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O aprendiz de origens e novidades

DEPOIMENTO

O aprendiz de origens e novidades

Betty Mindlin

RESUMO

Trata-se da análise de uma experiência de formação de professores indígenas de vários grupos étnicos em Rondônia, num programa educacional multilíngüe baseado na valorização e redescoberta da cultura indígena, que ao mesmo tempo tenta preparar os índios para a participação na sociedade enquanto cidadãos brasileiros.

ABSTRACT

This article describes an experience of schooling for Indian teachers from several ethnic groups in Rondônia, Brazil. The program is designed in the Indian languages and in Portuguese, and is centered in Indian culture and values, simultaneously trying to prepare the Indians for better opportunities in Brazilian society, with full rights as Brazilian citizens.

Um país dono de mais de duzentas línguas e culturas — mesmo que escondidas no interior de pequenas minorias indígenas — deveria estar descobrindo miríades de caminhos inexplorados para a ficção, para a criação artística, literária, musical — mas não é assim. Os vastos mundos do imaginário indígena convivem conosco abafados, desprezados, ignorados. Quase ninguém se aventura por eles, seguindo a trilha de um Mário de Andrade, desbravador de camadas profundas do Brasil.

E verdade que há figuras raras, como hoje em dia a compositora Marlui Miranda, pesquisando com rigor a música de inúmeros pequenos povos e forjando o gosto público por ela, através de uma recriação respeitosa; mas esta não é a regra. E não é de admirar, pois o cerco aos indígenas, e em geral a tudo o que é diferente e não cabe na sociedade industrial, paradoxalmente uniforme e desigual, é cada vez maior.

No caso dos índios, bem como no de outros grupos étnicos, o massacre não é apenas físico; foi terrível em 1993 com o dos Yanomami e, nos últimos anos, especialmente em 1988, com as muitas mortes nos Tikuna, nos Yanomami, nos índios isolados do Igarapé Omeré, nos Urueuauau. É uma tragédia espiritual, como se existissem almas, desaparecidas, roubadas pelos missionários, pelas madeireiras, pela mineração, pela degradação da vida urbana, por um governo incapaz.

Pajés, sábios, mulheres velhas respeitáveis, grandes contadores de histórias reduzidos a párias circulando em meio a estrangeiros, sem papéis ou funções sociais reconhecidos, pálidas sombras das figuras majestosas que foram no passado, marginalizados e sem interesse para ninguém, nem para o próprio povo — quadro pungente em tantas aldeias colonizadas e semi-urbanizadas do centro-oeste.

Aí está uma forma cruel de pobreza, embora não necessariamente a mesma miséria material e fome brasileiras. Os muitos índios ativos, unidos em movimentos organizados por seus direitos e terras, têm de lutar também contra esse desamparo, contra a perda de valores e lugar no mundo que experimentam tantos dos seus companheiros.

É possível inventar dentro de urna política pública de educação — pelo menos em teoria — programas diferenciados, capazes de estimular e preservar o saber, as tradições, as línguas das populações a que se destinam, ao mesmo tempo que informam os alunos e lhes dão instrumentos para participarem da sociedade como um todo, com as mesmas oportunidades que os demais cidadãos. Mesmo em termos de eficácia, um programa diferenciado seria preferível a um uniforme para a sociedade — pois partiria das condições e conhecimentos dos alunos, valorizando-os e afirmando o seu auto-respeito. No Brasil, nos programas públicos, isso deveria ocorrer não apenas com relação aos índios, mas também no que se refere a outros segmentos da população. Quanto, por exemplo, as origens africanas são levadas em conta no nosso sistema educacional?

Um programa temerário nessa direção — por estar sendo realizado em condições difíceis — foi iniciado há dois anos, para alguns grupos indígenas de Rondônia, promovido pelo IAMÁ, uma organização não-governamental com tradição em pesquisa antropológica, defesa do território e apoio às condições de saúde e sobrevivência econômica dos índios da região.

A exemplo de um programa educacional bem-sucedido realizado no Acre (1 1 Um programa de formação de professores indígenas vem sendo realizado desde 1983, no Acre, sob orientação de Nietta Lindenberg Monte. Em 1992, ela se propôs a apoiar o programa do IAMÁ, e orientou o primeiro curso durante um mês, transmitindo conceitos e organização já consolidados naquele estado. A troca entre os dois programas vem, desde então, sendo muito grande. ), o projeto pretende formar professores indígenas que possam dar aulas em suas aldeias, para crianças e adultos. Foram dados dois cursos de um mês de duração, em 1992 e 1993, ministrados por uma equipe de lingüistas, professoras de português, matemática, artes e antropólogos. Os professores indígenas — cerca de trinta —, alunos do curso, pertencem a várias etnias: Gavião, Arara, Zoró, Suruí, Tupari, Arikapu, entre outros. Pelo caráter pluriétnico, e também por razões práticas, os cursos costumam ser dados na cidade, em um bairro afastado.

Durante o ano letivo, entre os cursos anuais — que o programa pretende sejam mais freqüentes — o trabalho das escolas nas aldeias tem acompanhamento periódico, com permanência de pessoas da equipe — um modelo viável também para escolas rurais. Se é verdade que um mês de aulas por ano é pouco para professores que apenas iniciam sua formação, começam a dar aulas e são representantes de povos com muito poucos anos de contato com não-índios, é certo também que muitas sementes preciosas foram lançadas.

O ponto de partida para todo o conteúdo a ser ensinado aos índios é a cultura indígena — valorizar o que são, fazer deles pesquisadores do próprio mundo e do saber dos mais velhos, extrair os fios antigos de um conhecimento e formas de vida que estão sendo abandonados. Esse procedimento dentro da prática escolar, com a idéia de afirmação étnica e da diferença cultural, com adultos e crianças tendo um olhar novo sobre si mesmos: não o da sociedade que os despreza como ignorantes e analfabetos, mas o de um povo que há séculos tem o que ensinar.

Com essa segurança de serem sujeitos de uma cultura milenar, à qual estão visceralmente ligados mesmo quando não o percebem bem, fica mais fácil o aprendizado de conhecimentos sobre a sociedade brasileira, em curriculum semelhante ao as das outras escolas — mas voltado também para o exercício de cidadania dos povos indígenas no Brasil, em igualdade de oportunidade com os outros brasileiros, buscando melhores condições para a defesa de suas terras, de seus direitos e interesses, de sua sobrevivência econômica.

No curso realizado em julho de 1993, até mesmo o espaço onde foi dado o curso seguiu esse princípio: um terreno urbano, porém cercado pela floresta, duas malocas de arquitetura semi-indígena, com estrutura de madeira e cobertura de palha, mas chão de cimento, meias paredes de tijolos, janelas, alguns espaços separados para armazenamento de material, cozinha, trabalho. Uma maloca serviu de sala de aula e a outra de alojamento. O exemplo de uma arquitetura inspirada na cultura indígena atraiu a curiosidade e a admiração da população local (2 2 Equipe e local dos cursos: em 1992, a equipe foi composta por Lucy Seki (lingüista), Eduardo Sebastiani Ferreira (matemático) — ambos docentes da UNICAMP, Maria Aparecida Costa Bravo (professora de matemática), Nietta Monte (educadora) e Betty Mindlin (antropóloga). Como assessores de Rondônia participaram Maria do Carmo Barcellos, Ivana de Souza, Eli L. de Oliveira, Nalzira de Fátima e Eliane Musa, todas professoras. Em 1993, participaram Lucy Seki, Sandra Machado (lingüista), Jackeline Mendes (matemática), Aloma Carvalho (professora de português), Marisa Szpigel (professora de artes) Tomas Brene (documentação) e, ocasionalmente, André Rocha (músico). Coordenaram o curso Maria Cristina Troncarelli (pedagoga) e Betty Mindlin, com a participação de Mauro Leonel (antropólogo). Como assessoras de Rondônia participaram Ivana de Souza e Silvana Pretel. O programa teve orientação educacional de Maria Cristina Pereira, da Escola da Vila em São Paulo. Em 1992 o curso foi dado nas malocas do Centro de Treinamento do IAMÁ, em Caçoai, dirigido por Maria do Carmo Barcellos. O projeto das malocas e de autoria da arquiteta Leda Leonel. O programa conta ainda com a participação do lingüista Waldemar Ferreira Neto, da USP, no quadro de um convênio entre o IAMÁ e o Departamento de Letras da Universidade de São Paulo para o trabalho de educação indígena. ).

A escrita e as línguas indígenas

Em que língua deveriam ser as aulas e a alfabetização? Como respeitar línguas e culturas se ainda não há a escrita, se estamos lidando com línguas orais e se a equipe que ensina os professores indígenas só sabe dar aulas em português? Estes temas complexos foram objeto de debate ao longo de meses.

Alguns educadores ponderavam que se não há material escrito nas línguas indígenas nas aldeias, ler e escrever nessas línguas torna-se artificial — não serve para qualquer domínio da sociedade ou comunicação que já não exista de forma oral; e acrescentavam que apenas o português importaria para maior mobilidade dos índios no país.

Os antropólogos e lingüistas, por sua vez, argumentavam que no processo de alfabetização não se deve somar ao mistério da escrita o de uma língua estrangeira (o português); e que para a afirmação do valor da cultura indígena é importante mostrar que todas as línguas se prestam à escrita — apenas um código e uma técnica e todas as línguas têm regras e gramática — e, uma vez compreendidas em um idioma, permitem melhor aprendizado de outros. Insistiam na importância de criar, multiplicar, exibir em toda a parte textos escritos nas línguas, estimulando a expressão literária e a comunicação escrita, em geral, na língua indígena.

Chegou-se ao consenso sobre a necessidade imprescindível de desenvolver a escrita nas várias línguas indígenas, como parte da valorização de um conteúdo cultural de povos diferenciados — mesmo que esse trabalho, por sua dificuldade, fosse gradual.

Esse trabalho foi — está sendo — lento, e somente possível graças à contribuição de uma professora de lingüística e de uma de suas alunas. Talvez mais adiante, também com a colaboração de outros lingüistas. Juntamente com grupos de índios em cada língua, já alfabetizados em português, foram estabelecendo as convenções para a escrita, procurando levar em conta regras gramaticais ainda desconhecidas, pois não havia tempo para a descrição perfeita de todas essas linguagens.

Em alguns casos, como o Suruí, usou-se um pouco a escrita já iniciada por missionários do SIL (Summer Institute of Linguistics). Foram escritos textos, distribuídos a muitos leitores, houve debates acalorados e votações em torno da ortografia. Esse processo, que já dura pelo menos dois anos, resultou em escrita com aceitação bastante geral, cada vez mais utilizada — e já foi possível preparar material para alfabetização.

Em outros casos, como o Tupari, nada havia, a não ser um ou outro incipiente estudo lingüístico — e é fascinante acompanhar o pequeno número de professores indígenas Tupari inventando e debatendo a sua escrita, divulgando os primeiros textos o que, nestes cinqüenta anos de contato lhes parecia inalcançável.

Ainda em outros casos, como o Gavião, uma escrita criada por missionários das Novas Tribos já vem sendo usada há anos pelos índios, e embora bastante absurda e inconveniente (a mesma letra para muitos sons diferentes, atrapalhando a leitura em português), não é viável mudá-la a curto prazo, sem um amplo processo de diálogo com a comunidade dos leitores. A equipe procurou aprender o código e estimular a escrita, mesmo dessa forma, por enquanto — até que seja possível uma reforma ortográfica...

Trata-se, enfim, de trabalho paciente, complexo, apaixonante — feito por poucas pessoas, simultaneamente, para quatro ou cinco línguas diferentes. O ideal seria uma equipe maior, e poder formar lingüistas índios que, então sim, compreendendo a estrutura de sua língua, inventariam os códigos mais apropriados. De todo modo, à maneira pés-des-calços, uma literatura está surgindo, com canções, mitos, bilhetes, cartas, livros de exercícios, novas palavras inventadas nas línguas (correspondendo a conteúdos antes inexistentes, como os tecnológicos, os do mercado e do dinheiro entre muitos outros) brotando em poucos meses.

A didática e o conteúdo

Um fio condutor no programa foi refletir sobre como ensinar, como repassar técnicas pedagógicas tão desenvolvidas no mundo de hoje a professores pés-descalços, cuja formação, vista sob os olhos da escola oficial, alcançaria na melhor das hipóteses o primeiro grau, e que ficarão isolados na floresta muitos meses, recebendo apenas visitas periódicas dos consultores, ou acompanhamento por correspondência, ao sabor das agruras financeiras de um projeto deste tipo.

Assim, o projeto recorreu a consultores da área de educação, provenientes de uma escola privada em São Paulo, a Escola da Vila, mas com experiência em programas públicos. Durante meses a equipe reuniu-se programando o conteúdo do curso em cada disciplina, e as atividades concretas quotidianas que poderiam ser desenvolvidas ao longo do ano, com aproveitamento, sempre que possível, de materiais do mato.

Optou-se por limitar o conteúdo do curso a algumas disciplinas, inicialmente: cultura indígena, línguas indígenas, português, matemática e artes. Já é muito para uma experiência inicial, para que os professores possam repassar o que aprenderam aos seus alunos. Só mais tarde, com o tempo, será possível incluir também história, geografia, ciências, estudos sociais que contemplem com maior rigor os direitos indígenas e o funcionamento da sociedade, muito embora, de maneira breve, alguns destes temas já estejam sendo tratados.

A orientação básica do programa, segundo a qual a cultura indígena perpassa todas as demais disciplinas, dá ao conteúdo escolar uma amplitude muito maior do que se estivessem seguindo um curriculum de primeiro grau. Aí está, ao alcance da mão, na aldeia, o saber dos velhos e a tradição, a serem pesquisados e usados em todas as aulas, infundindo aos professores confiança especial nos próprios conhecimentos.

Os professores indígenas absorveram com voracidade os conhecimentos pedagógicos, dados através do exemplo, mas também de reflexões explícitas de como poderiam lecionar e alfabetizar, com que jogos e brincadeiras, quais atitudes ter quanto à disciplina e formas de trabalho, que planejamento diário etc. Procurou-se minimizar a noção estereotipada de pedagogia, dada pelo exemplo de escolas rurais ou das cidades de Rondônia, e recuperar o clima de respeito ao indivíduo, à palavra e à brincadeira que são próprios da aldeia: caminho inicial para uma educação libertária, que ao mesmo tempo investigue e leve em conta formas pedagógicas próprias. Na avaliação final do curso, os professores índios demonstraram ter percebido e aprovado essa nova ótica, que lhes dá mais segurança no trabalho isolado que realizam.

Português e alfabetização em português

O grupo de professores indígenas é muito heterogêneo quanto à fluência na língua portuguesa — alguns mal falam, outros têm perfeito domínio do português, por vezes caboclo e arcaico, sendo grandes narradores.

As formas de trabalho em português são, então, variadas: oralmente, com jogos de dramatização em situações sociais diversas; palavras acompanhando os textos de línguas indígenas, ou colocadas isoladamente, textos, cartazes, instruções médicas e epidemiológicas, como atualmente o cólera; mitos escritos, livros, poesia, textos de reivindicação de direitos, jornais, relatórios sobre atividades do professor e aluno, Em cada situação, os trabalhos adaptaram-se aos conhecimentos dos alunos-professores; os poucos alunos que escreviam mal expressaram-se muito através de desenhos. Mostrou-se como o português é para eles, pelo menos temporariamente, uma língua estrangeira, e como pode ser feito o ensino de uma segunda língua — com que técnicas, jogos e exercícios — incluindo a elaboração e a consulta a dicionários.

As aulas de poesia foram muito apreciadas — com a leitura de uma pequena seleção de grandes poetas brasileiros e portugueses, abrindo na escrita as várias perspectivas de poesia e a liberdade de invenção. Surgiram poesias, haikais, rimas, adivinhas. Alguns poucos alunos deram o salto para a própria língua, usando a analogia entre a poesia e suas canções. Músicas em português foram muito usadas, cantadas por todos, escritas na lousa, fazendo jogos de completar palavras que faltavam, com acompanhamento de violão. Foram escolhidas cantigas do repertório regional, de gosto duvidoso, mas também de bons compositores brasileiros, como Caetano e Gil, que pouco a pouco vão entrando no universo das músicas admiradas.

Houve redação de vários tipos de texto, além de poesia — cartas às autoridades, reivindicando a contratação dos professores e descrevendo as dificuldades do seu trabalho, cartas de todo tipo, como amorosas ou formais, textos livres sobre a vida de aldeia em múltiplos aspectos, como o religioso ou a cooperação econômica.

Pela forma de trabalho — e discussão do trabalho de professores nas escolas da cidade —, com muita narração oral, que a equipe ia procurando transcrever, tentou-se mostrar aos professores indígenas que a sua especial versatilidade na fala, característica do mundo indígena, no qual a persuasão e o respeito ao discurso alheio são tão importantes, já é um elemento da escrita e lhes dará desenvoltura e criatividade no momento em que forem capazes de escrever, e mais a caminho de se tornarem escritores potenciais.

A leitura de dois livros de mitos, Suruí e Tupari, escritos a partir de gravações de velhos narradores, estimulou algumas pessoas a escreverem, na sua expressão abrindo a memória para a própria história, mesmo quando se tratava de outros grupos indígenas, cujos mitos têm com esses grande semelhança. Outras vezes, os mitos foram narrados oralmente por várias pessoas e pela equipe, em uma clareira aberta para isso na floresta, criando um clima de intimidade.

Narração e leitura foram, em geral, bastante estimulados durante o curso — mesmo talvez não atingindo o grau necessário. Projetos como esses são pobres; quando o necessário seria grande quantidade de livros bem-impressos e ilustrados e muito material escrito, o que se tem são bibliotecas incipientes. Foi possível apenas lê-los e distribuir alguns livros bem-escolhidos para as escolas — não para a massa de alunos das aldeias. As leituras não foram apenas de ficção e poesia; havia também alguns livros sobre animais, plantas, ciências, história da escrita, problemas indígenas da Amazônia e sobre racismo e escravidão.

Todo o aprendizado do português pelos professores indígenas (assim como o das outras matérias) foi orientado para a didática nas aldeias, segundo as condições dos alunos e seu conhecimento da língua descritas por cada professor. Preparação de jogos de memória ou de outros com escrita em português, de textos de leitura com exercícios, de atividades possíveis como caça-palavras, de listas de nomes de rios, pessoas, povos, animais, plantas, de uso de músicas, de ditado, foram elaborados. Essas formas podem variar bastante de acordo com os conhecimentos que o professor indígena e seus alunos têm do português, tornando sempre possível o ensino da língua.

A orientação para a alfabetização exigiu especial atenção. Em muitas das aldeias, os professores indígenas julgam possível — e estão de todo modo realizando — a alfabetizado em português, por vezes simultânea à alfabetização na língua dos índios. Problemática como é essa concomitância, ela é um fato consumado — decorrência das circunstâncias sociais na região.

As educadoras da equipe, estudiosas de Emilia Ferrero e das mais modernas teorias sobre alfabetização, foram obrigadas a adaptar suas diretrizes a uma transformação mais lenta do trabalho já em vias de realização pelos professores índios, que aprenderam formas convencionais de ensinar, com sílabas, cópias repetitivas, alfabeto decorado etc. Resolveram ir fazendo mais lentamente o debate sobre teorias e etapas de alfabetização, apenas apontando para possíveis formas mais livres e inventivas de ensino e alternativas ao método silábico usado no momento em quase todas as escolas em funcionamento.

Matemática

A ansiedade dos índios em aprender matemática é imensa. Fazer as quatro operações, lidar com dinheiro, cheques, bancos, compra e venda, medidas de peso, área e volume — como cubagem de madeira —, fazer cálculos econômicos, estimar o lucro com castanha, borracha, produção agrícola, gastos com combustíveis tornou-se fundamental. O programa tentou passar tais conteúdos, explorando ao mesmo tempo os conceitos tradicionais de etnomatemática, a representação e a contagem nas várias línguas, a contagem de anos, meses, tempo, os padrões matemáticos presentes em artesanato, construção de casas ou outras esferas da vida antiga. Noções novas e antigas, história da matemática e simulação de negócios, tabuadas e quebra-cabeças entretiveram o grupo de professores por horas incontáveis.

Atividades como elaboração de calendários uniram conceitos sobre tempo, palavras em língua indígena e português, números e desenhos muito bonitos.

Uma precisa orientação pedagógica foi dada aos professores indígenas, graças às aulas de matemática ministradas com experiência em educação de primeiro grau. Explicar o porquê das quatro operações e seus algoritmos; o valor posicional dos números, através da construção de ábacos de papelão e outros materiais; a elaboração de jogos como bingo, jogos de dados, trilhas com situações inventadas; o aprendizado de tabuada de maneira concreta, com caixinhas de fósforos, pedras, palitos de madeira; as brincadeiras de preenchimento de cheques, pagamento de dívidas, até mesmo investimento — estas foram algumas das inúmeras atividades desenvolvidas. Alguns dos professores puderam trabalhar com porcentagem e frações, com cálculos de inflação e aumentos salariais. A aplicação ao estudo de matemática, ainda mais com a perspectiva de poder ensinar de maneira eficiente, com brincadeiras e jogos, foi incansável.

Artes e música

É importante abrir novas possibilidades de expressão em artes plásticas para os índios (desenho, cerâmica, pintura, gravura, escultura) e em música, bem como reafirmar e reaprender formas tradicionais. Muitas das artes antigas estão se perdendo rapidamente — mulheres que não sabem mais tecer, fazer cerâmica ou cestaria; homens que não estão aprendendo a fazer flechas. Trata-se, ao mesmo tempo, de recuperar formas artísticas, de evitar a imitação de modelos estereotipados impostos pela educação convencionai — que é o padrão na região — e de abrir novas possibilidades técnicas e imaginativas de informar sobre a arte universal — objetivos bastante ambiciosos a curto prazo. É preciso também respeitar, ou levar em conta, a divisão do trabalho segundo o sexo, com algumas artes exclusivamente femininas na região, como cerâmica, tecelagem e cestaria.

Reflexão também a ser feita refere-se ao diferente significado da arte no mundo industrial e no indígena, em que os objetos são tão identificados com quem os faz e com quem os recebe.

Para a consultora de artes da equipe, que tentava mergulhar e descobrir tradições antigas recriadas de formas interessantes, abrindo um espaço livre de invenção e conhecimento técnico, o desafio foi grande — mas a realização do segundo curso desencadeou fortes expressões artísticas e revelou alguns artistas talentosos.

A música é uma porta especial para a escola, estímulo a material escrito — desde os folhetos com as cantigas sertanejas até as próprias canções indígenas escritas em sua linguagem. Povos de língua tonal, muitos destes grupos têm uma linguagem de assobios — correspondentes aos tons e acentos tônicos — com a qual mantêm conversas complexas, além dos simples avisos e imitação dos barulhos de bichos e da floresta. Vários professores índios querem tocar violão e o músico da equipe deu aulas intensivas durante uma semana, ficando depois numa aldeia Gavião, onde conseguiu que um professor tocasse violão e cantasse músicas da tribo.

Espetáculos de música, arte, teatro — campos fantásticos para os atores índios, oficinas para os que melhor escrevem, pintam, compõem — tudo isso poderá estar ligado às escolas indígenas, apenas com um pouco de imaginação nos programas dos cursos.

Universo cultural

Os povos contemplados por esse programa de educação são quase todos de contato relativamente recente: os Suruí há vinte anos (1969-73), os Zoró há quinze (1978), os Gavião e Arara há trinta e cinco ou quarenta, os Tupari há cinqüenta. No próximo ano, talvez sejam também incluídos no programa os Urueuauau, cujo contato começou em 1984, mas entre os quais há ainda grupos isolados na floresta.

Apesar das imensas transformações econômicas sofridas pelos índios com a ocupação empresarial e a imigração em massa para Rondônia na última década, o mundo cultural em todas as áreas é vivo e forte. Há muitos guerreiros e velhos índios que se tornaram adultos antes do contato com a cidade. Hábitos, regras de casamento, religião, tabus de alimentação e comportamento são ainda de forma intensa os antigos — apesar da entrada do dinheiro, de múltiplos casamentos com não-índios nos últimos três ou quatro anos, da degradação da vida material e social na aldeia, da influência de missionários.

São ainda, como antes — talvez não por muito tempo —, agricultores e caçadores, coletores, conhecedores da floresta amazônica (não há índios de campo neste grupo), guerreiros por excelência. A maioria começou a desenvolver trabalho remunerado no máximo há dez anos, vendendo artesanato ou abrindo seringais. Só os Tupari, de contato mais antigo, tiveram a experiência de trabalho escravo nos seringais. Para os outros, ainda há pouco na vida isolada no mato, sem dinheiro, roupas, alimentos industrializados, sal ou açúcar, essa é uma realidade muito recente.

A história narrada, os depoimentos de pajés e guerreiros, os mitos (há dois livros prestes a serem publicados, sobre os Tupari e os Suruí, resultado de pesquisa realizada a partir de 1979) mostram como ainda é atual o mundo arcaico, transmitido agora de forma caótica e menos regrada, mas fundamental, chão para relações familiares, comportamento social, psicologia individual, teorias sobre doença, saúde, morte, destino, educação.

Durante os cursos realizados, alguns pajés deram verdadeiras aulas magnas sobre o mundo dos espíritos, a iniciação à pajelança, a vida futura. Cantos do pajé de um dos grupos provocaram pavor incontrolável nos professores de outro, e sua saída brusca da sala — mas aos poucos a convivência foi sendo retomada, com troca cautelosa de informações sobre os vários sistemas e um novo companheirismo em torno do conhecimento.

Perfil dos professores

Uma das desvantagens de realizar os cursos na cidade refere-se a não poder contar com a contribuição e com a força da comunidade, cujo universo tradicional é mais amplo e sólido que o do pequeno grupo de professores indígenas, provenientes de etnias diversas. São jovens de aproximadamente vinte anos, já da geração do contato, que passou pela tragédia do desmoronamento caótico da vida de aldeia. Não são os melhores expoentes da cultura indígena — nem todos conhecem bem as próprias tradições, não as ouvem dos pais com a freqüência e a inteireza com que estes as ouviam dos avós. Já incorporaram ao seu quotidiano e modo de ser muito do que caracteriza a sociedade industrial. Vivem um pungente desamparo, pêndulos entre o arcaico e o Brasil de fronteira, sempre tendo que fazer escolhas difíceis entre valores velhos e novos, chamados a uma reflexão complexa sobre a própria sociedade, nada fácil mesmo para pessoas mais maduras.

A equipe de educação teve muito o papel de fazer brotar neles a sede de saber quem são, de aprender as próprias raízes. No início, tinham grande timidez para contar mitos ou descrever traços da vida indígena, conscientes de sua ignorância frente aos mais velhos de seu povo; aos poucos, ao perceberem o quanto valorizamos a sua cultura, soltavam-se e iam concordando em expressá-la à sua maneira e de modo imperfeito.

Curioso observar que têm ligações muito fortes com o que há de mais tradicional na aldeia — talvez por isso tenham escolhido o papel de professores ou, para tanto, sido escolhidos pela comunidade. Mais da metade dos professores são filhos biológicos ou classificatórios de pajés — posição atualmente não muito associada à liderança e ao poder. Assim, um jovem professor Gavião é filho de um pajé desaparecido há dois anos de forma mítica, provavelmente por desespero com a destruição da floresta e a venda de madeira pelos índios; uma das moças é filha de um dos maiores pajés Suruí e conhece muito bem a tradição de seu povo; outro pretende transcrever os cantos de espíritos do repertório de seu pai pajé, também Suruí; um jovem Tupari, cujo pai não é índio, foi criado pelo tio pajé, cujos ensinamentos assimilou, embora fale mal a língua; dois professores Arikapu são filhos de outro renomado pajé, último remanescente desse grupo a falar a própria língua — e assim por diante.

Há outros, não filhos de pajés, mas muito enraizados no mundo indígena. Um professor Jabuti, povo hoje já quase desaparecido, é grande contador, em português caboclo, elegante e fluente, das mágicas histórias que ouvia na infância; estimulou nos outros o desejo de pesquisarem as próprias narrações. Há um professor Canoé que não fala a própria língua — pois embora ainda haja cerca de sessenta Canoé, na Aldeia Indígena Guaporé, a língua parece estar em extinção, em parte devido a casamentos com pessoas de outros grupos. É também pesquisador do mundo indígena, com nostalgia do que foi perdido.

A escolha do papel de professor talvez tenha sido fortemente motivado por afirmação cultural. Ser professor não confere posição de poder — e praticamente não há filhos de chefes nesse grupo. Muitos têm até mesmo característica de marginalidade — mulheres separadas dos maridos, vários homens pertencentes a grupos quase extintos.

Mulheres

As mudanças provenientes do contato costumam aumentar a desigualdade entre homens e mulheres. Estas praticamente não comparecem às reuniões políticas e reivindicatórias de direitos, não comandam negócios, não ganham dinheiro.

A deterioração das condições de saúde as afeta ainda mais que aos homens — são elas quem cuidam das crianças e acompanham de perto sua alimentação e carências. Sofrem, passivas, o alcoolismo e as doenças venéreas de maridos e namorados.

Mais conservadoras, falando menos o português e com menor mobilidade, passam a ter a concorrência de rivais externas ao grupo — por vezes prostitutas. Casamentos mistos, de índios com mulheres da região, estão mudando todo o teor da vida de aldeia.

Para as mulheres, um programa de educação seria fundamental — afirmaria sua posição social, contribuiria para a eficiência de medidas de saúde preventiva e para a sua independência econômica — mas é difícil conseguir-se de imediato mulheres professoras. Poucas aprenderam a ler, em geral, os meninos é que são enviados às escolas rurais. Maridos e irmãos opõem-se à sua profissionalização como professoras, em virtude da necessidade de viagens à cidade para freqüentar os cursos, além de horas roubadas à família.

Tem sido difícil quebrar tal círculo vicioso de desigualdade no grau de instrução. Seria necessário realizar cursos amplos para mulheres, não necessariamente voltados para a formação de professoras. No grupo de professores, as mulheres participantes são todas separadas, com filhos — por alguma razão demorando a se casarem novamente, o que já não é padrão tradicional, pois na aldeia antiga era muito raro haver mulheres sozinhas, fossem velhas ou moças.

O apoio aos índios em Rondônia: um desafio

É difícil imaginar um quadro mais adverso a um programa inovador de educação nos anos recentes que o de Rondônia.

O fim da floresta

Desde 1986 a extração de madeira das áreas indígenas — em algumas também de minério, cassiterita e ouro, — vem assumindo proporções assustadoras, iniciada com o roubo de madeira por empresas, algumas de grande porte. A princípio os índios reagiram, organizaram expedições de defesa do território, apreenderam madeira roubada, máquinas e veículos dos invasores.

O governo jamais os ajudou a vender a madeira apreendida e a usar o rendimento em projetos de interesse das comunidades. Ao contrário, a FUNAI e outras instâncias governamentais (incluindo um dos presidentes da FUNAI, posteriormente nomeado governador em Roraima) estimularam os índios a firmarem contratos ilegais de venda de madeira e, depois, a vendas sem qualquer contrato. Estimativa mínima seria que uma quantidade de madeira, cujo valor de exportação eqüivale a um bilhão de dólares, foi extraída das áreas indígenas de Rondônia em três ou quatro anos; o mogno atinge o valor de US$ 600 a US$ 1.000 por metro cúbico.

Com esses interesses financeiros em jogo, e com a ausência de qualquer apoio governamental aos índios nas áreas de saúde, educação ou economia, muitos índios acabaram sendo induzidos, subornados e seduzidos pelas transações comerciais e pela alta soma de dinheiro envolvida. De nada adiantou a ação bem-intencionada, mas mal aparelhada e mal dotada de recursos, de alguns funcionários da FUNAI (como Sidney Possuelo, presidente da Fundação em 1991-93), tentando proibir tais negociações; também inútil resultou a oposição de muitos índios, mais conscientes da importância de preservar a floresta e não se deixar enganar pelas madeireiras — que pagam cinqüenta vezes menos do que a madeira vale, além de deixar áreas destruídas. A devastação continua, apesar de campanhas internacionais pela preservação da floresta, que obrigam o governo a esporádicas medidas para fazer cumprir a lei brasileira, impedindo o corte de madeira.

A venda de madeira desorganiza a comunidade como um furacão. O dinheiro é desperdiçado, apenas esporadicamente usado em alguma atividade útil, como assistência médica, mas sem qualquer planejamento ou qualidade. Investimento, como a compra de gado, acaba sendo transformado outra vez em dinheiro para consumo imediato. O mais comum é alguns líderes comprarem casinhas na cidade e eletro domésticos ou carros, que logo se quebram ou acabam causando acidentes. Os madeireiros acompanham e aconselham os índios, por vezes em estreita relação com suas associações, que provêm com a moderna tecnologia de fax e telefones.

O uso do dinheiro altera os padrões alimentares, reduz o ritmo do trabalho agrícola, provoca subnutrição, não causada propriamente por escassez — a terra continua lá, para ser plantada — mas por uma nova utilização do tempo, novos comportamentos, desejo de comprar comidas e bens industrializados, não acessíveis a todos — pois o dinheiro não é distribuído com a mesma eqüidade, segundo as mesmas leis de reciprocidade da aldeia. Sobrepõe-se ao parentesco, às regras de bem-viver anteriores: e a nossa sociedade bem o sabe.

O acesso à cidade, à prostituição, a um ócio sem sentido (cada vez há mais jovens que deixam de trabalhar na roça) trazem doenças venéreas, alcoolismo, abandono de condutas antes consideradas dignas.

Mortes, conflitos, crimes tornam-se comuns. Exemplo trágico foi o assassinato do líder Mamaindê Capitão Pedro (de um dos grupos do Vale do Guaporé, parte do território Nambiquara), firme opositor da devastação da floresta, em agosto de 1993.

A organização e o movimento indígena continuam, mas cheios de rachaduras, permeados pela busca desenfreada de dinheiro. No início de julho de 93, nos primeiros dias do curso de educação, o movimento indígena local interrompeu o tráfego da rodovia Cuiabá-Porto Velho, em protesto contra medidas do governo estadual proibindo a venda de madeira e contra a apreensão do estoque de madeira e máquinas de algumas empresas; e ameaçou queimar a delegacia de Polícia de Espigão do Oeste, onde um madeireiro fora preso. Há apenas alguns anos, o mesmo movimento indígena lutava armado para expulsar as madeireiras; posição agora só de alguns dentre eles, como o Capitão Pedro Mamaindê.

Com a atenção voltada ao dinheiro, há o enfraquecimento dos laços comunitários, especialmente os de afirmação étnica e cultural. Um programa de educação por professores indígenas não tem apoio incondicional de lideranças. Alguns chefes tomaram a iniciativa da educação multilíngüe, diferenciada, sob a ótica da história indígena, e lutam para que o projeto se torne uma instituição; outros se deixam influenciar pelas idéias correntes de madeireiros, missionários, funcionários da FUNAI, de que os bons professores só podem ser não-indios, que falem bem português e tenham tido alguma escolaridade formal.

Os missionários

Há um escandaloso aumento da presença de missionários em áreas indígenas, tanto em Rondônia como no resto do Brasil. O SIL, as Novas Tribos do Brasil e outros crentes fundamentalistas têm conseguido apoio oficial, contratações para cargos diversos, prestígio. Os missionários vêm se aproveitando da destituição em que se encontram as populações indígenas, sem assistência à saúde, perdidos tantos valores sociais, morais, culturais, para aumentar sua influência e converter muitos deles.

Em Rondônia, áreas como a Suruí, a Gavião, a Tupari resistiram anos à religião de fora e à conversão. A motivação de alguns dos professores índios para o ensino era justamente prescindir dos missionários, muitos dos quais falam a língua. Agora, como que vencidos, o número de crentes e pastores índios vem aumentando. A analogia com a história indígena norte-americana é curiosa e pungente: a conversão e acordos com o governo depois do alcoolismo, dos massacres, do cansaço das derrotas nas guerras pelo território, do desespero com a vida miserável nas reservas.

As rivalidades entre os grupos indígenas

Na luta pela terra e por seus direitos e, mais recentemente, nas transações com empresas, os grupos indígenas de Rondônia vem tentando unir-se em um movimento organizado, perturbado periodicamente por ódios tradicionais. Sempre houve entre os vários povos inimizades profundas, por razões religiosas, de limites territoriais e de casamento, com acusações de feitiçaria de uns aos outros.

As atuais muitas mortes por doenças, por falta de assistência médica e por violência continuam a ser atribuídas aos pajés dos outros povos — e, às vezes, os encontros multiétnicos tornam-se impossíveis.

Os cursos para a formação de professores também têm sofrido tal impacto. No início, é sempre uma incógnita a presença de todos e os conflitos que podem ocorrer. Há sempre o risco de não haver freqüência mínima para cursos, que são de custo elevado e de organização elaborada.

Reconhecimento oficial do ensino indígena

Há muito preconceito contra a idéia de índios com escolaridade formal reduzida assumirem o papel de professores — e não há qualquer tradição de implantar um programa multiplicador como o descrito. Todas as regras têm que ser criadas e oficializadas, em um trabalho de persuasão de autoridades e da sociedade.

Os professores devem ser contratados pela rede pública — é indispensável que recebam um salário e não é viável que sejam sustentados pela comunidade. Quais os critérios, então, para que sejam reconhecidos oficialmente, já que poucos passaram por escolaridade formal?

Os diversos programas de educação indígena diferenciada do país, muito distintos entre si, vêm tentando elaborar normas para a oficialização do ensino indígena nas leis de educação e nos contratos de trabalho. Importante é manter a flexibilidade para permitir a multiplicação da instrução que o ensino por índios proporciona.

Estabelecer critérios não é tão simples, mas alguns pontos básicos devem ser considerados. O professor deve falar a língua da comunidade, pertencer a ela e morar na aldeia. Em casos excepcionais, de grupos já extintos ou com poucos remanescentes, deve ser ligado à comunidade, por parentesco ou convivência. Deve ser escolhido pela comunidade como professor, ter conhecimento da cultura do grupo, condições e interesse de pesquisar as tradições entre os mais velhos. É importante que atue na afirmação dos valores étnicos e culturais do grupo indígena — e não faça parte de outras religiões ou seitas.

Como medir a sua eficiência enquanto professor? Deve ter capacidade de aprendizado ao longo do tempo, e dons didáticos. O seu potencial enquanto professor é que deve ser avaliado. Não importa se a sua escolaridade for pequena ou insuficiente, desde que seja evidente a possibilidade de absorver e de difundir novos conhecimentos. Importante também é a capacidade de escrever a própria língua e a aptidão para compreender as suas regras gramaticais.

Com esses critérios, certamente os professores índios levarão vantagem sobre candidatos não índios da região. Mais difícil será verificar se estão cumprindo bem suas tarefas, com assiduidade e aplicação e quais os resultados obtidos. Não é conveniente ter índios recebendo salários se não estiverem desempenhando bem suas funções; por outro lado, os critérios das secretarias de educação estaduais e municipais referem-se a outra cultura e não têm de ser necessariamente seguidos.

O reconhecimento oficial da educação diferenciada tem ainda que ser conquistado, invocando toda a complexidade de uma situação específica.

Dificuldades no trabalho dos professores e um novo espaço para o conhecimento.

Nos cursos e encontros realizados é comum haver longas sessões sobre as dificuldades dos professores e seus métodos de ensino.

A profissão é desvalorizada — pequeno salário, pouco tempo para as atividades de roça, de caça e ainda prestígio não significativo junto à comunidade, hoje tão voltada para atividades comerciais, mais que culturais.

As condições de trabalho são difíceis: quase nenhum material escolar, por vezes locais precários como salas de aula, ausência de livros, de orientação, de diálogos sobre métodos e formas de trabalho. A formação dos professores é mínima — são, como conseqüência, acometidos de insegurança e alguns julgam ter conhecimentos quase iguais aos de seus alunos. Têm que enfrentar concorrentes melhor preparados do ponto de vista formal: missionários, pessoas contratadas pela FUNAI ou governo. Ficam intimidados com avaliações e testes a que, as vezes, são submetidos. Com tudo isso, vão tocando o projeto, inventando, seguindo uma rotina contínua e disciplinada com muita força de vontade.

O problema mais premente refere-se à sua contratação enquanto professores leigos — estaduais ou municipais; apenas a metade o conseguiu. Prefeituras e secretaria estadual de educação têm usado as poucas vagas disponíveis para contratar missionários, mal preparados mesmo quanto à instrução formal; até os madeireiros falam em contratar professores..

Inquietos quanto ao seu futuro como profissionais, ameaçados por esses rivais etnocêntricos, seria preciso que os professores contassem com maior apoio da comunidade e dos líderes em suas reivindicações junto às autoridades. Emociona o desamparo e isolamento desses jovens, que estão aprendendo e ensinando conteúdos estranhos e exercendo pela primeira vez um papel difícil e controvertido.

O curso foi uma oportunidade para, em conjunto, começarem a se mobilizar, escrevendo cartas reivindicatórias a diversas autoridades públicas e tendo companheiros com quem trocar experiências e se expandir.

Um aprendizado para a equipe

Para a equipe que esta formando os professores indígenas, composta em sua maioria por pessoas, jovens com experiência urbana regional ou do sul do país, os cursos são um aprendizado sobre o Brasil. Tiveram um contato abrupto com o drama dos índios, com a violência regional, com problemas econômicos brasileiros, como os grandes projetos econômicos e hidrelétricas. Começaram a imaginar soluções de política educacional e refletiram sobre a questão indígena. Seu empenho, entusiasmo, empatia pela riqueza do universo indígena — bem como tristeza pelo desamparo em que vivem — foram comoventes. Assim, também como formador de equipes multiplicadoras de idéias, o programa representa uma esperança.

O tempo redescoberto

E difícil saber se um programa como esse conseguirá ter relativa continuidade, necessária para resultados mais significativos. Seria preciso contar com razoável soma de recursos, difíceis de serem assegurados. Mesmo que seja interrompido dentro de alguns anos, já terá algum valor se conseguir reacender a auto-estima, fazer brotar entre os índios a curiosidade de investigarem o próprio passado, de preservarem a face antiga erudita e artística enquanto criam uma nova identidade.

Em meio ao verdadeiro caos de violência e desregramento social que vivenciam, é muito se conseguirem puxar fios submersos do que foram, do que querem ser enquanto etnia e enquanto comunidade que faz parte também do conjunto dos cidadãos brasileiros.

Uma pescaria em águas em turbilhão, semelhante à nossa, que em pleno ovo da serpente que é o Brasil de hoje, formamos núcleos criativos, utópicos, aqui e ali, tentando manter e alimentar uma tradição cultural — ao recitar poesia, mergulhar na ficção, tomar livros das estantes como tábuas de salvação, enveredar pelas muitas formas de arte. E isso que, de alguma forma, estão fazendo os professores indígenas num universo que arrisca desmoronar.

A curta experiência de ensino realizada prova que não se trata de meta inalcançável, que é possível o reencontro com as raízes e com a história não colonizada. Basta uma política pública de respeito ao outro.

Notas

Betty Mindlin é mestre em Ciências Econômicas pela Universidade de Cornell, Nova York (EUA), doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordenadora do Programa de Educação Bilíngüe do IAMÁ - (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, Tel (011) 814-2499). É autora, entre outros, dos livros Nós Paiter: Os Suruí de Rondônia (Petrópolis, Vozes, 1985) e Tuparis e Tapurás (São Paulo, Edusp-Brasiliense, 1993).

  • 1
    Um programa de formação de professores indígenas vem sendo realizado desde 1983, no Acre, sob orientação de Nietta Lindenberg Monte. Em 1992, ela se propôs a apoiar o programa do IAMÁ, e orientou o primeiro curso durante um mês, transmitindo conceitos e organização já consolidados naquele estado. A troca entre os dois programas vem, desde então, sendo muito grande.
  • 2
    Equipe e local dos cursos: em 1992, a equipe foi composta por Lucy Seki (lingüista), Eduardo Sebastiani Ferreira (matemático) — ambos docentes da UNICAMP, Maria Aparecida Costa Bravo (professora de matemática), Nietta Monte (educadora) e Betty Mindlin (antropóloga). Como assessores de Rondônia participaram Maria do Carmo Barcellos, Ivana de Souza, Eli L. de Oliveira, Nalzira de Fátima e Eliane Musa, todas professoras. Em 1993, participaram Lucy Seki, Sandra Machado (lingüista), Jackeline Mendes (matemática), Aloma Carvalho (professora de português), Marisa Szpigel (professora de artes) Tomas Brene (documentação) e, ocasionalmente, André Rocha (músico). Coordenaram o curso Maria Cristina Troncarelli (pedagoga) e Betty Mindlin, com a participação de Mauro Leonel (antropólogo). Como assessoras de Rondônia participaram Ivana de Souza e Silvana Pretel. O programa teve orientação educacional de Maria Cristina Pereira, da Escola da Vila em São Paulo. Em 1992 o curso foi dado nas malocas do Centro de Treinamento do IAMÁ, em Caçoai, dirigido por Maria do Carmo Barcellos. O projeto das malocas e de autoria da arquiteta Leda Leonel. O programa conta ainda com a participação do lingüista Waldemar Ferreira Neto, da USP, no quadro de um convênio entre o IAMÁ e o Departamento de Letras da Universidade de São Paulo para o trabalho de educação indígena.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 1994
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