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"Os ossos de descartes": mais que filosofia, um livro sobre a sociologia da ciência e dos costumes

RESENHA

Léo Peixoto Rodrigues; Gabriel Bandeira Coelho

SHORTO, Russell. Os ossos de Descartes. Rio de Janeiro: Objetiva. 2013, 272p.

Pela Editora Objetiva - Rio de janeiro -, ao final do primeiro semestre de 2013, foi lançada no Brasil a obra Os Ossos de Descartes, de Russell Shorto, traduzida por Daniel Estill. De capa sugestiva e muito bem adequada ao conteúdo do livro, essa surpreendente obra tem como subtítulo: "A história do esqueleto por trás do conflito entre a fé e a razão". Se nos permite o autor, fazemos aí um primeiro (elogioso) reparo: o subtítulo bem poderia ser: "A história entre a fé e a razão por trás do esqueleto". Explicamos por que: raros são os livros de filosofia e de sociologia que, de forma tão clara, didática e expressiva, expõem e explicam o conflito entre a fé e a razão, no período histórico renascentista e mesmo além, em que René Descartes publica o seu mais famoso livro: O Discurso do Método.

O livro se inicia, logo no primeiro capítulo, com a própria morte de Descartes. O autor retrata o filósofo doente, em seu leito de morte, na Suécia, na cidade de Estocolmo, no inverno de 1650. A descrição feita por Shorto, ao mesmo tempo em que mostra o temperamento do homem que fundamentou a razão em bases, à época, incontestavelmente sólidas, é feita de forma instigante, provocativa e curiosa. Descreve o cenário sócio-histórico da ciência, sobretudo das práticas médicas, nas quais, em larga medida, como relata o autor, "doença e saúde eram, quase que universalmente, relacionadas com o fato de o paciente estar ou não sob as vistas de Deus, e a linguagem da cura deveria passar pela teologia" (Shorto, 2013, p. 27).

Shorto, em sua exposição, não parte de uma estrutura literária linear, em termos de datas ou de acontecimentos, mas enfoca as diferentes dimensões do social, implicadas concomitantemente, conseguindo apreender a realidade daquele momento, de modo dinâmico e realista, o que bem lembra uma "sociologia dos costumes", ao estilo de Norbet Elias, em sua obra O processo civilizador: uma história dos costumes (2011, v. 1 e 2). Russell Shorto, ao mesmo tempo em que retrata a morte de Descartes, mostra, também, o impacto social que tivera a obra Discours de la methode, já em 1637, nas ruas de Paris, Roma, Amsterdã e Londres.

A obra apresenta, simultaneamente, diversos pontos daquele momento sócio-histórico - como se encontrava o conhecimento culto; aspectos biográficos de Descartes; a sociedade vista a partir de uma perspectiva da sociologia da ciência; a luta que fé e razão travavam -, tudo isso em meio (ou decorrente) do pensamento cartesiano. Diz o autor: "No século XVII, foram tão radicais e desorientadoras as mudanças naquilo que se considerava um sistema absoluto de valores e verdades, que pessoas de todos os recortes sociais [...] consideravam a situação como uma situação de crise. E nenhuma crise é mais profunda do que as crises da crença" (Shorto, p. 31).

Se, ainda hoje, a razão é o baluarte da modernidade e objeto de vigoroso debate acadêmico, o impacto do cartesianismo, imediatamente à morte de Descartes, não fora diferente. Shorto descreve um cenário - durante a década de 1660, na França - em que "homens, mulheres, casados, solteiros [...] membros do auto escalão do governo ao lado de provincianos, grosseirões, assim como príncipe, prostitutas e religiosos" (Shorto, 2013, p.67) eram os visitantes das chamadas mercredis, nome dado ao evento semanal que ensinava a filosofia da razão, ministrado pelo físico Rohault, considerado o maior cartesiano vivo à época. Conforme o autor, "o cartesianismo torna-se um espetáculo" (Shorto, p. 69).

O autor destaca os aspectos filosóficos do próprio pensamento cartesiano, ao se referir ao cogito que "constrói", pela primeira vez, a existência individual, no sentido de que cada um de nós poderia conduzir a sua própria razão, posto que (todos) teríamos o bom senso. Shorto irá discutir a separação entre matéria e mente que, se, nesta contemporaneidade, recebe muitas críticas, à época foi fundamental para a fundação do sujeito, possibilitando-o, nos séculos que se seguiram, "tornar-se" sujeito e cidadão e contemplar as bem-acolhidas subjetividade e diferença, que garantem os direitos individuais tão caros à sociedade contemporânea. Para Shorto (2013, p.82), "nos anos que se seguiram ao funeral dos restos transladados, Descartes alcançou um tipo diferente de popularidade e [...] sua filosofia enraizava-se em novos lugares [...]. Importantes aristocratas e religiosos colocaram o cartesianismo sob sua proteção".

Após o segundo sepultamento de Descartes, seus restos mortais repousaram em paz na igreja de Ste. Geneviève que, como seus ossos, também se decompunha em ruínas. Entretanto, a Europa experimentava uma importante profusão de inventos: o imposto de renda fora criado, o nitrogênio e a eletricidade descobertos; fora realizada a primeira cirurgia de apêndice. O cartesianismo também se espalhara pela Europa, no sentido de revolucionar os costumes da sociedade, construindo as "tramas da modernidade". Os ingleses viam o pensamento cartesiano como uma caixa de ferramentas que lhes servia para realizar novas experiências (Shorto, 2013). A obra também apresenta, de forma curiosa e renovada, aspectos da Revolução Francesa, vinculando a crise daquela monarquia ao "contexto de fundo", que era a Nova Filosofia da Razão. Essa filosofia deslocara o centro do conhecimento teológico, a Fé - e de seus intermediários diretos, os Reis - para o novo centro, a Razão. Shorto salienta que "A ideologia da Revolução [...] enfatizava os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, com as suas raízes profundamente entranhadas na 'nova filosofia' do século XVII [...] [que] rejeitava todos os símbolos do passado que colocavam o misticismo acima da razão [...]" (Shorto, 2013, p. 103).

Na metade da obra, quando o autor discute sobre "A cabeça perdida", título do quarto capítulo, são narrados os mistérios do itinerário que ditaram a cena por trás dos restos mortais do arauto da filosofia moderna. Para o autor, os ossos de Descartes podem servir como uma metáfora da modernidade, posto que a peregrinação que subjaz à separação do crânio dos demais ossos do corpo de Descartes acaba remetendo à ideia central do cartesianismo, que é o postulado do domínio da mente sobre o corpo, do império da razão sobre a matéria e sobre a natureza (separação mente e corpo). O autor salienta que foi a partir dessa premissa (o método analítico) que a Academia de Ciências, principalmente na França, na primeira metade do século XIX, adotou "uma abordagem científica [...], organizando-se em divisões. Ao fazer isso, ajudou a definir a maneira como o conhecimento [tem se estruturado] nos departamentos universitários e nos institutos de pesquisa" (Shorto, 2013, p. 135).

No decorrer da obra, Shorto reforça o debate em torno da distinção cartesiana entre mente e corpo, salientando as contribuições, no campo da pesquisa cerebral, nos séculos XVIII e XIX, de dois seguidores de Descartes: Franz Joseph Gall, com a perspectiva da localização das funções cerebrais, e Jean-Pierre Flourens, crítico das concepções de Gall. Com base nisso, Shorto aponta para elementos que mostram a grande influência do método analítico cartesiano nos anos que se seguiram após a morte de Descartes, bem como para uma questão cara à modernidade: o cérebro como mente. Diante das premissas dos estudos cerebrais desse período, as ações da humanidade estariam reduzidas à dimensão física, a retalhos de matéria no interior do cérebro. "Os humanos seriam algo como máquinas elaboradas, cujo funcionamento poderia ser [...] completamente compreendido e mapeado (Shorto, 2013, p. 169-170). Acredita ainda que "[...] desde que Descartes separou as duas coisas, ninguém conseguiu uma maneira definitiva de soldar mente e cérebro novamente" (Shorto, 2013, p. 165-175).

Dirigindo-se para essa contemporaneidade, Shorto, criticamente, aponta para aquilo que ele denomina de um possível colapso da modernidade, na primeira década do século XX. Afirma o autor que as grandes enchentes que atingiram Paris, nos anos de 1910 e 1912, colocaram um ponto de interrogação na premissa cartesiana. Em 1910, "as águas da margem sul do Sena cobriram o quai'Austerlitz, varreram a rue Buffon e inundaram as galerias de antropologia do Museu de História Natural, enchendo seus salões até a altura de um metro e meio" (Shorto, 2013, p. 200). Em meio a essa reflexão sobre os limites da razão cartesiana no século XX, o autor traz a discussão sobre a autenticidade do crânio de Descartes. A partir disso, franceses, como Paul Richer e Lenoir, são trazidos à trama para mostrar-nos os diversos caminhos, lugares, diversas conspirações, verdades e descobertas que subjazem à história dos restos mortais, principalmente ao crânio de René Descartes. O crânio do "pai do Racionalismo moderno", por fim, situa-se, atualmente, no Museu de l'Homme (Museu do Homem), em Paris. Entretanto, as demais partes dos ossos mergulharam no esquecimento, ou, conforme ressalta Shorto (2013, p. 219), "[...] do pó ao pó. In secula seculorum".

Em "Uma face moderna", final da obra, Shorto (2013, p. 223) argumenta que, "se for justo atribuir a uma única pessoa o crédito da modernidade, ou a culpa pelos problemas dela advindos, Descartes é o primeiro candidato". Ademais, Descartes colocou o indivíduo (a mente humana) - sujeito que pensa de maneira autônoma - acima dos dogmas da Igreja e do Estado. "O surgimento da ciência moderna; do Iluminismo; da Revolução Industrial; do computador pessoal e da decifração do cérebro são produtos do cartesianismo" (Watson apud Shorto, 2013, p. 224). Em outras palavras, podemos destacar, assim como Watson, que o mundo moderno é, em sua essência, resultado da analítica cartesiana. René Descartes é, então, a face simbólica da modernidade, do nascimento do sujeito e, com ele, da própria subjetividade, mesmo que dentro dos limites da razão.

Léo Peixoto Rodrigues - Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas (PPGS/UFPel). Áreas de interesses de pesquisa vincula-se a diferentes abordagens da teoria social contemporânea (teoria sistêmica, pós-estruturalistas, incluindo a teoria do discurso da escola de Essex); sociologia do conhecimento, "Science studies"; história teórica das ciências sociais; epistemologia das ciências sociais. leo.peixotto@gmail.com

Gabriel Bandeira Coelho - Cientista Social. Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas e bolsista FAPERGS. Tem dedicado suas pesquisas à área da Sociologia da Ciência, com ênfase no debate sobre interdisciplinaridade no ensino superior brasileiro, sobretudo, na Pós-Graduação. gabrielbandeiracoelho@yahoo.com.br

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    Os ossos de descartes: mais que filosofia, um livro sobre a sociologia da ciência e dos costumes
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
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