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Temas musicais e judaicos no pensamento de W. Jankélévitch

FILOSOFIA E MÚSICA

Temas musicais e judaicos no pensamento de W. Jankélévitch

Enrico Fubini

WLADIMIR JANKÉLÉVITCH, filósofo e musicólogo, dedicou parte relativamente exígua de suas reflexões a um tema que parece secundário e heterogêneo com relação a seus interesses dominantes, ou seja, à situação existencial do judeu da diáspora no mundo de hoje e, assim, ao delineamento de uma fenomenologia da consciência judaica. Na imensa produção filosófica de Jankélévitch tal reflexão ocupa posição inegavelmente marginal. Contudo, dado que a personalidade do autor não tem os caracteres do ecletismo, surge espontaneamente uma indagação: a de saber se suas reflexões sobre o judaísmo se inserem no contexto mais geral de seu pensamento ou se se reduzem a episódio isolado, vinculado a eventos biográficos pessoais.

À primeira vista parece alheia a seus notórios interesses musicais a atenção para com a temática judaica, que nele se avivou principalmente após a guerra e que se concretizou em compromisso apaixonado de ensaísta, voltado não só para problemas de atualidade candente, como o Estado de Israel ou a confrontação dramática com os crimes nazistas e com o problema do perdão, mas também para temas mais abstratos e filosóficos, como a natureza da consciência judaica, o direito à diferença etc.

Deve-se lembrar também que os interesses musicais de Jankélévitch são extremamente setoriais e se concentram em poucos autores (praticamente em Fauré, Debussy e Ravel), tendo, pois, natureza eminentemente ideológica. Em outras palavras, é de se perguntar se entre os ensaios musicais de Jankélévitch e de suas reflexões sobre o judaísmo pode-se determinar alguma relação intrínseca, um fio condutor entre dois campos que parecem tão distantes e alheios entre si. Haveria aí continuidade de pensamento?

Para responder à pergunta é necessário talvez repassar rapidamente os pontos mais salientes do pensamento musical de Jankélévitch, a fim de reencontrar as coordenadas estéticas e, de forma geral, filosóficas que o guiaram em sua especulação. Já se disse que os músicos prediletos de Jankélévitch são escolhidos no âmbito de um restrito círculo de autores franceses situados entre o romantismo, o impressionismo e o simbolismo. É claro que a escolha, tão circunscrita e precisa, é ditada não só por preferência no plano estético, mas também por uma opção ideológica muito precisa. Por brevidade, pode-se desde logo afirmar que a música de Debussy representa o centro da especulação estética e filosófica de Jankélévitch e, portanto, sondando-se o interior de tal escolha, redescobrem-se as razões mais profundas de seu pensamento.

Por que, então, justamente Debussy? A música de Debussy, segundo Jankélévitch, representa a mais extraordinária encarnação artística de uma concepção de tempo que não é arquitetônica e espacial, mas, antes, uma concepção orgânica e vitalista, próxima de certa forma à concepção bergsoniana de tempo. Talvez se possa ainda acrescentar que tal modo de sentir e viver o tempo - como duração - não pode senão se encarnar em forma musical. "A música de Debussy elimina assim o princípio de uma substância central hierarquicamente primeira e cabalmente representável (ao contrário do que ocorria na arte tradicional) e a subsitui por uma nova entrevision da realidade, encarada como inumerável e inapreensível aparência de poeira de molélucas instantâneas, de lascas luminosas que brilham aqui e agora. À fluidez do tempo de Fauré e de Bergson, bem como à sua mensuração racionalista em processo desencadeado por seqüências dialéticas (ímpetos e desenlaces) vem-se opor uma desagregação, feita de fulgurações ofuscantes, de 'imediatas epifanias resplandecentes'" (1 1 E. Lisciani-Petrini. L'apparenza e le forme. Filosofia e musica in Jankélévitch. Napoli, Nuove ed. Tempi Moderni, 1991, p. 110-111. ). É assim que um dos mais agudos críticos italianos de Jankélévitch evidencia aquilo que para o filósofo francês é o núcelo central da arte de Debussy e principalmente seu alcance ideológico no âmbito da música ocidental. De fato, Debussy encarna uma das mais profundas rebeliões ao logos, como razão dialética, conseqüencial e onisciente, concepção cuja encarnação musical mais perfeita e acabada era representada pela sonata. Debussy, ao mesmo tempo, aponta à própria música um caminho novo, alternativo, no qual todos os valores fortemente afirmativos da música precedente sofrem, de certa forma, uma reviravolta em nome da nova poética da marginalidade e do silêncio. Na tradição romântico-oitocentista, os valores considerados positivos eram a conclusividade e a afirmatividade, que se realizavam com força do mecanismo cadencial; a complexidade de construção, que se realizava antes de mais nada com a estrutura da sonata; a dialética das partes, que alcançava uma síntese omnicompreensiva e tranqüilizadora, capaz de superar todas as contradições aparentes; o progresso, que se desenrola através de percursos seguros no espaço, e que se desenvolve segundo uma férrea lógica musical. Na música de Debussy todos esses valores sofrem uma reviravolta radical. A música, por sua natureza, como "linguagem fluente e incoerente, equívoca e descontínua, quebra a coerência verbosa do Logos representativo, desagregando-lhe a configuração ontológica totalitária e aludindo a algo que é completamente outra coisa, destituída de qualquer fundamento substancial. Na música existe alusão a um regime ontológico - um ser das coisas - que não é tranqüilizado nem tranqüilizador, mas inteiramente incerto, duvidoso, incessantemente penetrado pelo não-ser, interrompido pela morte, arrastado entre ser e não-ser. Sempre no limiar do nada: presque rien. Mas então um (não) ser que é antes um vir-a-ser. Vir-a-ser aqui entendido não como caminho reto e unilinear, amparado por uma estratégia precisa, e sim como puro ser em movimento..." (2 2 E. Lisciani Petrini. Introd. a Wladimir Jankélévitch, La musica e l'ineffabile. Tempi Moderni 1985, p. XXXV. ). É assim que Enrica Lisciani Petrini comenta o pensamento de Jankélévitch. Ora, há que se perguntar por que a música, a música de Debussy para sermos claros, embora representando uma alternativa radical às ebriedades racionalísticas da civilização ocidental, nem sempre foi encarada nesses termos. Ao contrário, por muito tempo, ao menos no Ocidente, a música acompanhou e favoreceu o ideal tranqüilizador e progressista em que nós crescemos. A linguagem musical, por natureza inexprimível e inefável ter-se-ia orientado para essa impressividade original, se não tivesse sido artificialmente submetida a uma concepção de mundo expressiva e tranqüilizadora. No mundo de hoje, em que entraram em crise todas as certezas de ontem, racionais e tranqüilizadoras, a música, e não só a música, se tornou de certa forma o símbolo de outro pensamento, de um estado diferente de consciência, de um modo diferente de viver o tempo.

Discorrer sobre a música remete, pois, a problemas de outra natureza e talvez agora se possa começar a vislumbrar seu vínculo secreto com o judaísmo. Quem folhear, mesmo descuidadamente, os escritos judaicos de Jankélévitch ficará logo impressionado ao notar que nesses textos reaparecem termos e conceitos já presentes em seus escritos musicais (3 3 Cf. sobretudo sua coletânea de escritos Sources, Paris, Editions du Seuil, 1984; veja-se ainda a tradução italiana parcial desses escritos La coscienza ebraica, Firenze, Editrice La Giuntina, 1986. ). Antes de mais nada, nesses textos é também central a reflexão sobre o tempo, no que se refere ao judaísmo e à maneira judaica de viver o tempo, principalmente com relação à idade messiânica. A recusa do historicismo e da dialética consolatória e conciliadora constituem outro eixo fundamental de sua reflexão. Além disso, surpreende encontramos a mesma terminologia, como 'indefinido', 'inexprimível', 'não sei quê', 'elusividade', 'diferença' etc., terminologia já empregada para descrever o status ontológico da música. Isso talvez pudesse ser explicado simplesmente pelo gosto do autor por determinada terminologia, o que a faria reaparecer em todos os seus escritos, seja qual for o tema de que tratem. Mas em um filósofo tão refinado e penetrante como Jankélévitch tal explicação nos parece demasiado redutora. O uso da mesma terminologia explica-se melhor pela hipótese de nos acharmos diante de problemas que, a uma análise atenta, revelam profunda afinidade.

Jankélévitch explica a existência judaica em termos de sutil ambivalência, para não dizer de sutil e inapreensível ambigüidade. Há elementos de insanável contradição na própria estrutura conceitual da vida judaica: o exílio, nessa perspectiva, é encarado não como acontecimento histórico, superável em virtude de outros possíveis acontecimentos históricos, mas como algo inseparavelmente vinculado à própria consciência judaica. É assim que se exprime Jankélévitch, com muita acuidade, em um ensaio de 1957: "O movimento representa a maneira de existir de uma consciência que traz em si mesma elementos contraditórios, o modo de ser de um homem que é estrangeiro e nativo, que quer ao mesmo tempo assemelhar-se e 'dessemelhar-se'. O peregrinar, que se opõe à tendência à fixação, sempre foi considerado um dos traços fundamentais de Israel" (4 4 Cf. La coscienza ebraica. Firenze, Editrice La Giuntina, Firenze 1986, p. 28. ). O movimento a que se alude não é movimento no espaço, mas deve se referir ao tempo; movimento, portanto, ligado à idéia de vir-a-ser. Mas, afirma ainda Jankélévitch, "o espírito de movimento faz de Israel o portador privilegiado da contradição humana...Um não sei quê de definido e de indefinível se exprime neste problema irritante, incessamente resolvido e incessamentemente reaberto, em suma, essencialmente equívoco" (5 5 Ibid., p. 23. ). A situação do judeu é, pois, irremediavelmente ambígua e extrai sua linfa vital da insolubilidade das contradições em que ele vive. "Vem talvez daqui - continua Jankélévitch - o espírito de mobilidade de que Israel é portador. O movimento é a única solução para a tensão interior, assim como o vir-a-ser, que é nossa vocação, resolve a contradição do ser e do não ser: o homem vem a ser os opostos que ele não pode ser ao mesmo tempo" (6 6 Ibid., p. 28. ). Não há, portanto, conciliação, as contradições permanecem abertas, as dilacerações não são sanáveis, mas são fecundas, são o sal da terra.

Percorrendo com atenção as páginas do filósofo sobre a consciência judaica, percebe-se que nela ocupa lugar privilegiado um aspecto particular do judaísmo: a condição de diáspora, condição intransponível, fonte de dor e de infelicidade, mas ao mesmo tempo de inquietação fecunda e produtiva. A conclusão de Jankélévitch é central para o que estamos dizendo: "A dilaceração judaica, neste ponto, é uma forma privilegiada da dilaceração humana em geral" (7 7 Ibid., p. 36. ). E acrescenta: "A peculiaridade do judeu nunca foi a de buscar a solução numa síntese conciliadora: deixamos a tarefa a Hegel e seus amigos. Em lugar disso, acreditamos na fecundidade de uma oscilação vibratória infinita entre estes dois pólos: de um lado, a disseminação com sua inquietação, a diáspora, que é princípio de aporia: de outro, o Estado temporal, certamente banal como todos os demais Estados, mas que representa a possibilidade intramundana de Israel - que digo? - sua certeza aqui na terra, a própria afirmação de sua plenitude vital" (8 8 Ibid., p. 34-35. ). Daí estarem ontem e ainda hoje tão presentes no espírito judaico o dualismo e a oscilação entre a diáspora e um Israel, ontem distante, imaginado, desconhecido, desejado, invocado, e hoje real e presente em sua concretude. Isso "não é um beco-sem-saída, desesperador, e sim uma polaridade vivificante que eletriza a consciência judaica" (9 9 Ibid., p. 35. ). A quem censura aos judeus por não aceitarem sem reservas nem a assimilação total nem a nacionalidade israelense, Jankélévitch responde: "...não somos nós que não sabemos o que queremos, é a verdade que é dilacerada e incoerente, as verdades é que são esporádicas e incompatíveis, e que não podem ser cultuadas todas juntas" (10 10 Ibid., p. 35-36. ). Essa é a conclusão de Jankélévitch em outro ensaio, cujo título é significativo: O judaísmo, problema interior. Nesse ensaio afirma que a situação existencial do judeu "é inquietante mesmo quando não é trágica, é uma instigação a procurar sempre em outra parte, sempre mais adiante... Há uma perplexidade infinita, que não comporta fim nem solução. Não conheço o modo de fazer em mim mesmo a síntese das contadições, e a conciliação hegeliana tem para nós pouca atração. Nossa perplexidade durará até o fim dos tempos e estes não têm fim" (11 11 Ibid., p. 22. ).

Nem todos podem concordar quanto a essa concepção do judaísmo, que torna privilegiado um aspecto sem dúvida central, ou seja, o caráter de diáspora, visto como principal mola propulsora do próprio judaísmo. Um hipotético retorno de todos os judeus a Israel seria considerado por Jankélévitch como o fim do judaísmo, ou melhor, o fim desta situação existencial do judeu que ele tanto valoriza, ou seja, o fim da tensão produtiva e fecunda de que sempre se alimentou o espírito judaico e, em conseqüência, o advento de uma normalidade na história que apagaria a diferença judaica. Mas não é esse o lugar para pôr em questão tal visão do judaísmo: basta-nos lembrar que é assim que Jankélévitch enxerga o judaísmo e que outras visões existem, nas quais a própria diáspora é encarada como acidente histórico, lamentável, carregado de perigos e, particularmente hoje, talvez capaz de pôr em risco a própria existência do judaísmo.

Para melhor penetrar nesse seu judaísmo, ainda uma alusão a problema estreitamente ligado aos que foram mencionados: o messianismo judaico. Observa Jankélévitch que podem ocorrer dois tipos diferentes de messianismo. O primeiro implica a idéia de fim dos tempos: a vinda do Messias assinalaria um termo ao qual se chegaria antes ou depois, por distante que esteja; o tempo viria a configurar-se como "uma grandeza em escala", como um "móvel que avança regularmente e sempre no mesmo sentido" e "vir-a-ser é aproximar-se sempre mais da consumação do tempo" (12 12 Ibid., p. 40. ). A história, portanto, significaria o desenrolar do "rolo dos possíveis" e deter-se-ia quando o rolo chegasse ao fim. Isso vale também para a vida humana: "somos seres limitados que temos somente pouquíssimas idéias. Paramos quando estamos no fim, tal como pára um relógio que esgota sua corda" (13 13 Ibid., p. 42-43. ). O segundo modo de entender o messianismo é próprio do judaísmo e antes de mais nada implica abandono da idéia de um Messias pessoal, que chega num tempo determinado: "Desde o livro de Isaías os judeus rejeitaram a idéia de um Messias pessoal, para fazer do messianismo o campo de uma esperança pneumática, inderterminada, de natureza a tal ponto moral e religiosa que implica transfiguração moral dos homens. Evita-se fixar uma data para essa transfiguração. A despersonalização do Messias, que continua a ser pessoal somente na crença popular, é um fenômeno essencial na história filosófica do judaísmo" (14 14 Ibid., p. 58. ). O tempo assume, portanto, caráter de infinitude e o verdadeiro problema não é o fim dos tempos, mas antes os fins do tempo; "não o fim da história, porque esta nunca terá fim, porque nunca chegará ao final de seu rolo; nosso verdadeiro problema são os fins da história; os fins desmentem o fim; os fins que são ideais, normativos, com os quais vivemos, que são capazes de produzir em nós as grandes renovações e que não nos deixam a possibilidade de dizer 'para sempre'... Pelo próprio fato de nos dirigirmos a um futuro infinitamente distante, futuro que nunca chegará ao calendário, mas avançará como um profundo mistério, como o mistério da morte, que desemboca em outra ordem, mas que está sempre presente: dizer que é sempre futuro ou sempre presente é a mesma coisa... Esse amanhã é meu hoje, brilha nesta lâmpada acendida pela esperança que está no coração de cada um de nós e transfigura o nosso 'cada dia', o nosso quotidiano, orientando-o para que a esperança floresça continuamente em nós" (15 15 Ibid., p. 64-65. ). É assim que Jankélévitch conclui seu denso ensaio de 1961, A esperança e o fim dos tempos, ensaio sobre o messianismo judaico, mas ainda mais sobre o sentido do tempo no judaísmo.

Enfim, ainda uma alusão a outro importante ensaio, Semelhar, dessemelhar, de 1964. Também aqui Jankélévitch volta a pôr o dedo na contradição irresolvida e insolúvel que está na raiz na existência judaica, ao mesmo tempo que se torna uma chave universal da existência humana. O judeu está constantemente tomado por duas tentações diferentes e opostas, uma espelho da outra: ser como os outros, ou seja, assemelhar-se, ser como todos, ou isolar-se em suas próprias especificidade, diferença e particularidade. Poder-se-ia universalizar essa dupla tentação, afirmando-se que uma reflete a necessidade de vida social, outra a necessidade de solidão, a qual também se manifesta como "o protesto do homem que não quer desaparecer no cinzento universal". O homem judeu está à procura dessa forte particularidade mas, ao mesmo tempo "sente a nostalgia da abertura, de tudo aquilo a que ele se fecha, de tudo aquilo a que renuncia, e tem a sensação de se encerrar e de se empobrecer" (16 16 Ibid., p. 88-89. ). Um dilema não muito diferente é o que se revela no "querer ao mesmo tempo ser tratado absolutamente como os outros, sem qualquer discriminação", mas conservando ao mesmo tempo sua própria originalidade. "E contudo é esta semelhança diferente ou esta diferença semelhante o que explica o lado problemático do judeu, seu sentido enigmático"; assim é que ele "escapa com o movimento, escapa com o humorismo e escapa sendo diferente de si mesmo, até o infinito" (17 17 Ibid., p. 92. ). E ainda, para concluir: "Quem não aceita ser como os outros nem ser diferente dos outros, quem não aceita ser um entre eles nem o único de sua espécie, aceita ser diferente de si mesmo, desenvolvendo-se ao infinito, escapando de si mesmo" (18 18 IBID., p. 92-93. ). Qual será a atitude diante desta dupla tentação, o desejo de assemelhar e o desejo contrário, de dessemelhar? "Não é sério - afirma ainda Jankélévitch - sermos tentados pelo desejo contrário ao próprio desejo. Não é coisa séria nem verdade. Pelo contrário, é algo que exige ser tratrado como brincadeira, com humorismo. Pelo contrário, o que é serio é reconhecer afinal o lado um tanto irônico de nossa condição, o lado contraditório e irônico de nossa condição de homens. Há uma perfeita seriedade que não tem aparência séria, a do judeu que segue adiante, que assim atinge a inocência, longe de qualquer tentação impura....O homem que compreendeu, que se converteu a esta inocência - e talvez a consciência judaica esteja particularmente preparada para tanto e tenha neste sentido um valor exemplar - , o homem que compreendeu o valor da inocência, o lado ilusório e pueril destas tentações que ele mesmo fabricou, reconhecerá que tudo isso não valia a pena, que na verdade não vale a pena deixar a serpente tentar-nos com tão poucas coisas. Compreenderá que o fruto proibido, ao deixar de ser proibido, tem um gosto muito amargo, e o atirará para longe de si, envergonhando-se de um dia tê-lo desejado tanto" (19 19 Ibid., 92-94. ).

Os trechos citados permitem captar de modo bastante claro como Jankélévitch entendia o judaísmo e, assim, voltar ao que se dizia de início sobre a música. Falamos em terminologia afim: agora fica claro que há uma razão profunda no fato de tal terminologia, ou melhor, de tais instrumentos conceituais poderem se aplicar de pleno direito a ambos os campos: música e judaísmo, campos que revelam, a uma atenta análise, profunda afinidade estrutural. Para a música "o equívoco é o regime normal" e por isso a música "não é obrigada a escolher entre sentimentos contraditórios", mas, em lugar disso, "compõe com eles - a despeito de qualquer alternativa - um único estado geral do espírito, um estado de espírito ambivalente e sempre indefinível" (20 20 Jankélévitch, La musica e l'ineffabile, p. 103-4. ). A contradição irresolvida e insolúvel é, pois, a alma da música, da música autêntica, exatamente como a de Debussy. Mas essa música, essa experiência existencial privilegiada torna-se, tal como o judaísmo, uma chave da existência humana, uma fresta por onde captar os lados mais autênticos e profundos da própria condição humana. Pode-se assim enumerar toda uma série de parentescos entre música e judaísmo, ficando-se obviamente dentro da experiência do pensamento de Jankélévitch. Debussy, com sua música, sublinhou a condição do homem que renuncia à solidez da existência, a seu significado unívoco e afirmativo: a realidade não é mais sentida como a morada do homem, como a pátria segura onde alguém se reconhece sem resíduos. Debussy, com sua música, sancionou a condição da Heimatlosigkeit, da perda da terra e da pátria, condição própria do homem. Como não perceber a coincidência não casual com o judeu, que agora vive uma existência constitucionalmente sem pátria e que ao mesmo tempo aspira a uma pátria, tomado por eterna e inextinguível nostalgia de pátria, que nem o nascimento do Estado de Israel conseguiu extinguir? Foi assim que a ilusória concretude unívoca do real foi varrida pela música de Debussy e por sua inefável inexpressividade e ambigüidade. "A música - afirma Jankélévitch - discurso vago e fluente, situa-se, pois, para além das categorias separadas do cômico e do trágico, na profundidade mesma da vida vivida" (21 21 Ibid., p. 93. ). Ser definível não é próprio da música, que por natureza tende a "exprimir o inexprimível até o infinito" e seu âmbito "não é o indizível, mas o inefável. O indizível é a noite escura da morte, porque esta é escuridão impenetrável e desolação do não-ser... Ao passo que o inefável, bem ao contrário, é inexprimível porque a seu respeito há infinita e interminavelmente o que dizer..." (22 22 Ibid., p. 101. ). A este propósito também se pode verificar que experiência musical e experiência judaica se espelham perfeitamente. O judaísmo também tem sua inefabilidade, porque defini-lo é "como definir algo cuja essência é ser indefiniível" (23 23 La coscienza ebraica, op. cit., p. 8. ). De fato, o judeu quer ser ele próprio e ao mesmo tempo quer ser alguém diferente de si próprio e, por isso, está duas vezes ausente de si mesmo. Neste sentido poder-se-ia dizer que éle é homem por excelência, que é duas vezes homem (24 24 Ibid., p. 8 ). "Daqui tem origem a tensão tipicamente judaica, que se torna "tensão criadora e sua solução reside no infinito" (25 25 Ibid., p. 22 ). Vale dizer que tal tensão se resolve no tempo e no movimento. O messianismo judaico encarna perfeitamente essa concepção do tempo como movimento infinito.

A recusa da idéia do fim dos tempos e, portanto, da conclusividade de nosso agir mais uma vez nos leva à música de Debussy, como metáfora da existência humana e, em particular, judaica. O fim dos tempos é a morte, assim como o indizível é ainda metáfora da morte, da paralisante imobilidade a que conduz. Pelo contrário, o Messias como tensão para o futuro, como esperança infinita e inefável, é a vida, o movimento infinito, o tempo em sua mais profunda dinâmica: mas esse discurso, deve-se notar mais uma vez, é próprio tanto da música quanto do judaísmo, não sendo por acaso que Jankélévitch usa termos-chaves como inocência, para designar o proceder do judeu e do músico. Poder-se-ia dizer que a inocência é o modo mais apropriado de viver o tempo como movimento e é uma qualidade igualmente necessária ao músico e ao judeu. Somente na inocência do compositor e do intérprete a música pode exercer seu poder e sua sugestão profunda, sua força persuasiva, arrastando o ouvinte no fluxo de seu movimento. É a mesma inocência necessária "ao judeu que segue adiante, que desse modo alcança a inocência". Longe da tentação impura, a inocência que ignora a luta, a inocência que "estando no movimento, implica por si mesma a serenidade e a indiferença..." (26 26 Ibid., p. 93 ). O estado de espírito mais adequado ao músico, e também ao judeu, é portanto o jocoso, o humor: é a única seriedade possível, a única sabedoria possível para o homem. Assim como o judeu não pode senão ironizar sutilmente a ambigüidade de sua própria situação existencial, assim também o músico, que encontra ambigüidade análoga na própria essência da música, recorre ao humor para exprimir o conteúdo mais profundo da música que, como afirma eficazmente Jankélévitch, é ao mesmo tempo "séria e frívola, profunda e superficial" (27 27 La musica e l'ineffabile, op. cit., p. 91. ).

São muitos, portanto, os pontos de contato entre o judaísmo vivido e experimentado por Jankélévitch e a música, cuja essência mais profunda se encarna na obra de Debussy: trata-se de duas experiências extremas que remetem antes de mais nada à situação humana, situação da qual o homem tende a escapar refugiando-se em mitos coletivos consolatários, vãos e enganosos. De certa forma o judaísmo e a música se colocam no pensamento de Jankélévitch como dois baluartes remanescentes, silenciosos, apartados e sobretudo marginais às "ebriedades racionalísticas e dialéticas". Saber viver a marginalidade em sua positividade, como dimensão da vida separada dos clamores e das certezas demasiadamente fáceis pode justamente ser a mensagem mais fecunda que nos é transmitida pela música e pelo judaísmo, enquanto experiências intensificadas da existência humana, longe do alarido das multidões, como "reminiscência ou profecia", que pode recordar "ao homem o mistério que ele carrega em si mesmo" (28 28 Ibid., p. 211. ).

Notas

Enrico Fubini é crítico de música na Itália.

Tradução de Pedro Garcez Ghirardi. O original em italiano - Temi musicali e temi ebraici nel pensiero di Vladimir Jankélévitch - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

O texto Temi musicali e temi ebraici nel pensiero di Vladimir Jankélévitch será publicado, no original, na Revista Música do Departamento de Música da ECA-USP - v. 7, ns. 1-2, maio-nov., 1996.

  • 1
    E. Lisciani-Petrini.
    L'apparenza e le forme. Filosofia e musica in Jankélévitch. Napoli, Nuove ed. Tempi Moderni, 1991, p. 110-111.
  • 2
    E. Lisciani Petrini.
    Introd. a Wladimir Jankélévitch, La musica e l'ineffabile. Tempi Moderni 1985, p. XXXV.
  • 3
    Cf. sobretudo sua coletânea de escritos
    Sources, Paris, Editions du Seuil, 1984; veja-se ainda a tradução italiana parcial desses escritos
    La coscienza ebraica, Firenze, Editrice La Giuntina, 1986.
  • 4
    Cf.
    La coscienza ebraica. Firenze, Editrice La Giuntina, Firenze 1986, p. 28.
  • 5
    Ibid., p. 23.
  • 6
    Ibid., p. 28.
  • 7
    Ibid., p. 36.
  • 8
    Ibid., p. 34-35.
  • 9
    Ibid., p. 35.
  • 10
    Ibid., p. 35-36.
  • 11
    Ibid., p. 22.
  • 12
    Ibid., p. 40.
  • 13
    Ibid., p. 42-43.
  • 14
    Ibid., p. 58.
  • 15
    Ibid., p. 64-65.
  • 16
    Ibid., p. 88-89.
  • 17
    Ibid., p. 92.
  • 18
    IBID., p. 92-93.
  • 19
    Ibid., 92-94.
  • 20
    Jankélévitch,
    La musica e l'ineffabile, p. 103-4.
  • 21
    Ibid., p. 93.
  • 22
    Ibid., p. 101.
  • 23
    La coscienza ebraica, op. cit., p. 8.
  • 24
    Ibid., p. 8
  • 25
    Ibid., p. 22
  • 26
    Ibid., p. 93
  • 27
    La musica e l'ineffabile, op. cit., p. 91.
  • 28
    Ibid., p. 211.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1996
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