RESUMO
Diversos escritores de língua alemã refletiram em seus textos sobre questões epistemológicas e compreenderam a literatura como uma forma específica de conhecimento, em condições de avançar sobre domínios às vezes inacessíveis, às vezes complementares à investigação científica. No início do século XX, Rainer Maria Rilke e Hermann Broch utilizaram-se - entre outros meios - da forma do soneto para realizar tal reflexão. Em Rilke, tal interesse está posto tanto em sonetos dos Novos poemas quanto nos Sonetos a Orfeu; em Broch, numa fase inicial e menos conhecida de sua obra, que prepara a ampla reflexão epistemológica que se realizará em seus romances.
PALAVRAS-CHAVE:
Literatura de língua alemã; Epistemologia literária; Rainer Maria Rilke; Hermann Broch
ABSTRACT
Several German-speaking writers reflected on epistemological issues, and understood literature as a particular form of knowledge, capable of advancing into areas that are either inaccessible or complementary to scientific research. At the beginning of the 20th century, Rainer Maria Rilke and Hermann Broch produced sonnets - among other forms - to pursue this inquiry. In Rilke’s work, this interest is found in sonnets both from New Poems and Sonnets to Orpheus. In Broch’s, this concern can be seen in some sonnets from an early and less known phase of his writings, which prepares for the broad epistemological reflection of his novel.
KEYWORDS:
German literature; Literary epistemology; Rainer Maria Rilke; Hermann Broch
A reflexão de escritores sobre questões epistemológicas acontece no âmbito de língua alemã com certa frequência desde meados do século XVIII, com o desenvolvimento da ideia de autonomia estética, e ganha importância em momentos nos quais a literatura deve redefinir-se e afirmar sua legitimidade. Nas três primeiras décadas do século XX, o confronto da literatura de língua alemã com outros campos do conhecimento é tão presente que se poderia formular, como fez Christine Maillard (2004MAILLARD, C. Littérature et théorie de la connaissance - 1890-1935 / Literatur und Erkenntnistheorie - 1890-1935. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2004., p.7-8), a possibilidade de uma epistemologia literária. Ela ressalta que autores como Thomas Mann, Hermann Broch, Robert Musil, Franz Kafka, Arthur Schnitzler, Elias Canetti e Alfred Döblin não apenas debatem a epistemologia da época, mas “propõem modelos propriamente ‘literários’ de uma teoria do conhecimento”, que podem se constituir no diálogo com as ciências e a filosofia, ou se utilizar de modelos do passado, tradições não ocidentais, e até mesmo recorrer à mística e ao esoterismo (ibidem).
Porque podem escapar do pensamento sistêmico e ultrapassar assim determinados limites necessários às disciplinas científicas, tais escritores contribuem para a reflexão sobre o conhecimento em seu contexto cultural específico e com os recursos próprios às artes que praticam. As obras de Rainer Maria Rilke (1875-1926) e Hermann Broch (1886-1951), ligados à tradição do Império Austro-Húngaro e às transformações estéticas de inícios do século XX, apresentam uma configuração única nesse sentido: a do primeiro no que respeita à percepção do real e à possibilidade de sua representação em diálogo com a pintura e a escultura; a do segundo, familiarizado com os discursos matemáticos e filosóficos de seu tempo, propõe mesmo romances epistemológicos (erkenntnistheoretische Romane), mas também poemas cujas preocupações vão próximas às de Rilke.
Estranho alquimista
Em 1902, com a redação do poema “A pantera” (“Der Panther”), Rilke inicia uma nova fase de sua poesia: a atenção dada a uma subjetividade quase “estática” (Engel, 2004ENGEL, M. Rilke-Handbuch. Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart, Weimar: Metzler, 2004., p.296), que caracteriza o Livro das horas (Stunden-Buch), redigido entre 1899 e 1903, volta-se ao mundo da “coisa”, Ding - compreendida não como objeto, mas produto de uma percepção: “Para Rilke não se trata da coisa como tal, mas da representação da percepção das coisas” (ibidem, p.298). Ainda conforme Engel: “Em Rilke o objeto é objeto percebido ou objeto de consciência [Bewußtseinsobjekt]” (ibidem, p.299).1 1 Quando não houver outras indicações, as citações de textos estrangeiros foram traduzidas ao português pelos autores do artigo. Traduções e textos integrais dos poemas de Rilke e Broch encontram-se no Anexo, com a respectiva indicação dos tradutores. Com esse novo interesse, Rilke escreve, entre 1903 e julho de 1907, os poemas que irão compor seu livro Neue Gedichte, e entre 31 de julho de 1907 e agosto de 1908, Der neuen Gedichte anderer Teil. Esse, publicado em novembro de 1908, traz a dedicatória “À mon grand ami Auguste Rodin” (ibidem, p.297), artista que, como se sabe, passa a determinar a concepção estética de Rilke. Mas é também sob a impressão da obra de Paul Cézanne que surgem esses novos poemas, que Rilke vê “em termos de artes visuais” (Ryan, 2004RYAN, J. Rilke, modernism and poetic tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., p.50). Esse é o contexto geral do soneto “O alquimista”, escrito em 22 de agosto de 1907. Uma carta a Clara Westhoff, em 24 de junho, sugere os termos nos quais ele formula agora sua concepção de arte: “As coisas da arte são sempre resultado de ter estado a perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até um ponto que ninguém consegue ultrapassar” (Rilke, 1996a, p.24).
A imagem do fim das possibilidades de uma experiência humana, e também do risco, do perigo, determina a estrutura desse soneto e, assim, a reflexão sobre os limites do conhecimento: afinal não se trata aqui de outros motivos recorrentes no livro de Rilke, como flores, peças de arte, animais, detalhes arquitetônicos, objetos, tampouco de motivos bíblicos, também frequentes em Neue Gedichte, mas da figura de um alquimista: no poema, assim como na iconografia, sobretudo nos séculos XVI e XVII, o alquimista reúne tanto as características do mago e charlatão como as do scholar, do estudioso rodeado por livros e instrumentos de laboratório.2 2 “The representation of the alchemist as a scholar lays to stark contrast to the portrayal of fools and charlatans […]. Yet, this more dignified representation of the early modern alchemist was just as frequently represented in seventeenth-century painting, including the depiction of both types by artist like David Teniers the Younger. The image and identity of the alchemist as a serious scholar was also just as moralising as the representation of his lowlier-peasant counterpart, however these paintings reveal more complexity in their diversity of representation. The scholarly alchemist was typically represented sitting at his desk pouring over books rather than huddled at the heart. His desk often displays vanitas still-life objects, in particular, a human skull or hourglass, which was used to contemplate one’s mortality and symbolise the transience of life” (Rehan, 2011, p.68). É bastante plausível imaginar que Rilke, ex-estudante de história da arte, conhecia bem essa iconografia, presente em diversos museus europeus. No Kunsthistorisches Museum de Viena, por exemplo, estão os quadros Alchemist de David Teniers, o Jovem, e de David Ryckaert III, The alchimist.
Rilke dá a seu alquimista as características do estudioso sério - no poema, o termo usado é “Laborant” -, e do mago, estranho ou louco, um “Trunkenbold”, beberrão. Mas o soneto apresenta também o alquimista numa cena que não parece fazer parte da iconografia: o momento em que ele desiste dos experimentos:
1 Seltsam verlächelnd schob der Laborant den Kolben fort, der halbberuhigt rauchte. Er wußte jetzt, was er noch brauchte, damit der sehr erlauchte Gegenstand
5 da drin entstände. Zeiten brauchte er, Jahrtausende für sich und diese Birne in der es brodelte; im Hirn Gestirne und im Bewußtsein mindestens das Meer. Das Ungeheuere, das er gewollt,
10 er ließ es los in dieser Nacht. Es kehrte zurück zu Gott und in sein altes Maß; er aber, lallend wie ein Trunkenbold, lag über dem Geheimfach und begehrte den Brocken Gold, den er besaß.
(SW2, p.576-577)3 3 SW refere-se a Sämtliche Werke (1955-1966), edição das obras reunidas de Rilke. Cf. referências.
Os dois primeiros versos do soneto, que curiosamente possui um caráter narrativo, apresentam o distanciamento do “Laborant” (v.1), do cientista, do frasco em que se busca criar a pedra filosofal. O poema inicia por sua reação: “seltsam verlächelnd” (v.1), “sorrindo estranhamente”, talvez porque o gesto de distanciar o frasco sugira a desistência, o fracasso, mas também uma conclusão que se anuncia nos dois próximos versos: “Er wußte jetzt, was er noch brauchte” (v.3), isto é, “sabia do que precisava”. A resposta surgirá apenas no segundo quarteto, e retarda o acontecimento da transmutação pelo inesperado das soluções encontradas: “Zeiten” (v.5), “tempos”, “épocas”, e “Jahrtausende” (v.6), milênios, “Gestirne” (v.7), “constelações”, e o mar, “Meer” (v.8), complementos que surpreendem ao serem relacionados ao verbo “precisar”. Tampouco se esperaria, fosse um cientista moderno, a combinação de um elemento celeste, as constelações, ao cérebro, o órgão do raciocínio e do pensamento, nem a invasão da consciência pelo mar - combinação ainda mais insólita, por unir um elemento da natureza a algo imaterial. Assim, o segundo quarteto encena, pela surpresa das relações estabelecidas entre os eixos sintagmáticos e paradigmáticos, a própria união dos elementos buscada pelos alquimistas, e também a surpresa da descoberta. “Er wußte jetzt”: o que se soube agora ultrapassa em tal medida a capacidade humana que a descoberta abarca toda a segunda estrofe.
Pelos elementos sonoros, unem-se ainda, na melhor tradição alquímica, macrocosmo e microcosmo: na primeira estrofe, a rima entre “Laborant” e “Gegenstand” (“objeto”, “coisa”) sugere o fechamento do alquimista no mundo dos objetos conhecidos, enquanto a consonância de “rauchte” (“fumegava”), “brauchte” (“precisava”) e “erlauchte” (“nobre”) dá indício de um conhecimento em curso, fumegante, inconcluso. Mais uma vez, a segunda estrofe soluciona também sonoramente as relações estabelecidas pelas imagens díspares: o frasco, “Birne”, expande-se em “Gestirne” (em linguagem coloquial, “Birne” também pode ter o significado de “cabeça”, o que relaciona novamente as imagens da consciência e da constelação), e “er”, “ele”, identifica-se enfim com “Meer” (“mar”). Também é possível observar que os verbos referentes ao experimento dentro do bulbo estão “no interior” dos versos: o ouro, “der erlauchte Gegenstand” (“o nobre objeto”), surgiria “da drin” (“ali dentro”), antes da cesura do quinto verso; o experimento “fervilhava”, “brodelte”, no meio do sétimo verso, antes da cesura, assim como o cérebro e a consciência estão contidos também no interior dos versos; “Gestirne” e “Meer” são as últimas palavras de cada verso e sugerem assim a abertura de que o alquimista necessita para a transmutação.
Essa, porém, já parece ter ocorrido nessa mesma estrofe. Como uma correção de rumo - e antecipação da virada própria de todo soneto na última estrofe -, “das Ungeheure” (v.9), “o monstruoso”, “imenso”, é libertado pelo alquimista como a um animal em cativeiro. O desejo do alquimista também adquire uma dimensão que o ultrapassa. Entretanto, é inegável certa ambiguidade na substantivação de “das Ungeheure”, que não deixa de evocar a imagem de um monstro - das Ungeheuer -, de algo temível e terrível. O alquimista parece recuar, assim, diante da pretensão de conseguir a pedra filosofal; uma vez libertado, o “imenso” e “monstruoso” também pode voltar a Deus e à sua dimensão originária, seja ela a divina ou a própria dimensão, ou ambas, como deixa entrever a duplicidade de “sein altes Maß”, em que “sein” pode se referir a “Gott” e “Ungeheures”.
A virada do último terceto retrata um alquimista balbuciante “wie ein Trunkenbold”, “como um bêbado”, que volta à sua mesa e se debruça sobre um compartimento secreto, desejando o ouro enfim encontrado, numa relação de posse quase sensual (“begehren”, ou seja, um desejo intenso, também com conotações sexuais). O risco de renunciar à própria medida, de se afastar dos próprios instrumentos de conhecimento e se abrir para uma dimensão que o ultrapassa, traz ao alquimista, enfim, o que ele desejara.
O que liga esse soneto aos outros textos de Der neuen Gedichte anderer Teil é sobretudo a ideia da transformação. Nesse sentido, Judith Ryan (2004RYAN, J. Rilke, modernism and poetic tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., p.132) recorda que as imagens recorrentes de magos em Rilke, como a de Próspero, estão submetidas muitas vezes a forças que lhe escapam ao controle.
Em “Der Alchimist” não se retrata somente a representação de um instante de percepção de um objeto - percepção que cria o próprio objeto -, mas também um sujeito que percebe seu objeto, os instrumentos alquímicos destinados a transformar metal em ouro, e se transforma e os transforma em outro. Se o alquimista aqui é uma figura do poema, seus instrumentos são a escrita, a arca secreta, o poema... O soneto encena e configura um processo que parte de um ponto conhecido e chega a outro ponto, inesperado, não calculado, por meio de um aparente fracasso.
É interessante notar finalmente que tal reflexão sobre o conhecimento se ofereça na forma do soneto que traz, como explica Oppenheimer (1983, p.299 ss.), uma mudança fundamental para a história da lírica, na medida em que não seria escrito para uma audiência, mas como um diálogo do sujeito consigo mesmo, uma forma meditativa com grande capacidade de confrontar o próprio eu. Na visão de Oppenheimer, portanto, o soneto teria inaugurado um modo mais introspectivo de poesia, que se poderia ler também no poema de Rilke, na medida em que se trata de uma reflexão sobre a possibilidade de o sujeito conhecer. É interessante notar também que Rilke opera uma pequena “transformação” em seu soneto, ao submeter sua estrutura tradicionalmente argumentativa ao seu aspecto narrativo, ressaltando a cena, em vez de enfatizar o argumento. Desse modo o processo de conhecimento tal como configurado ali corresponde de alguma maneira ao processo da escrita, e o ouro criado devido à renúncia de um instrumento poético conhecido é um novo poema.
Ainda cabe perguntar em que medida a configuração do conhecimento - ou de seus limites - no soneto de Rilke se relaciona com o discurso científico e filosófico da época em que foi escrito. Ralf Köhnen mostra que a escrita de “Der Alchimist” e do conjunto de Der neuen Gedichte anderer Teil se deu no período em que Rilke se correspondia com Edmund Husserl e com o zoólogo Jakob Johann Baron von Uexküll (1864-1944), cujas obras o poeta estudou. O ponto em comum entre autores tão distintos entre si seria, de acordo com Köhnen, a tentativa de problematizar a questão da “percepção” (Wahrnehmung):
Com o triângulo que formam o biólogo Jakob von Uexküll, o matemático e fenomenólogo Edmund Husserl e Rainer Maria Rilke pode ser mostrado que havia várias disciplinas que se ocuparam do problema da percepção - além disso, os três são formados pela epistemologia crítica de Kant, que eles conhecem mais ou menos a fundo e que sempre ressoa. No centro está a questão da percepção do mundo e da formação de um intervalo [Zwischenraum] simbólico, que pode ser arte - e que se deseja constituir, a partir de várias perspectivas, no projeto do “novo ver”. Os Novos poemas são publicados em um commercium de diversos campos de conhecimento que Rilke também busca para enfrentar seu ceticismo em relação a seu meio de expressão. (Köhnen, 2000KÖHNEN, R. Wahrnehmung wahrnehmen. Die Poetik der Neuen Gedichte zwischen Biologie und Phänomenologie: von Uexküll, Husserl und Rilke. Blätter der Rilke-Gesellschaft. Heft 30, p.196-212, 2000., p.196)
O que se lê em “Der Alchimist” é a um só tempo: representação de um processo de conhecimento de uma figura fictícia que experimenta os limites de seu saber e de seus instrumentos e, ao abandonar o que já sabe, os ultrapassa e retorna, transformado, a um ponto secreto no qual o desejo do conhecimento se realiza, embora de forma ambígua. O movimento de renúncia e abertura inscreve-se na forma mesma do soneto, na medida em que se ressalta um aspecto narrativo e se diminui a força argumentativa característica do gênero. Assim, o poeta encena o abandono de certa forma de escrita e a abertura para o “ouro” da poesia, que surge não quando ele o busca alcançar, mas quando desiste de sua ideia. O questionamento dos limites dos instrumentos, por parte do “Laborant”, e dos limites da forma, por parte do poeta, transforma o poema no lugar possível de uma percepção que abole a fronteira entre o sujeito e o mundo que o cerca, ainda que, para o leitor, e talvez também para o poeta, tal lugar perdure apenas pelo tempo da leitura do próprio poema.
Sonetos metafísicos
Talvez poucos saibam que a primeira publicação de um texto artístico de Hermann Broch, em 1913, não tenha sido em prosa, mas um soneto intitulado “Mistério matemático”. De fato, a porção propriamente lírica, reunida em volume somente após sua morte, numa primeira edição em 1953 e numa segunda em 1980, é um aspecto menos conhecido de sua obra. Quem, entretanto, está familiarizado com seus romances, sabe que neles composições versificadas ocupam lugares centrais, por exemplo, nos Sonâmbulos e nos Inocentes. Sabe também que sua narrativa mais conhecida, A morte de Virgílio, configura um andamento poético intensificado a tal ponto que, em certas passagens, a prosa é convertida em verso, nas chamadas “Elegias do destino”.
À parte dos versos incluídos na obra em prosa, Broch deixou aproximadamente 140 poemas, integradas nesse conjunto poesias de ocasião, dedicatórias (Vergil-Widmungen), fórmulas proverbiais (Haussprüche), traduções (Nachdichtungen) e composições independentes em formas diversas, incluindo quase três dúzias de sonetos, cuja disciplina formal possivelmente encantou Broch (Kircher, 1986KIRCHER, H. Hermann Brochs Sonett-Gedichte. In: LÜTZELER, P. M. (Org.) Hermann Broch. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. p.199-224., p.199). Com relação aos temas são reconhecíveis, mesmo no gosto abstrato e hermético, assuntos frequentes no restante da sua obra. Assim, quer falem da natureza, quer reflitam o amor, quer tratem ainda de acontecimentos contemporâneos, ressurgem os anseios de infinitude que caracterizam a sua postura básica diante das limitações da vida, as inquietações de uma consciência aguda do tempo, as aflições decorrentes da observação histórica negativa, mas esperançosa de mudanças - e, claro, a questão do conhecimento. Um grupo de sonetos datado de 1915, intitulado “Quatro sonetos sobre o problema metafísico do conhecimento da realidade”, e publicado pela primeira vez na edição de 1980 dos seus poemas, tematiza enfaticamente esse último tema. Antes porém de tratar desses sonetos, uma palavra sobre a concepção lírica de Broch.
Nos fins do seu trabalho em A morte de Virgílio, em 1943, Broch, já exilado, trocou ideias interessantes a esse respeito em correspondência com outro escritor emigrado, Hans Sahl. Em carta datada de 24 de julho, ele estabelece uma visão do poema lírico segundo três exigências ou condições. Primeira condição: manifestar uma fração de realidade nova; segunda: elaborar frações de realidade inacessíveis à prosa; terceira: conservar de modo claro, tanto quanto possível, a forma dessa realidade; quarta e última condição: resultar, quase tautologicamente, na totalidade dessa realidade, resultar como diferença, como que pôr essa totalidade em situação (Broch, 1981, p.340). Na continuação da mesma correspondência, Broch assume que impõe tarefas dificilmente realizáveis à poesia, mas que nem por isso põe empecilhos à prática. Como diz, um poema válido, próximo das condições ideais, um poema que faça justiça às suas exigências será no máximo um único, entre uma centena de tentativas. Na carta de 6 de agosto, ele se reconhece um “poeta artificial”, devido à sua visão do fenômeno lírico, à diferença do amigo com quem se corresponde, que ele chama de “natural”. O aparente elogio será na verdade convertido em crítica, logo em seguida, menos à compreensão do processo criativo de Hans Sahl, do que em crítica de poesia rigorosamente. Broch afirma que não se deve estranhar a presença do narcisismo no poeta, porque não há arte, ele diz, sem superação do narcisismo. Ou seja, a lírica, para Broch, já não tem que ver com expressão da personalidade, mas só assim, ele prossegue, pela superação do plano individual, pela conquista de uma realidade objetiva, é que se faz da biografia obra de arte e da pessoa, a totalidade do mundo (ibidem, p.341). Ele não defende assim uma poesia antilírica, senão propõe que se alcance a experiência coletiva pelo aprofundamento da experiência individual.
Não se trata de examinar se “Os quatro sonetos” já correspondiam em 1915 a esse programa exigente formulado anos depois. Eles são quando muito uma etapa, das primeiras tentativas de formalizar a experiência abrangente e rigorosa nunca rejeitada em sua obra por irrealizável. Entendidos, portanto, como um momento na obra, eles são também um episódio interessante no quadro modernista, pois, em 1915, supõe-se uma renovação radical das formas poéticas em pleno andamento nos centros culturais da Europa. Broch, neste ano, responsável pela administração comercial da tecelagem familiar, aproveitou da posição para incrementar sua biblioteca e frequentar, em Viena, os cafés onde conheceu intelectuais e artistas diversos, como o círculo de amigos em torno de Franz Blei, com quem conviveu (Lützeler, 1988LÜTZELER, P. M. Hermann Broch. Eine Biographie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988., p.65). Assim não poderia estar alheio ao desenvolvimento dos modernismos em sua opção pessoal por sonetos. Ele provavelmente conhecia expressionistas, sabia de Else Lasker-Schüler e Gottfried Benn, e decerto leu os poemas de Georg Trakl publicados na revista Der Brenner, onde publicou também. Desse ponto de vista, a decisão de Broch por sonetos em 1915 pareceria apenas conservadora, não houvesse uma permanência do soneto na poesia moderna desde Baudelaire, passando por Stefan George e Rilke, mas também por autores de vanguarda, como se vê, por exemplo, na célebre antologia Menschheitsdämmerung. O modernismo na verdade fomentou por oposição, como mostrou Peter Howarth (2011HOWARTH, P. The modern sonnet. In: COUSINS, A. D.; HOWARTH, P. (Org.) The Cambridge companion to the sonnet. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p.225-44., p.226) com exemplos de língua inglesa, uma fase de grande inovação e diversidade para o soneto.
Esse esboço de situação histórica deve auxiliar no reconhecimento dos sonetos de Broch. A começar pelo título, os seus “Quatro sonetos sobre o problema metafísico do conhecimento da realidade” não facilitam nenhuma associação com poemas de florilégio. Há uma estranheza nesse título tão dissertativo quanto teórico, uma resistência à sugestão lírica, como se fosse possível, num conjunto de quatro sonetos, abreviar não a secura de um amplo tratado, mas a filosofia ela toda. O título é ambicioso e cria uma expectativa elevada de sonetos capazes, quem sabe, de resolver o mistério último da existência. Recentemente, uma crítica afirmou serem eles de uma qualidade inferior, se comparados, por exemplo, ao precedente “Mistério matemático”. Inferiores na língua, na clareza e no acabamento, ela diz (Ratschko, 2016RATSCHKO, K. Gedichte. In: KESSLER, M.; LÜTZELER, P. M. (Org.) Hermann-Broch-Handbuch. Berlin; Boston: De Gruyter, 2016. p.275-89., p.283). Não é necessário contrariar esse juízo negativo, mas é possível olhar essa inferioridade com outros olhos e dizer que o interesse desses quatro sonetos começa no título e permanece até o último verso precisamente porque eles não assemelham a obra de poeta familiarizado com o ofício. O título produz uma impressão de que o corte subjetivo da realidade próprio do modo lírico cede à instância filosófica. Assim, quando se lê, no primeiro verso do primeiro dos quatro sonetos, o pronome “eu”, ele não consegue logo desfazer o apelo teórico do título. Por outras palavras, a lírica cede ao “problema”, a subjetividade implicada na ação de conhecer a realidade dá lugar, à proporção que se prolonga a leitura do título comprido, a um ser genérico, impessoal, teórico. O primeiro verso justapõe ainda duas perguntas semelhantes, não idênticas. A passagem da primeira pergunta (“Fühl ich das Staunen?”, v.1) à segunda (“Staunt mein Ich?”, v.1) formaliza agora no corpo do poema e processualmente o que se disse sobre a objetivação da pessoalidade lírica instituída no título do conjunto. Isto é, na segunda pergunta, a primeira pessoa é substantivada, não se refere mais apenas ao indivíduo introduzido na pergunta anterior, mas enuncia uma espécie de categoria na qual, aliás, se intensifica a dúvida das interrogações, visto que ela não compõe uma continuidade perfeita com o eu da primeira pergunta, ainda que o “espanto”, “das Staunen”, seja o mesmo.
Essa forma de tratamento substantivado da primeira pessoa retornará no último dos quatro sonetos. Até lá, porém, eles irão desdobrar uma pesquisa das possibilidades do conhecimento humano que não abdica da experiência individual e recorre à vivência afetiva. A experiência filosófica do indivíduo articulado nos poemas será também uma experiência amorosa e um desencanto, antes de apontar para uma saída religiosa. Mas o impulso inaugural, como se viu, é essencialmente filosófico: o espanto, uma alusão socrática e reminiscência platônica conhecida do diálogo Teeteto como origem e motivação da busca por conhecimento. Essa marca das origens da atitude filosófica implica não só uma insatisfação com as fronteiras do conhecimento, não só uma caracterização do sujeito poético como sujeito pensante, senão, além disso, predispõe um desenvolvimento formal para os sonetos. O grupo dos quatro sonetos deve traçar uma resposta à admiração inicial do sujeito pensante, uma resposta em estágios. No primeiro soneto, prevalece um movimento de conciliação e após um lance de desespero sopra uma esperança, posto que acanhada, de revelação da verdade. No segundo soneto, ocorre de novo um movimento compensatório, mas invertidamente: ele começa por uma realização provisória no plano amoroso, uma conquista de plenitude a dois, que se desfaz, nos últimos dois tercetos, com o desligamento dos amantes percebendo, desolados, sua casualidade nas mãos de Eros. No terceiro soneto, somem as esperanças: o leitor é conduzido a um ambiente frio, no qual se afasta a vida da consciência da vida, em que os sentidos descolam das coisas em imagens de solidão e vazio. Não é trágica, porém, a sua atmosfera. Antes, o “cômico” do título propõe um encolhimento metafísico, que se converte em recolhimento físico, aos pés da amante, por ditos obscenos. No último dos sonetos, a reaproximação dos amantes motiva um acordo final, talvez, entre a aceitação dos limites pessoais, do pensamento e das ideias, e a possibilidade criadora transcendente, extasiante, sensível na promessa de futuro, na promessa de primavera simultânea à promessa de passado, no país do sonho esquecido da infância. O aceno de uma unidade, uma possibilidade de reposição do tempo unitário como esperança de conhecimento para além da matéria escura da vida, do corpo, da linguagem, dos conceitos, paira, portanto, no horizonte dos sonetos como resposta otimista ao “problema metafísico do conhecimento da realidade”. A leitura otimista, porém, para por aí, sem dar cabo dos efeitos negativos que predominam no decurso dos versos.
Quanto à forma, ela opera um jogo de compensações que não desaponta, mas amplifica a ideia de que o soneto enquanto gênero “nos fala, desde sua primeira floração siciliana, de uma emoção que passa pelo pensamento, em contraste com o convencionalismo emocional das canções provençais” (Sterzi, 2012STERZI, E. Da voz à letra. Alea, v.14, n.2, p.165-79, 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2012000200002>.
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2012...
, p.170). A matéria filosófica acondicionada na forma racionalista e dialética dos sonetos parece impor à arquitetura do grupo uma lógica espelhada de dupla face: tanto nas inflexões internas, nas mudanças de tom que marcam a passagem dos quartetos para os tercetos, como nas transições externas, o segundo soneto revertendo o primeiro, o quarto revertendo o terceiro, o último enfim pelo avesso revertendo ao primeiro e emendando a corrente. Não que o acabamento resulte perfeito. O domínio técnico, visível também nos recursos rítmicos das rimas e da distribuição dos acentos, não põe de lado escolhas duvidosas no vocabulário (“mein Heiliges”, “meu sagrado”, no terceiro soneto, v.9; “Ich-Sein”, “Ser-Eu”, no quarto, v.3), nem exclui do conjunto uma rima inexata (nos tercetos do segundo soneto, zusammenfanden com einander e Mäander) e outra mais que pobre (Nacht com Nacht, terceiro soneto), que, por sua vez, pertencem ou se vinculam aos estranhamentos mencionados. Afinal, se se insiste no acabamento, perde-se um pouco a dimensão do processo, que talvez seja o principal aqui. O resultado não elimina algum desconforto com a prática poética nem omite a dificuldade do processo de composição que reproduz em alguma medida a dificuldade do tema dos sonetos. Por isso tampouco há neles uma disposição isométrica em teses, antíteses, sínteses. A ordem fechada do soneto, ao mesmo tempo que controla, abre passagem nestes quatro exemplares para o processo do conhecimento da realidade nas formas mais caras a Hermann Broch e refratárias a confinamentos, as formas metafísica e poética, que enfim se desejam, neles, misturadas.
Essa mistura permite ampliar a questão do tratamento processual da matéria epistemológica nos sonetos como um momento no processo maior da atividade intelectual e literária de Broch. Na leitura dos sonetos, fica claro o teor religioso associado ao problema do conhecimento. Para Broch, as realidades religiosa e filosófica não são separáveis. Ele entendeu a história da religião como alternância de épocas distintas e complementares resumidas como platônicas, num polo, e positivistas, no outro (cf. Broch, 1977, p.192). Nesse sentido há também continuidade entre a unidade religiosa cristã e a ciência moderna, entre a teologia e o iluminismo, entre a dialética e a matemática. O idealismo, Kant, Fichte, Schleiermacher, Hegel, todos teólogos protestantes, segundo Broch (2014, p.57), em busca de um “órganon universal escolástico-protestante”. Contudo, o desenvolvimento de um positivismo radical e a cientificização progressiva da filosofia consequentemente mostram o malogro dessa nova universalidade, como provariam, afirma Broch (1977, p.203), a filosofia dos limites de Wittgenstein e o “empirismo pobre”, em seus termos, de Bertrand Russel.
É nesse ponto que a poesia entra em cena. Uma das ideias insistentes de Broch vê na poesia o alargamento das fronteiras da filosofia rumo à totalidade metafísica. A poesia em sentido amplo, portanto, nos seus diferentes modos, narrativo, dramático e lírico. A lírica, nesse arranjo, dá a própria substância poética às diferentes formas de poesia. “É o conteúdo lírico que habita no interior de toda a poesia”, ele diz, que “faz dela o que ela é: poesia” (Broch, 2014, p.68). Ele concebe, como se vê, uma espécie de imaterialidade essencial poética anterior a toda forma e acessível especialmente à lírica, à sua linguagem e aos seus silêncios e sugestões. A lírica facilitaria a suspensão do tempo histórico e iria ao fundo irracional em que se encontra o mito, na sua compreensão. Logo, como a filosofia, a poesia também se define em Broch como experiência religiosa. A diferença reside na valorização do elemento irracional, que escapa ao positivismo científico para ele tão influente quanto incômodo na filosofia moderna. Por isso nos quatro sonetos em apreço a questão do conhecimento, antes de ser religiosa, insiste na irracionalidade erótica. Dado, porém, o seu caráter provisório, o encontro sexual nos poemas não satisfaz o desejo maior de conhecimento metafísico da realidade senão incompletamente. Desse modo, a relação sexual, que se atravessa aliás de aura mística, encaminha a irracionalidade para uma espécie de exaltação comedida, no último soneto: “Estágios do êxtase”. O pressentimento do êxtase consuma religiosamente a sequência dos sonetos, acaso rematando com certa esperança unitária o assombro e a “maldição” ou “praga” (“Fluch”, no título do primeiro soneto) que fizeram identificar, no começo, a voz lírica com o judeu errante, Ahasverus (primeiro soneto, v.5).
Apesar dessas correspondências, resta um processo, não um círculo perfeito. Um processo primeiro porque, se acompanhamos Broch, a moldura racionalista dos sonetos deve abrir fissuras por onde irrompem os supostos elementos irracionais da lírica. Depois, porque a totalidade religiosa do conhecimento não se obtém na semirracionalidade lírica nem nas centenas de tentativas às quais aludiu Broch, nem possivelmente em poesia moderna alguma. Entretanto, seus esforços artísticos serão cada vez mais ambiciosos nesse sentido até A morte de Virgílio. Esforços no sentido de aproximar conhecimento e poesia atrás de uma nova ordenação ética da realidade. Nesse percurso, o romance como gênero ganhará protagonismo.
Orfeu
De forma diversa do que realiza em Der neuen Gedichte anderer Teil ou no soneto “Der Alchimist”, nos ciclos de poemas da fase tardia, nas Elegias de Duíno (DE) e n’Os Sonetos a Orfeu (SaO), finalizados em 1922 no castelo suíço de Muzôt, Rilke debruça-se sobre formas de apreender e interpretar a existência. É inevitável certa percepção de que esses seus últimos ciclos de poemas são conduzidos por um páthos, um ímpeto de determinar o lugar ou mesmo um fundamento para o ser humano no cosmo; por uma busca de contemplar diferentes facetas da vida, do mundo, bem como a junção de âmbitos que, mormente, abarcamos como distintos, separados. Nisso, não deixam de tratar também de nossa relação com os objetos, as coisas.
Algumas dessas características podem ser percebidas já nos versos iniciais da “Primeira elegia” (v.1-13).4 4 Todas as citações das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu seguirão a edição crítica (KA2). Indicaremos apenas os versos. Esses versos retratam uma situação de aporia e isolamento, sem possibilidade de auxílio que se divise. Combinam expressão emocional, como na interjeição “ah”, v. 9, com investigação e reflexão sobre a existência humana, que encontram uma contraparte discursiva em locuções de feitio mais argumentativo, como em “posto que” (v.2). Uma aproximação entre pessoal e geral se delineia ainda nas repentinas passagens entre a primeira pessoa do singular e do plural no poema.
Duas figuras de contraposição, anjos e animais, são designadas como balizas, servindo para ilustrar uma condição de desolação, desamparo do ser humano, que, na expressão da primeira das Elegias, “não está muito em casa”. Seu assombro e desabrigo, sua separação e seu estranhamento em relação a que o envolve não se referem aí apenas a um sentido de nossa efemeridade e pequenez dentro da imensidão do cosmo que em tanto nos ultrapassa, onde o anjo habita (na caracterização dessa figura no início da DEII, v.7-8), ou a uma consideração do ser humano apartado da natureza. Nas palavras da “Primeira elegia”, não “estamos muito em casa no mundo interpretado”; no próprio mundo que o ser humano cria para si. Decerto, “esse mundo interpretado” diz respeito a significações culturais que, com suas instituições, vão sendo transmitidas; ao estabelecimento de coordenadas que indicam uma ordem das coisas; a explicações que servem à orientação.
Algo delineado de modo esparso nas Elegias, nos Sonetos e em escritos de Rilke que os acompanham, a inquietação, o estranhamento do ser humano em relação ao seu entorno respondem a características do tempo presente, que se distingue neles como um tempo da abstração, da consideração e conversão das coisas em sua contraparte invisível. Ademais, ao longo desses poemas, designa-se uma situação que se deixa talvez bem condensar, em linhas gerais, através daquilo que Nietzsche, com outro escopo analítico, mas decerto não estranho a Rilke (cf. Gerok-Reiter, 1996, p.108), define como o “traço mais próprio do ser humano moderno” (Nietzsche, 2015, p.272): “a notável contradição de um interior ao qual nenhum exterior, de um exterior ao qual nenhum interior corresponde, uma contradição que os antigos povos desconhecem”.
Nesse âmbito, a relação do sujeito com as coisas, os objetos, é tematizada pela poesia de Rilke, a qual aparece como um campo muito singular de investigação acerca de questões epistemológicas, relativas a formas e modos de conhecimento. Parece desempenhar papel significativo, nesse domínio, a ideia de “abertura” (“das Offene”), que Rilke expõe de modo mais extenso na DEVIII (v.2). Sob determinada perspectiva, a abertura aparece ali como um contraponto tanto ao mundo interpretado quanto à condição epistemológica fundamental do ser humano, assim definida nesta elegia: “Isto significa destino: estar em oposição/ e nada diferente disto e sempre em oposição” (v.33-34).5 5 No original: “Dieses heißt Schicksal: gegenüber sein/ und nichts als das und immer gegenüber”. Interpreta-se aqui a formulação “gegenüber sein” (v.33) como uma perífrase e transposição de sentidos formadores da palavra grega episteme, ἐπιστήµη, ἐπι e ἵστηµι, um “pôr-se”, “estar sobre”. Nas Elegias, isto também é relacionado a uma experimentação do outro como ameaçador, potencialmente destrutivo de certa individualidade (acerca disto, cf. Gadamer, 1993 [1955], p.280).
Ao longo da poesia de Rilke, a abertura se relaciona, ainda, a uma recepção daquilo que vem dos objetos, uma atenção maior a eles, em oposição a projeções do sujeito. Neste aspecto, diz respeito a questões relativas à (sua) poesia, distinguindo-se, num âmbito geral, como um elemento que se contrapõe a uma lírica de “pretexto” e “confissões” (Vorwand e Geständnisse) (SW10, p.365-366) - para usar palavras da crítica empregadas para caracterizar sua poesia inicial, as quais aparecem em textos teóricos da juventude do autor, como na palestra “Moderne Lyrik” (1898).
Enquanto em fase inicial pode-se constatar a orientação da poesia de Rilke calcada em larga medida na exposição subjetiva do eu, no “desabafo” e expressão do sentimento - características que, apesar de Rilke enfatizar aspectos da novidade do que expõe (SW10, p.360), Koch (2004KOCH, M. Schriften zu Kunst und Literatur. In: ENGEL, M. (Org.) Rilke-Handbuch. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2004. p.480-97., p.483) aproxima de concepções apresentadas em Goethe e que ainda convencional e tradicionalmente marcam ideias sobre o gênero lírico -, essa orientação é deslocada, principalmente a partir da fase intermediária da poesia do autor, para os objetos, sua consideração, como se mencionou acima. A deferência em relação aos objetos exteriores distingue, de outro modo, a “modernidade conservadora” de Rilke (Burdorf, 2015BURDORF, D. Geschichte der deutschen Lyrik. Stuttgart: Metzler; Carl Ernst Poeschel, 2015., p.100), suas ressalvas quanto a tendências do Expressionismo de dissolução, perda de uma referencialidade exterior, ou de “modelagem do mundo exterior com o interior” (Engel, KA2, p.429), bem como a formalismos e abstrações nas artes plásticas (cf. KA2, p.619 ss.; Büssgen, 2013BÜSSGEN, A. Bildende Kunst. In: ENGEL, M. (Org.) Rilke-Handbuch. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2013. p.130-50., p.145).
O poema escolhido para um comentário interpretativo que discute os pontos acima apresentados é o SaOII, 26. Esse soneto é observado aqui em suas proximidades à poesia das Elegias. Nele, podem-se reconhecer elementos indicados na “Primeira elegia”, como a localização do ser humano entre o animal e uma instância caracterizada com atributos de divindade. Um elemento novamente significativo, em sua relação com a poesia, é o grito:
Irgend ein einmal erschaffenes Schreien.
Aber die Kinder schon, spielend im Freien,
schreien an wirklichen Schreien vorbei.
5 Schreien den Zufall. In Zwischenräume
Dieses, des Weltraums, (in welchen der heile
Vogelschrei eingeht, wie Menschen in Träume -)
treiben sie ihre, des Kreischens, Keile.
Wehe, wo sind wir? Immer noch freier,
10 wie die losgerissenen Drachen
jagen wir halbhoch, mit Rändern von Lachen,
windig zerfetzten. - Ordne die Schreier,
singender Gott! daß sie rauschend erwachen,
tragend als Strömung das Haupt und die Leier.
Mais um predicado deste poema que se conjuga com as Elegias é a condução rítmica predominantemente em dátilos. Diferentemente das Elegias de Duíno, porém, que se caracterizam por ritmos livres (cf. Schulz; Werner, 2007SCHULZ, G.-M.; WERNER, B. Freie Rhythmen. In: BURDORF, D.; FASBENDER, C.; MOENNIGHOFF, B. (Org.) Metzler Lexikon Literatur. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2007., p.253), existe nesse soneto uma recorrência de quatro acentos por verso, que lhes dão, desse modo, unidade métrica. A forma exterior do soneto é basicamente mantida - como acontece, de maneira geral, no ciclo dos Sonetos a Orfeu. Quer dizer, os quartetos e tercetos são logo reconhecidos, ainda que a disposição das rimas nos quartetos não corresponda a uma variação mais canônica. Uma característica da tradição do soneto, como afirma A. Schlegel (1884SCHLEGEL, A. W. Vorlesungen über schöne Litteratur und Kunst. Ed. Jakob Minor. 3ª parte (1803-1804): Geschichte der romantischen Litteratur. Stuttgart: Göschen, 1884, 203-230. Disponível em <https://www.uni-due.de/lyriktheorie/texte/1803_awschlegel.html>
https://www.uni-due.de/lyriktheorie/text...
, p. 215 ss.), é certa cesura entre os quartetos e tercetos e um final em que as oposições anteriormente estabelecidas atingem um ápice, uma culminação. O poema em questão se desenvolve através de contraposições e comparações, mas o que delas resulta, a constituição de sentidos, é algo que tem sua obscuridade.
O primeiro quarteto pode ser dividido em duas metades, em contraste que se exprime e é reforçado pela adversativa “mas” (“aber”, v.3) entre o grito do pássaro e o das crianças brincando ao ar livre. O poema esboça, alude a uma cena de crianças perseguindo “pipas desatadas” (“losgerissene [...] Drachen”, v.10), como assinala Katharina Kippenberg (1948KIPPENBERG, K. Rainer Maria Rilkes Duineser Elegien und Sonette an Orpheus. Passau: Insel-Verlag, 1948., p.188). Independentemente do substrato biográfico que Kippenberg evoca,6 6 Kippenberg (1948, p.187 ss.) se reporta ao incômodo de Rilke com o barulho de crianças brincando “ao ar livre”, enquanto ele trabalhava à janela. há elementos e elaborações do próprio poema. Além da menção às pipas no primeiro terceto, o v.5, “gritam o acaso”, “Schreien den Zufall”, parece referir-se ao grito das crianças torcendo para onde a pipa cai. Tomando a palavra em seu aspecto material, “Zufall” serve para tematizar uma queda, o que está para cair. Deve tratar-se da identificação na língua alemã entre Zufall e accidens,7 7 V. esp. a partir da terceira definição de “Zufall”, na entrada dessa palavra no dicionário Grimm. Disponível em: <http://www.woerterbuchnetz.de/DWB?lemma=zufall> Acesso em: 14.jan.2020. mas recorrendo ainda a um sentido antigo-etimológico para accido (“cair”, “cair sobre”).
Essa cena é considerada à luz de uma situação “nossa”, que se designa mais abaixo no poema, no primeiro terceto. De maneira mais incisiva, a analogia entre os momentos retratados no poema se dá através da retomada de palavra do terceiro verso em “immer noch freier”, “ainda mais livres” (v.9). É provável que a analogia aponte também para um modo de se relacionar com as coisas em que se divisa certa falta de correspondência entre dinâmica interior, projetada no grito, e circunstância exterior, acontecimento objetivo. O torcer é uma expressão disto: no caso, o grito não afeta o objeto; não é um meio efetivo de alterar sua direção, seu destino. Quando muito, um “acaso” pode entrar em cena; uma correspondência fortuita entre planos interior e exterior, que, como tal, não faz desaparecer um desacerto seu, representado, aliás, de maneira muito plástica no segundo quarteto, em que se sugere o importante termo da poesia final de Rilke Weltinnenraum (“espaço interior do mundo”) - só que de maneira negativa, quer dizer, alcançam-se “lacunas do espaço do mundo” (v.5-6), não uma congruência entre espaços interior e exterior.
Voltando ao início do poema, o grito das crianças é designado como parte de um âmbito do jogo, da brincadeira (“spielend”, v.3), e se distingue do “verdadeiro grito” (v.4). Se este não se relaciona apenas ou exatamente com o grito do pássaro (v.1), que aparece em uma contraposição ao das crianças no primeiro quarteto, decerto que com o grito mencionado na abertura das Elegias de Duíno. Ele é recobrado, por exemplo, no início da “Sétima elegia”, em retomada da escrita das Elegias após quase sete anos de interrupção (cf. KA2, p.609 e ss.), na interpelação (que assim pode ser considerada) à própria voz: “Sê natureza do teu grito.” (“Sei deines Schreies Natur”, v.2). Esse grito remete aos versos iniciais da “Primeira elegia”, acima citados: o grito de assombro em atenção à nossa existência, o grito que é conjecturado e retido.
Tendo em mente esta aproximação, sugere-se um contraponto entre o grito indicado em passagens das Elegias - um tipo de veículo poético do sujeito lírico, uma caracterização da poesia mesmo - e o grito da brincadeira, diversão, “mit Rändern von Lachen” (v.11), com “bocas de risos”, numa tradução prosaica de palavras do “Soneto a Orfeu” em questão. Essa diversão tem características de “distrações” (“Zerstreuungen”, em DEX, v.37); tem o sentido de algo deslocado, pueril (na figura do adulto). Além disso, ela aparece como uma alegria de fachada (“mit Rändern von Lachen”, v.11). É vinculada a uma “dispersão”, “Zerstreutheit” - palavra usada por Kippenberg (1948KIPPENBERG, K. Rainer Maria Rilkes Duineser Elegien und Sonette an Orpheus. Passau: Insel-Verlag, 1948., p.189) em seu comentário ao soneto -, retratada em aspecto destrutivo, nos v.9-12. Essa condição se remete e é contraposta, por sua vez, a “rauschend” (v.13), a “inebriação”, que se indica ao final do soneto.
Nas Elegias e nos Sonetos, a poesia não se determina apenas por assombro e desolação, mas abrange também o júbilo, o contentamento, em sua atenção às mais diversas facetas da existência. Em uma “virada do lamento ao louvor” (Szondi, 1975SZONDI, P. Rilkes Duineser Elegien; Rilke: Parallelstellen zur ersten und zweiten Elegie und zu Sonette an Orpheus (II, 13). In: BEESE, H. (Org.) Studienausgabe der Vorlesungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch, 1975. v.4, p.377-510., p.465) que se processa ao longo das Elegias, não se trata aí apenas de lamentar a “caducidade” das coisas, a sua bem como a nossa “queda”, “gritar contra ou para ela”, nas imagens do SaOII, 26. A caducidade (cf. Janke, 2005JANKE, W. Archaischer Gesang. Pindar - Hölderlin - Rilke. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005., p.197-224) - “denn Bleiben ist nirgends”, “pois não há permanência em lugar algum”, nas palavras da “Primeira elegia” (v.53) -, essa transitoriedade significa um elemento de contato, uma identificação entre nós e as coisas que compele e permite a realização da própria poesia, nos sentidos específicos que Rilke dá a isto em sua produção poética, como se designa, por exemplo, em suas famosas palavras escritas em carta a Witold Hulewicz (13 de novembro de 1925), seu tradutor para o polonês, em que apresenta algumas “explicações” (KA2, p.600) sobre a poesia das Elegias e dos Sonetos:
Assim, trata-se não apenas de não rebaixar nem degradar tudo que é daqui, mas justamente por causa da temporariedade que compartilha conosco, esses fenômenos e essas coisas devem ser em um mais profundo entendimento compreendidos e transformados por nós. Transformados? Sim, pois nossa tarefa é gravarmos de modo tão profundo, tão sofredor e apaixonado em nós esta terra temporária, caduca, que sua essência ressuscite “invisível” novamente em nós. (KA2, p.601-602)
Essa “tarefa” (“Auftrag”, na expressão da “Nona elegia”, v.65 e v.70) é premida e reforçada por dinâmicas da modernidade, tratadas também na sequên- cia da citada carta. Uma delas se refere à perda, para Rilke, de uma medida, uma temporalidade humana na produção e utilização dos objetos cotidianos. É possível ainda considerar que essa “tarefa” de sua poesia responde e se contrapõe, de maneira geral, a um processo de abstração, ao “sumiço de equivalentes exteriores” (Rilke; Andreas-Salomé, 1975, p.266) em que o ser humano pode refletir-se, encontrar um espelhamento de seu interior, como Rilke observou anos antes, em carta de primeiro de março de 1912, escrita em Duíno a Lou Andreas-Salomé.
Por fim, no SaOII, 26, existe uma representação do ser humano moderno que converge com a das mênades, na referência ao mito de Orfeu que vem à tona mais explicitamente no último terceto. Elas podem ser abarcadas como força hostil à poesia. Os barulhos das mênades são caracterizados basicamente pelos gritos no SaOI, 26 (v.3), cujo início o final do SaOII, 26 retoma através de recorrências lexicais (além das palavras relacionadas a grito, “das Geschrei”, “die Schreier”, e a ordem, “Ordnung”, “ordne”, “das Haupt und die Leier”, “a cabeça e a lira”). Em sua referência ao mito o SaOI, 26 se remete à exposição, ao texto de Ovídio (Met.11, v.1-53) e, em seu ordenamento no ciclo, incide no SaOII, 26. Na aproximação “daqueles que gritam” (“die Schreier”, v.12) com as mênades sobressai ainda a ideia, que se impõe no primeiro terceto do poema, de perseguição e dilaceramento. Só que, numa sugestão peculiar do poema, o “nós” se identifica (v.10) com os objetos que se “desataram”, saíram de nosso controle, por assim dizer: no primeiro terceto, a “nossa” caracterização se confunde com a dos próprios objetos, as pipas que, no caso, são despedaçadas.
Por diversos aspectos, mênades e Orfeu estão em oposição. O poema ilustra um contraste, através da quebra dos versos, entre “os que fazem a grita” (v.12) e Orfeu, referência que se sugere em “deus que canta” (“singender Gott”, v.13). O canto se destaca, assim, dos gritos, que incluem ainda no poema o guincho, o pio do pássaro (v.1). Não obstante, na representação do mito no ciclo dos SaO, gritos e barulhos das mênades não significam simplesmente uma contraposição a Orfeu, uma destruição de sua poesia e música. Muito diferentemente, das ações das mênades emerge, mostra-se a força da poesia. Isto não apenas porque não podem destruir cabeça e lira de Orfeu, como se assinala no SaOI, 26 (v.5), em certa consonância com a narração do mito nas Metamorfoses e com uma ideia de continuidade da poesia que se divisa no mito de modo geral; nem apenas porque Orfeu pode agir com seu canto sobre as mênades, sobrepujá-las, no SaOI, 26, v.3-4. No ciclo dos SaO, as mênades são responsáveis por uma comunicação de Orfeu, de sua poesia; por sua distribuição (communico, mit-teilen), ressonância e também integração, em estado fragmentário, à esfera da natureza (SaOI, 26), ao reino das caducidades. Mas o SaOII, 26 não deixa de girar em torno também disto: a incorporação das mênades - figura de nós, do ser humano moderno no poema - como “suporte” (supporto, conduzir, carregar), v.14, de Orfeu, do poeta, dessa sua poesia. Trata-se de tornar mesmo aquilo que aparentemente é hostil à poesia um meio para ela, uma base que encontra culminação no poeta, que pode, envolto por sons, mesmo os rudes e/ou inarticulados, dispor (v.12-14) para o canto, a poesia. O próprio poema significa, nesse âmbito envolvido, uma realização poética através dos gritos e da expressão ainda inarticulada. Em consideração ao que se designa nele, o poema corresponde à poesia emergindo no entorno de barulhos e ruídos.
Na sua elaboração de referências do mito, o SaOII, 26 apresenta, afinal, uma identificação das mênades com o rio Hebro. Na tradição, após Orfeu ser dilacerado pelas mênades, sua cabeça e lira são recolhidas pelo Hebro (Met.11, v.50-51) e preservadas, resguardando qualidades poéticas (que variam, também em nível, nas diferentes versões do mito) (cf. Serpa, 2019SERPA, D. Versos da lembrança e continuidade da poesia: reflexões sobre o poeta e a lírica na representação do mito de Orfeu em poemas de Rilke, Trakl e Bachmann. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Língua e Literatura Alemã) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.). No pedido elaborado e dirigido a Orfeu (v.12-14), “rauschend” (v.13), entre tantos sentidos que esta palavra pode ter na passagem, funciona na intermediação de características das mênades com o Hebro, já que Rausch, o arrebatamento, que caracteriza Dioniso (Nietzsche, 2015NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie; Unzeitgemäße Betrachtungen. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: Deutscher Taschenbuchverlag, 2015., p.30 ss.) e as mênades, suas seguidoras, designa também o barulho da água corrente, o rumorejo. A identificação com o Hebro deve coadunar-se com sua função de acolhimento, recepção de Orfeu, do poeta, da poesia; extensivamente, decerto, das coisas em geral, na sobreposição de temas procedida pelo poema. Na imagem final, temos uma mudança da atitude, postura de perseguição para a de recepção e mesmo salvaguarda. A isto deve estar ligada ainda uma mudança de percepção (a que se vincula Rausch) dos objetos, das coisas. A própria ação de Orfeu, presumivelmente do canto, aparece como capaz de integrar diferentes modos de se relacionar com eles, através dos estados de inebriamento, em sonho (como sugerido no segundo quarteto) e desperto (“erwachen”, v.13). A poesia aparece como um meio de tratar da relação entre sujeito e objeto em chave também epistemológica, caracterizando diferenças e identificações entre eles, que podem ser, neste aspecto, entendidos como sujeito e objeto do conhecimento. Nas inversões que ela delineia e propõe, a projeção, aquele que se projeta, deixa de ser uma característica que distingue, acima de tudo, o sujeito.
À guisa de conclusão
O poema “Der Alchimist” gira em torno de uma busca por ultrapassar os limites estabelecidos do conhecimento que pode ser percebida, com diferentes ênfases, nos outros sonetos analisados. Nisso, eles oscilam entre uma postura deceptiva e triunfante. No poema de Rilke dos Novos Poemas, a consideração de limites, fracasso ou sucesso do experimento mantém suspenso um sentido ambivalente e conforma o ponto de partida da criação poética. Nos sonetos de Broch, por sua vez, a poesia - sendo a lírica concebida como uma essência sua - possibilita um conhecimento humano que não abdica da experiência individual e recorre à vivência afetiva com seus altos e baixos. Ela se presta a testar limites, em especial os da razão, e o faz duplamente neste seu conjunto de poemas, com a identificação entre o conhecimento da realidade e a esperança de unidade religiosa pressentida afinal como saída pelo sujeito poético/pensante, após uma experiência de desespero, e com as passagens do elemento irracional por entre as formas mais estritas dos sonetos que aí se experimentam um tanto teoricamente. Já no “Soneto a Orfeu”, a poesia e o poeta (na menção a Orfeu) aparecem com a capacidade de levar a um despertar, em imagem que se vincula mais positivamente à obtenção de conhecimento. Em elaboração de ideias tradicionalmente atribuídas à lírica, esta ofereceria uma integração entre sujeito e objeto que não resulta em dissolução nem do eu, do sujeito, nem do mundo, dos objetos.
À figuração dos recuos e avanços por uma epistemologia poética nos poemas analisados sobrepõe-se ainda uma experimentação com formas e elementos do soneto. Essa experimentação se observa tanto na articulação do elemento narrativo e na proposta de exposição objetiva do sujeito (quer dizer, em poemas que prescindem de marcações de primeira pessoa), quanto na dissociação entre planos pessoais e abstratos do eu, como na lírica que não se prende a princípios figurativos e procura assim o encontro entre subjetivo e objetivo, suas categorias, em espaço intermediário.
Referências
- BROCH, H. Theologie, Positivismus und Dichtung. In: Philosophische Schriften 1. Kommentierte Werkausgabe. Ed. Paul Michael Lützeler. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p.191-239.
- _______. Gedichte. Kommentierte Werkausgabe. Ed. Paul Michael Lützeler. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980.
- _______. Briefe 2 (1938-1945). Kommentierte Werkausgabe. Ed. Paul Michael Lützeler. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.
- _______. Espírito e espírito de época. In: Espírito e espírito de época. Ensaios sobre a cultura da modernidade. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Benvirá, 2014. p.49-74.
- BURDORF, D. Geschichte der deutschen Lyrik. Stuttgart: Metzler; Carl Ernst Poeschel, 2015.
- BÜSSGEN, A. Bildende Kunst. In: ENGEL, M. (Org.) Rilke-Handbuch. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2013. p.130-50.
- DEUTSCHES Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm. 16 Bde. in 32 Teilbänden. Leipzig, 1854-1961. Disponível em: < http://woerterbuchnetz.de/DWB/>.
» http://woerterbuchnetz.de/DWB - ENGEL, M. Rilke-Handbuch. Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart, Weimar: Metzler, 2004.
- GADAMER, H.-G. Rainer Maria Rilkes Deutung des Daseins (1955). In: Gesammelte Werke. Tübingen: Mohr, 1993, v.9, Ästhetik und Poetik II, p.271-81.
- GEROK-REITER, A. Wink und Wandlung: Komposition und Poetik in Rilkes “Sonette an Orpheus”. Tübingen: Max Niemeyer, 1996.
- HOWARTH, P. The modern sonnet. In: COUSINS, A. D.; HOWARTH, P. (Org.) The Cambridge companion to the sonnet. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p.225-44.
- JANKE, W. Archaischer Gesang. Pindar - Hölderlin - Rilke. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005.
- KIPPENBERG, K. Rainer Maria Rilkes Duineser Elegien und Sonette an Orpheus. Passau: Insel-Verlag, 1948.
- KIRCHER, H. Hermann Brochs Sonett-Gedichte. In: LÜTZELER, P. M. (Org.) Hermann Broch. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. p.199-224.
- KOCH, M. Schriften zu Kunst und Literatur. In: ENGEL, M. (Org.) Rilke-Handbuch. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2004. p.480-97.
- KÖHNEN, R. Wahrnehmung wahrnehmen. Die Poetik der Neuen Gedichte zwischen Biologie und Phänomenologie: von Uexküll, Husserl und Rilke. Blätter der Rilke-Gesellschaft. Heft 30, p.196-212, 2000.
- LÜTZELER, P. M. Hermann Broch. Eine Biographie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.
- MAILLARD, C. Littérature et théorie de la connaissance - 1890-1935 / Literatur und Erkenntnistheorie - 1890-1935. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2004.
- NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie; Unzeitgemäße Betrachtungen. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: Deutscher Taschenbuchverlag, 2015.
- OPPENHEIMER, P. The origin of the Sonnet. Comparative Literature, v.34, n.4, p.289-304, 1982.
- OVÍDIO, P. N. Metamorphoses. Livros IX-XV. Rev. G. P. Goold. Trad. F. J. Miller. Cambridge; Massachusetts; London: Harvard University Press, 1984.
- RATSCHKO, K. Gedichte. In: KESSLER, M.; LÜTZELER, P. M. (Org.) Hermann-Broch-Handbuch. Berlin; Boston: De Gruyter, 2016. p.275-89.
- REHN, D. K. A. Image and Identity of the Alchemist in Seventeeth-Century Netherlandisch Art. Adelaide, 2011. Dissertação (Master of Art) - University of Adelaide.
- RILKE, R. M. Sämtliche Werke (1955-1966). Ed. Rilke-Archiv com Ruth Sieber-Rilke, preparada por Ernst Zinn. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1975. 12v.
- _______. Cartas a Cézanne. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 1996a.
- _______. Kommentierte Ausgabe in vier Bänden. Ed. Manfred Engel et al. Frankfurt am Main; Leipzig: Insel, 1996. Gedichte 1895-1910 (v.1); Gedichte 1910-1926 (v.2); Prosa und Dramen (v.3); Schriften (v.4). Supplementband Gedichte in französischer Sprache mit deutschen Prosafassungen (v.5).
- RILKE, R. M.; ANDREAS-SALOMÉ, L. Briefwechsel. Ed. Ernst Pfeiffer. Frankfurt am Main: Insel, 1975.
- RYAN, J. Rilke, modernism and poetic tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
- SCHLEGEL, A. W. Vorlesungen über schöne Litteratur und Kunst. Ed. Jakob Minor. 3ª parte (1803-1804): Geschichte der romantischen Litteratur. Stuttgart: Göschen, 1884, 203-230. Disponível em <https://www.uni-due.de/lyriktheorie/texte/1803_awschlegel.html>
» https://www.uni-due.de/lyriktheorie/texte/1803_awschlegel.html - SCHULZ, G.-M.; WERNER, B. Freie Rhythmen. In: BURDORF, D.; FASBENDER, C.; MOENNIGHOFF, B. (Org.) Metzler Lexikon Literatur. Stuttgart; Weimar: Metzler, 2007.
- SERPA, D. Versos da lembrança e continuidade da poesia: reflexões sobre o poeta e a lírica na representação do mito de Orfeu em poemas de Rilke, Trakl e Bachmann. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Língua e Literatura Alemã) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
- STERZI, E. Da voz à letra. Alea, v.14, n.2, p.165-79, 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2012000200002>.
» http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2012000200002 - SZONDI, P. Rilkes Duineser Elegien; Rilke: Parallelstellen zur ersten und zweiten Elegie und zu Sonette an Orpheus (II, 13). In: BEESE, H. (Org.) Studienausgabe der Vorlesungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch, 1975. v.4, p.377-510.
Notas
-
1
Quando não houver outras indicações, as citações de textos estrangeiros foram traduzidas ao português pelos autores do artigo. Traduções e textos integrais dos poemas de Rilke e Broch encontram-se no Anexo, com a respectiva indicação dos tradutores.
-
2
“The representation of the alchemist as a scholar lays to stark contrast to the portrayal of fools and charlatans […]. Yet, this more dignified representation of the early modern alchemist was just as frequently represented in seventeenth-century painting, including the depiction of both types by artist like David Teniers the Younger. The image and identity of the alchemist as a serious scholar was also just as moralising as the representation of his lowlier-peasant counterpart, however these paintings reveal more complexity in their diversity of representation. The scholarly alchemist was typically represented sitting at his desk pouring over books rather than huddled at the heart. His desk often displays vanitas still-life objects, in particular, a human skull or hourglass, which was used to contemplate one’s mortality and symbolise the transience of life” (Rehan, 2011, p.68).
-
3
SW refere-se a Sämtliche Werke (1955-1966), edição das obras reunidas de Rilke. Cf. referências.
-
4
Todas as citações das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu seguirão a edição crítica (KA2). Indicaremos apenas os versos.
-
5
No original: “Dieses heißt Schicksal: gegenüber sein/ und nichts als das und immer gegenüber”. Interpreta-se aqui a formulação “gegenüber sein” (v.33) como uma perífrase e transposição de sentidos formadores da palavra grega episteme, ἐπιστήµη, ἐπι e ἵστηµι, um “pôr-se”, “estar sobre”. Nas Elegias, isto também é relacionado a uma experimentação do outro como ameaçador, potencialmente destrutivo de certa individualidade (acerca disto, cf. Gadamer, 1993 [1955], p.280).
-
6
Kippenberg (1948, p.187 ss.) se reporta ao incômodo de Rilke com o barulho de crianças brincando “ao ar livre”, enquanto ele trabalhava à janela.
-
7
V. esp. a partir da terceira definição de “Zufall”, na entrada dessa palavra no dicionário Grimm. Disponível em: <http://www.woerterbuchnetz.de/DWB?lemma=zufall> Acesso em: 14.jan.2020.
Notas
-
1
1 Agradecemos a Matheus Guménin Barreto a tradução do soneto para os fins deste artigo.
-
2
As traduções de Danilo Serpa pretendem servir apenas à orientação do leitor.
Anexos
Anexo 1 - Der Alchimist, Rainer Maria Rilke
5 da drin entstände. Zeiten brauchte er, Jahrtausende für sich und diese Birne in der es brodelte; im Hirn Gestirne und im Bewußtsein mindestens das Meer. Das Ungeheuere, das er gewollt,
10 er ließ es los in dieser Nacht. Es kehrte zurück zu Gott und in sein altes Maß; er aber, lallend wie ein Trunkenbold, lag über dem Geheimfach und begehrte den Brocken Gold, den er besaß.
(Rilke, 1993, p.522)
1 Sorri amargo o alquimista e afasta
o frasco, que fumega um pouco ainda.
Já sabe do que carecia
pra que essa tal substância renomada
5 surgisse ali. Carecia de tempo,
de séculos pra si, pro frasco ardente;
de toda uma constelação na mente;
na consciência, do mar todo ao menos.
A enormidade que ele desejara,
10 ele a soltou na madrugada. E ela
voltou a Deus, sua medida antiga;
mas ele, como um bêbado, mal fala,
deitado sobre a arca, e desespera
pra ter o ouro que já tinha.
Anexo 2 - Vier Sonette über das metaphysische
Problem der Wirklichkeitserkenntnis
Quatro sonetos sobre o problema metafísico do conhecimento da realidade
1 Fühl ich das Staunen? Staunt mein Ich?
Von welcher Grenze kommst Du her,
Gedanke, tiefstes Ungefähr!
Im Todesraume schwebe ich,
5 Schreiend und ewig, Ahasver. -
Bildtolles, wogendes Gleichgewicht,
Blind ist die Küste, die Dich bricht:
Starrendes Wort im Gedankenmeer,
Grinsender Spiegel des unendlichsten Sinkens -
10 Doch sieh, das Wort will sich entfalten
Zum lächelnden Gleichmaße schwebenden Winkens
Und im Gefühl unendlicher Gestalten
Muß ich die Rettung eines Weltenblinkens,
Als läge ich in Weiberarmen, feig erhalten.
1 Eu sinto o espanto? Espanta-se o meu eu?
De quais fronteiras você vem,
Pensamento, destino mais profundo!
No espaço da morte eu flutuo,
5 Aos gritos eternamente, Ahasverus. -
Equilíbrio ondulante, de imagem revolta,
É cega a costa que o quebra:
Palavra contemplativa no mar dos pensamentos,
Espelho zombeteiro do infinito ocaso -
Mas, veja, a palavra quer se desdobrar
10 Na simetria risonha de um aceno suspenso
E na sensação de infinitas formas
Tenho que receber, covarde, como que entregue
Em braços femininos, a salvação de um cintilar de mundos. -
1 Wir sollen neuerdings uns im Gefühl versuchen
Und unsere Lippen zueinander neigen
Und unsere armen Einsamkeiten beugen
Daß sie das Ewige gemeinsam suchen
5 Aus unseres Alltags Zweiheit soll entsteigen
Der Alles Einheit, menschlichstes Berufen
Und stilles Warten an des Gottes Stufen,
Der im Gefühl sich ahnend will bezeigen -
Scheu aber lösen sich die Hände wieder,
10 Die sich zu solcher Transzendenz zusammenfanden
Und schauernd lösen wir die tierverschlungenen Glieder:
In Lust selbst wissend, daß wir für einander
Vertauschbar sind und Zufall aus dem Auf-und-Nieder
Verflochtener Gleichform in des Eros ewigem Mäander.
1 Devemos nos pôr mais uma vez à prova na sensação
E inclinar nossos lábios uns para os outros
E curvar nossas pobres solitudes
Para que juntas busquem a eternidade
5 De nossa dualidade cotidiana deve emergir
A unidade total, vocação humaníssima
E silenciosa espera pelas etapas de Deus,
Que se quer intuitivamente mostrar na sensação -
Acanhadas porém separam-se de novo as mãos,
10 Unidas que estavam para tal transcendência,
E estremecendo desatamos os membros de animais enredados:
Sabendo, em meio ao próprio deleite, que somos
Substituíveis e acaso derivado dos altibaixos
Da simetria entrelaçada aos meandros eternos de Eros. -
1 Ernst spucken Schädel Worte in die Luft hinein,
Ernst wird Verständigung auf solche Art erzielt;
Der leere Raum wird täglich frisch gedielt
Und ich häng drinnen, namenlos allein:
5 Im fernsten Kreise huscht des Lebens Bild
Und ist nicht gräßlich und nicht komisch, nein:
Weltzeit ist ferne - hopp, wie unendlich klein
Aus ihrer Kinogeste leere Kälte quillt -
Wo ist mein Heiliges in solcher Nacht!
10 Wo ist die Rettung aus dem qualen Gähnen!
Oh, Frau, ich schrei nach Dir aus meinem Weltensehnen,
Oh, Deines Atems Tiefe falte still die Nacht:
So beug ich mich in Demut über Deine Pfoten
Und in mein Fieber fallen kalte Zoten.
1 Crânios cospem com seriedade palavras no ar,
Com seriedade se obtém assim a compreensão;
O espaço vazio é revestido dia após dia,
E eu pairo encerrado, anônimo e só:
5 A imagem da vida resvala no mais remoto círculo
E não é terrível nem cômica, não:
O tempo do mundo vai longe - infinitamente pequena
Brota a frieza vazia em seu trejeito de cinema -
Onde está meu sagrado em tal noite!
10 Onde a salvação do bocejo angustiado!
Oh, mulher, do meu anseio de mundos eu clamo por você,
Oh, que o seu profundo alento possa dobrar a noite em calma:
Então me recolho humildemente em suas patas
E em minha febre precipitam-se frias obscenidades.
1 Es sollen unsere Lippen neu erküssen,
Was die Begriffe uns stets neu ermorden,
Erlebnis, Ich-Sein, Welt sind längst abstrakt geworden,
Ein schönes ahnend, dürfen wir nur wissen
5 Und wissend suchen wir ein Ich, das stets verborgen
Allein die Macht hat Grenzen zu verwischen,
Dunklen Genuß erhebt zum Schöpferischen
Reiner Ekstase nie erreichter Morgen:
In ihm darf Einheit sich zum All entfalten
10 Und eine Zweiheit Gottes Welt gestalten -
Im Suchen nah und ewig doch entrückt -
Die Kraft des Ursprungs winkt mit milden Händen.
Es weht ein Frühlingsband und will uns senden
Vergessenen Traum aus Kinderland zurück.
1 Nossos lábios devem beijar-se novamente,
O que nos mata os conceitos repetidamente,
Vivência, Ser-Eu, Mundo ficaram abstratos há muito,
Um pressentimento belo, podemos saber somente
5 E sabendo procuramos um eu que se oculta sempre
Em condições apenas de esfumar fronteiras,
De elevar o prazer obscuro à criação
Êxtase puro da manhã nunca alcançada:
Nele a unidade pode desdobrar-se em cosmo
10 E uma dualidade plasmar o mundo de Deus -
Próximo na procura mas eternamente arredado -
A força da origem acena com mãos suaves.
Um sopro de primavera nos quer remeter
Do país da infância o sonho esquecido.
Anexo 3 - Elegias de Duíno
Ordnungen? Und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
5 als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen,
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
Und so verhalt ich mich denn und verschlucke den Lockruf
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen
10 wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht,
und die findigen Tiere merken es schon,
daß wir nicht sehr verläßlich zu Haus sind
in der gedeuteten Welt.
(Rilke, KA 2: 201, vv. 1-13)
Quem, se eu gritasse, me escutaria, então, das ordens
dos anjos? E posto mesmo que, de repente, um me
tomasse ao coração: eu pereceria por sua
existência mais forte. Pois o belo nada mais é
5 do que o começo do assombro, que nós ainda agora suportamos,
e o admiramos tanto assim, porque calmamente prescinde
de nos destruir. Qualquer um anjo é assombroso.
E assim me contenho então e engulo o chamado
de escuro soluçar. Ah, de quem podemos
10 então lançar mão? Anjos não, pessoas não
e os animais sagazes já percebem
que não estamos muito confiáveis em casa,
no mundo interpretado.
Anexo 4 - Sonetos da Orfeu, II, 26
Irgend ein einmal erschaffenes Schreien.
Aber die Kinder schon, spielend im Freien,
schreien an wirklichen Schreien vorbei.
5 Schreien den Zufall. In Zwischenräume
Dieses, des Weltraums, (in welchen der heile
Vogelschrei eingeht, wie Menschen in Träume - )
treiben sie ihre, des Kreischens, Keile.
Wehe, wo sind wir? Immer noch freier,
10 wie die losgerissenen Drachen
jagen wir halbhoch, mit Rändern von Lachen,
windig zerfetzten. - Ordne die Schreier,
singender Gott! daß sie rauschend erwachen,
tragend als Strömung das Haupt und die Leier.
1 Como nos toma o grito do pássaro...
Um gritar qualquer uma vez criado.
Mas já as crianças, ao ar livre brincando,
Passam ao largo do verdadeiro grito gritando.
5 Gritam o acaso. Em intervalos
deste, do espaço, (nos quais o intacto
grito do pássaro adentra, como humanos no sonhar - )
eles impelem a sua cunha, a do chalrear.
Ai, onde estamos? Ainda mais livres,
10 como as pipas desatadas
caçamos à meia altura, com risos nas beiradas,
em farrapos aos ventos. - Ordena, deus que canta! os que fazem a grita,
que eles acordem em inebriamento
trazendo como torrente a cabeça e a lira.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Nov 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
12 Fev 2020 -
Aceito
27 Fev 2020