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A Bahia como destino africano

Por que visitar a Bahia? Para os milhares de afro-americanos que passam anualmente pelo estado mais negro do Brasil, a resposta é: descobrir um pedaço da África de seus ancestrais. Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil explora como as motivações e anseios desse grupo de visitantes se materializam em um destino turístico - ou, melhor, em vários. Professora da University of California - Santa Cruz - e baiana ela mesma, Patrícia de Santana PinhoPINHO, P. de S. Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2018. 272p. examina com minúcia os processos que constituíram e vêm moldando a Bahia como destino que atrai um fluxo constante de afrodescendentes que viajando dos Estados Unidos em busca de lugares que ofereçam uma conexão com a África.

Pinho mostra como, há décadas, grupos de afro-americanos vêm consolidando rotas turísticas em destinos que possam transportá-los ao universo de seus antepassados. As expressões de africanidade encontradas em solo baiano permitiram que ali se convertesse em um dos pontos de parada possíveis nesse roteiro. Para explicar essa relação, a autora dialoga com a noção de que diásporas formam “configurações multicentradas”, em que ocorrem processos de atribuição de sentido próprios para cada espaço. O que está em jogo para esses turistas é o desejo de “experimentar a cultura africana em primeira mão e conhecer outras comunidades negras” (p.1). Não se trata, portanto, de retornar a um local definido, mas a uma africanidade tal qual consolidada no imaginário comum. Nesse processo, vão formando um mapa que sinaliza culturas com capacidade para transportá-los a lugares (e tempos) onde podem vivenciar uma suposta ancestralidade. O “turismo de raízes” que Pinho identifica na Bahia é, portanto, parte de um fenômeno global, pelo qual a autora nos guia de forma clara e sofisticada.

Para dar conta de como o Brasil se situa nesse cenário, a autora ressalta que é necessário explorar, em conjunto, os sentidos projetados nos diferentes lugares que ocupam essas rotas e acabam gerando um “sistema mais amplo de significados” (p.45), que Pinho organiza em um “mapa da africanidade” (map of Africanness). Seguindo um passo além do turismo em si, os argumentos chamam atenção para o caráter geopolítico dessas representações. Se, por um lado, esses turistas acabam alimentando estereótipos sobre uma população que teria se mantido não só tradicional, mas atrasada, suas ações enquanto turistas também expressariam um projeto de solidariedade negra transnacional.

A obra tem suporte em uma rica etnografia, que combina diferentes instrumentos para entender como significados são produzidos e, não menos importante, postos em circulação. Em interlocução com diversas áreas de estudos da cultura, a autora expõe como dimensões de nacionalidade, raça e gênero aparecem entretecidas nesse mercado turístico. Para isso, lança mão de relatos coletados ao longo de vinte anos de experiências intermitentes com esses grupos, costurados a uma análise crítica de discursos que aparecem tanto na fala de turistas, quanto em fontes visuais e textuais, como propagandas turísticas, artigos de revistas e mídias digitais.

Ainda que o foco recaia sobre o universo discursivo, as lentes da autora mantêm em quadro a experiência corpórea e emocional dos viajantes. A dimensão dos afetos abre o primeiro capítulo, com a ideia de que o turismo de raízes se sustenta na busca por semelhança (sameness), ou ainda, no desejo de estar entre aqueles que são percebidos como iguais e vistos como um “reflexo” de si enquanto parte de um grupo subjugado, com certa trajetória histórica e, claro, como negros.

Surgindo no contexto de “afirmação do legado cultural” (p.29) que acompanha o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, esse turismo ecoa o desejo pela conexão entre caminhos da diáspora africana. O “mapa da africanidade” serve, assim, como um “diagrama” que expõe o caráter dessas rotas, em que cada lugar é incorporado por atributos específicos. O Brasil é integrado como destino porque aparece como um lugar onde ainda seriam mantidas muitas tradições com as quais os afro-americanos teriam perdido vínculo. No discurso da ancestralidade baiana, o candomblé assume papel central, visto como uma religião quase intocada em relação às matrizes africanas.

Esse mapa é ao mesmo tempo espacial e temporal. Não basta falar que se vai a Senegal, por exemplo, mas a um Senegal que mostra as marcas do tráfico atlântico. No circuito da África Ocidental, portanto, os destinos são encobertos pela memória dolorosa da escravidão. Enquanto isso, o legado que se vivencia na Bahia é feito das expressões alegres de uma cultura pulsante, em um passado difuso e revestido de tradição. Diferentes lugares funcionariam, assim, como “peças complementares”, que evocam diferentes emoções.

Pinho ressalta ainda que essas representações são construções ativas, assinalando que as posições no mapa são resultado de uma disputa de narrativas, em que diferentes elementos são acionados para atrair turistas. Iniciativas em Gana fizeram do país um ponto chave no roteiro desses afro-americanos, ainda que seus portos não tenham sido tão relevantes quanto os de outros países, como Angola, que não entra no radar desses turistas. Tal qual a autora pontua, isso “revela que lugares são culturalmente construídos e que suas representações não são reflexo automático de suas histórias” (p.54).

No segundo capítulo, a autora escava as estruturas discursivas que alicerçam as concepções acerca da Bahia. A argumentação segue o veio aberto com o Paradigma das Novas Mobilidades para pensar como uma série de produtos midiáticos - não necessariamente voltados para o turismo - circulam em escala global e informam o imaginário sobre os lugares e povos a serem visitados. Apoiando-se na abordagem epistêmico-metodológica desenhada por John Urry, Pinho busca traçar o “olhar do turista” (tourist gaze), ou seja, os regimes de representações que antecipam e organizam a experiência turística. Essa análise permite sinalizar assimetrias entre diferentes grupos capazes de produzir e colocar em circulação imagens sobre si e sobre o Outro, revelando uma geopolítica do conhecimento com marcada primazia do Norte Global como produtor de referências.

Pinho identifica, então, três tropos bem estabelecidos que organizam o discurso do turismo de raízes baiano. Primeiro, aparece a “Bahia como uma ‘África mais próxima’”, onde seria possível encontrar a ancestralidade africana sem sair da América. Enquanto a escravização marca os espaços visitados para lá do Atlântico, na Bahia, ela mal aparece. A força das expressões culturais teria vencido as estruturas escravistas e seria mantida quase integralmente em relação às matrizes africanas. A visão sobre a população, por sua vez, evoca a ideia d’ “O Nativo Feliz”, que não se abala com condições materiais precárias em que vive porque se alimentaria de uma cultura rica e original que o preencheria emocionalmente. Um povo cheio de alegria, o que, como lembra a autora, é marca do discurso da baianidade. Por fim, vemos como os grupos visitados são enquadrados em um certo estágio de “Evolução Negra”. Os afro-brasileiros teriam conservado a tradição ancestral, mas não avançaram pautas sociopolíticas e, assim, estariam em um estágio histórico atrasado em relação ao dos afro-americanos. A relação desses turistas com os locais seria, então, marcada por percepções de semelhança e alteridade que se alternam em um movimento que, apesar de parecer contraditório, expõe a complexidade de construções identitárias transnacionais que se sobrepõem.

Mas as disparidades identificadas são uma preocupação latente para esses viajantes, que têm em vista contribuir para o progresso das comunidades visitadas. O terceiro capítulo aborda como o turismo é usado enquanto veículo para a construção de uma solidariedade negra transnacional, com a promoção de iniciativas que alavanquem o progresso de seus pares diaspóricos. Isso inclui, mas não se limita à contribuição com projetos sociais. A mera presença desses afro-americanos enquanto consumidores impõe mudanças socioeconômicas. Há toda uma reorganização de espaços e serviços, que se adaptam a exigências como disponibilidade de guias negros, realização de visitas a grupos que mantêm expressões culturais de legado africano e acesso a espaços para consumo de artefatos afrocêntricos. Os turistas não só têm consciência de que não seus gastos podem incentivar negócios específicos, mas também entendem que sua condição de cidadãos norte-americanos traz visibilidade para questões raciais, e acionam esses atributos para impactar positivamente a vida dos locais. O livro traz uma reflexão, portanto, que coloca em questão o paradigma de que o turismo seria, inevitavelmente, um fator que agrava desigualdades. Esse processo, porém, cria uma hierarquização, em que a filiação nacional dos afro-americanos afeta a construção dessa solidariedade transnacional na medida em que se veem como o grupo que mais avançou em conquistas políticas e, portanto, como aqueles que devem guiar o caminho da evolução. Nesse sentido, vale apontar que a ênfase na multiplicidade de centros sobre os quais a autora projeta uma parte da diáspora não gera um olhar que equaliza posições de poder, pelo contrário.

Em que pese a diversidade dos visitantes, Pinho assinala algumas características comuns: classe média com educação superior, acima de 50 anos e, em especial, mulheres. Com isso em vista, o quarto capítulo se volta à análise dos papéis de gênero nesse circuito, tanto aqueles desempenhados seja pelas viajantes, seja pelas visitadas. Diversos pontos são retomados, agora entremeados à dimensão da experiência das figuras femininas, que aparecem aqui profundamente entregues à manutenção de heranças culturais. Por um lado, são as mulheres da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira que dão vida à tradição religiosa que se busca conhecer. Por outro, as turistas sentem que, enquanto mulheres, são “mentoras”, responsáveis por levar às suas comunidades de origem os conhecimentos que acumulam nas viagens.

No quinto capítulo, a autora se volta para a postura assumida pelo poder público diante do turismo de raízes, inicialmente marcada pelo distanciamento. Preocupados com a imagem do Brasil no exterior e descrentes na relevância dos turistas afro-americanos, agentes de Estado tentaram, inclusive, minar esse mercado. O fenômeno surgiu e prosperou por iniciativa de grupos particulares, e, por trinta anos, não recebeu atenção de órgãos de governo. Pinho cria esse espaço no livro para discutir a virada discursiva que orientou as políticas públicas surgidas já no século XXI, que reiteravam as mesmas representações da baianidade e da ancestralidade africana.

O epílogo traz uma reflexão com discussões sobre representatividade no cenário brasileiro, acompanhadas por um quadro de mudanças sociais que causam desconforto na elite branca, obrigada a ter que lidar com classes ascendentes em espaços antes exclusivos. Nesse caminho, a obra coloca em pauta a cultura em sua natureza política, enquanto agente em operações de poder. Ainda que diferentes atores sociais, como os turistas estudados, pensem em expressões culturais na sua dimensão de estabilidade e permanência, Patrícia Pinho mostra seu constante movimento.

Referências

  • PINHO, P. de S. Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2018. 272p.
  • URBANIDADES #15: Diásporas e turismo de raízes em Salvador/BA. Entrevistadores: João Freitas, Nathalia Silva e Victoria Boim. Entrevistada: Patrícia de S. Pinho [s. l.]: UrbanData-Brasil/CEM, 14 set. 2019. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/0aqVjrxYNjl3MECF3Vx215>. Acesso em: 8 jul. 2020.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2020
  • Aceito
    07 Ago 2020
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