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O retorno de antigo e vibrante debate: as mediações entre escravidão e capitalismo

RESENHAS

O retorno de antigo e vibrante debate: as mediações entre escravidão e capitalismo

Guilherme de Paula Costa Santos

Mestre pela USP e doutorando em História Social/USP, bolsista Fapesp. @ – gpcsantos@usp.br

Os estudos sobre escravidão possuem uma característica que nem sempre temas de igual importância conseguem alcançar: inserem-se em debate teórico rico, pujante e de variadas nuances que envolve não só discussões acerca da origem e consolidação do capitalismo, mas também a forma pela qual cada região do planeta relacionou-se a esse sistema. Não fugindo a esse aspecto, Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial reaviva questionamentos e propõe inovadoras alternativas de interpretação. Escrito por Dale W. Tomich, professor de História e Sociologia da Universidade de Binghamton, o livro retoma a polêmica a respeito dos nexos entre a escravidão e a formação do capitalismo e, sobretudo, oferece argumentos e evidências com sérias implicações para a compreensão das dimensões políticas e econômicas do Império no Brasil do século XIX.

Lançada em 2011, a obra é a tradução de Through the Prism of Slavery: Labor, Capital and World Economy, editada pela primeira vez em 1999. Reúne nove ensaios escritos de 1987 a 1997, publicados em sua maioria em coletâneas compostas por outros pesquisadores anglo-saxões. Embora a diferença de tempo entre a edição original e a tradução para o português ultrapasse dez anos, as ideias principais de Tomich já circulam pelos ambientes universitários brasileiros há pelo menos três décadas. Um exemplo é o livro de Tamis Parron, A política da escravidão no Império do Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011), resultado de dissertação de Mestrado, defendida na USP em 2009, fundamentada em grande parte nos horizontes analíticos dispostos por Tomich sobre as significações contraditórias que o escravismo adquiriu na América em concomitância aos processos de independência e de formação dos Estados nacionais.

Além disso, o autor teve oportunidade de difundir seu pensamento no Brasil, especialmente no eixo Rio-São Paulo: foi professor visitante do Departamento de História da Unicamp em 1982 e 1988; da Universidade Federal Fluminense em 1983; do Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da USP, em 1998, e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2009. Em 2004, publicou artigo intitulado "O Atlântico como espaço histórico" na Revista Estudos Afro-Asiáticos (Rio de Janeiro, UCAM, jul/dez, 2004)) e, em 2009, em parceria com Rafael de Bivar Marquese, professor do Departamento de História da USP, publicou o capítulo "O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX" na coleção organizada por Keila Grinberg e Ricardo Salles O Brasil Imperial, vol II (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009).

Pelo prisma da escravidão está dividido em três partes de três capítulos cada uma e tem por objetivo principal "deslindar de que modo as histórias de certas formações escravistas das Américas foram moldadas pela sua inserção no mercado global, na divisão do trabalho e no sistema interestatal – como também, inversamente, repensar a partir da perspectiva da escravidão do Novo Mundo a evolução histórica do capitalismo moderno em seu aspecto de economia mundial" (p. 13).

O livro não deixa de ser uma reverberação do longo debate que envolveu a relação entre escravidão e capitalismo principiado com maior nitidez por Eric Williams, em 1944, com o lançamento de Capitalismo e escravidão. A tese de Williams buscava realçar não só a conexão entre a escravidão no Novo Mundo e a formação do capitalismo na Europa, mas, principalmente, demonstrar como os interesses calcados no livre comércio levaram os capitalistas ligados ao refino de açúcar a uma batalha contra a escravidão. Williams estabelece o forte jogo de interesses econômicos ligados a abolição do trabalho escravo nas colônias inglesas, contrapondo-se à tese de que tal emancipação teria sido obra do compromisso moral e benevolente do Império Britânico.

Essa perspectiva de análise foi, entretanto, fortemente colocada em suspeição a partir de estudos que revisaram a assertiva de Williams, como os textos de Seymour Drescher podem exemplificar. O resultado desse debate acabou levando as pesquisas acadêmicas sobre escravidão à problemas mais específicos e locais que não consideravam ponderações de ordens estruturais ou conjunturais, características marcante de Capitalismo e escravidão de Williams.

Nesse sentido, o desafio que Dale Tomich se propõe não é dos mais simples e traduz-se por recuperar uma abordagem mais global ou conjuntural, presente em Williams, sem deixar de considerar as particularidades e dilemas locais e específicos da região escravista caribenha. Por isso, ao longo da primeira parte da obra, o autor busca esclarecer os pressupostos metodológicos e os limites epistemológicos das várias perspectivas teóricas utilizadas por historiadores e sociólogos que se dedicaram ao tema. A análise recai com maior profundidade sobre os postulados da Nova História Econômica; do Marxismo, através da obra de Eugene Genovese e de Robert Brenner; e da Teoria do Sistema Mundial, de Immanuel Wallerstein.

Nos estudos marxistas, o autor identifica o forte apego das investigações ao princípio da emergência do trabalho assalariado como medida definidora das demais relações de produção. Pespectiva na qual se constrói um pensamento evolutivo-linear e impede o mapeamento das intermediações estabelecidas por relações sociais distintas. Quanto às proposituras do Sistema Mundial Moderno, bem como a plataforma teórica neoclássica dos estudos elaborados no âmbito da Nova História Econômica, Tomich revela o entendimento implícito de um mercado abstrato e transcendente, responsável pela organização das trocas e da divisão internacional do trabalho.

Para o historiador, a imprecisão teórico-metodológica dos estudos refereciados acima resultou da não consideração de que, em O Capital, Marx mirou a construção lógica da relação capital e trabalho assalariado. Dessa forma, ao privilegiar o objetivo da obra e sua exposição, o autor deliberadamente reputou como secundário e de importância menor as contingências históricas. A partir de tais reflexões, Tomich propõe percorrer o caminho inverso daquele trilhado por Marx, investigando notadamente processos e circunstâncias históricas desconsiderados pelo autor de O Capital.

Elege como uma de suas questões centrais as articulações entretecidas pela mercadoria, desde a produção até o consumo, o que permite integrar a esfera do mercado às diferentes zonas de produção distribuídas pelo globo e, assim, compreender como se construiu a coerência interna do mercado mundial em relação à divisão do trabalho no planeta. A perspectiva leva, portanto, à percepção de que o mercado pode "ser entendido como a mediação histórica concreta entre formas específicas de produção" (p.73).

Definida metodologicamente a abordagem, Tomich procura, então, apresentar as inter-relações do Caribe escravista com a nova conjuntura do mercado mundial, instaurada entre final do século XVIII e 1815. É nesse contexto que elabora a expressão "segunda escravidão", chave teórica e histórica que servirá de eixo narrativo para a investigação exposta no restante da obra.

A expressão "segunda escravidão" diz respeito a reconfiguração que o trabalho escravo sofreu a partir da consolidação do domínio marítimo-comercial e financeiro exercido pela Grã-Bretanha e pelo aumento exponencial da demanda por produtos agrícolas tropicais da classe trabalhadora europeia. Para o autor, tal conjuntura favoreceu e ditou o ritmo de crescimento da produção escravista na América em escala e característica diversas das existentes até então: a produção escravista passava a ser destinada ao mercado global e a sofrer com as pressões de aumento de oferta, barateamento do produto final e redução de custos de produção. Por um lado, a demanda mundial por produtos agrícolas tropicais levava a intensificação do trabalho escravo na América; por outro, a massificação da produção e a luta dos senhores por entregar um produto mais barato e de consumo amplo também promoveu mudanças na relação entre capital e trabalho assalariado na Europa. Em suma, a "segunda escravidão" remete a constatação de uma mudança na prática escravista do final dos setecentos para o início do século XIX, uma escravidão regida, por assim dizer, pelo relógio do próprio capitalismo.

Ao analisar as conexões, aproximações ou distanciamentos que as regiões caribenhas estabeleceram com o mercado mundial, Tomich verifica que a abertura de novas condições no mercado atlântico, pautadas pelo controle britânico do fluxo direto de mercadorias para o mercado mundial, e a transformação social europeia, calcada na industrialização, urbanização e no crescimento populacional, delinearam uma forte mudança operada no e pelo mercado global: novos modelos de demanda, novas camadas sociais e novas camadas de consumo.

A reconfiguração do mercado, bem como a expansão das áreas produtoras dependentes do trabalho escravo, levou ao estabelecimento de liames até então não identificados claramente. Tomich observa que a presença de mercadorias produzidas por escravos acabou influenciando a própria relação entre o trabalho assalariado e o capital no mercado europeu, isto é, para ser possível aumentar a mais-valia mediante redução de salários, era necessária a oferta de produtos gerados por trabalhadores escravos "cada vez mais baratos para o consumo da classe trabalhadora". Eis, portanto, o trabalho escravo como elemento inerente e imanente à consolidação do trabalho assalariado.

Atento aos ganhos que a abordagem alicerçada no foco das inter-relações e das interdependências é capaz de produzir, Tomich descreve um panorama dos fatores que levaram Cuba à posição de maior exportador de açúcar do mundo como também expende de modo renovado o quadro de compreensão sobre os motivos que levaram à abolição da escravidão nos Impérios Britânico e Francês, examinando os casos de Jamaica e Martinica.

A resposta cubana à forte demanda do mercado por produtos agrícolas, particularmente o açúcar, associou-se à existência abundante de terras, ao abastecimento de mão de obra regular via tráfico de escravos e à projeção positiva para a realização de investimentos de grande vulto de capital. Em virtude do Império Espanhol não absorver toda a oferta de açúcar produzida na ilha, os fazendeiros cubanos lutaram para ter liberdade de comércio, conquistada em 1818, visando ampliar mercados e competir naqueles sob proteção de Inglaterra e França. Sob tal ímpeto, não pouparam esforços para aumentar a produção, barateando seus custos, com o fito de oferecer um produto final extremamente acessível. É nesse sentido que são compreedidas a expansão das lavouras de cana-de-açúcar em outras regiões da ilha de Cuba, a construção da primeira ferrovia nas Américas, em 1837, e a introdução de máquinas operadas por escravos nos canaviais. O crescimento exponencial da produção de açúcar cubano foi em grande medida a resposta positiva às necessidades do mercado mundial, fator que levou outras regiões produtoras de açúcar no Caribe à complicações estruturais.

O caso de Jamaica e Martinica ilustram bem a inter-relação entre fatores globais e locais na lógica capitalista. Diante da pressão exercida pelo mercado internacional, Tomich reconhece a debilidade dessas regiões manterem-se como grandes exportadoras de açúcar. Embora as Índias Britânicas, particularmente a Jamaica, tivessem respondido a contento à demanda mundial no primeiro quarto do século XIX, o autor identifica as dificuldades sofridas por esses territórios ao longo da década de 1820. A ocupação total das terras férteis desde o século XVIII e a perspectiva de uma margem pequena de ganhos, ao se comparar os custos de investimentos de infraestrutura e tecnologia de produção ao tempo de retorno do capital, levaram os fazendeiros da Jamaica a não arriscar seus capitais da maneira como os plantadores cubanos haviam feito.

Martinica trilhou caminho análogo ao jamaicano. Mesmo recebendo proteção do governo francês para desenvolver a produção pós-1815, a região não predispunha nem área livre para a expansão das plantações nem capitais para investimento em ferrovias e em tecnologias para aumentar e baratear a produção. Dada as condições protecionistas, a produção de açúcar de beterraba francês passou a competir com os próprios plantadores de Martinica. A tentativa de diminuir custos e adotar uma posição mais agressiva no mercado mundial não teve desenvolvimento quando a proposta da construção de uma Usina Central sofreu rejeição dos plantadores, em virtude de desconfianças dos financistas metropolitanos, bem como da manifestação do medo de perder o controle da própria produção. Ao final, os plantadores escravistas de Martinica e Jamaica sucumbiram ao poder de competição dos plantadores escravistas de Cuba. Enquanto Cuba adequou a produção escrava ao mercado mundial do século XIX, Jamaica e Martinica mantiveram-se na "primeira escravidão", uma escravidão alicerçada, direcionada e protegida pela metrópole.

Para Tomich, a emancipação do trabalho escravo pode ser entendida como uma via de mão-dupla sintetizada pela pressão do mercado mundial e pelo tipo de resposta dada por cada zona de produção. A pressão do livre-comércio sobre a escravidão inglesa e francesa não nasceu da indústria de refino de açúcar, como componente atávico do desenvolvimento do capitalismo, mas sim da entrada cada vez maior, ano a ano, do açúcar cubano produzido por escravos. A indústria de refino passou a pressionar pelo livre-comércio porque as próprias zonas de trabalho escravistas davam condições para que tal medida fosse requisitada. Assim, a operação emancipacionista dos escravos pelo livre-comércio foi seletiva: algumas áreas escravistas foram atacadas e outras, preservadas. Sob tais circunstâncias, ganha relevo a contradição entre o recrudescimento da escravidão em Cuba, Brasil e Estados Unidos, nessa época, e o crescimento das pressões para a extinção da prática escravista.

A última parte do livro dedica-se ao estudo da escravidão na colônia francesa de Martinica e tem por objetivo compreender como as demandas do mercado global influenciaram o regime de trabalho na região antes e depois da emancipação dos escravos, em 1848.

Analisando o costume do "Sábado Livre", pelo qual o escravo nesse dia da semana poderia dedicar-se à sua plantação de subsistência, Tomich visualiza a dificuldade dos plantadores escravistas para aprisionar integralmente o tempo dos escravos na produção açucareira. Justamente no momento da reconfiguração do mercado, havia em Martinica um obstáculo ao aumento da produção: uma célula de autonomia e independência do escravo em relação ao senhor e ao próprio trabalho na grande lavoura. Os dilemas vividos por escravos e senhores em torno da definição do tempo dedicado à agricultura de subsistência escrava e do tempo dedicado à produção de açúcar, gestaram, ao longo do período de existência da escravidão e da pressão pelo trabalho na grande lavoura, formas de organização que colocavam o trabalho escravo em questionamento. No seio do regime de produção, foram criadas práticas autônomas que se mantiveram no período pós-escravidão e obstaram sobremaneira a disciplina e a criação de novas formas de dominação. À vista das autoridades francesas, depois de tentativas fracassadas de inserção de regimes de parceria e de outras alternativas, o controle da mão de obra só poderia ser realizado por intermédio do trabalho assalariado, sendo este, talvez, o único artifício capaz de impedir os trabalhadores emancipados de desfrutar do tempo ou na horta de subsistência ou como bem entendessem. No fundo, a questão não era o modo pelo qual o trabalho deveria ser exercido, mas que meios de dominação seriam necessários para que ele fosse executado.

Os ensaios reunidos em Pelo prisma da escravidão e, sobretudo, argumentos e propostas metodológicas defendidos por Tomich minam a perspectiva evolutiva-linear corrente sobre a escravidão moderna e sua supressão. Nesse sentido, provocam o leitor a refletir, também, sobre interpretações comumente veiculadas a respeito da sociedade brasileira do século XIX, calcadas não só na suposição de uma cronologia teleológica para o término da escravidão como na assertiva de que o trabalho escravo foi a condição estrutural impeditiva da formação completa e modelar da nação e do Estado nacional. Mesmo não se atendo diretamente ao cenário do Império, o livro descortina possibilidade interpretativa, fundamentada em vigorosa pesquisa e rigor teórico, na qual escravidão, capitalismo e propagação de ideias liberais estavam coerentemente alinhadas, configurando-se a economia e a política como dimensões diferentes do mesmo movimento de expansão e transformação do capital à época. Sua leitura contribui e muito para rechaçar a premissa, velha conhecida, de que a história brasileira foi marcada por um secular descompasso entre relações sociais e práticas políticas, além de nos fazer relembrar a relevância de outros estudos que, mesmo apresentando especificidades, há muito tempo vem indicando a compatibilidade entre liberalismo e escravidão, a exemplo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Alfredo Bosi, Izabel Marson e, mais recentemente, as pesquisas realizadas e orientadas por Rafael de Bivar Marquese.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    2013
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