruçam sobre as fontes de pesquisa como matérias-primas para suas reflexões - cientistas sociais, arquitetos, arqueólogos, jornalistas, antropólogos, geógrafos, bibliotecários, arquivistas, bacharéis em direito são alguns exemplos de como os documentos ganharam relevância nas formações desses profissionais.

Considerando que o campo do patrimônio cultural é marcadamente interdisciplinar e aliado à perspectiva de que muitos de seus agentes assumem posturas questionadoras diante dos diferentes contextos em que estão inseridos, pensar a noção ampliada de documento nos leva a ampliar a própria categoria de patrimônio2 2 Para uma interessante discussão acerca do patrimônio como categoria conceitual, ver Gonçalves, 2009. . Isso porque muitos são os olhares disciplinares que podem ser lançados para as diferentes realidades apreendidas: que traços dos rituais sagrados de uma determinada comunidade são documentos para o antropólogo? Como o historiador faz sua pesquisa sem ficar apenas restrito aos clássicos registros de um arquivo paroquial? De que forma o geógrafo pode produzir fontes para compreender a vivência coletiva de uma procissão? O olhar fotográfico do jornalista cria novas percepções sensoriais a respeito de uma festividade em vias de ser patrimonializada? Para além da análise estética dos imóveis que integram o conjunto tombado onde manifestações religiosas e profanas ocorrem, o arquiteto pode se nutrir de que tipo de registro documental para subsidiar suas interpretações acerca do sítio em que ocorrem manifestações culturais? Ainda que as referidas perguntas sejam hipotéticas, o simples exercício de abrir possibilidades de investigação nos aponta para algo interessante: com os olhares de diferentes profissionais da lida patrimonial, é possível tecer perguntas que destaquem o protagonismo do documento nas diferentes maneiras de ver, perceber e sentir experiências afetas ao patrimônio cultural.

Potencializar as fontes de pesquisa valendo-se da diversidade de olhares

A associação quase automática da condição de existência de um documento histórico a um registro escrito foi e ainda continua bastante vigente. Não obstante a essa espécie de lugar comum sobre aquilo que pode ser apontado como tipo documental, interessa registrar os muitos esforços em desmistificar a ideia de que a escrita seja uma espécie de condição imprescindível para que um determinado documento exista. Esse olhar mais amplo da noção documental está presente entre historiadores que se opuseram à visão ortodoxa cultivada pela historiografia positivista do século xix. Contemporâneo de Marc Bloch em torno da proposta disruptiva da “Revista dos Annales”, Lucien Febvre escreveu uma passagem que se tornou emblemática em meio aos esforços de permitir novas leituras e abordagens dos contextos sociais, econômicos, políticos e culturais:

A História faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas dos bois. Com enxames de pedras por geólogos e análises de espadas de metais por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (Febvre apudNascimento, 2016Nascimento, Flávia. (2016), “Patrimônio Cultural e escrita da história: a hipótese do documento na prática do Iphan nos anos 1980”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, 24(3): 121-147, setembro-dezembro., p. 129).

Sem descartar a primazia da escrita, o historiador francês faz uso de uma linguagem plástica para expandir a potencialidade daquilo que pode ser considerado signo documental. Nesses termos, a atividade humana assume papel decisivo para garantir a expressão de algo que pode se tornar documento sob os olhos argutos do pesquisador.

Além da historiografia, outras áreas do conhecimento também contribuíram para que o documento não ficasse restrito aos cânones dos registros escritos. Bastante referenciado nos estudos acerca da documentação, Paul Otlet teceu importantes reflexões na primeira metade do século xx. Com o intuito de superar a noção restrita de documento como algo escrito, Otlet o qualifica como representante de ideias ou objetos, podendo alcançar o formato tridimensional. Somada à versão corriqueira de palavras inscritas nos textos, os documentos são e estão nas coisas concretas da nossa realidade, em uma perspectiva ampla de concebê-los como formas materiais de se registrar algo. Defensor de uma visão holística do mundo, Paul Otlet acreditava que a riqueza documental estava nas conexões possíveis entre os documentos nos seus mais diversos formatos: “A ideia era reunir, correlacionar, integrar e criar múltiplas representações do conhecimento, que haviam sido produzidas e disseminadas aleatoriamente, e que por isso se mostravam fragmentadas, dispersas, repetitivas, sujeitas a erros e incompletas” (Otlet, 2018Otlet, Paul. (2018), Tratado de documentação: o livro sobre o livro teoria e prática. Brasília, Briquet de Lemos/Livros, 2018., p. 14). Nessa medida, o trabalho dos profissionais da documentação seria o de propiciar redes conectivas em prol da produção de conhecimento com base em uma ampla, criativa e sensível base documental.

O campo do patrimônio cultural apropriou-se, paulatinamente, desse tipo de visão mais abrangente de documento. Os esforços de pesquisa acionaram uma perspectiva interdisciplinar em especial a partir dos anos 1980, quando a produção científica da área potencializou novos olhares para o patrimônio. Destaca-se, portanto, o entendimento dos bens culturais como documentos, na medida em que há um rico manancial de informações que estão materializadas nesses artefatos representativos da nossa cultura (Motta, 2011Motta, Lia. (2011), “Arquivos e o patrimônio da arquitetura: um diálogo necessário”. Anais do Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação: desafios e perspectivas, Belo Horizonte, ieds., pp. 2-3). Isso não significa adotar a postura de desvelar supostos signos que estão à espera de serem descobertos; muito pelo contrário, a atitude consiste em questionar, através dos diversos bens culturais, em que medida informações podem ser lidas a partir de perguntas que levem em consideração as ideias de mudanças, permanências, rupturas e continuidades nos diferentes contextos históricos. Ou seja, vislumbrar os bens culturais como potenciais fontes documentais para a construção de um conhecimento interdisciplinar acerca do patrimônio cultural.

Os centros históricos podem facilitar nossa percepção acerca das possíveis relações entre documentação e bens culturais. Se anteriormente a concepção da “cidade-monumento” era predominante nas políticas preservacionistas - haja vista que a cidade recebia um tratamento de obra de arte a ser descoberta e/ou identificada, em consonância com a ideia estética de valor nacional excepcional -, a perspectiva da “cidade-documento” ofereceu novas possibilidades de apreender os conjuntos urbanos como organismos vivos e em constante mutação. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) agregou, na década de 1980, essa virada cognitiva de apropriar os sítios urbanos através de uma linguagem documental das suas formas. “Esse processo contribuiu para o entendimento da cidade como lugar socialmente produzido, onde se acumulam vestígios culturais sucessivos resultantes da permanente apropriação das coisas do passado, documentando a trajetória de uma sociedade” (Iphan, 2001IPHAN. (2001), Inventário Nacional de Bens Imóveis: sítios urbanos tombados: Manual de preenchimento, versão 2001. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Departamento de Identificação e Documentação., p. 13). Ao analisar o tombamento pioneiro do centro histórico de Laguna, estado de Santa Catarina, Flávia Brito do Nascimento frisa que a medida preservacionista se ancorou em justificativas inovadoras para a época: ao invés de valorizar determinados traços arquitetônicos já bastante consagrados pelo Iphan, o mote foi a cidade como expressão documental de uma história que, longe se ser meramente factual, trazia marcas de um processo de ocupação do sítio urbano. A arquiteta e historiadora é enfática ao constatar que:

A possibilidade de entender os bens culturais, especificamente os centros históricos, como fontes documentais viabilizou, a nosso ver, a proteção de bens imóveis que dificilmente encontrariam possibilidade de preservação nos conceitos da excepcionalidade determinada pela legislação federal de tombamento (Nascimento, 2016Nascimento, Flávia. (2016), “Patrimônio Cultural e escrita da história: a hipótese do documento na prática do Iphan nos anos 1980”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, 24(3): 121-147, setembro-dezembro., p. 131).

Além de ampliar o leque de opções sobre quais conjuntos urbanos têm potencial para receber a proteção legal do tombamento, a perspectiva de tratar a cidade como documento possibilita que outros agentes entrem em cena no processo de construção simbólica sobre o local onde moram, transitam, fruem e compartilham suas experiências. A ideia de uma história escrita a partir de outros marcos que prezem pela diversidade das formas urbanas - tanto nos aspectos físicos e naturais do sítio, como nas construções heterogêneas que dialogam com as diferentes ocupações do território - mostra-se, portanto, como desafio permanente do nosso olhar em provocar novas e inquietantes perguntas sobre o que pode ser considerando documento.

Tratar os documentos como fontes de pesquisa pressupõe adotar uma postura crítica, acurada, reflexiva e propositiva no exercício de problematização. As fontes funcionam como espécies de mediadoras na busca de informações do nosso tempo e de outras temporalidades; a documentação nos permite acessar e estabelecer pontes de diálogos com vários objetos, temas e problemas de um contexto histórico específico. Por sua vez, interessa não perder de vista que toda e qualquer fonte tem suas limitações. Um documento carrega velados silêncios e omissões. Há dimensões do não-dito que podem ser exploradas no exercício de dissecar a documentação. Nessa toada, o pesquisador necessita da perspicácia para perceber o potencial e o limite que sua leitura poderá extrair de determinada representação sem correr riscos de ser demasiadamente ingênuo ou anacrônico. Analisar de maneira pormenorizada os tipos de linguagens presentes no documento permite percebê-lo como constructo social dotado de camadas temporais que se formam a partir do agenciamento de diferentes sujeitos. Reforça-se, portanto, a necessidade constante de desconfiar das fontes, questioná-las, contextualizá-las com vistas a criar conexões possíveis entre as perguntas do pesquisador, assim como identificar os formatos e conteúdos materializados nos documentos.

As fontes permitem acessos a diversos tipos de eventos, objetos e ações humanas. A acessibilidade a outros tempos de diferentes lugares, os quais têm outras referências em relação ao pesquisador, possibilita ter contato com agentes distintos; o exercício da alteridade é, nesse sentido, uma constante na proposta de desconstruir criticamente um documento. A postura de indagar as circunstâncias de produção das fontes, assim como das suas respectivas circulações, mostra-se como estratégia fundamental para o tratamento das mesmas. Trata-se, sobretudo, de uma prática de leitura crítica permeada de boas perguntas: como e por que foram produzidas? De que formas passaram a ser utilizadas? Em que medida ficaram silenciadas e esquecidas? Quais são seus formatos que se interligam, semanticamente, aos conteúdos nelas vinculados? Lançar questões nos abrem caminhos para respostas que não são definitivas e autossuficientes. Pelo contrário, o exercício propositivo da dúvida permite abordagens inovadoras a respeito dos documentos que, uma vez reinventados nas suas próprias existências, incentivam uma atitude propositiva diante dos desafios que a pesquisa nos apresenta a todo momento.

Quanto às especificidades da investigação científica com temas do patrimônio cultural, a atitude de ler criticamente as fontes precisa ser sempre revigorada. A miríade de documentos se desenrola num inesgotável rol de itens que podem ser acessados sob diferentes olhares: processos de tombamento e de registro de bens culturais; inventários de acervos das diversas categorias; planos diretores de cidades; instrumentos de salvaguarda de bens acautelados; sítios urbanos captados com base nas suas materialidades e imaterialidades; cartas e tratados acordados em encontros diplomáticos internacionais; mapas, plantas e croquis elaborados por técnicos dos órgãos preservacionistas; entrevistas produzidas em encontros mediados com detentores e agentes do campo do patrimônio; obras literárias que abordem temáticas culturais abertas ao exercício da pluralidade de visões; leis, portarias e todo aparato jurídico em torno das medidas de proteção ao patrimônio cultural; fotografias e pinturas produzidas no exercício da lida patrimonial; e registros colhidos a partir da imersão em práticas culturais imbuídas de sentidos e valores compartilhados por uma determinada coletividade são alguns exemplos de como o leque de possibilidades para abordar a temática patrimonial pode ser constantemente construída pelos pesquisadores3 3 O presente parágrafo e os dois anteriores foram escritos com base nas minhas anotações quando assisti à aula dos professores Claudia Leal e Luciano Teixeira no Mestrado Profissional do Iphan (pep). Aula ministrada no dia 22/10/2020, através de plataforma digital, como parte integrante da disciplina Metodologia de Pesquisa da Turma 2020 do pep. .

Pioneira nos estudos e reflexões sobre a importância da participação do historiador nas pesquisas desenvolvidas no campo do patrimônio, Márcia Chuva é bastante esclarecedora ao problematizar como um bem arquitetônico pode ser abordado criticamente:

Podemos pensar num exemplo: uma Casa de Câmara e Cadeia. Ela é uma fonte, ela tem várias linguagens a serem decifradas - a técnica construtiva; o aspecto estético; os usos que teve e a hierarquia dos seus espaços internos, que informam sobre uma dada realidade social; a apropriação que dela se fez historicamente até os dias de hoje; a mão de obra utilizada na época em que foi construída; as restaurações, se teve, informando sobre novas visões a respeito do mesmo objeto etc.

Falei que realidade existe. Afirmo agora que a fonte é nossa escolha - transformamos os ‘objetos’ que existem, materiais ou não, em fontes. A fonte nasce e se organiza a partir de uma necessidade de recriar algum passado, uma memória específica do seu passado. Cada geração tem uma memória específica e essas memórias se constroem a todo momento. A fonte já contém o que tenho em mente na minha ação. Falamos através da nossa própria fala, que é o nosso presente; nós sempre falamos dos outros, e não pelos outros (Chuva, 1998Chuva, Márcia. (1998), “A História como instrumento de identificação dos bens culturais”. In: Motta, Lia & Silva, Maria Beatriz de Resende. Inventários de identificação: um programa da experiência brasileira. Rio de Janeiro, Iphan., p. 44).

Para além da aparência de um simples monumento, as edificações carregam as marcas de serem documentos em constante transformação e permanência. A depender do tipo de pesquisador e da proposta de olhar projetado no e pelo bem cultural, as perguntas permitirão leituras criativas acerca do documento que se mostra como fonte aberta ao diálogo, às perspectivas temporais e aos fazimentos de se compreender o mundo através de lentes marcadas pela heterogeneidade das gerações passadas, presentes e vindouras.

Reconhecimentos formais do documento como patrimônio

Apesar dos documentos estarem representados em variados formatos e dispersos nos mais diferentes lugares, os arquivos são os lugares de memória, por excelência, dos acervos documentais (Nora, 1993Nora, Pierre. (1993), “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Projeto História, n. 10. São Paulo, Educ, pp. 7-28., p. 14). É interessante perceber que as fronteiras da documentação são muito tênues e permeáveis. Isso porque podemos encontrar documentos arquivísticos sob guarda de bibliotecas e museus que, a princípio, priorizariam os tratamentos de outros tipos documentais: enquanto o principal item documental dos acervos bibliográficos são as publicações nos formatos de livros, nos museus o documento que se torna item museológico abarca um amplo escopo de objetos tridimensionais. Por sua vez, as coisas musealizadas são exemplares únicos, enquanto os itens que compõem uma biblioteca podem ser repetidos. Já os arquivos agregam documentos mais no sentido strito senso do termo, ou seja, podemos considerar o acervo arquivístico como “conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho das suas atividades, independente da natureza dos suportes” (Arquivo Nacional, 2005Arquivo Nacional. (2005), Dicionário Brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional., p. 27). Tal definição é abrangente e flexível, tanto que existe a guarda de documentos arquivísticos em acervos de bibliotecas e museus, assim como se nota a ocorrência de arquivos correntes nos interiores de instituições museológicas e bibliotecárias.

Apesar da importância de se refletir sobre as especificidades e porosidades entre as áreas do conhecimento da Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia, assim como o perfil marcadamente complexo das constituições dos nossos acervos documentais, o foco da seção do presente texto se restringe aos acervos arquivísticos localizados em instituições de memória. Considerando esse tipo de bem permanente constituído formalmente através dos meandros das trajetórias institucionais, cabe indagar algo basilar para nossa compreensão: todo e qualquer arquivo preservado por alguma instituição pública ou privada pode ser considerado patrimônio cultural? Se formos adotar uma perspectiva mais ampla e menos formalista do ponto de vista dos instrumentos de patrimonialização, a possibilidade de resposta é ‘sim’. Caso optemos por um viés especializado, atento às nuances dos processos de atribuição de valor patrimonial, a nossa resposta passa a ser ‘depende’. Em ambos os casos existe algo em comum: a concepção de que os arquivos são espaços fundamentais para que a preservação das fontes de pesquisa seja um dos sustentáculos da produção do conhecimento científico.

Na hipótese de considerar todo e qualquer acervo arquivístico preservado como bem patrimonial, interessa pensar na trajetória dos documentos para que fique mais clara a dimensão da constituição dos próprios arquivos. Quando um determinado documento é criado no âmbito do serviço público, por exemplo, há intencionalidades que nortearam a produção por parte do agente responsável - afinal, todo e qualquer documento tem alguma finalidade inicial. Na sequência, com base no processo de tramitação desse hipotético documento, existem formas de classificá-lo de acordo com regras arquivísticas que buscam gerir a informação do denominado acervo corrente. A depender da sua utilização cotidiana, um grupo de documentos pode ficar bastante tempo numa espécie de latência, cuja atividade da avaliação documental será decisiva para definir se parte do arquivo intermediário será descartado e/ou mantido, mediante critérios estabelecidos por comissões interdisciplinares; estas, por sua vez, aprovam instrumentos como as tabelas de temporalidade que definem prazos de validade dos documentos não permanentes. No caso dos grupos de documentos preservados, entram em cena os esforços para organizar e acessar a massa documental que passa a receber o sugestivo nome de acervo histórico. A partir dessa configuração, os instrumentos de pesquisa dos arquivos tornam-se os principais meios de acessar a documentação histórica.

A sucinta descrição do parágrafo anterior não abarca as inúmeras intercorrências que são típicas dos cotidianos das instituições. Muitas são as dificuldades de gestão documental no âmbito do serviço público e, também, na seara das instituições privadas. Especialistas apontam a explosão documental como característica típica do período pós Segunda Guerra Mundial (Santos, 2008Santos, Paulo Roberto Elian dos. (2008), Arquivística no Laboratório: história, teoria e métodos de uma disciplina. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., pp. 85-95), o que de fato é observável também no cenário contemporâneo. Ainda que tenhamos avançado bastante no quesito do aparato tecnológico - incorporando novas ferramentas digitais na nossa forma de produzir, tramitar, acessar e armazenar a documentação - a avalanche de informações nos coloca um desafio ainda maior de gerir os documentos de diferentes suportes constituidores dos acervos arquivísticos. E, em meio a esse cenário que expõe o dilema entre o que preservar ou não, além dos riscos iminentes das perdas que possam vir a ocorrer em qualquer momento, há de se reconhecer que aquilo que se mantém como acervo preservado pode ser considerado, em grande medida, um patrimônio de todos. Ao dicionarizar o binômio “Patrimônio e Acervos”, Zita Possamai esclarece que:

Desse modo, acervo designa um conjunto de bens estabelecidos como patrimônio de uma instituição ou de uma coletividade, e, nesse sentido, sua preservação é assegurada às futuras gerações pelos valores que representa à sociedade, sejam estes de caráter histórico, cultural, artístico, afetivo, de raridade ou ineditismo, entre outros. Assim, a existência de acervos envolve, por um lado, um acúmulo realizado no decurso do tempo, quer por pessoas, grupos, associações ou instituições. Por outro lado, a perenidade de qualquer acervo é assegurada pelo desejo de conservação e pela atribuição de valores, por indivíduos, instituições e pela sociedade, ao conjunto reunido (Possamai, 2020Possamai, Zita. (2020), Patrimônio e Acervos. In: Carvalho, Aline & Meneguello, Cristina (Orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas, Editora da Unicamp., p. 47).

Verticalizando nosso olhar para os acervos arquivísticos e, se considerarmos as dificuldades enfrentadas pelas instituições brasileiras nos variados contextos, não há dúvida de que a preservação de determinado arquivo é um objetivo difícil de ser alcançado. Se pensarmos na quantidade de registros do passado que se esvaíram em função das dificuldades de manter serviços mínimos de preservação e conservação, os acervos hoje preservados podem receber o atributo de serem sobreviventes de situações-limites enfrentadas nos cotidianos das instituições. Ainda que tenhamos avanços jurídicos que garantam nosso direito à memória, a preservação de documentos de arquivos precisa ser uma constante. A Constituição Federal de 1988 traz no seu artigo 23, como competência compartilhada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o dever de preservar os variados tipos de acervos: “... proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” [grifo nosso]. Considerando que a ideia de documento abrange um amplo rol de registros, cabe a nós exigirmos aprimoramentos e aperfeiçoamentos para que o patrimônio documental seja mais amplamente reconhecido e fortalecido.

Um dos instrumentos jurídicos importantes que se consolidou a partir das discussões da Constituinte foi a conhecida “Lei de Arquivos”, oficializada através da lei federal n. 8.159 de 1991. Em vigor até os dias de hoje, tal aparato jurídico estabeleceu diretrizes para a política nacional de arquivos públicos e privados e o início dos trabalhos do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). A legislação é marcadamente técnica e conceitual - traz, por exemplo, a definição de gestão documental -4 4 De acordo com os termos da Lei Federal n. 8.159/1991, “Art. 3° Considera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente”. , além de reforçar a necessidade de estabelecer critérios mínimos de acesso aos arquivos, demanda cara aos segmentos sociais que permaneciam mobilizados após a censura do regime militar. Ademais, a “Lei de Arquivos” explicita o dever do Estado em promover a gestão e proteção dos documentos, entendidos como “instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação”5 5 Trecho retirado do artigo 1º da Lei Federal n. 8.159 de 08/01/1991. ; as qualificações atribuídas à documentação incorporavam o desejo coletivo de uma sociedade mais plural nesse contexto brasileiro de redemocratização.

Após um período de duas décadas em que houve avanços significativos nas melhorias da gestão documental do país, ainda que muitos processos iniciados nas instituições sofressem interrupções de projetos, a legislação arquivística incorporou diretrizes e práticas experenciadas no Brasil. No ano de 2011 promulgou-se a nova “Lei de Acesso à Informação” (lai)6 6 Lei Federal n. 12.527 de 18/11/2011. , seguida do seu respectivo decreto regulamentador,7 7 Decreto Federal n. 7.724 de 16/05/2012. e os primeiros balanços técnicos sobre a lai começaram a sair tão logo ocorreu a sua implantação8 8 Para um exemplo das primeiras abordagens críticas à Lei de Acesso à Informação, ver Jardim, 2013. , manuais contemporâneos de tratamento arquivístico qualificam a Lei de Acesso à Informação como um instrumento de aperfeiçoamento da democracia brasileira, sob o respaldo do preceito constitucional da transparência pública. Por sua vez, de nada adianta a legislação recomendar uma série de medidas se as instituições não estiverem preparadas para implantar e manter um programa contínuo de gestão documental. Nessa medida, para que não se torne uma legislação inócua, alerta-se para “... o grande desafio de criar as condições e construir os mecanismos, de natureza administrativa, técnica e operacional, para assegurar o seu efetivo cumprimento” (Jardim, 2013Jardim, José Maria. (2013), “A implantação da lei de acesso à informação pública e a gestão da informação arquivística governamental”. Liinc em Revista, 9(2): 383-405, novembro.).

A perspectiva de acessibilidade aos arquivos precisa avançar concomitantemente às medidas de proteção dos próprios acervos documentais. O binômio ‘preservação e acesso’ se consolidou como um dos principais eixos norteadores da área da documentação, porém o ato de preservar recebeu mais atenção ao longo do tempo; o debate mais amplo sobre acesso aos arquivos é pauta das últimas décadas. A ideia de preservar o acervo físico, por exemplo, já tinha uma atenção especial antes da promulgação da Lei de Acesso à Informação de 2011. De uma perspectiva punitiva, citam-se o artigo 305 do Código Penal de 1940, a Lei Federal n. 9.605, de 12/02/1998, e o Decreto Federal n. 6.514, de 22/07/2008, que preveem punições àqueles que cometerem destruição, inutilização ou deterioração dos documentos públicos ou protegidos. Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 foi a nossa primeira Carta Magna que explicitou o termo “documentação”: “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear a consulta a quantos dela necessitarem”9 9 Artigo 216, inciso iv, parágrafo 2° da Constituição Federal de 1988. . Considerando que a ideia de “gestão da documentação” agrega as dimensões de trocas e complementariedade entre preservação e acesso, pode-se afirmar que os arquivos ganharam mais respaldo através do aparato jurídico maturado nos últimos trinta anos.

Por outro lado, se nosso olhar for mais especializado a partir das políticas patrimoniais, podemos retomar uma pergunta lançada anteriormente: considerando os mais variados tipos de acervos arquivísticos preservados, podemos atribuir valor de patrimônio para alguns conjuntos de documentos que são partes constituintes desses arquivos? É possível qualificar trechos da documentação histórica dos arquivos como representativos do patrimônio cultural? Novamente a Constituição Federal de 1988 nos oferece um ótimo ponto de partida para pensarmos nessas questões. O conhecido artigo 216, que traz no seu bojo uma definição alargada e heterogênea daquilo que pode vir a ser considerado patrimônio, elenca em seus incisos uma série de bens passíveis de patrimonialização:

Artigo 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

[…]

iv - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais [grifo nosso].

Dentro da proposta de patrimonializar bens que não se enquadram nas noções estéticas de excepcionalidade, os documentos são possibilidades para pensar outras narrativas que não se ancorem apenas nos bens imóveis já consagrados das políticas de preservação. Ainda que houvesse o risco de selecionar somente a documentação vista como ‘relíquia’ ou ‘raridade’, a ideia de maior representatividade dos grupos sociais, a partir da Constituinte de 1988, sugere um viés mais plural e heterogêneo dos arquivos que podem receber o atributo de patrimônio cultural. Nesses termos, a patrimonialização de acervos documentais abarca tanto a parte dos suportes com base nos quais o documento se auto constitui e existe, como a dimensão simbólica da documentação com “suas representações, as informações que contêm, as interpretações da realidade às quais se filiam, o ambiente histórico em que foram produzidos e as diversas formas de apropriação vivenciadas ao longo do tempo” (Chuva e Andrade, 2003Chuva, Márcia & Andrade, Luiz Cristiano de. (2003), “Papeis monumentais: a cidade do Rio de Janeiro e o patrimônio documental brasileiro Brasil”. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, 35: 135-152., pp. 138-139).

Atualmente existem três instrumentos de reconhecimento dos acervos arquivísticos como patrimônio: tombamento por parte de órgãos preservacionistas, declaração de interesse público e social pelo Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e registro como Memória do Mundo através da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A patrimonialização ocorre, portanto, por diferentes instituições que chancelam o reconhecimento através de títulos simbólicos. Cada instrumento tem a sua especificidade e, por vezes, um pode se sobrepor ao outro nos processos de valoração do patrimônio documental; há, também, casos em que a soma desses tipos de reconhecimentos vira uma espécie de trunfo para que instituições detentoras dos acervos reconhecidos consigam maiores recursos com vistas a aprimorarem suas próprias gestões preservacionistas. Ou seja, o capital simbólico adquirido a partir do título de patrimônio documental pode ser muito importante para que um determinado arquivo consiga angariar recursos financeiros e logísticos para sua própria existência.

De acordo com Sonia Rabello, o tombamento “é a forma mais antiga e consolidada de preservação do patrimônio cultural”, e após a sua criação via Decreto-lei n. 25 de 1937, “foi recepcionado pela Constituição de 1988, na qual o conceito ampliado de patrimônio cultural insere esse instrumento como uma espécie dentre as diversas do gênero da preservação, dirigido a determinados tipos de bens” (Rabello, 2009Rabello, Sonia. (2009), O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro, Iphan., p. 1). Tal dispositivo legal consolidou-se como marca de atuação do Iphan em nível federal, expandindo-se para as esferas estaduais e municipais através de órgãos ligados às secretarias de cultura. Ao longo da sua trajetória institucional, o Iphan pouco tombou acervos de arquivos e bibliotecas. Geralmente esses bens receberam essa proteção jurídica por estarem situados nos interiores de imóveis de interesse arquitetônico - igrejas, conventos, museus, dentre outros -, sem que isso significasse um pleno conhecimento dos itens desses acervos10 10 A Resolução do Conselho Consultivo do Iphan, de 13/08/1985, estabeleceu que todos os acervos de bens móveis, localizados nos interiores de bens tombados desde 1938, passariam a ter a mesma proteção jurídica. .

Para subsidiar nossas colocações do parágrafo anterior, tomamos como referência uma tabela denominada “Controle de Bens Tombados”, elaborada pelo Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam) do Iphan11 11 Uma versão adaptada da tabela, destinada ao público geral e com dados mais enxutos, encontra-se disponível no portal do Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126 , a qual estabelece 16 categorias de bens culturais12 12 As 16 categorias de bens culturais estipuladas são: Bem Paleontológico; Bens Móveis e Integrados; Coleções e Acervos; Coleções e Acervos Arqueológicos; Conjunto Arquitetônico; Conjunto Rural; Conjunto Urbano; Edificação; Edificação e Acervo; Equipamentos e Infraestrutura Urbana; Jardim Histórico; Paisagem; Quilombo; Ruína; Sítio Arqueológico; Terreiro. dentre outras variáveis a fim de possibilitar algumas leituras sobre os Processos de Tombamento abertos desde 1938. Do total de 1.263 bens tombados, apenas 22 estão enquadrados na categoria “Coleções e Acervos”, dos quais somente cinco se alinham às características de documentação arquivística e bibliográfica: Coleção Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (ieb/usp); Partituras de Villa-Lobos, depositadas no museu homônimo, pertencente ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram); Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente do Rio de Janeiro; Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, pertencente ao Centro Cultural São Paulo; e Pergaminhos da Torá, integrantes do acervo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro13 13 Os pergaminhos da Torá são documentos da cultura hebraica, adquiridos por Dom Pedro ii, e são considerados por especialistas como um dos mais antigos do judaísmo. À época do incêndio de grandes proporções do Museu Nacional, em setembro de 2018, estavam no setor de restauração que ficou ileso do sinistro ocorrido na Quinta da Boa Vista. Informações retiradas de: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pergaminhos-da-tora-escapam-de-incendio-no-museu-nacional/, consultado em 05 de setembro de 2022. .

Já a declaração de interesse público e social dos arquivos privados, sejam acervos pessoais ou institucionais, consiste num instrumento valorativo previsto desde a já mencionada Lei de Arquivos de 1991. Gestada a partir dos debates técnicos nutridos no interior do campo arquivístico, traz a exigência de que os acervos “sejam considerados como conjuntos de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional”14 14 Trecho do artigo 12 da Lei Federal n. 8.159 de 1991. . O primeiro acervo foi reconhecido como de interesse público e social somente em 200415 15 Trata-se do acervo documental privado de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, cuja instituição custodiadora é o Centro de Cidadania Barbosa Lima Sobrinho. : estabelecida uma comissão de três técnicos nomeada pelo Conarq, os especialistas visitam o local de guarda e emitem um parecer que é avaliado e votado pelos membros do Conarq. Após esse sequenciamento, iniciam-se trâmites administrativos que culminam na publicação do decreto do presidente da República. Há um ponto de confluência com o tombamento, previsto no Decreto 4.073/2002, em que se afirma que “são automaticamente considerados documentos privados de interesse público e social os arquivos e documentos privados tombados pelo Poder Público”16 16 Há, ainda, outras duas situações em que os documentos são automaticamente considerados como de interesse público e social: “os arquivos presidenciais” e “os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência da Lei n. 3.071, de 01/01/1916” (também conhecido como Código Civil de 1916). . Esse tipo de situação ainda não se aplicou aos quinze acervos17 17 Os 15 acervos declarados de interesse público e social são: Barbosa Lima Sobrinho; Associação Brasileira de Educação; Companhia e Cervejaria Brahma; Companhia Antártica Paulista; Glauber Rocha; Atlântida Cinematográfica; Darcy Ribeiro; Berta Gleizer Ribeiro; Oscar Niemeyer; Abdias Nascimento; César Lattes; Paulo Freire; Cúria Diocesana de Nova Iguaçu; Dom Lucas Moreira Neves; e Associação Circo Voador. que já receberam parecer favorável do Conarq. Nessa medida, pode-se entender que a declaração de interesse público e federal veio preencher uma demanda das instituições detentoras de acervos documentais: apesar de reconhecerem a importância do tombamento, acionaram um dispositivo mais especializado para a lida com arquivos históricos de entidades privadas.

Por sua vez, o instrumento adotado pela Unesco desde 1992, quando da criação do Programa Memória do Mundo (mow)18 18 Sigla, em inglês, para Memory of the World. O termo mow é frequentemente utilizado pela Unesco e pelos agentes do Programa nos diferentes países, inclusive no Brasil. , recebeu o nome de inscrição e/ou registro. O mow consiste em uma iniciativa da Unesco em prol da preservação e do amplo acesso aos acervos documentais localizados principalmente em arquivos e bibliotecas. O registro de Memória do Mundo, concedido aos documentos cujas significâncias são valoradas com base em critérios preestabelecidos pela organização é o aspecto mais visível do mow; as obtenções desses títulos acontecem via editais públicos, quando as candidaturas são apresentadas em formulários próprios. Segundo a Unesco, todos os acervos reconhecidos como Memória do Mundo devem ter significância mundial; já a concepção de influência complementa a titulação dos acervos patrimonializados, cujas variações se alternam entre internacional, regional e nacional. Ou seja, os registros podem ser Memória do Mundo Internacional, Memória do Mundo Regional e Memória do Mundo Nacional, demonstrando uma sobreposta complexidade entre as fronteiras estabelecidas pela Unesco.

A mencionada influência encontra correspondência com a estrutura de funcionamento do mow: além do Comitê Internacional, constituído por membros estrangeiros e alicerçado pelos serviços da Secretaria do Programa, localizada na sede da Unesco em Paris, existem três Comitês Regionais - Africano; Ásia e Pacífico; América Latina e Caribe - e 91 Comitês Nacionais, contabilizados até o ano de 2021. Estes últimos encontram-se agrupados de acordo com a divisão geopolítica da Organização das Nações Unidas (onu), tendo na Europa e América do Norte o maior número de países integrantes: 28 Estados-Membros. A América Latina e Caribe aglutinam 24 países, seguida por Ásia e Pacífico (16), África (16) e Estados Árabes (7). Os editais do Comitê Internacional ocorrem a cada dois anos, quando se abrem oportunidades para os registros internacionais de acervos como patrimônio da humanidade.

No caso do Comitê mow Brasil, o registro e/ou nominação concedido aos arquivos é quantitativamente bem mais acionado se comparado ao tombamento por parte do Iphan e à declaração de interesse público e social do Conarq. O primeiro edital do Memória do Mundo no Brasil foi lançado em 2007 e, após de mais de uma década de funcionamento, contabiliza 101 acervos nominados. Dentre as várias candidaturas já contempladas, destacam-se acervos cujas temáticas versam sobre temas estruturantes da nossa história como escravidão, formação das cidades, política indigenista, campo científico e lutas contra a censura e o autoritarismo da ditadura civil militar brasileira de 1964 a 1985. Se pensarmos que o mow Brasil já reconheceu acervos constituídos em torno de nomes como Abdias do Nascimento, Nise da Silveira e Paulo Freire, além de coleções de documentos de instituições de importância como Instituto Butantan, Fundação Nacional do Índio (Funai), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Cinemateca Brasileira - muitas atacados no contexto de tentativas de sucateamento do serviço público e de desinformação e negacionismo agravados pela pandemia da Covid-19 -, interessa destacar o mow como uma das ferramentas primordiais para que nossas memórias não sejam esquecidas e desvalorizadas.

Diante das incertezas do presente e do futuro próximo, a noção plural de documento pode ser pragmática para se manter uma perspectiva de patrimônio coletivo e democrático. A ideia de arquivos abertos ao diálogo, fundamentais para as construções de histórias e memórias da nossa sociedade, é basilar para que nossos direitos sociais conquistados sejam preservados e, sempre que possível, ampliados e aperfeiçoados. (Re)pensar o patrimônio cultural através da chave da documentação se mostra como alternativa atraente para enfrentarmos tempos difíceis de crises ambiental, climática, sanitária, política e social. A apropriação dos documentos nos fortalece na leitura de mundo mais crítica, imprescindível para compreender nosso papel como agentes de contextos históricos permeados de lutas e disputas em torno da definição do que é patrimônio.

  • 1
    As teses de Walter Benjamin sobre história podem ser instigantes para problematizar a representatividade documental nas sociedades humanas. Em passagens trabalhadas por comentaristas da obra benjaminiana, destacam-se trechos extraídos como: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro”. Löwy, 2005Löwy, Michael. (2005), Walter Benjamin: Aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’. São Paulo, Boitempo., p. 70.
  • 2
    Para uma interessante discussão acerca do patrimônio como categoria conceitual, ver Gonçalves, 2009Gonçalves, José Reginaldo (2009), “O patrimônio como categoria de pensamento”. In: Abreu, Regina & Chagas, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro, Lamparina..
  • 3
    O presente parágrafo e os dois anteriores foram escritos com base nas minhas anotações quando assisti à aula dos professores Claudia Leal e Luciano Teixeira no Mestrado Profissional do Iphan (pep). Aula ministrada no dia 22/10/2020Leal, Claudia Baeta & Teixeira, Luciano dos Santos. (2020). Aula ministrada no dia 22/10/2020, através de plataforma digital, como parte integrante da disciplina Metodologia de Pesquisa da Turma 2020 do pep., através de plataforma digital, como parte integrante da disciplina Metodologia de Pesquisa da Turma 2020 do pep.
  • 4
    De acordo com os termos da Lei Federal n. 8.159/1991, “Art. 3° Considera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente”.
  • 5
    Trecho retirado do artigo 1º da Lei Federal n. 8.159 de 08/01/1991.
  • 6
    Lei Federal n. 12.527 de 18/11/2011.
  • 7
    Decreto Federal n. 7.724 de 16/05/2012.
  • 8
    Para um exemplo das primeiras abordagens críticas à Lei de Acesso à Informação, ver Jardim, 2013Jardim, José Maria. (2013), “A implantação da lei de acesso à informação pública e a gestão da informação arquivística governamental”. Liinc em Revista, 9(2): 383-405, novembro..
  • 9
    Artigo 216, inciso iv, parágrafo 2° da Constituição Federal de 1988.
  • 10
    A Resolução do Conselho Consultivo do Iphan, de 13/08/1985, estabeleceu que todos os acervos de bens móveis, localizados nos interiores de bens tombados desde 1938, passariam a ter a mesma proteção jurídica.
  • 11
    Uma versão adaptada da tabela, destinada ao público geral e com dados mais enxutos, encontra-se disponível no portal do Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126
  • 12
    As 16 categorias de bens culturais estipuladas são: Bem Paleontológico; Bens Móveis e Integrados; Coleções e Acervos; Coleções e Acervos Arqueológicos; Conjunto Arquitetônico; Conjunto Rural; Conjunto Urbano; Edificação; Edificação e Acervo; Equipamentos e Infraestrutura Urbana; Jardim Histórico; Paisagem; Quilombo; Ruína; Sítio Arqueológico; Terreiro.
  • 13
    Os pergaminhos da Torá são documentos da cultura hebraica, adquiridos por Dom Pedro ii, e são considerados por especialistas como um dos mais antigos do judaísmo. À época do incêndio de grandes proporções do Museu Nacional, em setembro de 2018, estavam no setor de restauração que ficou ileso do sinistro ocorrido na Quinta da Boa Vista. Informações retiradas de: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pergaminhos-da-tora-escapam-de-incendio-no-museu-nacional/, consultado em 05 de setembro de 2022.
  • 14
    Trecho do artigo 12 da Lei Federal n. 8.159 de 1991.
  • 15
    Trata-se do acervo documental privado de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, cuja instituição custodiadora é o Centro de Cidadania Barbosa Lima Sobrinho.
  • 16
    Há, ainda, outras duas situações em que os documentos são automaticamente considerados como de interesse público e social: “os arquivos presidenciais” e “os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência da Lei n. 3.071, de 01/01/1916” (também conhecido como Código Civil de 1916).
  • 17
    Os 15 acervos declarados de interesse público e social são: Barbosa Lima Sobrinho; Associação Brasileira de Educação; Companhia e Cervejaria Brahma; Companhia Antártica Paulista; Glauber Rocha; Atlântida Cinematográfica; Darcy Ribeiro; Berta Gleizer Ribeiro; Oscar Niemeyer; Abdias Nascimento; César Lattes; Paulo Freire; Cúria Diocesana de Nova Iguaçu; Dom Lucas Moreira Neves; e Associação Circo Voador.
  • 18
    Sigla, em inglês, para Memory of the World. O termo mow é frequentemente utilizado pela Unesco e pelos agentes do Programa nos diferentes países, inclusive no Brasil.

Referências Bibliográficas

  • APESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo. (2014), Política Pública de Arquivos e Gestão Documental do Estado de São Paulo São Paulo, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • Arquivo Nacional. (2005), Dicionário Brasileiro de terminologia arquivística Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.
  • Burke, Peter. (1992), “Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro”. In: Burke, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista.
  • Chuva, Márcia. (1998), “A História como instrumento de identificação dos bens culturais”. In: Motta, Lia & Silva, Maria Beatriz de Resende. Inventários de identificação: um programa da experiência brasileira Rio de Janeiro, Iphan.
  • Chuva, Márcia & Andrade, Luiz Cristiano de. (2003), “Papeis monumentais: a cidade do Rio de Janeiro e o patrimônio documental brasileiro Brasil”. Anais do Museu Histórico Nacional Rio de Janeiro, 35: 135-152.
  • Gonçalves, José Reginaldo (2009), “O patrimônio como categoria de pensamento”. In: Abreu, Regina & Chagas, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro, Lamparina.
  • IPHAN. (2001), Inventário Nacional de Bens Imóveis: sítios urbanos tombados: Manual de preenchimento, versão 2001. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Departamento de Identificação e Documentação.
  • Jardim, José Maria. (2013), “A implantação da lei de acesso à informação pública e a gestão da informação arquivística governamental”. Liinc em Revista, 9(2): 383-405, novembro.
  • Le Goff, Jacques. (2013), “Documento/Monumento”. In: Le Goff, Jacques. História e Memória Campinas, Editora da Unicamp.
  • Leal, Claudia Baeta & Teixeira, Luciano dos Santos. (2020). Aula ministrada no dia 22/10/2020, através de plataforma digital, como parte integrante da disciplina Metodologia de Pesquisa da Turma 2020 do pep.
  • Löwy, Michael. (2005), Walter Benjamin: Aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’ São Paulo, Boitempo.
  • Motta, Lia. (2011), “Arquivos e o patrimônio da arquitetura: um diálogo necessário”. Anais do Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação: desafios e perspectivas, Belo Horizonte, ieds.
  • Nascimento, Flávia. (2016), “Patrimônio Cultural e escrita da história: a hipótese do documento na prática do Iphan nos anos 1980”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, 24(3): 121-147, setembro-dezembro.
  • Nora, Pierre. (1993), “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Projeto História, n. 10. São Paulo, Educ, pp. 7-28.
  • Otlet, Paul. (2018), Tratado de documentação: o livro sobre o livro teoria e prática. Brasília, Briquet de Lemos/Livros, 2018.
  • Possamai, Zita. (2020), Patrimônio e Acervos. In: Carvalho, Aline & Meneguello, Cristina (Orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas, Editora da Unicamp.
  • Rabello, Sonia. (2009), O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento Rio de Janeiro, Iphan.
  • Salomão, Marlon. (2011), Saber dos Arquivos São Paulo, Edições Ricochete.
  • Santos, Paulo Roberto Elian dos. (2008), Arquivística no Laboratório: história, teoria e métodos de uma disciplina Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2022
  • Aceito
    24 Out 2022
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br