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Rauménirrouds

DOSSIÊ AMAZÔNIA BRASILEIRA II

CULTURA

Rauménirrouds

Alberto Martins

RAU. RAI. Não era assim que o índio cumprimentava o caubói e o caubói respondia naqueles filmes que passavam de madrugada na tv lá no quartel em cuiabá? Esticou o braço para esfregar o vidro, mas parou. Não queria sujar a farda e o embaço vinha mesmo do lado de fora. A poeira se despregava do mato ralo que crescia em volta da estrada e vinha se colar no vidro da toiota. Pensou em ligar o pára-brisa. Depois riu. Onde é que já se viu ligar o pára-brisa para espantar poeira? Pára-brisa é coisa pra água. É pára-brisa? Ou limpador de pára-brisa? Pára-brisa é o vidro ou a vareta? Devia ser o vidro. Riu. Pára-brisa. Pára-lama. Pára-choque. Pára-queda.

Tirou o pé do acelerador quando adivinhou os buracos na estrada. A lama seca chega a formar farpas tão afiadas que até furam o pneu de um carro. Mas não de uma toiota. Nada ia furar um pneuzão daqueles. Só um tiro. Talvez tivesse sido por isso que o coronel dessa vez lhe dera a toiota blindada. Pra que nenhuma casca de lama furasse um pneu daqueles.

Por que chamar o vidro de pára-brisa, se o vento da brisa quem cria é o próprio carro quando anda? Se ele parasse ali de repente no meio da estrada escura, haveria vento? Porque se não havia vento, como é que havia tanta poeira no ar? Então: havia ou não havia vento? Podia parar o carro e fazer a prova. Mas parar o carro no meio daquele desertão – e ainda mais carregado como estava. Além disso o coronel dera ordem de chegar a progresso o mais rápido possível. Era coisa de se guiar umas catorze, quinze horas seguidas.

Quanto tempo dura uma viagem? Numa estrada daquelas ninguém podia dizer ao certo. Pôs o cd para tocar. Depois da quinta lição, havia uma música que a professora pedira para ele ouvir, aprender a pronúncia e entender o sentido sozinho. Depois, na aula, eles traduziriam juntos a canção.

A voz cristalina da moça começou a cantar rauménirroudsmãstiaménuókdaum , depois o violão bateu duas vezes e a moça respirou antes de continuar biforiu-quencolrrimamén. Deixou a canção tocar até o fim. Rauménirroudsmãstiamén ele até que entendia. Quantas estradas um homem tinha. O diacho era aquele uókdaum. Uók ele sabia que era andar. Mas e uókdaum? Seria andar para baixo? Descer a estrada como se desce um rio? Então havia isso no inglês? Eles também usavam as estradas como rios?

Deu pause no cd e abriu o vidro. Pra ver se havia barulhos. Além do vento no ouvido e do sussurro da toiota só ouviu os grilos espaçados. Estava na estrada há sete horas. Já tinha ido uma vez até guarantã do norte, mas nunca tinha cruzado a fronteira do mato grosso com a amazônia. Na verdade, nunca tinha cruzado fronteira alguma. Era amazônia ou amazonas? Era amazônia, como falava o professor de limites do brasil no curso de geografia do exército. Era amazônia e os brasileiros precisavam ficar bem espertos porque os norte-americanos viviam de olho na amazônia. Ele também tinha que ficar bem esperto porque a qualquer momento podia cruzar a fronteira.

Uma vez tinha visto no quadro de avisos do quartel um anúncio de treinamento na selva. Foi dos primeiros a se inscrever. Mas depois alguém despregou o anúncio e o treino na selva sumiu. Assustou-se: e se já tivesse cruzado a fronteira? E se já estivesse do outro lado, sem perceber? Tempos atrás tinha visto na tv que a fronteira agrícola estava avançando do mato grosso para a amazônia. Se a agricultura podia mudar a geografia, então era bem possível que a fronteira da amazônia já não começasse dali a um, dois ou dez minutos, mas tivesse se movido milhares de quilômetros lá para o norte, pertinho das guianas. Lembrou do mapa usado no curso de limites do brasil. A floresta era verde, o cerrado era amarelo e o mar era a borda azul que estava sempre do lado de fora. Se um homem no brasil guiasse dez dias sem parar ia sempre dar no mar. Passava floresta, serra, charco, mangue, mas ia sempre dar no mar – não havia escapatóia.

Uma pena ele nunca ter feito o curso de sobrevivência na selva. As matas da amazônia deviam ser de uma grossura infinita. Olhou o painel da toiota para ver como estava de gasolina. Do lado de fora a estrada parecia ainda mais escura. O coronel leomarino lhe dera um galão extra, mas quem disse que ele ia parar o carro ali, no meio do silêncio. Ia esticar até onde desse. Tirou o cd do pause. A moça repetia várias perguntas e depois cantava a resposta meu amigo está blouinindeuind. Achou bonito. Blouinindeuind.

No comeco, não entendeu por que é que o major o indicara. Ele não era forte, nem ágil, nem certeiro na mira. Era só um motorista responsável. Naquele quartel em que os carros quebravam a cada duas, três semanas, ele conseguiu dirigir o mesmo carro por meses sem baixar uma única vez na oficina. Quando já estava no final do seu período de recruta o major o chamou, perguntando se queria continuar a servir o exército. Como não tinha outro lugar para ir, disse que sim. Na mesma semana o major o apresentou ao coronel.

Na fazenda passou a dormir num galpão junto com os empregados, mas o seu serviço era mais leve. Tinha só que cuidar dos carros e ficar à disposição para pequenas entregas – da fazenda até o quartel, do quartel até o centro da cidade, da cidade até a fazenda. De vez em quando uma viagem diferente.

Nos primeiros tempos, andou incomodado. O coronel leomarino lhe fizera trocar a farda por roupa civil. Estranhou. Se não ia vestir a farda, ia vestir o quê? As roupas que nem tinha mais do tempo do orfanato? Mas obedeceu. A vida melhorou: de cabo-ninguém passara a motorista e, além do soldo do exército que continuava a cair regularmente na conta, recebia também as gratificações do coronel. Agora tinha dinheiro suficiente para calça e camisa e até curso de inglês na folga de quinze em quinze dias.

Com mulheres não precisava gastar, pois o coronel trazia regularmente para os peões. Então as moças mal tinham tempo de respirar. Depois, sempre na madrugada de domingo pra segunda, ele escoltava o bando de meninas, quase todas meio-índias. Amontoadas no banco de trás, elas iam sonolentas, embor-rachadas, e podiam descansar um pouco enquanto ele cuidava do volante.

No começo, fazia a viagem de alma leve. Primeiro, quem é que não gosta de uma farra? Segundo, no carro as moças pareciam até aliviadas depois de tanto trabalho. Verdade que uma vez ele ouviu alguém falar em tráfico de menores na região. Mas ele não fazia tráfico, que era uma coisa ilegal. Ele fazia tráfego, que era o seu trabalho de motorista. Qual a diferença entre tráfico e tráfego? Um atravessa a fronteira, outro não. E ele nunca tinha atravessado uma fronteira. Ele só dirigia algumas horas e, pouco antes de vila bela da santíssima trindade, dava carona a um boliviano que lhe indicava os atalhos numa estrada de terra que acompanhava o rio. As meninas desciam do carro, atravessavam num bote um charco de uns duzentos metros e do outro lado subiam num jipe, já do lado da bolívia. Aquilo era tráfico?

Voltou a prestar atenção na estrada. Agora os faróis abriam um rasgo na terra amarela e escura. Mas ele não conhecia o nome de nenhuma daquelas árvores. Tinha tomado o rumo da cuiabá-santarém no finzinho da tarde, passado por sorriso e pela sinop, e sabia que depois de guarantã ia enfrentar um trecho enorme sem vila ou cidade, só um ou outro morador disperso, gente sem nome vivendo da floresta.

Uma vez quando era pequeno tinha recebido a visita de um homem no or-fanato. Disseram cumprimente seu padrinho. Ele nunca mais vira o homem. Uma noite no galpão sonhou que o homem era o coronel leomarino. Acordou contente, como se tivesse conhecido um parente distante. Depois achou que era tudo mentira – e esqueceu. Voltou a lembrar do sonho quando o coronel lhe trouxe naquela tarde a farda de capitão embrulhada num pacote.

Assentiu calado quando o coronel disse que a entrega era importante e convinha, para qualquer eventualidade, ter autoridade de capitão. Continuou calado enquanto o coronel leomarino levantava o banco de trás da toiota e mostrava a dúzia de armas enroladas em cobertores, e as várias caixas de munição. Que entregasse ao major cordeiro no destacamento militar de progresso. Só ao cordeiro, repetiu. Era um favorzinho que devia. Meses atrás ele tinha deixado um bando de pé-rapados se instalarem na beira de uma propriedade sua, vivendo da mata e abrindo roça, enquanto não conseguia autorização para usar a terra. Mas agora que tinha autorização e precisava das terras de volta, uma professorinha estava convocando os agricultores pra resistir à remoção. Ele não precisava fazer nada. Tinha só que chegar no progresso o mais rápido possível, piscar o farol duas vezes diante do destacamento, esperar que piscassem de volta e anunciar a entrega do cordeiro.

Os olhos na estrada, o pensamento no ar. Como é que podia passar de cabo a capitão em tão pouco tempo? Só porque o coronel lhe dera a farda? Então a farda era lei? Mas e se a lei andasse errada? E se a lei andasse errada e o mundo é que estivesse certo? Não. A lei é sempre certa e o mundo é que é errado, isso sim. Mas se o mundo andava errado não podia ser também por causa da lei?

Cansaço. Já era quase uma noite inteira no volante. Olhou o painel da toiota para ver se estava tudo em ordem. E aquela não era uma estradinha qualquer. Era a cuiabá-santarém. No escuro não dava pra dizer quanta terra havia debaixo daquelas árvores, mas o coronel leomarino dizia que tudo ali era terra de ninguém. Por isso as pessoas se arranjavam como podiam até que outros que podiam mais chegavam para desarranjá-los. Era assim que funcionava.

Seguiu um tempo com os olhos pregados na estrada. Pensou que era melhor transportar as meninas porque pelo menos tinha alguma coisa para distraí-lo no espelhinho retrovisor. Riu. No fundo, que diferença havia entre ele e as meninas? Ele também não estava sempre transportando e sendo transportado de um lado pro outro? Lembrou das formigas no pátio do orfanato que viviam carregando grandes folhas de grama decepadas.

Experimentou abrir a janela. Massas escuras sem nome passavam do lado de fora. Não adiantava olhar muito para elas. Não diziam nada. Ou ele não sabia ouvir. Melhor manter os olhos na estrada. Logo as árvores não emendavam mais. A noite começou a ceder atrás dos vidros e um pozinho azulado parecia se grudar no pára-brisa. Lusco-fusco. Viu campos de capim. Clareiras. Mato ralo. Abriu novamente a janela e notou que a névoa tinha cheiro e cor de fumaça.

Pouco depois viu a primeira roça incendiada. O carvão da casa ainda ardia e no chão havia bandejas de plástico espalhadas, como se os moradores tivessem saído de uma hora para outra no meio da noite. Nos quatro ou cinco quilômetros seguintes, o fogo continuava o seu trabalho. Depois da última queima, uma construção maior que podia ter sido a escola, teve a certeza de que tinha chegado a progresso.

Atravessou devagar um longo trecho cheio de gretas cortando a estrada de lado a lado. Agora o vento parecia ter mudado de direção outra vez, já não sentia o engasgo da fumaça. Viu as primeiras casas de progresso e uma leve faixa rosa-alaranjarada suspensa no horizonte, lá adiante. O ar fresco, o cheiro de mato e grama recém-cortados alegrou os pulmões, espantou o sono.

Rodou pelas ruas quietas até achar o campo de futebol – e o quartel. Estacionou a toiota junto a uma das traves e deixou o motor ligado. Do lado de fora dois soldados montavam guarda. Tinha pouco tempo para decidir o que fazer. Agora os soldados conversavam, as cabeças voltadas na sua direção. Pouco tempo para piscar o farol e anunciar as armas do cordeiro. Espiou o céu. Ia fazer um dia quente. No banco de trás ainda restava um galão de gasolina. Se riscasse um fósforo dava uma bela explosão. Se guiasse um dia inteiro sem parar alcançava o amazonas. Esticou a cabeça para fora da toiota. No chão, junto à trave, quase dava para ouvir o barulho da soja crescendo.

Recebido em 24/3/2005 e aceito em 18/4/2005.

Alberto Martins formou-se em Letras na Universidade de São Paulo, onde também iniciou seus estudos de gravura, técnica que lecionou de 1990 a 1998 no Museu Lasar Segall de São Paulo. Reuniu sua poesia nos volumes Poemas, de 1990, e Cais, de 2002, ambos ilustrados com suas próprias gravuras. Em 2005, publicou sua primeira incursão em prosa de ficção, A história dos ossos (Editora 34).

Ilustrações de Andrés Sandoval.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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