Acessibilidade / Reportar erro

“UMA DANÇA SOBRE O ABISMO”: AS ESTRATÉGIAS DA CANDIDATURA DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA NA CAMPANHA PRESIDENCIAL DE 1937* * Este texto é produto da tese de doutorado José Américo de Almeida, da infância no Engenho Olho d’Água à campanha presidencial de 1937, orientada pela professora Lucia Grinberg, defendida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em 2021, nota 10.

“A dance over the abyss”: the strategies of José Américo de Almeida’s candidacy in the presidential campaign of 1937

“Un baile sobre el abismo”: las estrategias de la candidatura de José Américo de Almeida en la campaña presidencial de 1937

RESUMO

A campanha presidencial de 1937 aconteceu em ambiente competitivo, com dois candidatos que dividiram a base aliada do governo, e em meio a investidas autoritárias de Getúlio Vargas, políticos e militares próximos a ele. O objetivo deste texto é identificar as estratégias mobilizadas por José Américo de Almeida e seus correligionários para viabilizar e executar a sua candidatura. Foi possível observar que esse grupo não foi passivo no cenário que estava posto, mobilizando as ferramentas de que dispunham de várias maneiras, a fim de formar um programa e uma base eleitoral a partir de uma interpretação do projeto revolucionário de 1930.

PALAVRAS-CHAVE:
Campanha de 1937; José Américo; Bloco do Norte

ABSTRACT

The presidential campaign of 1937 took place in a competitive scenario, with two candidates who divided the government’s allied base and the authoritarian attacks by Getúlio Vargas, as well as politicians and military personnel close to him. The objective of this text is to identify the strategies mobilized by José Américo de Almeida and his coreligionists to make feasible and execute his candidacy. We could observe that this group was not passive in the scenario presented, mobilizing tools available to them in various ways, in order to form a program and an electoral base built upon an interpretation of the project of the Revolution of 1930.

KEYWORDS:
Campaign of 1937; José Américo; Northern Bloc

RESUMEN

La campaña presidencial de 1937 se desarrolló en un ambiente competitivo, con dos candidatos que dividieron la base aliada del gobierno, y en medio de ataques autoritarios de Getúlio Vargas, políticos y militares cercanos a él. El objetivo de este texto es identificar las estrategias movilizadas por José Américo de Almeida y sus correligionarios para viabilizar y ejecutar su candidatura. Se pudo observar que este grupo no fue pasivo en el escenario que se presentó. Las herramientas de que disponían se movilizaron, de diversas formas, para conformar un programa y una base electoral a partir de una interpretación del proyecto de la Revolución de 1930.

PALABRAS CLAVE:
Campaña de 1937; José Américo; Bloque del Norte

INTRODUÇÃO

Em meados de 1936, durante uma visita à Bahia, o ministro Agamenon Magalhães sondou o governador Juraci Magalhães quanto à possibilidade de estender o prazo legal dos mandatos do presidente e dos governadores. Alegava que, diante da crise política que se estabelecera no país com o Levante Comunista de 1935, a manutenção da ordem seria prioridade dos “revolucionários de 1930”. O anfitrião, entretanto, recusou a chamada, desconfiado dos propósitos de Getúlio Vargas, que, com essa investida, perderia o lastro da legalidade e centralizaria demasiado poder em suas mãos: “estava tratando com um homem surpreendente, de caráter insondável, que, talvez, um dia me convidasse para uma dança sobre o abismo” (Magalhães, 1996MAGALHÃES, J. O último tenente, em depoimento a J. A. Gueiros. Rio de Janeiro: Record, 1996.: 18). No ano seguinte, outro de seus aliados, Benedito Valadares, governador de Minas Gerais, propôs a candidatura de José Américo. Esse seria o melhor cenário para os nortistas, que teriam a chance de alçar à presidência da República. Mas era uma aposta arriscada: o que pretendia o “homem insondável”?

A eleição presidencial, por meio do voto direto, estava prevista em todo o território nacional para 3 de janeiro de 1938. Assim determinava a Constituição de 1934, artigo 52, 120 antes do término do mandato vigente e sem direito à reeleição. A campanha se prometia desde o primeiro instante um processo de particular importância na história política brasileira. Tratava-se, afinal, da primeira eleição direta para a presidência da República depois da Revolução de 1930. Era preciso testar o projeto revolucionário em votação popular de abrangência nacional, e isso diante de alguns complicadores. Depois de sete anos, não havia consenso entre os revolucionários quanto ao nome para representá-los, nem do que deveria constituir o programa de governo. Mais que isso, sequer estava decidida a efetiva realização das eleições.

A campanha efetivamente tomou fôlego a partir de maio de 1937. Venceu a saída competitiva, com três candidatos disputando a preferência do eleitorado: José Américo, candidato governista, Armando Sales, indicado por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, e Plínio Salgado, encampando a posição dos integralistas na opinião pública nacional. Aspásia Camargo et al. (1989)CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989., no livro O golpe silencioso, apontam, entre as razões que levaram o país à ditadura do Estado Novo, a incapacidade das candidaturas em apresentar alternativas eficientes na resolução da crise política. As autoras e autores falam de um “populismo embrionário” de José Américo e um “débil liberalismo” de Armando Sales. Essa interpretação, contudo, me parece reduzir o papel da competição eleitoral na temperatura política de 1937, bem como a complexidade da ação dos candidatos e seus aliados na construção dos acordos, composição de programas, articulação pelo financiamento da campanha, elaboração de discursos políticos etc.

Paolo Ricci (2019RICCI, P. As eleições na Era Vargas: que regime representativo é esse? In: RICCI, P. (org.). O autoritarismo eleitoral dos anos trinta e o código eleitoral de 1932. Curitiba: Appris, 2019. p. 229-247.: 229), nesse aspecto, pensa o cenário em que se estabelecem as eleições nos anos 1930 a partir da chave do autoritarismo competitivo, “isto é, um regime em que existem formalmente instituições democráticas, as oposições competem por cargos, mas quem está no governo abusa de sua posição para permanecer no poder”. Esse ponto é interessante para pensar as eleições de 1937, na medida em que, apesar da movimentação dos candidatos e demais lideranças políticas em âmbito nacional, o presidente joga com o decreto do estado de guerra, as prisões políticas e as intervenções nos estados. A competição assume, assim, um novo patamar, em que é preciso pensar como as agências dos atores políticos precisam levar em conta essas medidas autoritárias. Além de disputar a preferência do eleitorado, os candidatos precisavam driblar as tentativas de atrapalhar o processo legal.

O objetivo deste texto é identificar as estratégias mobilizadas por José Américo de Almeida e seus aliados mais próximos para viabilizar e executar a sua campanha à Presidência da República em 1937. Tornar-se candidato, conforme Michel Offerlé (2002)OFFERLÉ, M. Les partis politiques. 4. ed. Paris: PUF, 2002., implica inventar ou reativar tecnologias de luta política, ainda que cada posto e cada momento em disputa tenham suas especificidades. Nesse contexto, devemos considerar não só a instabilidade política e o cenário competitivo, mas também a disponibilidade dos meios de comunicação e transporte para empreender uma campanha nacional em um país de dimensões continentais. No caso da candidatura de José Américo, é possível afirmar que foram mobilizadas as ferramentas que havia à disposição, de várias maneiras, a fim de formar um programa e uma base de apoio no cenário competitivo que se apresentava.

O corpus documental incluiu os jornais Correio da Manhã e Diário de Notícias, ambos em circulação no Distrito Federal, assim como a revista Careta; correspondências de José Américo, Juraci Magalhães, Artur Neiva, Benedito Valadares e Getúlio Vargas; livros de memórias; o diário do presidente Vargas, entre outros.

A ESCOLHA DO CANDIDATO GOVERNISTA E A OPÇÃO COMPETITIVA

José Américo de Almeida nasceu em 10 de janeiro de 1887, na cidade de Areia, interior da Paraíba, em uma família de senhores de engenho e comerciantes, que tinham uma tradição na política local. Formou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1908, foi nomeado procurador-geral do estado e se tornou uma figura constante no circuito intelectual, escrevendo em jornais e revistas. Publicou alguns livros, como A Paraíba e seus problemas (1923), sobre os impactos das obras contra as secas do governo Epitácio Pessoa na vida da população sertaneja, e o romance A bagaceira (1928), que o projetou na cena intelectual do país. O ingresso na política profissional se deu com o convite de João Pessoa, em 1928, para que chefiasse a secretaria-geral de seu governo na Paraíba (Burity, 2021BURITY, L. M. D. José Américo de Almeida, da infância no Engenho Olho d’Água à campanha presidencial de 1937. 2021. 418 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.).

Às vésperas das eleições presidenciais, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba formaram a Aliança Liberal, uma chapa alternativa ao Partido Republicano Paulista (PRP). José Américo se envolveu na campanha e nas articulações com os tenentes para um provável conflito armado. Esse grupo dissidente, no entanto, perdeu as eleições e, meses depois, João Pessoa foi assassinado por um de seus opositores. Foi o estopim para os preparativos do golpe. Os revoltosos tomaram os quartéis na Paraíba e no Rio Grande do Sul em 3 de outubro, e seguiram nos demais estados. Juarez Távora assumiu o comando militar das tropas nortistas e José Américo a liderança civil da região conquistada. Vitoriosa a Revolução de 1930, esses estados formaram um grupo político: o Bloco do Norte.

Getúlio Vargas nomeou José Américo ministro de Viação e Obras Públicas. O paraibano ficou no cargo entre 1930 e 1934. Empreendeu uma reforma administrativa, com a demissão de funcionários, controle de gastos e fusão de departamentos, investiu na construção de estradas de ferro, de rodagem, portos, extensão das linhas de telégrafo e do serviço dos correios, entre outras coisas. Mas o ponto mais marcante de sua gestão foi a retomada das obras contra as secas, que ganhavam um espaço destacado no orçamento, e, por ocasião das estiagens de 1932, foi quase que duplicado por meio de créditos especiais solicitados pelo ministro e aprovados pelo presidente (Almeida, 1934ALMEIDA, J. A. de. O ciclo revolucionário no Ministério de Viação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1934.).

Os investimentos nas obras contra as secas contabilizaram 317.136:569$947 (trezentos e dezessete mil, cento e trinta e seis contos, quinhentos e sessenta e nove mil, novecentos e quarenta e sete réis), correspondente a quase um quarto da receita ministerial para seus quatro anos na pasta. Isso atesta a expressividade do grupo — o Bloco do Norte — enquanto base de apoio do Governo Provisório e como catalisador de investimentos para a região. A manutenção da coesão política desses estados, aliás, seria razão da criação da Delegacia Militar do Norte, chefiada por Juarez Távora. Conforme Raimundo Lopes (2014)LOPES, R. H. Um vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 1932. 2014. 315 f. Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2014., o propósito da instituição era indicar os nomes dos interventores e coordenar seu trabalho político — entre eles, Carlos de Lima Cavalcanti em Pernambuco e Juraci Magalhães na Bahia. A delegacia foi extinta no final de 1931, mas o grupo continuou ativo nas articulações das suas lideranças. Juarez Távora, um ano mais tarde, foi nomeado ministro da Agricultura.

As lideranças do Bloco do Norte também constituíam, em âmbito nacional, o Clube 3 de Outubro. Tratava-se de uma agremiação fundada com a missão de orientar as ações do governo durante o regime de exceção. Faziam parte tenentes militares —como Juarez Távora, Juraci Magalhães e Góis Monteiro — e os chamados tenentes civis — José Américo, Carlos de Lima Cavalcanti, Osvaldo Aranha, Pedro Ernesto. O entendimento sobre o projeto revolucionário e as maneiras de executá-lo era motivo de discordância entre seus membros, mas, via de regra, envolviam o programa da Aliança Liberal de 1930 e as reivindicações dos tenentes nas manifestações dos anos 1920: uma reforma eleitoral; a modernização e racionalização do poder público; a diversificação da economia nacional. Entre as defesas polêmicas do grupo, estava a continuidade da ditadura até que a agenda revolucionária conquistasse estabilidade.

O processo de constitucionalização representou um abalo para o Bloco do Norte. Nas eleições de 1933 e 1934, para formar maioria nas bancadas das assembleias nacional e estaduais, foi preciso construir acordos com as elites locais. Além disso, a imprensa tinha liberdade para criticar a ação do governo e seus integrantes. José Américo, Juarez Távora e Osvaldo Aranha, nesse ínterim, renunciaram aos cargos de ministro — também para blindar a imagem do presidente Getúlio Vargas, então eleito por voto indireto para continuar no cargo em que estava. Saíam os ministros, para criar a sensação de ruptura com o regime autoritário de até então, ficava o presidente, com a proposta de construir um governo constitucional. José Américo foi eleito senador em 1935, mas, sentindo-se deslocado, renunciou ao cargo. Foi então nomeado para o Tribunal de Contas da União (TCU), um posto mais distante dos holofotes da arena política nacional. De toda forma, o grupo seguia forte nos estados: Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti foram eleitos governadores na Bahia e em Pernambuco.

Esse também foi um tempo de desentendimentos pessoais entre as lideranças. Carlos de Lima Cavalcanti rompeu com José Américo, porque julgava que Pernambuco fora preterido na distribuição de recursos para as obras contra as secas. Juarez Távora se decepcionou com a participação do paraibano nos acordos do governo federal com seus opositores, no Ceará, em 1934. A constitucionalização, no mais, resultou em maior autonomia para os governadores. Flores da Cunha, do Rio Grande do Sul, é um bom exemplo desse movimento. Rafael Lapuente (2017)LAPUENTE, R. S. Com a espada de Dâmocles: o Rio Grande do Sul e a política brasileira no governo Flores da Cunha. Curitiba: Prismas, 2017. conta que, a partir desse momento, as decisões do governador do Rio Grande do Sul passaram a divergir das orientações de Getúlio Vargas.

Os direitos civis e políticos apregoados pela Constituição de 1934, no entanto, sofreram abalos já em 1935. Em reação à criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma frente ampla que emplacou críticas ao presidente, o governo conseguiu a aprovação da Lei de Segurança Nacional no Congresso. Nos meses seguintes, com a deflagração do Levante Comunista, foi decretado o estado de sítio, e, mais tarde, o estado de guerra, cuja prorrogação tinha de ser aprovada pelo Congresso Nacional a cada três meses. Algum tempo depois, com a conivência de Getúlio Vargas, a polícia prendeu Pedro Ernesto, prefeito do Rio de Janeiro, acusado sem provas contundentes de ser conivente com os comunistas. Também passou a ser discutida, por sugestão do general Góis Monteiro, uma intervenção federal no Rio Grande do Sul. Era uma ameaça a Flores da Cunha, que também mobilizou apoio e adquiriu armamento para que, se a investida se concretizasse, fosse possível empreender uma reação militar (Lapuente, 2017LAPUENTE, R. S. Com a espada de Dâmocles: o Rio Grande do Sul e a política brasileira no governo Flores da Cunha. Curitiba: Prismas, 2017.; Mourelle, 2019MOURELLE, T. C. O Brasil a caminho do Estado Novo: as cartas de Pedro Ernesto e a trama política que antecede o golpe (1936–1937). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.).

Apesar da escalada autoritária de Getúlio Vargas, tornava-se cada dia mais urgente a escolha do candidato — ou dos candidatos — à Presidência da República para as eleições de 3 de janeiro de 1938. Em princípios de 1936, a imprensa e os aliados do presidente cobravam uma decisão; esperava-se dele a condução dos acordos que levariam à escolha de um nome entre os partidários da Revolução. Flores da Cunha foi dos primeiros a propor nomes — Antonio Carlos, Armando Sales, Medeiros Neto, José Américo —, dizia Getúlio Vargas (1995aVARGAS, G. Diário (1930–1936). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995a.: 541), irritado com os “acordos e conspirações” do conterrâneo.

Na contramão do esforço, no final de junho, Getúlio Vargas incumbiu os ministros Vicente Rao e Agamenon Magalhães de sondar os líderes dos maiores estados quanto à possibilidade de adiar as eleições, prorrogando mandatos do presidente e governadores. Argumentava que os propósitos revolucionários não estavam seguros. Juraci Magalhães desconfiou da proposta e marcou uma audiência com o chefe de Estado. Para despistar, ele lhe disse: “essa é uma ideia que eu só poderia desenvolver com o consenso dos amigos do teu porte. Se pensas em vetá-la, já a considero afastada” (Magalhães, 1996MAGALHÃES, J. O último tenente, em depoimento a J. A. Gueiros. Rio de Janeiro: Record, 1996.: 179). Os governadores do Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul também recusaram (Camargo et al., 1989CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.).

Enquanto isso, os paulistas se articulavam em favor do lançamento da candidatura de Armando Sales. Era uma figura estratégica no estado, por se tratar de um aliado dos revolucionários de 1930, nomeado por Getúlio Vargas como interventor, no ano seguinte à guerra civil de 1932, para construir consenso com a elite paulista. A tarefa foi tão bem-sucedida que ele foi eleito governador em 1935. O seu nome era uma oportunidade para que um paulista voltasse à presidência, na medida em que agradava perrepistas e parcela dos revolucionários. Os acordos aconteciam mesmo sem o apoio do Palácio do Catete. Eram oferecidos jantares e reuniões com políticos, e o pré-candidato fazia discursos elogiados na opinião pública. No final do ano, Armando Sales renunciou ao governo do estado, explicitando a decisão de concorrer à presidência.

De acordo com a constituição, artigo 112, era vedada a candidatura a todo aquele que, no ano anterior ao dia da eleição, estivesse lotado como ministro de estado ou governador. Em outras palavras, os que quisessem concorrer precisavam se desligar dessas funções até 3 de janeiro de 1937. Assim sendo, Getúlio Vargas propôs aos governadores que a pauta da sucessão presidencial ficasse para o início de 1937. Em carta a Osvaldo Aranha, explicou sua ação: “[isto] simplificará muito a solução, reduzindo o número de candidatos”, deixando a escolha limitada àqueles que não ocupavam altas funções e aos afastados a tempo. Carlos de Lima Cavalcanti, Juraci Magalhães e Benedito Valadares concordaram com a fórmula, mas seguiram articulando possíveis candidatos nos bastidores1 1 Carta, 6 ago. 1936, de Getúlio Vargas a Osvaldo Aranha (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), AP Getúlio Vargas). .

Ainda em meados de 1936, houve um esforço de rearticulação do Bloco do Norte. Juarez Távora (1974)TÁVORA, J. Uma vida e muitas lutas: 2. A caminhada no planalto. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974., em suas memórias, transcreveu correspondências que trocou com Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti, governadores da Bahia e de Pernambuco. O propósito era pensar os critérios do grupo na definição do candidato que eles apoiariam: era indispensável que os nortistas fossem considerados em conjunto; o Norte não deveria pleitear, de início, a indicação de um candidato próprio; o candidato deveria manter um programa social-democrático e dar continuidade aos recursos remetidos para a região, bem como reservar para ela dois ministérios. Juarez Távora terminou a carta consultando os dois amigos sobre a possibilidade de, juntos, apoiarem Armando Sales2 2 Carta, 22 out. 1936, de Juarez Távora a Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti (Távora, 1974: 143). .

Getúlio Vargas soube das articulações e registrou, com alguma preocupação, os impactos desse deslocamento:

O ministro do Trabalho [Agamenon Magalhães], regressando do Norte, descobriu o trabalho do Juarez nos estados da Bahia e Pernambuco, também pela candidatura de Armando Sales. (Vargas, 1995aVARGAS, G. Diário (1930–1936). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995a.: 557).

Acreditava-se na época que o eleitorado dos cinco maiores estados era decisivo nos resultados de eleições nacionais. Essa ideia era compartilhada por políticos e usada com naturalidade na imprensa, o que remetia à experiência mais próxima de pleitos com essa natureza — as eleições da Primeira República3 3 Cláudia Viscardi (2001) mostra como as posições dos maiores estados era determinante nos acordos que decidiam os candidatos à presidência durante a Primeira República. . Essa, portanto, acabava sendo a métrica decisiva na escolha das possíveis candidaturas. Sendo assim, o cogitado apoio do Bloco do Norte a Armando Sales minava o poder de arbítrio de Getúlio Vargas na definição do candidato majoritário. Vamos aos cálculos: Flores da Cunha, do Rio Grande do Sul, havia sido dos primeiros adeptos; São Paulo era seu estado de origem; com o acréscimo de Bahia e de Pernambuco, o paulista agregava quatro dos cinco maiores estados. Ficaria de fora Minas Gerais. Isso abria a possibilidade para uma candidatura forte o suficiente para vencer o pleito sem a chancela do governo.

Mas nada estava decidido. Carlos de Lima Cavalcanti dizia fazer alto conceito do paulista e concordava em apoiá-lo, mas não se posicionaria publicamente antes de janeiro, como prometera ao presidente4 4 Carta, 29 nov. 1936, de Carlos de Lima Cavalcanti a Juarez Távora (Távora, 1974: 144). . Juraci Magalhães, apesar de não descartar a possibilidade, preferindo ela a uma extensão do mandato de Getúlio Vargas, continuaria tentando articular outra saída. A escolha de um paulista, lançado pelo PRP, nas primeiras eleições diretas após a Revolução de 1930, era difícil de engolir. O nome que mais agradava a Juraci Magalhães era do senador baiano Medeiros Neto.

Em sentido contrário a esse, Benedito Valadares, governador mineiro, trabalhava para desarticular os possíveis candidatos. Fez acordos com opositores de Antonio Carlos — principal articulador da Revolução de 1930 em Minas Gerais — para as eleições da assembleia estadual mineira, o que desautorizava, segundo Aspásia Camargo et al. (1989)CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989., o poder de comando daquele chefe político dentro de seu próprio estado. Em carta a Getúlio Vargas, ele contou dos desdobramentos da medida para a sucessão presidencial: dizia que Cristiano Machado, figura influente do Partido Republicano Mineiro (PRM), em troca do apoio, estaria disposto “a acompanhar-me francamente na política getulista, indo ao máximo, que seria a continuação do atual presidente. Acredita que o próprio [Artur] Bernardes acabe tomando essa direção”5 5 Carta, 5 ago. 1935, de Benedito Valadares a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Getúlio Vargas). . Getúlio Vargas (1995aVARGAS, G. Diário (1930–1936). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995a.: 537) registrava a movimentação nesses termos: “continuam as articulações políticas feitas por Benedito Valadares, de um lado, para fortalecer o governo, e de outro, o Flores, politicando e conspirando para enfraquecê-lo”.

O fato é que chegou janeiro de 1937 e nada foi decidido. Juraci Magalhães começou o ano disposto a encontrar um nome de consenso para a sucessão presidencial. Teve audiências com o presidente, fez várias visitas e organizou reuniões com lideranças dos maiores estados. No fim do mês, foi a Poços de Caldas, com Benedito Valadares, negociar com os paulistas a desistência de Armando Sales em favor de uma candidatura única (Diário de Notícias, 28 jan. 1937: 4). São Paulo era peça-chave nessas negociações, mas os perrepistas pareciam pouco dispostos a aceitar outro nome. Era importante para Juraci Magalhães e figuras próximas a ele que o grupo governista — os “revolucionários de 1930” — formassem uma candidatura única. Afastar uma campanha competitiva, que dividisse a base do governo em duas partes, era o melhor caminho para segurar a narrativa construída e reconstruída a respeito da Revolução de 1930, seus motivos e projetos de longo prazo, garantindo uma unidade para reapresentá-la ao público em eleição direta.

Os jornais diários, enquanto isso, especulavam os nomes dos possíveis candidatos. Falava-se do senador baiano Medeiros Neto, do empresário paulista J. C. Macedo Soares, do tenente civil gaúcho Osvaldo Aranha, do já pré-candidato paulista Armando Sales. É interessante perceber como o marcador social de região se apresentava como elemento definidor do potencial competitivo das figuras enumeradas. J. C. Macedo Soares fazia frente a Armando Sales no mesmo estado; Osvaldo Aranha representaria a continuação dos gaúchos no poder. Nesse ponto, a resistência dos nortistas, alguns mineiros e gaúchos à candidatura de um paulista com vínculos perrepistas tornaria o nome de Armando Sales incômodo e imporia a necessidade de um concorrente que fizesse frente a São Paulo — nessa situação, o Bloco do Norte era bastante indicado. Sobre essa região, no entanto, José Américo tinha mais autoridade que Medeiros Neto para falar em nome dos ideais revolucionários, tendo sido ele um dos combatentes de primeira hora.

José Américo andava afastado da cena pública desde a nomeação para o TCU. Em 12 de janeiro de 1937, porém, em uma nota no Correio da Manhã, seu conterrâneo Assis Chateaubriand o sugeria como um nome de consenso; o ex-ministro de Viação e Obras Públicas, dizia, decerto teria o apoio de Carlos de Lima Cavalcanti, apesar dos desafetos de outrora, mas também de Juraci Magalhães, Benedito Valadares, Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, João Neves da Fontoura e outros políticos estratégicos, que constituíram a base governista em 1934. Apostando na possibilidade, O Globo e Diário de Notícias fizeram entrevistas com o ministro, que desconversava, dizia só aceitar a candidatura “para atender a uma solução mais ou menos pacífica” (Diário de Notícias, 21 jan. 1937: 5).

Nos meses seguintes, sua sala foi se enchendo: “A Rua Getúlio das Neves povoou-se de procissões solidárias, os camaradas de sempre e caras que eu nunca vira, com o mesmo entusiasmo”, dizia em suas memórias; um garoto certa vez estampara uma faixa na esquina com a inscrição “Rua dos Chaleiras” (Almeida, 1986ALMEIDA, J. A. de. A palavra e o tempo (1937-1945-1950). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.: 12). Enquanto isso, Benedito Valadares e Getúlio Vargas discutiam a possibilidade. O presidente registrou, no dia 22 de janeiro: “recebi o governador de Minas e o ministro do Trabalho. Disseram-me que o Juraci, após entendimentos com o Chateaubriand e os paulistas, pretendia tentar e estava fazendo esforços pela candidatura de José Américo” (Vargas, 1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 14).

No começo de março, Juraci Magalhães incumbiu Medeiros Neto, residente no Rio de Janeiro, de informar a José Américo os acordos que então se montavam: “Benedito comunicou-me [a] fórmula sugerida, sendo objeto [de] estudo”, e seguia: “[Carlos de] Lima Cavalcanti [está] bem disposto”. Mas, entre um e outro, o remetente usou um termo que soava como hesitação: “pronto conversar”6 6 Telegrama, 10 mar. 1937, de Juraci Magalhães a José Américo (Fundação Carlos Joffre do Amaral (FCJA), AP José Américo.). . O governador da Bahia certamente não confiava na palavra do mineiro, porque poderia ser uma cilada para desarticular outras soluções. As vantagens do acordo, contudo, eram grandes: ele implicaria um retorno dos nortistas à presidência da República, um triunfo para o Bloco do Norte depois de sua exitosa campanha na Revolução de 1930 e durante o Governo Provisório. Decidiram apostar. Entre março e maio, assim sendo, José Américo e Juraci Magalhães se puseram em campo para sondar políticos e angariar apoio para a possível candidatura. Um momento simbólico do esforço foi o encontro com Carlos de Lima Cavalcanti:

Manifestou-me ele nessa ocasião, com um admirável senso de solidariedade revolucionária, de quem se sobrepõe aos próprios ressentimentos pessoais, que estaria pronto a colaborar com os grandes estados numa fórmula de reintegração dos princípios democráticos para o bom encaminhamento da sucessão presidencial, ainda que fosse pela minha candidatura7 7 Carta, 21 abr. 1937, de José Américo a Juraci Magalhães (Camargo et al., 1989: 503). .

Um tempo depois, o deputado gaúcho João Carlos Machado intermediou suas conversas com Flores da Cunha, que estava rompido com o presidente, mas autorizou José Américo a tentar uma aproximação. As negociações, contudo, travaram mais uma vez em São Paulo. Notícias davam a entender que Armando Sales concordara com a articulação, mas a possibilidade não passaria no PRP. José Américo também esteve com o presidente no Palácio Rio Negro, em Petrópolis. Getúlio Vargas (1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 37) dissera não fazer oposição ao seu nome: “considerava-o até uma reserva para a qual poderia eventualmente apelar no sentido de resolver o caso da sucessão”. Mas as desconfianças continuavam. Artur Neiva, deputado pela Bahia, avaliava, em carta a Juraci Magalhães: “Até hoje, o Getúlio não conseguiu dissipar totalmente a impressão de que deseja continuar. Os desmentidos surgem da gente que o rodeia”8 8 Carta, 24 abr. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva). . O governador da Bahia e o provável candidato se falavam sempre que possível, por telefone ou telegrama9 9 Um jornalista relatou que, durante uma entrevista, José Américo recebeu ligação de Juraci Magalhães. Também há registros de que trocaram mensagens por telégrafo depois da ida de José Américo a Petrópolis (Correio da Manhã, 17 set. 1937: 1; Diário de Notícias, 27 abr. 1937: 10). .

O Rio Grande do Sul, no dia 11 de maio, lançou a candidatura de Armando Sales. Flores da Cunha dizia ter tentado um nome consensual, mas, com os atropelos do governo, era impraticável aguardar mais: “se houvesse necessidade de um fato concreto para caracterizar a atual situação política brasileira, evocamos este: estamos a menos de oito meses da data prefixada legalmente para a eleição” (Diário de Notícias, 12 maio 1937: 4). Benedito Valadares e Getúlio Vargas faziam reuniões reservadas e trocavam telegramas cifrados, em que discutiam a sucessão presidencial. No dia 18, sentindo perder o timing, finalmente, o presidente confirmou “nenhuma objeção tenho ao […] dr. José Américo, meu ex-ministro, meu amigo e a quem reconheço altas e nobres qualidades”10 10 Telegramas, 18 maio 1937, de Benedito Valadares a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Benedito Valadares). . Dois dias depois, o governador mineiro recebeu delegados de vários estados em Belo Horizonte, agendando para breve uma Convenção Nacional.

OS AVANÇOS E RECUOS DA CANDIDATURA GOVERNISTA NA CAMPANHA PRESIDENCIAL

A Convenção Nacional aconteceu na noite de 25 de maio, no Palácio Monroe, sede do Senado, na cidade do Rio de Janeiro. Benedito Valadares assumiu a presidência da sessão, ao termo da qual foi aclamado José Américo (Correio da Manhã, 25 maio 1937: 1). Assim decidido, era hora de organizar a campanha. No começo de junho, o candidato discutia a montagem do comitê oficial. Artur Neiva, em carta a Juraci Magalhães, contou do desejo de José Américo que os governadores aliados fossem à Capital Federal. Mas o próprio remetente achava essa uma péssima ideia: “Meu modo de entender, e o digo fraternamente, não lhe iria bem, como governador da Bahia, chefiar aqui no Rio a propaganda” — havia, afinal, outras demandas a cumprir em seu estado. Os pernambucanos, dizia, teriam sugerido a mesma coisa a Carlos de Lima Cavalcanti11 11 Carta, 15 maio 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva). .

Uma posição diferente dessa foi tomada por Benedito Valadares, que se arvorou coordenador de campanha e convidou o candidato para dar início aos trabalhos oficiais em Belo Horizonte. Participaram de duas atividades: primeiro, a sessão solene no Teatro Municipal, e, em seguida, um comício popular. Em seus discursos, José Américo exaltou os mártires da Inconfidência Mineira e seu ideal republicano de liberdade e citou alguns dos caminhos pelos quais julgava ser possível alcançá-la: ampliar os serviços do Estado no interior — “o médico, a escola, a justiça” —, bem como a infraestrutura das estradas de ferro e rodagem que interligassem o interior do país (Correio da Manhã, 22 jun. 1937: 1).

Em todo caso, é interessante notar que não se tratava de discursos propositivos: seu discurso era, antes, uma apresentação de si e suas intenções. Mostrava-se defensor da democracia, crítico aos excessos de liberalismo, e, assim, favorável aos programas de justiça social. Mas seguia sem anunciar o que pretendia fazer. Faltava-lhe uma plataforma de governo. A construção de um programa, afinal de contas, não é uma tarefa simples e não depende apenas da vontade do candidato; é preciso negociar os termos com a sua base de apoio, pensar nos interesses do eleitorado e na legitimidade da candidatura em representá-la. Uma nota do Correio da Manhã (9 maio 1937: 4) dizia que José Américo andava estudando os problemas do café, decerto tentativa de aproximação de uma parcela dissidente da elite paulista

Ainda que pouco propositivos, os discursos tiveram um papel fundamental na divulgação da candidatura para além do próprio público mineiro. Transcritos nos jornais e lidos no rádio, eles surgiam como uma carta de intenções aos leitores e ouvintes, sendo explorados pelos comunicadores, que tomavam partido no pleito. O Correio da Manhã era um dos veículos mais entusiasmados com a campanha de José Américo — as atividades do ministro ocupavam espaços destacados na folha. A coluna de Costa Rego, editor do jornal, defendia-o em várias pautas. O Diário de Notícias (16 jun. 1937: 1), por sua vez, se posicionou a favor de Armando Sales e pegou pesado nas críticas ao adversário. Na manchete “José Américo, pseudônimo de Getúlio Vargas”, o jornal associava-o ao autoritarismo do governo.

O presidente, contudo, seguia tomando medidas autoritárias, com a renovação do estado de guerra e manutenção das prisões políticas. Ainda em março, Getúlio Vargas havia decretado a intervenção federal no Maranhão, Mato Grosso e, com maior impacto, no Distrito Federal, este último às vésperas do julgamento do prefeito Pedro Ernesto no Tribunal de Segurança Nacional. Essa medida, conta Thiago Mourelle (2019)MOURELLE, T. C. O Brasil a caminho do Estado Novo: as cartas de Pedro Ernesto e a trama política que antecede o golpe (1936–1937). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., impedira um retorno ao poder caso ele fosse solto. Mas o efeito imediato foi a desarticulação da Câmara, na medida em que o padre Olímpio de Melo, vice-prefeito eleito, foi nomeado interventor. Em paralelo a isso, voltou a ser discutida, em maio, uma possível intervenção no Rio Grande do Sul, com novas articulações dos generais Góis Monteiro e Eurico Dutra para desmontar a influência militar de Flores da Cunha na região (Camargo et al., 1989CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.).

O escritório de propaganda foi inaugurado no dia 23 de junho de 1937, na esquina da Rua do Ouvidor com a Uruguaiana, centro do Rio de Janeiro. Realizou-se uma cerimônia rápida, com discurso do candidato e presença de aliados (Correio da Manhã, 24 jun. 1937: 2). Juraci Magalhães, enquanto isso, trabalhava de seu gabinete na Bahia. Desde a última semana de maio, enviara centenas de cartas e telegramas a várias partes do país e recebera uma multidão de respostas. Aníbal Duarte, governador do Pará, dizia ter marcado um grande comício, e pretendia estender a campanha por todo o Norte. Em anexo, remetia um impresso direcionado às mulheres, cujo direito ao voto havia sido regulamentado em território nacional desde 1932. Avelino Pereira, do jornal A Tarde, em Manaus, remeteu recortes de folhas da oposição, cujo discurso pretendia reverter12 12 Cartas a Juraci Magalhães, 29 maio 1937, de Aníbal Duarte; 7 jul. 1937, de Avelino Pereira (CPDOC, AP Juraci Magalhães). .

O Dr. Plácido Rocha, médico e cirurgião em Araçatuba, São Paulo, enviava cartas ao eleitorado local e distribuía cartões, nos quais se oferecia para dar informações sobre o alistamento eleitoral. Além deles, Juraci Magalhães teve respostas de João Caruso, advogado em Boa Vista do Erechim, Rio Grande do Sul; e de Francisco Abdoral de Lacerda, agrimensor em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. Em meio a esse movimento entusiasmado, soube de pelo menos dois comitês montados fora da capital federal: um em Belém do Pará e outro no Recife13 13 Cartas a Juraci Magalhães, 2 jun. 1937, de Plácido Rocha; 24 jul. 1937, de Aníbal Duarte; 27 jul. 1937, de Luiz Djalma Siqueira Granja; 31 jul. 1937, de João Caruso; 2 ago. 1937, de Francisco Lacerda (CPDOC, AP Juraci Magalhães). . Uma parcela importante dos apoiadores, portanto, não eram senhores de terra e nem prefeitos locais, mas profissionais liberais e jornalistas com projeção nas cidades e subsequente poder para disseminar ideias na opinião pública.

Zélo Materno, autor e editor de folhetos em Campina Grande, na Paraíba, remeteu a Juraci Magalhães uma cópia do impresso A Redenção do Brasil, uma biografia em versos de José Américo de sua autoria, com oito páginas e miolo em folhas de jornal. Na primeira página, única em prosa, convidou os leitores a votarem em seu protagonista. Exaltou sua liderança durante a Revolução de 1930 no Norte e a atuação no Ministério de Viação e Obras Públicas. Fazia mais: apresentava-o como patriota cristão, único capaz de vencer o comunismo. Na carta, solicitava recursos para continuar a campanha14 14 Carta, 27 ago. 1937, de Zélo Materno a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Juraci Magalhães). .

Em correspondência com Artur Neiva, Juraci Magalhães explicava sua estratégia: “Tenho ativado o alistamento. Trabalho sem cessar no preparo de um terreno desfavorável aos adversários. Desejo prevenir os ‘milagres do dinheiro’… A antecipação do trabalho eleitoral facilitará nossa vitória. Luto por elevar a 350 mil nosso eleitorado de 217 mil”15 15 Carta, 12 jun. 1937, de Juraci Magalhães a Artur Neiva (CPDOC, AP Artur Neiva). . No último caso, devia estar se referindo ao alistamento eleitoral na Bahia. Esse recurso de usar as correspondências para formar alianças nos municípios havia dado certo nas eleições da Bahia em 1933 e 1934 (Pinho, 2010PINHO, A. L. C. de A. De forasteiro a unanimidade: a interventoria de Juracy Magalhães na Bahia (1931–1934). 2010. 154 f. Dissertação (Mestrado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2010.).

No final de maio, J. C. Macedo Soares foi nomeado ministro da Justiça. E, entre suas primeiras medidas, liberou 408 presos políticos, atitude que ficou conhecida como “Macedada”. Também na ocasião, ele conseguiu convencer o presidente a não solicitar a renovação do estado de guerra. A pressão exercida por Juraci Magalhães, que poderia orientar a bancada baiana a votar contra, foi decisiva. O próprio José Américo pressionou o presidente (Vargas, 1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 53). Em 3 de julho, um novo interventor tomou posse no Rio de Janeiro. Henrique Dodsworth, conforme Thiago Mourelle (2019)MOURELLE, T. C. O Brasil a caminho do Estado Novo: as cartas de Pedro Ernesto e a trama política que antecede o golpe (1936–1937). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., aparecia como um pacificador, em substituição a Olímpio de Melo, impopular e rejeitado por uma parcela da elite política local. O novo prefeito se empenhou em mobilizar o eleitorado carioca a favor da campanha governista.

José Américo, nesse momento, passaria a aparecer nos eventos públicos da cidade, como a inauguração dos trens elétricos da Central do Brasil e das estátuas de Siqueira Campos, em Copacabana, e de João Pessoa, em Botafogo (Correio da Manhã, 11 jul. 1937: 3; 31 jul. 1937: 3). Nesse tempo, houve comícios em Vitória e Juiz de Fora. A campanha deslanchava. Em desenho na revista Careta (Figura 1), Alfredo Storni tratava das novas relações do candidato com o presidente.

Figura 1
Charge de Alfredo Storni sobre a campanha presidencial de José Américo.

O candidato oposicionista Armando Sales fez um grande comício às 20 horas do dia 16 de julho no estádio do América Futebol Clube, no Rio de Janeiro. O Diário de Notícias falava em 50 mil pessoas, um dos maiores já organizados no país. Na mesma semana, os jornais davam notícia do meeting do candidato governista, que aconteceria no dia 24. Nesse propósito, circularam cartazes e faixas convidando os transeuntes a participar do evento. Um temporal, porém, tomou a cidade, e o encontro foi adiado para 31 de julho, às 17h, quando trabalhadores urbanos encerravam suas jornadas de trabalho.

À hora marcada, segundo notícias do Correio da Manhã, 100 mil pessoas se encontravam na Esplanada do Castelo, centro da Capital Federal. José Américo chegou “conduzido suspenso pelos universitários paulistas até o palanque” e aplaudido pelo eleitorado presente. Falaram políticos e representantes civis, e, depois, o candidato. Esse foi seu discurso mais propositivo, quase a apresentação de um programa de governo; “a plataforma ideal não sairia feita dos livros alheios e, sim, do espírito que formei. Seria a tessitura de um pensamento político: cada palavra, uma convicção; cada princípio, uma profissão de fé; cada promessa, um ponto de honra” (Almeida, 1986ALMEIDA, J. A. de. A palavra e o tempo (1937-1945-1950). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.: 51-52).

Ao tratar dos problemas da nação, José Américo citou a importância de valorizar as possibilidades do homem e da terra; investir em recursos naturais — ferro, petróleo, carvão de pedra, água, trigo, entre outros; abrir estradas de ferro e rodagem; fazer propaganda do país no exterior; e fornecer recursos para a indústria de guerra. Rememorou, então, os feitos de sua gestão como ministro para lançar outras propostas. Nos tempos do Governo Provisório, ele fora responsável pela redução do preço dos bilhetes de bondes e trens, barateamento das tarifas de energia e gás e melhoramento dos serviços dos Correios e Telégrafos. Dotado do mesmo espírito de justiça, daria habitação aos mais pobres e pavimentaria os subúrbios — citou o caso da Baixada Fluminense. E arriscou: “eu sei onde está o dinheiro, em vez de um arranha-céu, serão duzentas casas” (Almeida, 1986ALMEIDA, J. A. de. A palavra e o tempo (1937-1945-1950). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.).

Transmitidas no rádio e nos jornais, suas palavras ressoaram na opinião pública e entre os políticos. Costa Rego faria eco às notícias que tomaram as primeiras páginas do Correio da Manhã (1 ago. 1937: 2) com elogios à oratória do candidato. O Diário de Notícias (1 ago. 1937: 4) só deu notícia na quarta página, e, mesmo assim, falava de uma reunião “sem entusiasmo”, decepcionante, incapaz de empolgar: “uma claque mal treinada […] organizada à última hora pelo sr. [Henrique] Dodsworth”. Artur Neiva, em carta de 3 de agosto, dizia a Juraci Magalhães do sucesso do comício: “o êxito […] foi verdadeiramente extraordinário e desorientador para os nossos adversários que vivem agora a explorar as ideias defendidas com tanto brilho e elevação pelo nosso candidato”. Na Câmara, teria ficado a ideia de que se pretendia fazer uma “revolução social”16 16 Carta, 3 ago. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva). .

Era o ponto alto da campanha, que finalmente parecia mostrar sua força. Poucos dias mais tarde, no entanto, o presidente e figuras próximas a ele voltaram a negociar na Câmara a intervenção no Rio Grande do Sul. Artur Neiva desconfiava de uma estranha aproximação do mineiro Pedro Aleixo, presidente da casa, de João Neves da Fontoura, líder da Frente Única Gaúcha, então opositora de Flores da Cunha17 17 Carta, 6 ago. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva). . A possível aprovação da intervenção federal, como as demais medidas autoritárias tentadas pelo presidente, poderia abalar mais uma vez a candidatura governista. José Américo, ciente disso, foi ao presidente tentar uma saída pacífica. Isso depois de um encontro reservado com Macedo Soares, que o encorajou a isso (Vargas, 1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 63).

É importante destacar que, em 24 de junho, a Ação Integralista Brasileira (AIB) havia lançado a candidatura de Plínio Salgado. Essa entrada, ainda que sem chances de vencer o pleito, impactou a disputa de narrativas. Gustavo Barroso, também integralista, escreveu o livro Reflexões de um bode, fazendo referência a Reflexões de uma cabra, novela publicada por José Américo em 1922, embora trouxesse outro caprino, esse para fazer alusão ao trocadilho com o “bode expiatório”. O texto tinha por objetivo condenar o espírito de esquerda “antirreligioso, anticlerical, maçônico e imoralíssimo” (Barroso, 1937BARROSO, G. Reflexões de um bode. Rio de Janeiro: Gráfica Educadora Limitada, 1937.: 9) do candidato governista. Fez isso distorcendo trechos, sobretudo quando o novelista desconstruía a língua culta, citava militares e párocos. O mês de agosto de 1937, de acordo com Rodrigo Patto Sá Motta (2002)MOTTA, R. P. S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917–1964). São Paulo: Perspectiva, 2002., representou uma retomada da campanha anticomunista no Brasil. Plínio Salgado especulava que, nas candidaturas de José Américo e Armando Sales, havia gente com vínculos com o Partido de Moscou.

No dia 21 de agosto, o Diário de Notícias publicou uma nota em que ironizava a passagem do discurso de José Américo na Esplanada do Castelo: “Eu sei onde está o dinheiro”. Sendo ele um membro do governo, por que razão não intervira para que esse dinheiro fosse usado corretamente? (Diário de Notícias, 21 ago. 1937: 5). Na mesma noite em que saiu essa crítica, ocorreu o lançamento do comitê nacional de propaganda, em uma cerimônia presidida por Batista Luzardo. José Américo, na ocasião, fez críticas às ideologias antidemocráticas — comunismo e integralismo —, também como tentativa de marcar sua diferença de ambos. Não deu certo. Nas semanas seguintes, a própria base aliada criticaria suas posturas.

A partir do dia 27, Getúlio Vargas (1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 68) fez registros dos informes que lhe chegavam: “Começo a receber impressões um tanto alarmadas dos políticos a respeito dos discursos do José Américo”. Osvaldo Aranha, embaixador brasileiro em Washington, disse que “com mais um desses discursos, custa crer que possa ganhar as eleições”. O que o incomodava era a falta de tato para montar um discurso que não atacasse o governo18 18 Carta, 24 ago. 1937, de Osvaldo Aranha a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Getúlio Vargas). . Benedito Valadares, coordenador oficial da campanha, fazia coro aos ataques nos bastidores da cena política nacional, e, nos dias seguintes, teve encontros reservados com o presidente, alguns com a presença do general Góis Monteiro (Vargas, 1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.).

José Américo, nesses dias, estava em atividade de campanha na Bahia, cujo governador era seu amigo e maior aliado, Juraci Magalhães. Em 24 de agosto, teria sido recebido por 50 mil pessoas. A convenção aconteceu à noite, no Teatro Guarani. O candidato reafirmou seu compromisso democrático: “Trocam-se túnicas e blusas pelas camisas verdes dos inimigos do regime e está vivo o olho de Moscou. Quem não é integralista é comunista, segundo o dilema capcioso”. E afirmava: “Haverá sucessão!”:

Façamos justiça ao sr. Getúlio Vargas. Não lhe passaria pela mente semelhante aberração. Prossigamos nossa campanha — nós e nossos adversários — na certeza de que não estamos perdendo o tempo. Haverá sucessão. Aconteça o que acontecer, haverá sucessão. Ainda que o atual Presidente da República pensasse em perpetuar-se, a Nação cumpriria o seu dever. Correria às urnas para votar, até debaixo de bala. (Almeida, 1986ALMEIDA, J. A. de. A palavra e o tempo (1937-1945-1950). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.: 71).

Nos próximos dias, José Américo viajou pelo interior da Bahia, visitou Cachoeira, São Félix, Feira de Santana, Ilhéus etc. Em cada cidade, foi recebido pela população, encontrou políticos, proferiu discursos (Correio da Manhã, 25 ago. 1937: 2).

De volta ao Rio de Janeiro, o candidato e o governador da Bahia foram recebidos pela base aliada em clima inóspito. No começo de setembro, os chefes dos estados de Minas Gerais, Pernambuco e Bahia se reuniram para pensar novos rumos para a campanha. Benedito Valadares chegou a cogitar a escolha de um novo nome, mas, para isso, voltava-se à condição que Rio Grande do Sul e São Paulo também abdicassem da candidatura de Armando Sales (Mourelle, 2019MOURELLE, T. C. O Brasil a caminho do Estado Novo: as cartas de Pedro Ernesto e a trama política que antecede o golpe (1936–1937). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.). Getúlio Vargas (1995bVARGAS, G. Diário (1937–1945). Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.: 70) registrou que a intenção do mineiro era mesmo investir em uma saída autoritária para a crise: “o ministro da Guerra, com quem conversei, também é favorável”.

Em 13 de setembro, Pedro Ernesto foi inocentado pelo Supremo Tribunal Militar, decisão que foi comemorada pela população da cidade. Mais tarde, ele declararia apoio a Armando Sales. Esse acontecimento abalou a base governista, que temia a vitória do paulista. Marcou-se nova convenção para reorientar a candidatura. Os jornais ironizavam: “O sr. José Américo será provavelmente escolhido pela segunda vez, mas só receberá o batismo sob severas condições de obediência” (Diário de Notícias, 10 set. 1937: 4). O encontro ficou para o dia 18, e teve a presença de líderes políticos de várias regiões do país (Figura 2).

Figura 2
Segunda convenção pela candidatura de José Américo no Rio de Janeiro.

Benedito Valadares, na ocasião, reafirmou o seu apoio — “trabalhemos, com ardor, pela vitória do candidato José Américo” —, mas lamentou a intransigência de São Paulo e Rio Grande do Sul, que não permitiram a construção de uma chapa única, que teria sido melhor para o país. E encerrou com uma homenagem a Getúlio Vargas. Juraci Magalhães demarcou a sua defesa do regime democrático. Carlos de Lima Cavalcanti, por sua vez, disse que os pernambucanos “são homens de uma só palavra e de uma só atitude”, saudou o candidato e o Brasil. Era notória a insatisfação dos nortistas com a crise inventada por figuras próximas ao presidente. José Américo fez um discurso comedido:

Eu dissera na Bahia que se fosse abandonado pelos políticos, marcharia com o povo […]. O que vos prometo, agora, em troca dessa generosa reafirmação de confiança, é nunca mais falar nisso. Nunca mais admitir, sequer, por hipótese, como fiz na Bahia, a possibilidade de que viésseis a abandonar-me. (Correio da Manhã, 19 set. 1937: 1).

Foram reorganizadas as estratégias da candidatura. Batista Luzardo reuniu os cabos eleitorais fluminenses. Governadores e outras lideranças recobraram o fôlego da campanha nos estados. Em 25 de setembro, houve um comício em Niterói, no estado do Rio de Janeiro. O Diário de Notícias (19 set. 1937: 1) atestava a mudança: “depois da crise, a ressurreição”. A campanha parecia, finalmente, andar. Mas não durou muito. Artur Neiva, em carta a Juraci Magalhães, contava dos problemas do comitê: “a escassez de dinheiro é total”, e sem recursos não há como organizar uma campanha. Batista Luzardo tentou conseguir verba com o presidente, Benedito Valadares prometeu remeter alguma quantia, mas tardava a chegar e não era suficiente. A sensação era de terra arrasada19 19 Carta, 28 set. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva). .

O deputado também notou um clima estranho nos bastidores da política nacional. Em 20 de setembro, um churrasco organizado para comemorar a Guerra dos Farrapos reuniu o presidente e vários deputados gaúchos, oportunidade em que se falava em tirar um tirano do poder — que seria Flores da Cunha. Artur Neiva, mais uma vez, atentava — como dizem os argentinos, “hay algo nel aire” — e tinha razão. Em 27 de setembro, o general Dutra convocou uma reunião para tratar de um documento apreendido pelo Exército — o Plano Cohen —, que trazia instruções para um novo levante comunista20 20 Anos mais tarde, de acordo com Hélio Silva (1980), o general Góis Monteiro assumiu a falsidade do documento; seu autor fora o coronel Olímpio Mourão Filho. . O alarde seria o motivo para que os militares solicitassem ao presidente o decreto de estado de guerra, aprovado em sessão polêmica na Câmara. Flores da Cunha, com isso, perdeu o controle do estado, renunciou e se exilou no Uruguai.

O Conselho de Propaganda Pró-José Américo até tentou manter a imagem de que a campanha continuava. O Correio da Manhã (5 out. 1937: 3) divulgou as caravanas que aconteceriam até o fim do ano. Mas a verdade é que o trabalho fora abalado pela escalada autoritária do governo federal. José Américo visitou várias pessoas, entre eles o ministro Dutra, o deputado Otávio Mangabeira e o tenente-coronel Eduardo Gomes. Enquanto isso, soube que o secretário do seu comitê, Negrão de Lima, sem seu consentimento, viajou ao Norte, sugerindo aos governadores a retirada de sua candidatura. O candidato denunciou o que acontecia na imprensa (Correio da Manhã, 30 out. 1937: 14). No dia 8 de novembro, Armando Sales se posicionou em uma carta aberta Aos Chefes Militares do Brasil, lida por dois aliados na Câmara e no Senado. Temendo a resistência dos civis, os generais anteciparam o golpe de estado que se planejava para o dia 15 de novembro.

Em 10 de novembro, os palácios da Câmara e do Senado amanheceram cercados pela polícia; as duas instituições ficariam fechadas, e, em 2 de dezembro, os partidos políticos foram extintos. Por volta das 10 horas, o presidente e os ministros, exceto Odilon Braga, assinaram a nova Constituição. Às 20 horas, Getúlio Vargas proferiu no rádio seu Manifesto à Nação, no qual sugeria que a campanha eleitoral estaria dando oportunidade para que caudilhos, em diferentes regiões do país, estabelecessem seus planos para retornar ao poder. A despeito dos governadores eleitos que ficaram na chefia dos estados como interventores, Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti perderam os cargos. José Américo voltou ao TCU. A força política do Bloco do Norte declinava com a emergência do Estado Novo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas das interpretações hegemônicas a respeito da campanha presidencial, e, consecutivamente, do golpe de estado de 1937, por vezes tomam os acontecimentos que deslancharam no Estado Novo como uma consequência lógica da escalada autoritária que tomou fôlego a partir da Lei de Segurança Nacional de 1935. Era como se o desejo do presidente — e de uma ala mais próxima a ele — de permanecer no poder fosse suficiente para decidir os caminhos da República. Os candidatos, nessa conta, teriam papel secundário. Esse texto foi na contramão dessa leitura. Nada estava certo pelo menos até setembro de 1937. Com as cartas em jogo — nas palavras de Artur Neiva, “sur de rolette” —, as possibilidades eram muitas: o candidato governista poderia emplacar, a oposição tinha grandes chances e planejava-se o golpe.

Apostar na campanha não era perder tempo. Os resultados, afinal, dependiam da ação dos políticos, militares e civis envolvidos. Desde meados de 1936, pelo menos, várias figuras trabalharam na arena pública em favor da definição das candidaturas, e, consequentemente, da realização das eleições. Esse trabalho pressionou o governo a escolher um candidato, e, em vários momentos, a efetivamente trabalhar em seu favor — em particular entre junho e julho de 1937. Isso nos mostra que as resistências a um golpe podem se dar de muitas maneiras, entre elas, dando sequência ao trabalho eleitoral. José Américo e Armando Sales, como pudemos acompanhar, não foram passivos à escalada autoritária. Tanto que as mobilizações na imprensa e no parlamento do começo de novembro fizeram os generais anteciparem os preparativos do golpe.

A candidatura de José Américo permitiu que um marcador de região — o Norte — sobressaísse na arena pública. Seu nome foi escolhido não apenas devido à sua trajetória, mas também aos tenentes civis e militares nortistas que constituíram sua base de apoio, em particular Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti. Chancelar um nortista na competição foi a maneira encontrada por Getúlio Vargas e Benedito Valadares de evitar o fortalecimento do paulista Armando Sales. Da parte das lideranças do Bloco do Norte, entre investir na campanha de um perrepista e arriscar uma candidatura nortista apoiada pelo governo, optaram pelo segundo caminho, ainda que desconfiassem das intenções do presidente e do governador de Minas Gerais.

O governo jogou contra seu próprio candidato oficial, sobretudo a partir de agosto de 1937. Fez isso com a articulação do golpe de estado que suspendeu as eleições, mas já mostrava sinais antes, marcando uma posição autoritária que atrapalhava a candidatura de José Américo. Apesar disso, o grupo se manteve no jogo, tentou negociar com o presidente, redirecionou caminhos, buscou novas possibilidades. As correspondências de Juraci Magalhães e os discursos de José Américo — que ele sabia que seriam replicados na imprensa, com repercussão em vários estados — foram estratégicos para pensar uma eleição nacional com os meios de comunicação e transporte então disponíveis. Foi por meio dos discursos, principalmente, que o candidato tentou emplacar sua narrativa, ora ajustando-se, ora distanciando-se do governo, na medida em que a posição de governista exigia dele coerência com o presidente, mas a circunstância de candidato impunha que se opusesse às medidas autoritárias.

NOTAS

  • 1
    Carta, 6 ago. 1936, de Getúlio Vargas a Osvaldo Aranha (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), AP Getúlio Vargas).
  • 2
    Carta, 22 out. 1936, de Juarez Távora a Juraci Magalhães e Carlos de Lima Cavalcanti (Távora, 1974TÁVORA, J. Uma vida e muitas lutas: 2. A caminhada no planalto. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 143).
  • 3
    Cláudia Viscardi (2001)VISCARDI, C. M. R. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. mostra como as posições dos maiores estados era determinante nos acordos que decidiam os candidatos à presidência durante a Primeira República.
  • 4
    Carta, 29 nov. 1936, de Carlos de Lima Cavalcanti a Juarez Távora (Távora, 1974TÁVORA, J. Uma vida e muitas lutas: 2. A caminhada no planalto. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 144).
  • 5
    Carta, 5 ago. 1935, de Benedito Valadares a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Getúlio Vargas).
  • 6
    Telegrama, 10 mar. 1937, de Juraci Magalhães a José Américo (Fundação Carlos Joffre do Amaral (FCJA), AP José Américo.).
  • 7
    Carta, 21 abr. 1937, de José Américo a Juraci Magalhães (Camargo et al., 1989CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.: 503).
  • 8
    Carta, 24 abr. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 9
    Um jornalista relatou que, durante uma entrevista, José Américo recebeu ligação de Juraci Magalhães. Também há registros de que trocaram mensagens por telégrafo depois da ida de José Américo a Petrópolis (Correio da Manhã, 17 set. 1937: 1; Diário de Notícias, 27 abr. 1937: 10).
  • 10
    Telegramas, 18 maio 1937, de Benedito Valadares a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Benedito Valadares).
  • 11
    Carta, 15 maio 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 12
    Cartas a Juraci Magalhães, 29 maio 1937, de Aníbal Duarte; 7 jul. 1937, de Avelino Pereira (CPDOC, AP Juraci Magalhães).
  • 13
    Cartas a Juraci Magalhães, 2 jun. 1937, de Plácido Rocha; 24 jul. 1937, de Aníbal Duarte; 27 jul. 1937, de Luiz Djalma Siqueira Granja; 31 jul. 1937, de João Caruso; 2 ago. 1937, de Francisco Lacerda (CPDOC, AP Juraci Magalhães).
  • 14
    Carta, 27 ago. 1937, de Zélo Materno a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Juraci Magalhães).
  • 15
    Carta, 12 jun. 1937, de Juraci Magalhães a Artur Neiva (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 16
    Carta, 3 ago. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 17
    Carta, 6 ago. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 18
    Carta, 24 ago. 1937, de Osvaldo Aranha a Getúlio Vargas (CPDOC, AP Getúlio Vargas).
  • 19
    Carta, 28 set. 1937, de Artur Neiva a Juraci Magalhães (CPDOC, AP Artur Neiva).
  • 20
    Anos mais tarde, de acordo com Hélio Silva (1980)SILVA, H. A ameaça vermelha: o Plano Cohen. Porto Alegre: L&PM, 1980., o general Góis Monteiro assumiu a falsidade do documento; seu autor fora o coronel Olímpio Mourão Filho.
  • *
    Este texto é produto da tese de doutorado José Américo de Almeida, da infância no Engenho Olho d’Água à campanha presidencial de 1937, orientada pela professora Lucia Grinberg, defendida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em 2021, nota 10.
  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, J. A. de. O ciclo revolucionário no Ministério de Viação Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1934.
  • ALMEIDA, J. A. de. A palavra e o tempo (1937-1945-1950) Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
  • BARROSO, G. Reflexões de um bode Rio de Janeiro: Gráfica Educadora Limitada, 1937.
  • BRASIL. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934) Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm Acesso em: 2 dez. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm
  • BURITY, L. M. D. José Américo de Almeida, da infância no Engenho Olho d’Água à campanha presidencial de 1937 2021. 418 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
  • CORREIO DA MANHÃ. Impressões Rio de Janeiro, 9 maio 1937, p. 4.
  • CORREIO DA MANHÃ. A sucessão presidencial Rio de Janeiro, 25 maio 1937, p. 4.
  • CORREIO DA MANHÃ. A visita do sr. José Américo a Belo Horizonte Rio de Janeiro, 22 jun. 1937, p. 1.
  • CORREIO DA MANHÃ. A situação política Rio de Janeiro, 24 jun. 1937, p. 2.
  • CORREIO DA MANHÃ. Foram ontem inaugurados os trens elétricos nos subúrbios da Central do Brasil Rio de Janeiro, 11 jul. 1937, p. 3.
  • CORREIO DA MANHÃ. A inauguração da estátua de João Pessoa Rio de Janeiro, 31 jul. 1937, p. 3.
  • CORREIO DA MANHÃ. O comício de ontem, na Esplanada do Castelo, foi uma vibrante demonstração de civismo Rio de Janeiro, 1 ago. 1937, p. 1.
  • CORREIO DA MANHÃ. A Bahia recebe, sob calorosos e entusiasmados aplausos, o sr. José Américo Rio de Janeiro, 25 ago. 1937, p. 2.
  • CORREIO DA MANHÃ. Fala ao “Correio da Manhã” o sr. José Américo Rio de Janeiro, 17 set. 1937, p. 1.
  • CORREIO DA MANHÃ. Uma prova irrespondível da solidez da candidatura do sr. José Américo Rio de Janeiro, 19 set. 1937, p. 1.
  • CORREIO DA MANHÃ. A situação política Rio de Janeiro, 5 out. 1937, p. 3.
  • CORREIO DA MANHÃ. O sr. Negrão de Lima não tem nenhum mandato do senhor José Américo Rio de Janeiro, 30 out. 1937, p. 14.
  • CAMARGO, A.; PANDOLFI, D.; GOMES, E.; D’ARAÚJO, M. C.; GRYNSZPAN, M. O golpe silencioso Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Há vinte brasileiros para a presidência da República Rio de Janeiro, 21 jan. 1937, p. 4.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Combinações em torno da sucessão presidencial Rio de Janeiro, 28 jan. 1937, p. 4.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Política Rio de Janeiro, 27 abr. 1937, p. 10.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. A candidatura do sr. Armando de Sales Oliveira Rio de Janeiro, 12 maio 1937, p. 4.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. José Américo de Almeida, pseudônimo de Getúlio Vargas Rio de Janeiro, 16 jun. 1937, p. 1.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. A situação política Rio de Janeiro, 1 ago. 1937, p. 4.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. A situação política Rio de Janeiro, 21 ago. 1937, p. 5.
  • DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Nova convenção de governadores Rio de Janeiro, 10 set. 1937, p. 4.
  • LAPUENTE, R. S. Com a espada de Dâmocles: o Rio Grande do Sul e a política brasileira no governo Flores da Cunha. Curitiba: Prismas, 2017.
  • LOPES, R. H. Um vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 1932. 2014. 315 f. Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2014.
  • MAGALHÃES, J. O último tenente, em depoimento a J. A. Gueiros Rio de Janeiro: Record, 1996.
  • MOTTA, R. P. S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917–1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • MOURELLE, T. C. O Brasil a caminho do Estado Novo: as cartas de Pedro Ernesto e a trama política que antecede o golpe (1936–1937). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.
  • OFFERLÉ, M. Les partis politiques 4. ed. Paris: PUF, 2002.
  • PINHO, A. L. C. de A. De forasteiro a unanimidade: a interventoria de Juracy Magalhães na Bahia (1931–1934). 2010. 154 f. Dissertação (Mestrado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2010.
  • RICCI, P. As eleições na Era Vargas: que regime representativo é esse? In: RICCI, P. (org.). O autoritarismo eleitoral dos anos trinta e o código eleitoral de 1932 Curitiba: Appris, 2019. p. 229-247.
  • SILVA, H. A ameaça vermelha: o Plano Cohen. Porto Alegre: L&PM, 1980.
  • STORNI, A. A máquina eleitoral. Careta, Rio de Janeiro, 3 jul. 1937, p. 31. Charge.
  • TÁVORA, J. Uma vida e muitas lutas: 2. A caminhada no planalto. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.
  • VARGAS, G. Diário (1930–1936) Rio de Janeiro: Siciliano, 1995a.
  • VARGAS, G. Diário (1937–1945) Rio de Janeiro: Siciliano, 1995b.
  • VISCARDI, C. M. R. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2021
  • Aceito
    09 Nov 2021
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas Secretaria da Revista Estudos Históricos, Praia de Botafogo, 190, 14º andar, 22523-900 - Rio de Janeiro - RJ, Tel: (55 21) 3799-5676 / 5677 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: eh@fgv.br