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O MARXISMO DE ANDRÉ GORZ1 1 Traduzido do francês por Fabio Mascaro Querido. As observações entre colchetes no corpo do texto são da responsabilidade do tradutor.

THE MARXISM OF ANDRÉ GORZ

LE MARXISME D’ANDRÉ GORZ

Resumos

Gorz era marxista? Seria mais justo e mais apropriado falar de uma presença do marxismo no seu pensamento. Um pensamento que pode ser caracterizado como um socialismo ecológico - um ecossocialismo - que se inspira em Marx e em certos marxistas heterodoxos na sua crítica da sociedade (capitalista) existente e na sua formulação de um projeto de sociedade (comunista) alternativa. Há marxismo em Gorz, e sua obra, uma das mais importantes na ecologia crítica do século XX, não pode ser compreendida sem essa dimensão.

Palavras-chave:
André Gorz; Marxismo; Ecologia; Capitalismo; Ecosocialismo


Is André Gorz a Marxist? It would be more just, and more appropriate, to speak of a presence of Marxism in his thought. A thought that one could characterize as an ecological socialism - an ecosocialism - inspired in Marx, and other heterodox Marxists in his critique of (capitalist) society, and in his formulation of the project of an alternative (communist) society. There is Marxism in Gorz, and his work, being this latter one the most important in the critical ecology of twentieth century, which is not to be understood without this Marxist dimension.

Key-words:
André Gorz; Marxism; Ecology; Capitalism; Eco-socialism


Gorz était-il marxiste? Il serait plus juste, et plus approprié, de parler d'une présence du marxisme dans sa pensée. Une pensée qu'on pourrait caractériser comme un socialisme écologique - un écosocialisme - qui s'inspire de Marx et de certains marxistes hétérodoxes dans sa critique de la société (capitaliste) existante, et dans sa formulation d'un projet de société (communiste) alternatif. Il y a du marxisme chez Gorz, et son oeuvre, une des plus importantes dans l'écologie critique du 20ème siècle, n'est pas compréhensible sans cette dimension.

Mots-clés:
André Gorz; Marxisme; Écologie; Capitalisme; Ecosocialisme


INTRODUÇÃO

Esse título parece uma provocação: Gorz não deu, em 1980, “adeus ao marxismo”? Essa parece ser a opinião de muitos dos seus partidários ou adversários. Vejamos, porém, por contraste, o ponto de vista de um observador inteligente, distante, mas não desprovido de simpatia, Alain Touraine (1993 apud Gianinazzi, 2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 250).

André Gorz é o mais verdadeiramente marxista dos pensadores europeus e também - é preciso dizer: mas também? - o mais imaginativo e o mais ativamente antidoutrinário. Nele, o marxismo tem a força libertadora que tinha em… Marx, quando este criticava o jacobinismo francês ou a direita hegeliana.2 2 Agradeço a Gianinazzi por suas correções e sugestões bastante úteis a meu artigo.

O filósofo Arno Münster (2008MÜNSTER, A. André Gorz ou le socialisme difficile. Paris: Lignes, 2008., p. 44-45), gorziano eminente, constata, a um só tempo, a distância e o vínculo permanente de Gorz ao marxismo:

[…] apesar do seu ceticismo em relação a este conceito central da sociologia marxista, Gorz continua, após a publicação de Adeus ao proletariado, a raciocinar e pensar no quadro da maioria dos outros conceitos-chave da teoria marxista, buscando operar uma síntese entre a ecologia política e uma critica da economia política depurada de seus dogmas.

Enfim, Françoise Gollain (2014GOLLAIN, F. Andre Gorz, pour une pensée de l'écosocialisme. Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014., p. 10), outra importante gorziana, resume assim o seu itinerário: “Contra a tradição marxista dominante e vários escritos do próprio Marx, de um lado, e contra a ecologia compromissada com o status quo, de outro, [Gorz] buscou se inspirar no Marx humanista, antiprodutivista e libertário, pensador do advento de uma sociedade da associação".

Sem qualquer dúvida, o Gorz dos anos 1960 e 1970 se situava no campo do marxismo; um marxismo existencialista, próximo de Sartre (1972)SARTRE, J-P. Questão de Método. Tradução de Bento Prado Jr. São Paulo, Difusão Europeia de Livro, 1972., que havia proclamado em Questões de método: o marxismo é o horizonte insuperável de nosso tempo. Em 1968-1970, Gorz tendia para um esquerdismo terceiro-mundista que, segundo seu biógrafo Willy Gianinazzi (2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 129), “[…] se aproximava das posições neotrotskistas da Juventude Comunista Revolucionária (JCR)” de Daniel Bensaïd. Ele era também bastante próximo, pessoal e intelectualmente, do economista Ernest Mandei, o principal dirigente da Quarta Internacional: Gorz estudava e citava com frequência o famoso Tratado de economia política [de Mandei], e publicava seus artigos na revista Les Temps Modernes. Entre os seus amigos próximos encontrava-se o cientista político Jean-Marie Vincent, autor de trabalhos sobre a Escola de Frankfurt, que militava no PSU, nos anos 1960, e na Liga Comunista Revolucionária, na década de 1970. Nessa época, Gorz ligou-se igualmente ao grande filósofo marxista heterodoxo Herbert Marcuse, com o qual manteria um diálogo constante.

Mas, com Adeus ao proletariado (1980), Gorz não rompera, de forma definitiva, com o conjunto das ideias marxistas? O próprio autor pode nos dar a resposta mais pertinente à questão. Vejamos o que ele diz em uma entrevista a Marc Robert, publicada em Ecorev em 2005:

Adeus não tinha nada de uma crítica do comunismo, ao contrário. Meu alvo eram os maoístas, seu culto primitivista de um proletariado mítico […]. Era também uma crítica mordaz à social-democratização do capitalismo à qual se apegava o marxismo vulgar, assim como da glorificação do trabalho assalariado [Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 18).

Por certo, ao negar a centralidade da luta de classes e o papel emancipador do proletariado, Gorz se afastava de duas teses fundamentais do marxismo - e não apenas na sua forma maoísta ou social-democrata. No livro de 1980, ele tentou substituir a classe operária pela “não classe dos não trabalhadores”. Tratava-se de uma hipótese bastante arriscada, que ele parece abandonar em seguida, sem, porém, voltar ao “proletariado”. Gorz chega mesmo a afirmar, em uma entrevista com interlocutores brasileiros em 2005, que “[…] trabalho e capital são fundamentalmente cúmplices, para além de seu antagonismo, já que ganhar dinheiro é seu fim determinante". Ele parece reduzir aqui o ponto de vista dos trabalhadores ao sindicalismo corporativista mais estreito…3 3 A entrevista foi publicada com o título “A crise e o êxodo da sociedade salarial", nos Cadernos IHU - Ideias, n. 31, 2005, p. 9 [Nota do tradutor]. . No entanto, em 1983, em Les Chemins du paradis,4 4 Os caminhos do paraíso. Gorz havia desenvolvido uma visão bem mais nuançada desse antagonismo:

É pelo fato de tudo remeter a categorias económicas que o capitalismo é um anti-humanismo […]. As reivindicações operárias mais fundamentais e mais radicais foram contra a lógica econômica, contra a concepção utilitária, échangiste, quantitativista do trabalho e da riqueza (Gorz, 1983GORZ, A. Les Chemins du paradis: L'agonie du capital. Paris: Galilée, 1983., p. 101).

Gorz continua a se interessar pelo potencial subversivo dos precários e excluídos, mas, no mesmo texto de 2005, encontra-se a ideia, que me parece essencial, da convergência entre aqueles que têm e aqueles que não têm um trabalho: a estratégia de dominação do capital, escreve ele, consiste em “[…] impedir que trabalhadores e desempregados se unam a fim de exigir outra repartição do trabalho e da riqueza socialmente produzida” (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 143).

Seja como for, é evidente que a apropriação do marxismo realizada por Gorz é seletiva. Se é possível falar de um marxismo de Gorz - ou, se preferirmos, de uma ligação [attachement] ao pensamento de Marx e de alguns marxistas heterodoxos, de Marcuse a Robert Kurz -, ele se reporta, sobretudo, a duas questões (essenciais, é bem verdade) que estão no centro de seu engajamento ecológico, ou, para retomar o termo utilizado por Françoise Gollain (2014)GOLLAIN, F. Andre Gorz, pour une pensée de l'écosocialisme. Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014., ecossocialista: o anticapitalismo e a alternativa comunista como civilização do tempo livre.

Tentemos analisar esses dois momentos, referindo-nos, principalmente, à coletânea Ecologica, que reúne textos de diferentes períodos, constituindo uma espécie de testamento político-teórico de André Gorz.

O ANTICAPITALISMO

Como observa acertadamente Willy Gianinazzi (2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 216], a crítica marxiana do capital “[…] permanece, para Gorz, insubstituível: ele jamais cessará de nela se apoiar”. A crítica gorziana ao modo de produção capitalista, longe de ser suavizada, parece se radicalizar cada vez mais a partir de 1980, em conexão, sobretudo, com a sua reflexão sobre a ecologia. Por exemplo, em uma entrevista com Marc Robert, ele observa: "A ecologia mantém a sua carga crítica e ética tão somente se as devastações da Terra e a destruição das bases naturais da vida forem entendidas como consequências de um modo de produção, e que esse modo de produção exige a maximização, recorrendo a técnicas que violam os equilíbrios ecológicos”. E inversamente: a ecologia política, com sua teoria crítica das necessidades, “[…] leva, por outro lado, a aprofundar e radicalizar ainda mais a crítica do capitalismo” (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 15).

Em sua análise crítica dos danos ambientais do capitalismo, Gorz se refere diretamente a algumas passagens d'O Capital. Em entrevista concedida aos brasileiros da Unisinos (Gorz, 2005GORZ, A. A crise e o êxodo da sociedade salarial. Cadenos IHU Ideias. Ano 3. N° 31, 2005. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/031cadernosihuideias.pdf >. Acesso em: 30 nov. 2017.
http://www.ihu.unisinos.br/images/storie...
, p. 11), por exemplo, ele assinala:

Sob o ângulo ecológico, a aceleração da rotação do capital conduz à exclusão de tudo o que diminui de imediato o lucro. A expansão continuada da produção industrial envolve, pois, uma pilhagem acelerada dos recursos naturais. A necessidade de expansão ilimitada do capital o conduz a tentar abolir a natureza e os recursos naturais, para substituí-los por produtos fabricados, vendidos com lucro […]. O que Marx escrevia, há 140 anos, no primeiro livro de O Capital, é de uma espantosa atualidade.

Em seguida, Gorz cita a célebre passagem d’O Capital em que Marx constata que "[…] cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o solo, uma vez que cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade" (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 137-139).

Curiosamente, são poucas as críticas de Gorz aos limites da reflexão ecológica em Marx. Ele não segue os ataques de inúmeros ecologistas (Alain Lipietz, dentre outros) contra o suposto “prometeísmo” de Marx, que se basearia na ideia de dominação ou “conquista” da natureza. O debate sobre os avanços e as contradições de Marx e Engels a propósito da relação com a natureza, que muito ocupou os ecomarxistas norte-americanos, dos anos 1980 até boje, não parece lhe interessar. Ao que parece, Gorz não conhecia os trabalhos de James O’Connor e Joel Kovel, editores da revista Capitalism, Nature and Socialism, ou, nos anos 2000, de John Bellamy Foster e Paul Burkett, da Monthly Review.

A crítica do capitalismo e a urgência de sair desse sistema destrutivo ganham uma nova dimensão com as mudanças climáticas. Em um dos seus últimos escritos, igualmente publicado em Ecorev, “La sortie du capitalisme a déjà comencé”5 5 A saída do capitalismo já começou. (2017), Gorz (2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 29) insiste: "A questão da saída do capitalismo jamais foi tão atual. Ela se coloca em termos e com a urgência de uma nova radicalidade”. Rejeitando as ilusões da ecologia social-liberal em torno de um capitalismo verde, ele endossa uma visão decididamente anticapitalista do decrescimento e afirma a necessidade, diante da crise climática, de uma transformação civilizacional radical:

É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica imperante há cento e cinquenta anos […]. O decrescimento é, portanto, um imperativo de sobrevivência. Mas ele implica outra economia, outro estilo de vida, outra civilização, outras relações sociais (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 29).

Há ainda, porém, outro aspecto da análise gorziana do capital que o aproxima de certos escritos de Marx: o otimismo tecnológico… Por exemplo, no livro I d’O Capital, Marx afirma:

A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Ele se estilhaça em pedaços. Soa a hora final da propriedade privada […]. A produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo natural, sua própria negação… (Marx, 1969MARX, K. Le Capital. Tradução de Joseph Roy. Paris: Editions Sociales, 1969. tome I., p. 556-567).6 6 Tradução - ligeiramente modificada - a partir da edição em português: Karl Marx, O Capital, v. I, t. II, op.cit. (N.T.).

Pessoalmente, como “ecomarxista”, discordo desse tipo de raciocínio… Não apenas porque não existem “fatalidades” na história social, mas também porque o capitalismo não constitui somente um “invólucro”: ele determina a própria natureza da produção e de suas forças produtivas.

Mas, em Gorz, o argumento de Marx aparece sob uma forma modificada, à luz das transformações tecnológicas contemporâneas (informática, Internet, etc.). Ele parece convencido que, graças aos softwares livres, “[…] a propriedade privada dos meios de produção e, portanto, o monopólio da oferta se tornam progressivamente impossíveis […]. Trata-se de uma ruptura que mina o capitalismo em sua base” (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 39); ou ainda, que “[…] o próprio capitalismo, sem o desejar, contribui para a sua própria extinção ao desenvolver as ferramentas de uma espécie de ofício high tech”. (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 116) Em suma, como o observa Willy Gianinazzi (2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 319), o software livre alimentou "[…] as esperanças mais utópicas, se não mais infundadas de Gorz”. Françoise Gollain também se distancia desse otimismo tecnológico, constatando, com acuidade, suas afinidades com algumas análises de Marx: "A assertiva segundo a qual ‘o capitalismo, sem o desejar, contribui para a sua própria extinção’ […] carrega a marca indelével da concepção marxista do papel revolucionário da evolução da estrutura da produção” (Gollain, 2014GOLLAIN, F. Andre Gorz, pour une pensée de l'écosocialisme. Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014., p. 51-52).

Felizmente, Gorz escapa da armadilha desse fatalismo otimista, isto é, da crença na autodestruição do capitalismo - crença compartilhada, em ampla medida, por Robert Kurz e os teóricos da crítica do valor -, graças a seu humanismo marxista sartriano, refratário aos determinismos e sedento de liberdade. Em Métamorphoses du travail (1988), por exemplo, ele se afasta claramente de todo automatismo desse tipo: “Nós não nos liberaremos por um determinismo material à revelia do nosso conhecimento. O potencial de libertação contido em um processo apenas se atualiza se os homens dele se apoderam para se libertar” (Gorz, 1988GORZ, A. Métamorphoses du travail, quête de sens: Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988., p. 225-226).

Outra correção feita por Gorz diz respeito, como observa F. Gollain (2014GOLLAIN, F. Andre Gorz, pour une pensée de l'écosocialisme. Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014., p. 51-52), à tomada de consciência da ambivalência estrutural das novas tecnologias, como a microeletrônica, que podem servir tanto à hipercentralização quanto à autogestão. Sem aderir à tecnofobia de alguns ambientalistas, Gorz não está menos convencido de que “o socialismo só é superior ao capitalismo se ele mudar de instrumentos”. Em entrevista a Marx Robert, ele retoma essa fórmula, já presente em Ecologia e Política (edição de 1978), explicando-a assim (referindo-se mais uma vez aos Grundrisse): se “[…] a classe operária […] se apodera dos meios de produção do capitalismo sem os transformar radicalmente, ela acabará por reproduzir (tal como ocorrido nos países sovietizados), o mesmo sistema de dominação” (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 17) - e, poder-se-ia acrescentar, o mesmo sistema de destruição do meio ambiente.7 7 Surpreendentemente, nessa entrevista com Marc Robert, sem dúvida um dos textos mais importantes do último Gorz, a classe operária reaparece como sujeito da transformação social…

O COMUNISMO, CIVILIZAÇÃO DO TEMPO LIVRE

Gorz é devedor de Marx não apenas em sua crítica do capitalismo, mas também na sua concepção desse outro modo de produção, dessa outra civilização que ele próprio conclama: o socialismo (ou comunismo). Vejamos o que escreve em Ecologica:

Somente o socialismo - ou seja: somente um modo de produção livre do imperativo do lucro máximo, gerido no interesse de todos e por todos aqueles nele concernidos - pode criar as condições para a busca da maior satisfação com o menor custo possível. Somente [o socialismo] pode romper com a lógica do máximo lucro, do máximo desperdício, da produção e do consumo a todo custo, substituindo-os pelo bom senso econômico: o máximo de satisfação com o mínimo de custo […]. A utilização do termo ‘socialismo’ é, aliás, impróprio. É acima de tudo de comunismo que seria preciso falar […] (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008.].

Ele afirma ainda algumas linhas depois: "A própria ideia […] de que a busca de ‘mais’ e ‘melhor’ possa ceder lugar à busca de valores extraeconômicos e não mercantis, essa ideia é estranha à sociedade capitalista. Ela é, por outro lado, essencial ao comunismo” (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 98-100).

O que significa, traduzido em termos ecológicos: somente o socialismo ou comunismo pode superar o produtivismo e o consumismo que conduzem à destruição do meio ambiente natural. Evidentemente, o comunismo do qual fala Gorz não é aquele dos países do pretendido “socialismo real”, mas sim uma espécie de ecocomunismo de novo tipo. O significado humano e ecológico do comunismo é o da civilização do tempo livre. Gorz se refere aqui a uma célebre passagem de Marx, no volume III d’O Capital:

O reino da liberdade começa onde termina o trabalho determinado pela necessidade e pelos fins exteriores: pela própria natureza das coisas, ele se encontra fora da esfera da produção material […]. Nesse domínio, a liberdade só pode consistir no seguinte: o ser humano socializado [vergesellschafte Mensch], os produtores associados regulam racionalmente este metabolismo [Stoffwechsel) com a natureza, submetendo-o ao seu controle coletivo, ao invés de serem por ele dominados como um poder cego: eles executam com os menores esforços possíveis, nas condições mais dignas de sua natureza humana e mais adequadas a esta natureza. É mais além deste reino [da necessidade] que começa o desenvolvimento das faculdades do ser humano, que é o seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer apoiando-se neste reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental [Marx, 1934MARX, K. Morceaux Choisi. Tradução de Henri Lefebvre et Norbert Gutermann. Paris: Gallimard, 1934., p. 234-235, grifo do autor],8 8 Tradução ligeiramente corrigida. Cf. Marx, Engels, Werke, V. 25, Berlin, Dietz Verlag, 1968, p. 828.

Em vários de seus escritos, Gorz traduz essa abordagem em termos ecológicos; em artigo de 1992 na revista Actuel Marx, por exemplo, ele escreve:

[…] o sentido fundamental de uma política ecossocialista […] é o de restabelecer politicamente a correlação entre meios de trabalho e meios de consumo, de um lado, mais autonomia e mais segurança existencial, de outro, para todos e todas. Trata-se, noutras palavras, de garantir institucionalmente aos indivíduos que uma redução do tempo de trabalho possibilitará a todos […] uma vida mais livre, mais descontraída [détendue] e mais rica (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 66-67).

Gorz se refere também a um trecho dos Grundrisse de Marx, em que ele proclama:

O livre desenvolvimento das individualidades e […] a redução ao mínimo do trabalho socialmente necessário (tomam-se o objetivo da produção], ao qual corresponde o desenvolvimento artístico, científico, etc., dos indivíduos […]. A medida da riqueza não é mais, então, o tempo de trabalho, e sim o tempo livre. (Marx, 1934MARX, K. Morceaux Choisi. Tradução de Henri Lefebvre et Norbert Gutermann. Paris: Gallimard, 1934., p. 596).9 9 Tradução em francês do próprio Gorz, cf. W. Gianinazzi, André Gorz, p.104-105.

Comentando essa passagem e outras parecidas dos Grundrisse, Gorz escreve, num texto de 2001:

Considerar o desenvolvimento das faculdades humanas como criação de riqueza implica […] abandonar uma concepção mercantil-utilitária-economicista da riqueza. Tomar o desenvolvimento humano como fim em si mesmo significa que ele vale por si, independentemente de sua utilidade econômica imediata (Gorz, 2001 apud Gianinazzi, 2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 305).

Essa ruptura com a concepção capitalista da riqueza é, para Gorz, um passo fundamental na direção de uma nova civilização ecológica, para além do produtivismo e do consumismo. Em um ensaio significativamenle intitulado “Construir a civilização do tempo livre” (1933), Gorz (199 apud Gianinazzi, 2016GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016., p. 299) reivindica “[…] uma sociedade na qual a riqueza será medida pelo tempo livre do trabalho, pelo tempo disponível para as atividades que comportam em si mesmas seu sentido e finalidade, confundindo-se com o desenvolvimento da vida”. Esse argumento é, portanto, diretamente inspirado pelos escritos de Marx, mas também aqui Gorz lhe confere uma nova dimensão, socioecológica, que não necessariamente está presente no autor dos Grundrísse. Evidentemente, é preciso não confundir esse tempo liberado - um tempo autodeterminado e fora do trabalho - com o "lazer" que o sistema capitalista concede ao trabalhador para a regeneração de sua força de trabalho.

No extrato do livro três dO Capital acima citado, Marx se refere aos "[…] produtores associados, [que] regulam racionalmente este metabolismo (Stoffwechsel] com a natureza, submetendo-o ao seu controle coletivo": é a ideia da planificação socialista da esfera do trabalho necessário que é aqui sugerida. O conceito de planificação - presente em seus artigos sobre a Iugoslávia ou em Stratégie ouvrière et néocapitalisme [1964] - não é encontrado com frequência nos escritos de Gorz após 1980, mas pode ser visto, em termos explicitamente marxianos, em Adeus ao proletariado; trata-se de uma passagem retomada (e reformulada] em Ecologica:

A esfera da necessidade, e, portanto, do tempo de trabalho socialmente necessário só pode ser reduzida ao mínimo através de uma coordenação e uma regulação tão eficiente quanto possível dos fluxos e dos estoques: ou seja, através de uma planificação desmultiplicada [démultipliée] […]. A única função de um Estado comunista consiste em administrar a esfera da necessidade (que é também a das necessidades socializadas) de tal modo que ela continue a encolher, tornando disponíveis espaços crescentes de autonomia (Gorz, 2008GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008., p. 104-110, grifo do autor].10 10 Trata-se de uma citação bastante modificada em relação à primeira. Aqui a passagem original: "A expressão da esfera da liberdade supõe que a esfera da necessidade seja claramente delimitada e codificada. Essa delimitação e essa codificação são, por essência, as tarefas do político. Este não tem por vocação exercer o poder, mas sim atribuir ao Estado as missões e os mecanismos de gestão mais bem adequados ao encolhimento da esfera da heteronomia e à extensão da esfera da autonomia” (Gorz, 1981, p. 184).

Para concluir: Gorz era marxista? Se considerarmos a existência, segundo a bela fórmula de André Tosei, de "mil marxismos”, não seria possível imaginar também um “marxismo gorziano"? Não creio. Mesmo porque, o próprio Gorz, após 1980, não se reconheceria em tal definição. Parece mais justo e apropriado falar de uma presença do marxismo no seu pensamento. Um pensamento que poderia ser caraterizado como um socialismo ecológico - ou, na perspectiva dos gorzianos Arno Münster e F. Gollain, um ecossocialismo - que se inspira em Marx e em certos marxistas heterodoxos na sua crítica da sociedade (capitalista] existente, assim como na sua formulação de um projeto de sociedade (socialista] alternativa. Como é sugerido pelo título deste artigo, há marxismo em Gorz, e sua obra, uma das mais importantes na ecologia crítica do século XX, não é compreensível sem essa dimensão.

  • 1
    Traduzido do francês por Fabio Mascaro Querido. As observações entre colchetes no corpo do texto são da responsabilidade do tradutor.
  • 2
    Agradeço a Gianinazzi por suas correções e sugestões bastante úteis a meu artigo.
  • 3
    A entrevista foi publicada com o título “A crise e o êxodo da sociedade salarial", nos Cadernos IHU - Ideias, n. 31, 2005, p. 9 [Nota do tradutor].
  • 4
    Os caminhos do paraíso.
  • 5
    A saída do capitalismo já começou.
  • 6
    Tradução - ligeiramente modificada - a partir da edição em português: Karl Marx, O Capital, v. I, t. II, op.cit. (N.T.).
  • 7
    Surpreendentemente, nessa entrevista com Marc Robert, sem dúvida um dos textos mais importantes do último Gorz, a classe operária reaparece como sujeito da transformação social…
  • 8
    Tradução ligeiramente corrigida. Cf. Marx, Engels, Werke, V. 25, Berlin, Dietz Verlag, 1968, p. 828.
  • 9
    Tradução em francês do próprio Gorz, cf. W. Gianinazzi, André Gorz, p.104-105.
  • 10
    Trata-se de uma citação bastante modificada em relação à primeira. Aqui a passagem original: "A expressão da esfera da liberdade supõe que a esfera da necessidade seja claramente delimitada e codificada. Essa delimitação e essa codificação são, por essência, as tarefas do político. Este não tem por vocação exercer o poder, mas sim atribuir ao Estado as missões e os mecanismos de gestão mais bem adequados ao encolhimento da esfera da heteronomia e à extensão da esfera da autonomia” (Gorz, 1981GORZ, A. Adieux au prolétariat: au-delà du socialisme. Paris: Seuil, 1981., p. 184).

REFERÊNCIAS

  • GIANINAZZI, W. André Gorz, une vie. Paris: La Découverte, 2016.
  • MÜNSTER, A. André Gorz ou le socialisme difficile. Paris: Lignes, 2008.
  • GOLLAIN, F. Andre Gorz, pour une pensée de l'écosocialisme. Neuvy-en-Champagne: Le Passager Clandestin, 2014.
  • GORZ, A. Adieux au prolétariat: au-delà du socialisme. Paris: Seuil, 1981.
  • GORZ, A. Les Chemins du paradis: L'agonie du capital. Paris: Galilée, 1983.
  • GORZ, A. A crise e o êxodo da sociedade salarial. Cadenos IHU Ideias. Ano 3. N° 31, 2005. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/031cadernosihuideias.pdf >. Acesso em: 30 nov. 2017.
    » http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/031cadernosihuideias.pdf
  • GORZ, A. Ecologica. Paris: Galilée, 2008.
  • GORZ, A. Métamorphoses du travail, quête de sens: Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988.
  • MARX, K. Le Capital. Tradução de Joseph Roy. Paris: Editions Sociales, 1969. tome I.
  • MARX, K. Morceaux Choisi. Tradução de Henri Lefebvre et Norbert Gutermann. Paris: Gallimard, 1934.
  • MARX, K. Grundrísse des Kritik der politischen ökonomie, Berlin, Dietz Verlag, 1953, p. 596.
  • SARTRE, J-P. Questão de Método. Tradução de Bento Prado Jr. São Paulo, Difusão Europeia de Livro, 1972.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2017
  • Aceito
    31 Jul 2017
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