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Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil

RESENHAS

FARIAS, Edson Silva de. Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil. Curitiba: Appris, 2011. 413p.

Bruno Gontyjo do Couto

No esteio das proposições de autores como Benjamin e Bourdieu, o livro Ócio e negócio: festas populares e entretenimento-turismo no Brasil, de autoria de Edson Farias, procura alinhar o debate sobre a cultura popular no Brasil com a problemática da modernidade e dos processos de modernização, tendo como foco a centralidade adquirida pelo nexo entre economia e cultura durante o desenvolvimento das sociedades-nação modernas.

Indo no sentido contrário de parte da literatura sobre o tema, o autor procura superar as operações analíticas que substancializam o popular como algum tipo de alteridade autêntica contraposta à dita cultura industrial e seu respectivo movimento de homogeneização. Desse modo, não se trata de abordar o tradicional e o moderno, a cultura popular e a cultura de massas como elementos estanques e incompatíveis, mas de dar conta das interdependências sociais e cruzamentos históricos que os colocam, ao mesmo tempo, em tensão e sincronia.

Assim, o texto, originalmente formulado como tese de doutorado defendida em 2001, tem como problema geral o modo como o engate entre economia e cultura se torna central com a emergência e consolidação da estrutura urbano-industrial de serviços e do quadro de valores de uma sociedade de consumidores, tendo como consequência a efetivação do entretenimento como um mecanismo institucional absolutamente relevante na manutenção desse novo complexo social.

Durante a evolução das sociedades-nação modernas, o fórum do consumo mercantilizado tornou-se absolutamente central no acomodamento de vínculos sociais, no atendimento de estimas e na elaboração de identidades. Com os processos de secularização e racionalização cultural, o problema da autodeterminação e da autorrealização de indivíduos e coletividades esteve cada vez mais atrelado à satisfação de demandas emocionais autênticas e ao direito ao ócio como garantia de realização dessas demandas. Contudo, isso só poderia se dar mediante o sistema de carências, a partir da interdependência da diversão e do lazer com a dimensão produtiva. Assim, economia e diversão se articulam como mecanismo fundamental na formação de identidades sociais.

Nesse sentido, o livro objetiva analisar o significado sociocultural da festa, levando em conta tanto sua singularidade histórica como as articulações com as estruturas sociais e quadros culturais vigentes. Propõe-se a compreender o movimento de confluência das matrizes culturais "populares" e o mecanismo do entretenimento, no qual as práticas culturais populares são reatualizadas na integração com os mercados, ensejando a peculiaridade institucional das festas populares regionais como grandes festivais de diversão e lazer.

A principal premissa do autor é a de que as festas-espetáculo estão diretamente conectadas às transformações estruturais da sociedade-nação, essa última cada vez mais ordenada pela autorregulação do mercado e pelo comércio de signos em escala transnacional. As festas populares não só participam do processo de modernização como também se impõem como parte da complexidade social. Estão diferenciadas no interior da esfera cultural, combinando tradição, mercado cultural e modernidade e amalgamadas às memórias do "nacional-popular" e do "internacional-popular". Sendo assim, o autor se propõe a analisar o popular como "feixe de símbolos reconstruídos seletivamente ao longo da modernização" no país. Daí a ênfase no entretenimento como mecanismo institucional estruturante das "condições de ressignificação dos símbolos e dos modos de expressão da cultura".

Em um segundo momento do livro, o autor parte para a análise de algumas das principais festas-espetáculo no Brasil, a saber: o carnaval carioca, o carnaval de Salvador, o São João de Caruaru e o Festival do Boi-Bumbá em Parintins. A análise é iniciada a partir do carnaval carioca, tendo em consideração que a festa é emblemática pelo fato de que tanto a cidade do Rio de Janeiro se impõe como matriz da modernização turística no país como a festa se impõe como matriz dos grandes festivais populares.

A partir da década de 20, o Brasil começa a despontar como uma sociedade nacional empenhada na industrialização e cujos deslocamentos simbólicos e materiais definem cada vez mais espaços consagrados ao comércio da diversão. De algum modo, pode-se dizer que o desenvolvimento do entretenimento e do turismo no país fora pautado pelo esforço das elites em instalar uma "Europa possível" nos trópicos, caracterizando os empreendimentos na área como parte de uma modernização redentora. Ao longo desse processo, sob impacto de cruzamentos políticos que centralizam a cultura como base da aliança entre Estado e povo, o folclore e a paisagem tropical passam a ser ressaltados como símbolos nacionais, sendo, então, deslocados para compor o círculo desse novo mercado cultural. A combinação do tema da nacionalidade com as ideias de território exuberante e povo culturalmente singular forjara a conjunção da imagem de Brasil com a sistemática cultural e de diversão, contribuindo para a institucionalização do entretenimento-turismo, com posição central na formação da nação.

Ao longo do desenvolvimento desse mercado da diversão centralizado no Rio, o carnaval desponta como peça-chave na atração de turistas. Logo o Estado incorpora a folia ao patrimônio simbólico da nação e ao seu "cardápio" turístico, investindo no gerenciamento e publicidade da festa. Sua consagração como período de satisfação também favorece as práticas mercantis de consumo, o que instaura uma forte aliança com os empreendimentos comerciais. A festa ganha grande dimensão, adquirindo status de marca registrada da cidade e do país, o que demonstra o significado da cultura da diversão para a sociedade nacional.

Em seguida, o autor parte para o carnaval de Salvador, proclamado pelas agências locais como o "maior festival de massas do país". Segundo Farias, amparado nos interesses das facções dominantes locais, o ideário em torno do desenvolvimento turístico ganha status de programa político nos anos 80, o que culmina em toda uma remontagem da paisagem urbana de Salvador. Aspectos naturais, étnicos e históricos são correlacionados numa textura paisagística que enseja a fruição do espaço urbano como "imã de todos os sentidos", tendo como fundamento o modo de ser baiano (patrimônios e práticas populares) e a entidade mítica "Bahia". A partir daí, há todo o desenvolvimento de uma economia lúdica "baiana", com sua série de agentes e produtos de lazer comprometidos com o jeito lúdico da afro-baianidade.

Dentro dessa paisagem movida pelos "negócios baianos", o carnaval desponta como principal produto turístico. Diante do fenômeno do carnaval de rua em Salvador, coube aos planejadores otimizar os seus recursos de modo a compor um produto exportável, competitivo quanto à oferta de serviços e infraestrutura, mas, sobretudo, forjar sua diferencialidade com relação ao Rio, reforçando o paradigma do carnaval-participação em contraposição ao carnaval-espetáculo. Nesse sentido, foi absolutamente fundamental a evolução dos trios elétricos e o aparecimento dos blocos comerciais, capazes de agregar multidões cada vez maiores, mas sob um gerenciamento cada vez mais racional, eficaz e rentável.

No quarto capítulo do livro, Farias lança mão da análise do São João de Caruaru, o "maior São João do mundo", para tratar do tema da reinvenção das tradições a partir do engate entre festas populares e entretenimento. No caso, a festa objetiva resgatar a tradição popular sertanejo-nordestina, mas dentro de uma moldura festiva para grandes multidões.

Como aponta o autor, a classificação de um determinado feixe de práticas e símbolos como "populares" lhe dá legitimidade como algo destacado do cotidiano moderno. Tais práticas e símbolos, identificados como bens culturais legítimos, marcados por sua habilidade em promover excitações lúdicas, passam a ser agenciados pelo entretenimento, com mediação da mídia e das políticas estatais, sob o signo do carisma e do estigma. Nesse arranjo, a tradição nordestina se efetiva e se materializa na estrutura urbano-industrial de serviços da sociedade-nação e é penetrada pelos valores da cultura brasileira. Aqui, o sertão aparece como locus de preservação dos elementos mais autênticos de uma cultura popular rural e mestiça.

Historicamente, a efervescência comercial da cidade de Caruaru gerou um processo de urbanização e diferenciação entre grupos sociais que influenciou o desenvolvimento do segmento cultural, sobretudo nos clubes de lazer, bem como em grupos intelectualizados voltados para a manutenção da tradição cultural local. A popularização da festa de São João, o seu desenvolvimento cenográfico com os concursos de ornamentação entre as ruas, bem como sua divulgação pelas rádios locais levaram a um forte desenvolvimento e expansão do festejo, o que também culminou em investimentos por parte da iniciativa privada e do poder público.

No quinto e último capítulo, o autor aborda a festa do Boi-Bumbá de Parintins, observando como, nesse festival, há um complexo cruzamento de ritmos, temporalidades e espaços, onde se ajustam os ritmos locais e globais, bem como a memória e geografia locais e os mecanismos do entretenimento-turismo. Nesse sentido, a festa permite abordar o problema de como o cruzamento de fluxos no ambiente da globalidade engendra alternativas de reinvenção das diferenças culturais, sobretudo na forma de espacialidades simbólicas cambiadas no mercado cultural. A industrialização do simbólico lança o entretenimento e o lazer como um modo de afirmação de novas diferenças culturais, contribuindo para o estabelecimento de sensos de localidade. Trata-se da formulação das identidades populares e regionais e das suas reinvenções dentro da sistemática da diversão, constituindo precisas espacialidades que se distinguem como cenários culturais espetaculares. É nesse sentido que o encontro de Parintins é duplamente penetrado: por um lado, pela magnitude simbólica da Amazônia, reconhecida internacionalmente como santuário ecológico; e, por outro lado, pelo particular étnico da tradição cabocla do boi e sua capacidade de despertar emoções autênticas.

O desenvolvimento do festejo, nas suas dimensões espetaculares, teve início com o aparecimento do imaginário ambientalista e do programa de desenvolvimento turístico do governo militar, o que contribuiu para a intensificação dos investimentos turísticos na região. A ampliação da festa e o interesse do poder estadual culminaram na evolução das associações dos bois e, logo, das apresentações. Inicia-se, assim, um importante processo de profissionalização, expansão do artefato cenográfico e modernização do festival.

Em resumo, pode-se dizer que o principal trunfo do livro é compreender as festas populares como parte de um concerto social no qual a dinâmica de permuta de signos se insere na vitalidade do capital, o qual, assim, também se enraíza nos âmbitos da diversidade bio-étnico-societal. Nesse contexto, o entretenimento se consagra como importante mecanismo institucional, com influência na formação de vínculos sociais e nos processos de mudança sociocultural, ao concatenar a lucratividade do capital com os circuitos de produção e consumo cultural e, então, interagir diretamente com a luta em favor da afirmação de identidades.

Nesse sentido, o livro traz, de modo engenhoso, uma das possibilidades heurísticas de tratamento da cultura popular a partir do tema da mudança social e da modernização, tão caros à agenda da sociologia da cultura e da própria sociologia, como um todo. Em última medida, o livro dá conta da evolução de uma estrutura urbano-industrial e de um quadro valorativo de uma "sociedade de consumidores", onde a técnica e o erótico se articulam como importante mecanismo de regulação e coordenação social, sobretudo no que diz respeito à pacificação das emoções mediante a racionalização de sua exposição.

(Recebido para publicação em 12 de março de 2012)

(Aceito em 29 de abril de 2012)

Bruno Gontyjo do Couto Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UnB e bolsista CNPq. Faz parte da linha de pesquisa "Cidade, Cultura e Sociedade" e tem experiência em temas como modernismo, Sociologia dos Intelectuais, Sociologia da Cultura e etc. Integra o Laboratório de Estudos em Trabalho, Afeto e Cultura (TAC) da UnB e o grupo de pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD) inscrito no CNPq. É autor de artigo publicado na revista Humanities and Social Sciences Review, bem como de trabalhos completos nos anais da ANPOCS 2011. brunogcouto@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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